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12/06/09

Contos E Poesias do Índico - HUVILO



(Clique na imagem para ampliar. Gravura fictícia formada por imagens livres recolhidas na net)

Corria o ano de 1840. Nas terras do velho Mbavala, o rei makonde, o sol caia vermelho colorindo o manto verde da floresta. Um grande grupo de guerreiros makondes de troncos nus e com as partes intimas cobertas de pedaços de pano encardido, adquirido nos comerciantes árabes e aventureiros swahil, acompanhavam atentamente, no terreiro da povoação, o discurso contagiante do rei Mbavala. Enquanto discursava, corria nas suas terras, de boca em boca, a surpreendente notícia de aproximação de um grupo Nguni que raptava homens e mulheres e cobrava coersivamente tributos às populações das povoações que ia atacando enquanto avançava em direcção ao extremo norte do actual território de Moçambique. O grupo pertencia a um outro grande grupo de guerreiros Nguni proveniente de Zwangendaba que, por volta de 1837, estivera no vale do Zambeze e em zonas limítrofes semeando terrores entre populações endefesas e mais tarde atravessou o Zambeze, perto de Cachomba, tendo uma boa parte se dirigido para Tambara e outra para o norte atraído pelas notícias de existência de um rendoso negócio de ouro, marfim e escravos.

- Meu povo! – Disse o ancião com uma voz trémula. – Tenham coragem para enfrentar o inimigo que vem. Ele vem de longe e carrega o ódio nos olhos, por isso, vai destruindo tudo que lhe aparece na sua frente. Os nossos mensageiros trauxeram notícias frescas dando conta da aproximação do inimigo. Os nossos irmãos que vivem nas imediações da nossa povoação começaram a chegar aterrorizados pelas notícias da chassina que inimigo vai cometendo enquanto caminha ao encontro das nossas terras...

Enquanto o velho falava para a multidão de guerreiros, pequenos grupos de velhos, mulheres e crianças aproximavam-se sorateiramente às varandas das cabanas que se achavam no limiar do terreiro ávidos de acompanhar as palavras do Mabavala.

- Protejam as crianças, os velhos e as mulheres. Defendam com bravura a nossa tribo e toda a riqueza que os nossos antepassados nos deixaram. Cantem as canções de bravura e coragem para que dignifiquemos o sangue derramado pelos guerreiros mais valentes da nossa tribo.

A multidão ululou, os guerreiros aceneram ao ar arcos e flechas e em conjunto deram o grito de coragem. Havia gente demais e o ar estava abafado. A noite entrava calma trazendo consigo estrelas e o nevoeiro. No alto, uma caravana de passáros cortou o céu num chilreio carregado de apavor. O velho calou-se. Acendeu um tabaco. Aspirou voluptosamente o fumo e, no fim, prosseguiu:

- Vigiem as fronteiras do nosso reino. Coloquem homens em todos os cantos para que o inimigo não nos surpreenda. Na hora da chegada, toquem o lipalapanda – o chifre de antílope – para que todos saibam que o inimigo está nas nossas terras.

Calou-se novamente. Levou o tabaco aos lábios. Puxou duas vezes. Tossiu vezes sem conta e voltou ao ponto onde havia interrompido.

- Meu povo! – Disse o ancião com uma voz entrecortada e trémula. – Preparem esconderijos para que as crianças, os velhos, os enfermos e as mulheres grávidas possam se proteger contra a chassina que vem. Preparem as armadilhas que os nossos antepassados nos ensinaram e ordeno para que esta noite todos guerreiros fiquem de vigia cantando e dançando para afugentar o espirito do medo. O curandeiro Namakhoi fará o trabalho que lhe compete distribuindo alguns punhados de ervas que vos protegerão de todo o mal durante a batalha. Coragem, guerreiros! Coragem...

O kôta virou-se para a corte, cruzou os braços nas costas e fez um sinal indiscrptivel para um dos anciãos mais antigo da tribo. De seguida, abandonou o terreiro dirigindo-se para a grande palhota andando com um cómico aprumo e movendo-se na noite tão cautelosamente como se estivesse a pensar em alguma coisa. Ao chegar a porta, mandou o mensageiro real reunir o chefe dos guerreiros, o curandeiro Namakhoi e outros ancião mais importantes da povoação e no fim, entrou na palhota fechando a porta nas suas costas. O kôta queria se inteirar de tudo, desde a estratégia da guerra até ao tipo da magia que o curandeiro Namakhoi pretendia usar para derrotar o inimigo. No entanto, o rufar dos tambores e o ecoar das vozes fizeram-se ouvir no terreiro. Vozes embaladas na brisa nocturna atravessavam a floresta densa do planalto dos makondes e homens fortes e valentes dançavam e cantavam canções de autores imemoráveis e perdidos na poeira do tempo cujas suas letras passavam de boca em boca e de geração em geração modificando-se constantemente de acordo com o momento. Os guerreiros dançavam em redor de uma grande fogueira contorcendo-se com abandono, simulando combates, zombando o inimigo e fumando bangui, a rainha da coragem. A medida que dançavam, as labaredas cresciam, a lenha ardia com intensidade e, de vez enquando, pequenas faúlhas saltavam no ar apagando-se rapidamente na noite fria.

