11/14/14

A INSTRUÇÃO PÚBLICA NO DISTRITO DE CABO DELGADO, EM 1885, SEGUNDO O SEU GOVERNADOR, MAJOR PEDRO FRANCISCO DE ORNELAS PERRY DA CÂMARA

Carlos Lopes Bento[1]

Pela sua importância para a História de Moçambique e de Portugal, nos tempos que passam, tanta vez esquecida ou negada, pelas novas gerações de ambos os Países, venho lembrar o que o governador Perry da Câmara escreveu, em 1885, sobre o ensino na Vila do IBO:

Uma das necessidades do distrito mais impreterível e inadiável é a instrução, porque sem ela pouco se pode caminhar na senda do progresso.

Desenvolver os melhoramentos materiais, alargar a esfera das atribuições administrativas, dar ao município a autonomia que lhe é inerente, remodelar a organização judiciária, finalmente, acompanhar os progressivos anelos da civilização é realmente muito, se a par de todos estes benefícios nós conseguíssemos, por meio da instrução, educar os espíritos para bem compreenderem todos esses melhoramentos.

Deixar o povo na ignorância é criar um obstáculo permanente á realização de todas essas nobres aspirações, é conservar um desequilíbrio, cuja resultante é a desmoralização nos costumes públicos e particulares, sem que possa pedir-se aos delinquentes a responsabilidade das suas culpas, porque, previamente, se lhes não dera a noção exacta dos seus deveres.

Em 26 de Maio último, propus, em ofício n.° 41, a cedência de uma casa pertencente ao Estado para servir e ser apropriada ao edifício da escola da vila.

As razões que me obrigaram a lançar mão deste alvitre devem ser aqui enumeradas para que todos possam fazer um juízo seguro do precário estado a que tinha chegado a escola régia da sede do governo.

A casa da escola, além de acanhada, não tem nenhuma das condições exigidas para estabelecimentos desta ordem.

Sem ventilação, mal mobilada, pouco asseio, escassa luz, não admira que fosse também mal frequentada.

Na visita que ali fiz verifiquei a pouca concorrência de alunos e, em vista do espectáculo que se me deparava, expliquei imediatamente esse facto pelas condições insalubres do edifício.

Entendi, e não me pesa de o ter entendido, que sem uma casa própria era impossível aumentar a frequência dos alunos, e como era possível com uma despesa relativamente módica obter edifício acomodado ao fim, lembrei e indiquei a aplicação da casa, que tinha em tempo servido de delegação da fazenda, para estabelecimento das aulas.

Esta proposta foi aprovada, obrigando-se a fazenda a fornecer 350$000 réis para as obras necessárias e para compra de mobília adequada.

Fazemos votos para que o ilustre funcionário que nos substituiu compreendendo bem a importância do assunto, tenha concluído esse melhoramento que por proposta nossa foi iniciado.

Já que estamos tratando desta matéria, queremos deixar consignada a nossa opinião sobre este assunto.

Uma das causas ou talvez a única da decadência da instrução nas nossas colónias, é a exiguidade dos ordenados arbitrados aos professores.

Com 25$000 réis mensais é impossível a vida em qualquer das nossas possessões e não se compreende nem se pode esperar que um homem com uma certa ilustração se desloque do seu país e se sujeite aos sacrifícios e amarguras que impem o professorado para receber como recompensa dos seus trabalhos um tão minguado salário.

É preciso aumentar o vencimento dos professores do ultramar e é possível que com o estímulo de uma boa retribuição se ofereçam homens novos, robustos e instruídos para irem levar a luz da ciência àquelas paragens onde as trevas da ignorância são densas e opacas.

40$000 réis mensais não seria vencimento exagerado, e se houvesse uma escolha escrupulosa do pessoal docente enviado da metrópole para as nossas possessões temos a certeza de que se daria um grande passo para a prosperidade delas.

Estas considerações sugeriram-nos outras não menos importantes: a necessidade de enviar missionários para os pontos indicados pelos governadores dos distrito.

Este assunto devia merecer uma atenção especial a todos aqueles que estão encarregados de velar pelo engrandecimento dos nossos domínios coloniais.

O missionário é um dos mais poderosos elementos de civilização de que podemos dispor, se os homens designados por aquele qualificativo correspondessem cabalmente à amplitude das múltiplas funções que lhes incumbem.

A nosso ver a teologia é a ciência mais dispensável naqueles homens.

Entre os gentios as demonstrações à priori da existência de Deus são extemporâneas e inoportunas e achamos que melhor serviço prestariam os missionários, se em vez de noções de alta filosofia eles levassem ideias gerais sobre as ciências que se podem aplicar ás artes e aos ofícios, e que são de uma aplicação prática e proveitosa.