O rei saiu da palhota, soltou um profundo suspiro e parado em frente da palhota pôs-se a contemplar no escuro a densa floesta, sentindo o ar frio da noite e aspirando o agradável aroma do planalto. Caminhou lentamente pelo quintal com os braços cruzados nas costas como era o hábito. Porém, deteve-se num tronco de Mula e sorriu consigo mesmo animando a sua face tatuada e dominada de profundos sulcos. O kôta recordava-se com saudade a sua juventude, principalmente, na época em que com bravura enfrentava gente de outras tribos que caçavam mulheres makondes nas machambas e riachos, afim de vende-las como escravas aos comerciantes árabes e aventureiros swahil. Fechou os olhos como se quisesse trazer de volta aqueles momentos e depois, deu meia volta e encaminhou-se novamente a palhota movendo-se com um aprumo forçado e cómico, típico da idade.

Já a madrugada, um jovem, que o chefe dos guerreiros escalara para guarnecer as imediações da povoação, irrompeu no terreiro correndo apavorado e vomitando sangue coagulado. Os guerreiros Nguni haviam lhe mutilado a lingua e obrigado a se dirigir a povoação afim de anunciar a sua chegada. O tam-tam dos tambores cessou imediatamente; Dois guerreiros dirigiram-se a palhota real, anunciaram ao rei o sucedido e voltaram novamente ao terreiro, onde os outros guerreiros haviam já abandonado e tomado a posição no limiar da floresta e nos ramos das árvores que se espalhavam nas redondezas da povoação. O rei e a corte fugiram para a floresta, onde foram escondido num abrigo preparado para tal. De súbito, a povoação ficou silenciosa e quando o sol ia se erguendo lentamente e a queimar, pouco a pouco, o orvalho no capim e nos arbustos ouviu-se um forte ulular e um grande grupo de guerreiros Nguni vestidos de peles e munidos de lanças e escudos de peles de animais bravios irrompeu o centro da povoação, pilhando mantimentos e animais domêsticos, quebrando potes e outros objectos de barro, e, quando ia incendiar as palhotas, os guerreiros makondes lançaram-se contra o inimigo dirigindo-lhe flechas envenenadas com ervas selvagens. A batalha levou muito tempo e, usando uma táctica de guerra desconhecida entre os makondes, os guerreiros Nguni infringiram pesadas derrotas aos guerreiros do rei Mbavala. Os prisioneiros de guerra foram severamente humilhados e quase metade da população foi escoraçada numa louca perseguição até às margens do rio Rovuma, onde atravessando a nado e numa visível situação de desespero refugiaram-se para as terras do Tanganhica, rei dos Massai, no actual território da República da Tanzania. Um outro grupo de Makondes liderado pelo o rei deposto exilou-se nas terras do Mataca, o rei ajaua, na actual província do Niassa.

Entretanto, meses depois guerreiros makondes apoiados por homens valentes e corajosos da tribo ajaua expulsaram os invasores tendo-lhes perseguido até às terras mais distantes, em direcção ao centro do actual território de Moçambique . Passados alguns dias, o rei Mbavala e a sua corte regressaram do exílio acompanhado do rei Mataca. Porém, os que haviam atravessado o Rovuma jamais voltaram e por lá criaram a comunidade dos makondes da Tanzania. Nisto, alguns dias depois, houve uma grande festa na povoação que durou uma semana comendo-se carne caçada no interior da floresta, bebendo-se diversas bebidas tradicionais, dançando-se ao som dos tambores e assistindo-se diversas sessões de mapico. Como gratidão dos feitos heróicos dos guerreiros ajaua demonstrados no momento da expulsão e perseguição dos invasores, o rei Mataca recebeu de presente, do seu homólogo Mbavala, uma bela donzela para casar, uma enorme estátua de pau-preto com a sua figura «estampada» no tronco e teve de volta meia centena de mulheres da sua tribo que serviam de escravas nas residências oficiais dos membros da corte dos Makondes. Para além deste acto, houve uma cerimónia tradicional de firmamente de amizade entre as duas tribos, onde os curandeiros de ambos os lados foram convidados a oferecerem os seus préstimos por forma a abençoar aquela amizade que nascia e a garantir por via mágica a sua renovação de geração em geração até ao mais infinito.