A redenção das almas, para nós, consiste na aquisição das noções exactas dos deveres, quer eles digam respeito ás relações entre o homem e o homem, ou entre o homem e Deus.

No momento em que nos sertões de África aparecessem missionários suficientemente instruídos e decididamente dedicados, que se propusessem a ensinar aos selvagens a significação verdadeira dos objectos que lhes impressionam os sentidos, e lhes inspirassem o amor pelo trabalho, obrigando-os a fazer uso profícuo das matérias primas que numa variedade prodigiosa a natureza por lá derramou a flux; a compreender as relações que ligam entre si os homens para poderem viver em sociedade; a perceber que o direito de propriedade é universalmente reconhecido, e que a fé dos contratos é sagrada; a respeitar a lei e o princípio da autoridade, e as variadíssimas noções gerais que ilustram o espírito dos homens civilizados, nós teríamos facilitado a administração das nossas províncias ultramarinas, teríamos garantida a fidelidade da vassalagem daqueles potentados e teríamos acendido o facho da civilização naqueles vastíssimos domínios, onde impera a ignorância, porque nós não sabemos ou descuramos regenerá-los pelos meios únicos que conhecemos as escolas e as missões.

A extinção dos conventos nas nossas possessões ultramarinas foi, a nosso ver, um gravíssimo erro de administração colonial e bem avisadamente teria procedido o governo, se em vez de destruir completamente àquelas colectividades as tivesse obrigado a aceitar a fiscalização do poder civil que podia aproveitá-las em beneficio comum.

Os conventos eram uma escola prática e teórica de todos os progressos das ciências e das artes, e a disciplina monástica um meio poderoso para o desenvolvimento intelectual dos que procuravam na comunidade a instrução e o bem-estar.

Não é para aqui a discussão da tese de serem as comunidades religiosas um perigo social; mas tem aqui cabimento a sinceridade da nossa opinião que reconhece que com outra organização, os mosteiros seriam, nas nossas possessões ultramarinas, um auxiliar poderoso para o derramamento da instrução e para a boa administração dos distritos.

O frade, pela índole da posição em que se via colocado, já pelo voto, já pela regra da disciplina, tinha condições especiais para exercer o magistério nos vastos sertões africanos, e levar a luz da civilização ao seio de todas as povoações selvagens que estão disseminadas pelo interior dos extensíssimos domínios.

As ruínas, que, ainda hoje, se admiram e os pretos veneram, dos grandiosos mosteiros que eles lá edificaram atestam de sobejo a importância e o excedente que eles souberam adquirir naquelas paragens.

O que levamos dito não, significa que seja desejo nosso a criação de estabelecimentos daquela natureza, o que queremos é consignar desassombradamente a nossa opinião de que em vez de se destruírem, se deveria ter remodelado o modo de ser daquelas colectividades para termos nelas as escolas profissionais em que se educassem os mestres, que por determinação do governo fossem distribuidor pelas povoações do interior, onde ensinassem o que tinham aprendido no internato da clausura.

Vê-se, pois, qual é o nosso pensamento a esse respeito.

O colégio das missões ultramarinas não satisfaz ao fim para que foi criado.

Além dos poucos missionários que produz não lhes dá a educação apropriada e especial de que careciam.

Os pretos não necessitam, somente, da moral evangélica, precisam, ao mesmo tempo, da educação profissional e da instrução, embora fosse superficial, necessária para a harmonia das relações sociais.

Os missionários franceses distinguem-se, por isso, pela variedade da instrução que possuem e pela aptidão que desenvolvem entregando-se ao ensino complexo das ciências, das artes e das profissões.

[1] - Antropólogo e administrador dos concelhos dos Macondes, Ibo e Pemba entre 1967 e 1974. Director Tesoureiro da S.G. Lisboa.

10/17/14

18 de Outubro de 2014 - DIA DA CIDADE DE PEMBA

 56º ANIVERSÁRIO DE PEMBA


10/06/14

A HORA DAS CIGARRAS - GLÓRIA DE SANT'ANNA


VEIO COM A MARÉ DA SAUDADE... POESIA DO MAR AZUL DE PEMBA

A música, as palavras, os ambientes de África.

 Poesia de Glória de Sant'Anna. Música: Pierre Aderne e Cuca Roseta, Maria Bethânia, Los Super Seven, Vadu, Lila Downs, Jussara Silveira, Touré Kunda, Paulo Flores, Gloria de la Niña Rivera. 
Primeira Emissão: 08 Set 2014
Duração: 43m - Um programa do escritor angolano José Eduardo Agualusa dito por Ana Paula Gomes, baseado em textos e músicas do continente africano.