No último dia da estadia do rei Ajaua nas terra dos Makondes, o sol nasceu muito quente e os seus raios brilhavam intesamente resplandescendo manjestosamente sobre o tapete verde da floresta. Um grupo de flamingos sobrevoou silencioso a povoação e, no fim, aterrou numa pequena lagoa que se achava no extremo sul da palhota do rei Mbavala. Um grupo de crianças nuas e desnutridas brincava debaixo do sol em frente da palhota do chefe dos guerreiros Makondes e dois cães vadios atravessaram o terreiro perseguindo-se numa empolgante brincadeira. Dois guerreiros ajaua munidos de lanças afastaram-se repentinamente da porta da quarta palhota real. A porta abriu-se e o velho Mataca saiu seguido pela rapariga oferecida pelo seu homólogo Makonde. De olhos cerrados, o rei aspirou o ar frio do planalto, lançou um olhar apreciador ao seu presente e caminhou para o terreiro, onde a sua corte e os donos da terra o esperavam para a despedida. Ao chegar, foi servido um acento no alpêndre improvisado para a despedida. Pouco tempo depois, o kôta Mbavala ergueu-se e discursou para o seu povo agradecendo o apoio dos Ajaua e pedindo às duas tribos para que valorizassem a amizade conquistada contando a sua história às novas gerações. Já perto do fim do discurso, a sua voz ficou demasiadamente trémula e, nesse momento, foi interrompido por um seu funcionário que o encaminhou ao acento. Quando ia se sentar, o chefe dos guerreiros quis apoia-lo, mas o ancião apartou-o com os braços fazendo um gesto de protesto de quem diz não sou tão velho para precisar de apoio para se acomodar. De seguida, o som dos batuques irrompeu o espaço reservado para a despedida e um grupo de dançarinos começou a dançar no meio da roda humana que assistia ao espectâculo rindo e cantando. Ao cessar o tam-tam dos tambores, o kôta Mataca fez um breve discurso agradecendo a hospitalidade, os presentes oferecidos e a libertação das mulheres da sua tribo feitas escravas muito antes da invasão Nguni. No fim, prometeu aos Makondes retribuir o gesto da devolução das escravas, defendendo que já não havia mais razões para as duas tribos manterem a prática de captura de mulheres das duas tribos para fins de escravatura.

O rei foi interrompido por uns aplausos que soaram de forma entusiástica. Contudo, quando os aplausos desvaneceram, o kôta retomou o discurso agradecendo vezes sem conta tudo quanto o povo Makonde havia lhe proporcionado. Dali, as duas cortes abandonaram o terreiro enquanto o rufar dos tambores se faziam sentir novamente e encaminharam-se na saída da povoação. Ao aproximar as paliçadas que circundavam a povoação, protegendo os habitantes contra os animais bravios, os dois reis apertaram-se as mãos efusivamente em sinal de despedida final e o kôta Ajaua deu meia volta e começou a caminhar juntamente com a sua corte e os seus guerreiros escoltando-o em todos os lados. O velho Mbavala não tinha ainda voltado para a povoação e se encontrava petrificado no sitio onde havia se despedido do amigo Ajaua, olhando-o de longe enquanto desaparecia por entre árvores frondosas e arbustos de meia altura que emergiam quase por toda a floresta. Quando os visitantes desapareceram, por completo, deixando a sua atrás vozes entrecortadas e trazidas pelo o vento, o velho encaminhou-se ao terreiro, onde pôs-se a assistir mais uma sessão de mapico até ao entardecer.

Passados muitos anos, a amizade das duas tribos ainda continua manifestando-se sob forma de huvilo e a sua genese corre de boca em boca entre as novas gerações de Makondes e Ajauas.
- Allman Ndioko, Moçambique, 17/05/2005

VOCABULÁRIO:
Huvilo - Uma espécie de amizade carregado de aspectos cómicos e menos sérios;
Makondes Grupo étnico de Moçambique localizado no planalto de Mueda, província de Cabo Delgado. Note-se que existe na República da Tanzania outro grupo de Makondes conhecido por Makondes da Tanzania e que é originário do actual planalto de Mueda.
Ajauas - Grupo étnico de Moçambique localizado no planalto do Niassa, no norte do país.
MbavalaRei do povo Makonde.
Mataca Rei do povo Ajaua.
Kôta Pessoa mais velha que pode ser pai, mãe, avô, tio, etc.
Bangui Soruma ou melhor cannabis sativa;
Mula Árvore frondosa e muito alta frequente no planalto de Mueda. Entre os Makondes de Moçambique a Mula servia, desde os tempos remotos até altura da independência nacional, para sinalizar campas nas grandes florestas do planalto;
Lipalapanda – Chifre de antílope, normalmente, usado para anunciar uma festa ou animar uma sessão cultural;
N’tela Erva medicinal que serve para curar alguma infermidade ou proteger qualquer mal. Normalmente tem tido efeitos mágicos.