8/31/14

O CRISTO DE PAU PRETO

(Clique na imagem para ampliar)

O hotel dos sul-africanos, rodesianos e laurentinos endinheirados regozijava na noite morna. Luzes de cenário furavam as sombras das palmeiras de luxo que as pobres estavam no mato misturadas com os cajueiros e as imbilas. Carros espelhantes entravam e saíam em ritmo de recepção oficial. Negros de libré salamalecavam de um lado para o outro. No tecto, lustres prateados desenhavam figuras de cera. Os sussurros das vozes sugeriam futilidades e alguns risos tilintavam hipocrisias. O calor desfibrava o cacimbo e o ar flutuava de lubricidade. As fardas brancas, número um, de peitos medalhados, pareciam disfarces de corso e as piscinas espelhos polidos em que se reflectia a lua.

Uma névoa de leite descia para o Índico, um cargueiro apontava a proa para o Cabo, almadias diligenciavam marisco, a cidade adormecia embrulhada na indolência.

João deixara o Norte, muito para lá do Zambeze, os fornilhos dos atalhos de pé descalço, as minas dissimuladas na terra vermelha das picadas, o estalar das culatras das armas sem religião. Os homens que combatiam tinham coração e um Deus, mas disso se esqueciam quando os indicadores puxavam os gatilhos e as balas explodiam a morte. Agora, estava ali, embasbacado diante dos portões do hotel rico, espia da curiosidade a deambular sem mapa, pensando que, enquanto uns andavam de camuflados desbotados pelo suor, o sangue e a poeira, sujeitos a levar com um tiro ou um estilhaço nos cornos, cá em baixo, na capital provincial, os que gizavam nos mapas, em gabinetes climatizados, as operações de grande envergadura, escreviam sitrepes e perintrepes, comunicados para a Imprensa e convites para repórteres vendidos, desfrutavam as delícias do requinte colonial.

A guerra parecia-lhe uma função dividida entre fazedores de lixo e os que o recolhiam, ou, para não ser tão prosaico, um jogo de xadrez em que os peões são sempre as primeiras vítimas e os bispos, na sua obliquidade, os defensores do rei, com a rainha debaixo de olho, sem descurar os saltos dos cavalos ou a rectilínea das torres.

Sentiu uma saudade desculpável, que mais não era do que um desconforto perante o fausto que o agredia. Lembrou-se das noites de petrolina, das escâncaras do céu, do silêncio falante para lá do arame farpado, do calor gorduroso a derreter-se sob a orvalhada que crescia entre as copas do matagal, da espera do grupo que, à volta de Nangololo, pediria para que as armas não gritassem; recordou o Silva, a sua alegria para sempre perdida; o medo tão físico e manifesto que se cruzava nos olhares, misturava-se com o cheiro a urina das latrinas no canto mais afastado do polígono; a angústia dosanoiteceres - porque se o dia mostrava as formas que aquietavam os espíritos, a escuridão inquietava-os - que aumentava a espera dos sitiados. Percebeu-se necessitado de alguém que lhe falasse, um abraço sem factura, um beijo de uma boca que nunca mais visse, uns olhos que não lhe lembrassem raiva, nem loucura, nem teimosia; alguém que o entendesse sem lhe perguntar quem era, donde vinha, nada lhe impusesse nem exigisse, lhe murmurasse apenas que estava ao seu lado. Não era amor que ele pedia, só fraternidade, aquela ajuda que nunca se recusa a uns olhos aflitos, aquele preenchimento do vazio do egoísmo do mundo. Olhou as luzes embaciadas da cidade numa respiração de chafurda lacustre, os guindastes do cais do Gorjão como espectros dum filme de docas secas, um ar de desamparo que lhe exagerava a clausura.

Desceu por ruas sem passeios, ornadas de árvores, absorvendo aquele odor único de humidade e catinga, com as buganvíleas trepando pelos muros das casas e os cães despertados pelos seus passos. Tentaria um machimbombo para o levar ao centro, à avenida em que desfilara pela última vez. Depois, retrocederia para o porto e, nos botequins da rua Araújo, esperaria o amanhecer.