7/15/09

II Festival Pan-Africano de Cultura : Eyuphuru “incendeia” palcos argelinos

(Clique na imagem para ampliar)

Do norte de Moçambique para o mundo:

Moçambique voltou a brilhar, segunda-feira, nos palcos argelinos, com um exuberante espectáculo notavelmente apresentado pelo agrupamento Eyuphuru, na sua estreia no II Festival Pan-Africano de Cultura, que para a semana termina em Argel.

E à semelhança do que assistimos na semana passada, com os timbileiros de Zavala, o Nyau de Tete e o grupo de Tufo da Mafalala, a banda Eyuphuru apresentou uma extraordinária actuação na qual investiu toda a sua sabedoria, mestria e pujança, para, conforme disse um dos integrantes do grupo, não “queimar” as bem sucedidas prestações até agora conseguidas pelos moçambicanos, nesta mostra cultural, que decorre na capital argelina.

Para além de procurar manter e consolidar a linha de sucessos aberta pelos seus compatriotas no evento, os Eyuphuru subiram ao palco, no Instituto Superior da Música de Argel, também com uma outra missão bem difícil: procurar manter, ou no mínimo, corresponder ao calor sabiamente bem conseguido e interpretado pelos anteriores grupos ao longo da semana passada, durante os espectáculos dos monstros da música africana.

E mais: os Eyuphuru não podiam fazer senão estar ao nível do que os catapultou, tanto é que a diva dos pés descalços e rainha da música africana Cesária Évora, e os outros monstros como Youssou N dour, Mory Kante e Ismael Lo, que por aqui já passaram, mostraram as razões porque ainda levantam plateias.

À partida esta parecia uma missão quase impossível de realizar, mas seguros e confiantes e usando os argumentos de qualidade que lhes caracteriza, eles subiram ao palco e deram um grande espectáculo.

Não defraudaram, antes pelo contrário, levaram ao rubro os “frios” argelinos e os sempre exigentes cidadãos da África Ocidental, que se renderam à fabulosa prestação dos moçambicanos, que agora tem sido objecto de palavras de apreço e de elogios por parte de muitos jornalistas aqui presentes.

“Creio que a actuação do vosso grupo, ultrapassou todas as expectativas. Havia muito receio que os moçambicanos iriam apresentar aqui um espectáculo sem chama nem calor, mas não, eles foram deslumbrantes e ao nível de grupos de outros países que por aqui já passaram”, disse um argelino quando pedido pela nossa Reportagem para tecer comentários em torno da prestação dos Eyuphuru.

“Não sabia que o vosso país também é forte neste tipo de música”, confessou por seu turno, um jornalista da África Ocidental.

Por falar de jornalistas, referir que em razão das suas canções, da sua alegre e sensual dança e dos seus peculiares ritmos coreográficos, o grupo Tufo da Mafalala mereceu uma Menção Honrosa na imprensa argelina, na sequência do espectáculo que quinta-feira última apresentou na região Tizi Ouzou.

Na vertente de cinema, Moçambique estreia sexta-feira com o filme “Hospedes da Noite”, do cineasta Licínio Azevedo.
- Maputo, Quarta-Feira, 15 de Julho de 2009, Notícias. Reportagem integral aqui!

  • Mais neste blogue sobre o "Eyuphuru" - Aqui!

5/18/09

MUAZIZA - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Clique na imagem para ampliar - Imagem do ForEver PEMBA criada a partir da composição de gravuras recolhidas na net)

Era meia noite e época de jejum dos maometanos. A noite estava muito escura e no céu, coberto de nuvens negras, os relâmpagos festejavam ao som do trovão coriscando-o e enchendo o ambiente de uma incrível e espectacular luminosidade.

Bacar, jovem mestiço, alto, respeitoso e muito dado à religião, seguia na mota no meio da chuva grossa que teimava cair oblíquamente sobre a cidade. Enquanto seguia a estrada asfaltada, serpenteante e quase infindável, e que divide o grande e o histórico bairro Paquitequete e Ingonane, e, conduz a zona de Kumilamba, a Honda ia expelindo do escape uma fumaça esbranquiçada que pouco-à-pouco diluia-se na escuridão da noite. No entanto, a estrada achava-se deserta de gente e do foco da luz da motorizada, via-se uma infinidade de pingo de chuva que velozmente atravessavam os raios do farol cabando por desfazer depois no asfalto, já há muito tempo cossado, donde erguia o cheiro intenso de poeira molhada que impiedosamente invadia as narinas dos transeuntes. Contudo, num movimento contínuo e barulhento a motorizada ia andando desafiando a chuva teimosa do verão, quando de súbito, um vulto fez sinal de boleia debaixo de um embondeiro à beira da estrada. O jovem abrandou a velocidade e parou assim que se aproximou. Lançou a vista para o vulto no meio da chuva e descobriu tratar-se de uma rapariga dos seus vinte anos de idade.

- Peço boleia, por favor. – Disse a rapariga na maior naturalidade.

- Para onde? – Questionou Bacar em voz alta obrigado pelo roncar ensurdecedora da mota.

- Vou a Kumissete.

- Eu vou a Kuparata, mas não faz mal. – Sossegou-a Bacar e prosseguiu. – O que um jovem como eu não pode fazer para um “foguete” de mulher como tu?

A rapariga sorriu, ergueu a capulana que trazia amarada ao corpo e apoiando-se ao ombro do Bacar, subiu para a motorizada. Ela tinha o corpo totalmente molhado. Tremia de frio e dir-se-ia tratar-se de um pássaro molhado. Ela vestia uma blusa de manga comprida, lenço à cabeça, duas capulanas multicolor e chinelos de banho. Tinha ainda um par brincos de ouro nas orelhas e um brinco no nariz. Os dois braços ostentavam meia dezena de pulseiras metálicas que soavam “tlintlim” sempre que fizesse algum movimento nos braços.

- Toma o meu casaco e veste antes que apanhes gripe. – Disse Bacar tirando um casaco preto de leda que trazia trajado.

- Não. Obrigada. – Atalhou a rapariga amavelmente. – Seria demais...

- Por quê?

- Basta a boleia que me deste.

- Não concordo. – Protestou docemente Bacar como se aquela rapariga conhecesse-a há muito tempo. – Se amanhã caires doente eu me sentirei culpado, por isso, se quiseres realmente a minha boleia, por favor, aceite a minha oferta.

- Tudo bem. - Respondeu a rapariga suspirando e depois de uma breve hesitação. – Eu aceito já que insistes...

Recebeu o casaco, passou-o nas costas e vestiu-se. Bacar virou-se para observa-la. Ela tinha um trato delicado, gesto carinhoso, olhar contagiante e apaixonante. Entratanto, a rapariga abotoou o casaco em silêncio e exibindo sua dentadura branca cor de marfim, passou os braços na cintura do seu interlocutor abraçando-o calorosamente e, no fim, vagarosamente pousou a cabeça nas costas. Bacar sentiu o contacto de seio túrgidos; Um ligeiro arrepio correu-lhe o corpo abaixo, partindo da ponta dos cabelos até aos pés. Igonorou o sinal e com uma atitude ingénua, quis saber:

- Podemos ir?

- À vontade. – Respondeu a rapariga com uma voz enrouquecida.

A mota avançou e pouco-à-pouco a chuva abrandou. O trovão já ouvia-se longe e o coriscar do relâmpago via-se entre as nuvens escuras no horizonte longínquo.

- Desculpa pelo atrevimento. – Disse Bacar em “kimuane” meio embaraçado pela beleza excepcional da rapariga. – Como te chama?

- Muaziza.

- Belo nome...

- Obrigada.

- Moras em Kumissete há muito tempo?

- Acho que sim, pois, é há sensivelmente dez anos.

- Já é muito tempo.

- Pode ser.

- Gostei muito de ti. – Confessou Bacar “despido” de qualquer jeito romântico, atordoante e “cambaleante” à que muitos “patetas” nos habituaram.

A rapariga riu comovida pelas palavras do seu interlocutor; Fechou os olhos e abraçou forte o motociclista. Bacar sorriu feliz pelo sinal e continuou a acelerar a motorizada seguindo o asfalto. Passaram a zona do velho Ruela, atravessaram Kuparata, deixaram Kumilamba e na ponte da estrada da zona do Seabra e que parte do Mercado Municipal e termina em Kumissete, a rapariga questionou:

- Tu gostas de qualquer mulher que vês e apanhas na rua?

- Não. – Riu. – Só que tu não és qualquer...

- O que te garante isso?

- Não sei... mas dentro de mim algo me diz que não és qualquer mulher.

- Em que sentido, mais ou menos?

- Falo em termos de beleza.

- Ahããã...

- Que tinhas pensado?

- Nada!

- E quanto ao que te falei?

- Acho melhor deixarmos para amanhã.

- Posso ficar sossegado que a resposta será positiva?

- Penso que sim. E mais, de momento estou só e sinto que preciso de alguém especial... e se calhar és tu.

Os dois riram-se perdidamente e no fim, Bacar disse:

- Fico muito feliz em ouvir isso.

A rapariga não respondeu e Bacar continuou a conduzir a mota. Depois, em frente à um pequeno mercado, mesmo à entrada das primeiras casas de Kumissete, a mota parou e o jovem quis saber:

- Para que lado te levo?