À porta, negros, em riso de folga, balouçavam ao ritmo do rádio que um deles segurava em cima do ombro. Não seriam macondes nem ajauas, talvez senas. Ao fundo, um cocuane, de cigarro ao contrário, avivou-lhe a memória de um maconde de cabelos brancos que lhe vendera um Cristo em pau preto: «Chi! É caro cem escudo? Arranja mais barato no Lisboa? Patrão, faz favorzinho, num diz qué caro!» Comprou e deu vinte de mata-bicho.

Negras, brancas, mulatas e algumas de ascendências asiática tinham o mesmo objectivo: a venda do corpo, a chantagem das privações dos meses a armazenar esperma, o acicate das bebidas com percentagens acertadas. A música de ritmos acelerados não deixava escutar ninguém, o suor rançoso não separava perfumes, os corpos meios desnudos alvoraçavam desejos, a promiscuidade não respeitava educações, reinava a avidez pelos que ostentavam mais dinheiro, não subsistiam fronteiras, uma desordem venial acotovelava-se e apalpava-se por entre gargalhadas e tonturas de bebidas falsificadas.

Cá fora, a balbúrdia não tinha tons nem modos, a rua era um esgoto de detritos, vómitos de misturas, escarros de bronquites relentadas, um metralhar de palavrões, «Estou farto deles! Só mandam vir e não fazem nada! Vou pró Puto e quero que se fodam todos!», uma náusea de sombras desconfiadas e gonorreias mal curadas. A bruma de algodão penetrava as roupas e adivinhava as formas. Era a neblina das noitesafricanas que manchava as ilusões dos poetas sem editores, feitos guerrilheiros à força  pelos facínoras do Terreiro do Paço. Os barcos, fundeados, simbolizavam rumos velhos traçados pelo leme de uma Pátria que, entre a liberdade e a mordaça, sempre andara fora de casa a engrandecer ou a desbaratar o seu futuro.

Acima do Zambeze ficariam as suas pegadas, diluir-se-iam as lágrimas das saudades dos seus mortos. Olharia de frente, sem medalhas, a sua história. Em Mafra haviam-lhe dito que «o Rei não manda chover, manda marchar!» Marchou. O Cristo de pau preto, numa mesa de cabeceira da casa onde nascera, seria o grito refreado da memória desses dias.
- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

8/25/14

OS POETAS NÃO MORREM!

Eduardo White - Wikipédia
Prémio Literário Glória de Sant'Anna 2013

7/26/14

GERAÇÃO ESQUECIDA

(Clique na imagem para ampliar)

O mato é verde como a esperança,
denso e forte como a paixão,
cheira a catinga e a feitiçaria,
a queimadas vermelhas na escuridão.
O mato é um céu aberto,
uma prisão com canos escondidos,
o limite de quem não se sente liberto,
um poema de gritos e gemidos.
O mato é música e sensualidade,
negra desnudada num banho de sol,
cabelo enrolado como um caracol,
a gritar e a correr em liberdade.
O mato é o medo que se escapa pelos trilhos,
a desconfiança aos camuflados que chegam,
a fera com cio vagueando desvairada,
suor da arte maconde ainda não prostituída,
O mato é o silêncio duma espera
a angústia sofredora de quem desespera,
tiroteio rasgando em carne viva.
O mato é a castanha de cajú,
água do coco e papaias do desejo,
caçadas de reis sem roque e sem reino,
armas em brasa na guerra sem leis.

E em África jovens se gastaram,
em tempo dobrado esperaram,
que não fosse preciso matar e morrer
para que os homens se entendessem.
Choravam pelos filhos que nasciam
pelos amigos que morriam,
e eles matando e sobrevivendo
e eles ferindo-se e morrendo.
Tinham na Alemanha próteses à espera,
na pele o sol e a chuva,
na alma uma fartura de mato,
nas mãos o cheiro do capim,
nos dedos os calos do gatilho,
nos olhos a lonjura da savana,
na saudade a viagem do regresso,
no coração a surpresa da cilada,
nos ouvidos os assobios das balas,
em Alcoitão cadeiras de rodas,
em Artilharia Um o desalento triste,
nos cemitérios valas já prontas,
nos pés arrastavam o cansaço,
no pensamento silenciavam PORQUÊ?
no corpo o desejo de amar da idade,
conforme o sorriso dos lábios e a vontade
de abraçar a mulher tão longe, tão distante.

Geração esquecida pelo antigo mando,
silenciada pelo novo mando,
por todos os mandos imprestáveis,
por todos os mandos sem orgulho,
sem raiva e sem mãos limpas.

Continuaremos a ser a geração
Sem diamantes nos dedos
e sem presas na arrecadação.

- M. Nogueira Borges*, Porto. Escrito em junho de 1978. Atualizado em Julho de 2014.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!