- Óh, por aqui. – Apontou para um beco escuro que conduzia ao coração do bairro. Em seguida, acrescentou. – Estava tão distraida e que me esqueci de tudo.

A mota fumegou, a cremalheira reclamou e numa aceleração suave, arrancou enternando-se no bairro. Já no bairro as ruas estava desertas, o silêncio era incómodo e a chuva tinha parado, ficando apenas o gotejar lento e paulatino dos telhados de “macuti”. De vez enquando, ouvia-se do alto dos coqueiros um fraco grasnido de corvos espantados pelo vento.

- Podes parar alí! – Disse repentinamente Muaziza apontando para uma casa caiada.

A mota parou em frente da casa indicada. A rapariga desceu e Bacar desligou o motor questionando:

- É aqui onde moras?

- Sim.

- Com quem?

- Meus pais e dois irmãos mais novos.

Fez-se silêncio. Mas depois, Bacar quis saber:

- E quanto ao dia de amanhã, o que deverei fazer para te chamar?

- Não é amanhã é hoje.

- Sim, tinha me esquecido que é madrugada. – Sorriu levando as mãos à testa.

- Chegas aqui aceleras a mota três vezes e toca a buzina também as mesmas vezes.

- Tu vais sair?

- Sem problema.

- Teus pais não são... como direi, “chatos”?

- Não.

- Então, vejo-te amanhã as sete da noite.

- Tudo bem. – Muaziza sorriu tentando olhar o jovem nos olhos no meio da escuridão.

Bacar pôs a funcionar a mota. Muaziza deu dois passos atrás e de braços cruzados no peito esperou que o jovem avançasse. Acelerou a mota duas vezes, virou o volante e ao engatar a primeira mudança para avançar, o motor desligou-se.

- Estava me esquecendo de entregar-te o casaco. – Disse Muaziza fezendo movimentos para despir o casaco.

- Não precisa. – Apressou-se Bacar a dizer. – Podes ficar com ele agora e quando eu vier mais logo levo-o de volta.

- Não vai te fazer falta?

- Não, minha flor!

- Se tens certeza, então eu fico com o casaco e assim aproveito sentir o seu calor e cheiro durante o tempo que resta para amanhecer.

- Posso pedir-te alguma coisa? – Quis saber Bacar visivelmente excitado.

- À vontade, meu bem.

- Peço um beijo para certificar-me que não estou a sonhar.

- Não, não, não. – Disse a rapariga passando levemente o dedo indicador pelos lábios do Bacar. – Só depois quando me falares das tuas reais intenções...

- Não tem de quê! – Bacar encolheu os ombros e disse. - Concordo plenamente contigo, penso que mais logo é o momento ideal.

Pôs a mota a funcionar novamente, fez duas acelerações suaves e, despedindo-se da rapariga com um aceno de mão, arrancou mergulhando-se no escuro.

No entanto, ao amanhecer, Bacar foi a pesca na zona de Mussanja na companhia de amigos. Enquanto pescava, o jovem manteve-se meditativo durante muito tempo e cada vez que mergulhava nas profundezas dos seus pensamentos, lembrava-se da Muaziza: seus olhos esbugalhados, lábios vermelhos de “mulala”, sua face redonda e cheia, suas ancas e pernas fartas, seu jeito carinhoso, olhar contagiante e apaixonante. E assim foi até ao entardecer daquele dia.

Ao anoitecer, Bacar parou a mota à hora combinada em frente da casa caiada. Acelerou e buzinou as três vezes combinadas e depois, manteu-se a espera da saida da rapariga. Desligou o motor, apagou o farol e os farolins. Aguardou ansiosamente durante muito tempo e ninguém saiu. Os nervos subira-lhe à cabeça e lembrou-se do casaco. Buscou a coragem para entrar na casa e perguntar, mas logo hesitou. Desceu da mota e pôs-se a observar um casal de jovens que passava a sua frente. Esperou alguns minutos para ver se alguém saia da casa, mas nada! Reparou nas duas janelas da casa e viu a luz do cadeeiro e algumas sombras de pessoas desenhadas nas cortinas. Pensou rapidamente e institivamente deu dois passos à caminho da porta do quintal da casa. Nesse momento, uma rapariga, dos seus treze anos de idade, apareceu na porta e parou. Bacar aproximou-a e quase gaguejando, quis saber:

- É aqui onde vive Muaziza?

A rapariga assustou-se. Deu dois passos levando os braços ao peito e tropeçando no chão, saiu correndo para o quintal chorando aos berros. Admirado, Bacar voltou junto a motorizada. Tentou ligar o motor, mas logo a rapariga reapareceu acompanhada de um senhor que o interpelou.

- Sim. – Disse o senhor ofegante. – Em que lhe posso ser útil.

- Desejava falar com Muaziza. – Respondeu Bacar tremendo de medo.

- Estás a gozar connosco?

- Não, senhor.

O senhor suspirou, abanou a cabeça e questionou:

- Quem é o senhor?

- Um amigo da Muaziza.

Houve silêncio e dos quintais das casas vizinhas começaram a sair curiosos ávidos de inteirar-se das reais razões dos berros da rapariga. Depois de alguns instantes de silêncio tumular, o senhor prosseguiu cerimoniosamente:

- Ela morreu faz um ano e enterramos no cemitério familiar em Maringanha.

- É impossível! – Disse Bacar levando as mãos à cabeça. – Eu estive com ela ontem e lhe trouxe aqui.

- É impossível! – Repetiu o homem muito sereno. – Eu enterrei-a com estas minhas mãos. Ela adoeceu muito e morreu sete dias depois.

- Não acredito!

- Essa é que é a verdade, meu caro jovem.

Bacar girou pelos calcanhares e indagou-se:

- E o meu casaco?

- Que casaco? – Interrogou o homem que não devia ter mais do que sessenta anos de idade.

- Deixei-lhe o meu casaco porque me pareceu que estava com frio.

- Bom, talvez seja outra pessoa.

- Não pode ser outra pessoa. – Contradisse o jovem visivelmente transtornado. – Ela não tinha razões para me enganar...

- Diga-me, por favor, como era essa tal Muaziza que tanto falas. – Disse o homem pacientemente.

Rápidamente, Bacar pôs-se a descrever a rapariga e os vestes que trazia.

- É muito grave o que acabas de dizer. – Concluiu o homem. – A descrição é perfeita e os veste são os que a nossa Muaziza vestia no dia do enterro.

Houve novamente um silêncio. Depois, ouviu-se, nas varandas das casas vizinhas, o sussurar de vozes de curiosos admirando, sobretudo, o que Bacar acabara de narrar.

- Meu jovem! – Disse o homem olhando o interlocutor que se achava cabisbaixo e com ar meditativo. – Para deciparmos às dúvidas, o melhor é amanhã dirigirmo-nos à campa da nossa Muaziza...

- Concordo, plenamente.

Bacar arrancou a mota e mergulhou-se na escuridão da noite ausente de si. E já no dia seguinte, logo de manhã, os dois foram a campa da Muaziza e, curiosamente, Bacar, viu o seu casaco pousado no sepulcro e, sem mais, nem menos, caiu desmaiado.
- Allman Ndyoko (Francisco Absalão), 14/05/2009.

O Autor:

  • Francisco Absalão;
  • Nome artístico -Allman Ndyoko;
  • Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
  • Residência actual - Maputo.

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Leia também:

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  • "O Incêndio" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 23 de Janeiro de 2009 - Aqui!
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  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !

4/18/09

OS LEÕES DO DIABO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão).

(Clique na imagem para ampliar - Imagem original do ForEver PEMBA)

Era madrugada. Uma chuva miúda caía obliqua e desinteressada sobre a vasta e densa floresta de Ninga. O vento soprava levemente enquanto os pássaros encolhidos nos ninhos, construídos nos galhos de árvores frondosas e seculares, chilreavam anunciando o alvorecer. As sombras da noite desapareciam lenta e pausadamente como se despedissem do ambiente, rumo ao outro lado do mundo.

Algum tempo depois, os aldeões de Ninga acordaram, pausadamente e um de cada vez, como é lógico, todos ressacados pelo terror de um casal de leões que decidira, há sensivelmente um mês, atormentar a pacata aldeia em protesto a actos pouco toleráveis para os felinos, uma vez que, vezes sem conta estes viam seus rastos seguidos pelos aldeões sempre que abatessem uma presa, e, como consequência era-lhes roubada a carne comprometendo assim a sua subsistência. Sem alternativa, os felinos viam-se atentados a atacar os seres humanos, principalmente, as mulheres que passavam a maior parte do dia no campo cultivando com os filhos às costas. Já viciados pela carne humana, os felinos viam o retrocesso dificultado, uma vez que, consideravam o Homem uma presa fácil. Daí que, dia-após-dia, vários casos mortais causados por ataques de leões eram reportados na aldeia semeando o terror entre os aldeões.

No entanto, naquela manhã de chuva miúda Cosme acordou sobressaltado. O coração batia-lhe forte e a respiração tornava-se cada vez mais arquejante. Sentou-se a beira da cama ainda perplexo e incrédulo correu os olhos à volta do aposento, como se procurasse algo misterioso que vira há escassos momentos, e no fim, passou a palma da mão esquerda na face limpando o suor que lhe escorria pela face abaixo. Suspirou profundamente como se com o suspiro quisesse manifestar o alívio de se ver salvo de um perigo real; Acordou a mulher que dormia profundamente abraçada ao bebé e quando sentou-se no meio da cama abraçou-a expansivamente. Admirada, a mulher limitou-se a olha-lo como se este estivesse em exposição. Cosme olhou a mulher nos olhos no meio da penumbra e no final, com a voz enrouquecida, disse:

- Tive um mau sonho. - Calou-se. Pareceu ordenar as ideias e depois prosseguiu. - Vi um homem correndo na floresta apavorado. Passou por mim dizendo algo imperceptível e mais adiante, próximo a uma clareira foi subitamente atacado por dois leopardos e caiu no chão inerte. De seguida, arrastaram-no para o coração da floresta olhando-me nos olhos como se quisesse me dizer algo. Dali, um estranho redemoinho fez-se presente no meio da clareira levantando para o céu tudo quanto havia solto no chão e do nada ouviu-se o pranto de um bebé e acordei assustado.

Cosme calou-se. Baixou os olhos, manteu-se pensativo e visivelmente dominado pelo sonho.

- Penso que é normal. - Sossegou a esposa. - Deve ser o reflexo da situação que vivemos na aldeia nos dias que correm.

- Não. - Atalhou meneando a cabeça. - Isto não vem atoa... deve ser algum aviso dos antepassados.

- Como?

- Algo estranho vai acontecer nos próximos dias com alguém da nossa família.

- Deus me livre! - Disse a mulher amarrando a capulana à parte superior dos seios. - Bate a boca... Isso é besteira e nada disso vai acontecer, salvo se fôr obra de feiticeiro.

- Está bem! - Cosme ergueu-se da cama. Vestiu-se rapidamente e fez movimento para caminhar em direcção ao quintal. - Façamos de conta que é definitivamente uma bobagem; Mas cá por mim, o caso é sério...

A mulher abanou a cabeça, abandonou a cama e começou a preparar-se para a nova jornada do dia na machamba.

Já no quintal, Cosme alimentou os porcos, patos e as galinhas. Afiou a catana, juntou os instrumentos da machamba e sentou-se num tronco acendendo o tabaco com um pedaço de lenha acesa, que ao longo da noite resistira à intempérie no meio da cinza da fogueira, feita na varanda da palhota.

Pouco depois, Cosme vociferou:

- Óh, mulher vamos embora. Está ficando tarde...

- Já vou, pai de Nené. - Respondeu a mulher na palhota e continuou. - Estou a separar o milho para a sementeira...

- Seja rápida. O tempo não espera à ninguém.

Dito isto, Cosme continuou a fumar o tabaco enrolado no papel caquí. De quando em vez, aspirava voluptuosamente o fumo envadindo temporariamente o espaço em que se achava acomodado e, noutras vezes, tirava a fumaça pelas narinas e, imprimindo uma dose de pressão, a fumaça esbranquiçada formava duas linhas grossas que se diluiam lentamente no espaço.

No entanto, tossiu duas vezes e, finalmente, a mulher apareceu na porta com o bebé às costas e uma enorme peneira sobre a cabeça. Atravessou a porta fechando-a nas costas; Já no meio do quintal tomou a enxada e caminhou colocando-a no ombro. Em silêncio, Cosme ergueu-se, apagou o tabaco na areia e emitando o gesto da mulher, levou uma catana na mão e armou-se de arco e flecha.

No limiar da aldeia, o casal parou para saudar uma família amiga que se dirigia à machamba que ficava no lado sul da aldeia.

- Óh, Cosme! Como vai a família? - Quis saber um idoso de barbas desleixadas que vinha também na companhia da família.

- De saúde estamos bem. Os porcos, as galinhas, os patos e outros animais lá de casa estão de saúde graças aquele - Apontou no céu num ponto impreciso e acrescentou - que nos fez e criou...

- Isso alegra-nos ouvir. - Disse uma mulher que parecia esposa do velhote de barbas desleixadas.

- A porca pariu quatro crias e a família alargou. - Informou Cosme visivelmente emocionado.

- A notícia é confortante... - Retorquiu o velhote pousando uma trouxa no chão.

- Acompanhou a notícia de ontem à tarde? - Inquiriu a mulher que vinha com o velhote.

- Não. - Atalhou Cosme aguçado pela curiosidade. - O que sucedeu desta vez nesta nossa linda aldeia?

- Ontem às seis da noite, nas casas próximas ao terreiro, uma mulher de meia idade foi atacada por um casal de leões ao afastar-se da palhota para fazer necessidade menor. O marido, que se encontrava sentado na varanda da palhota, apenas ouviu um grito de aflição e quando acudiu era tarde! O homem apenas apanhou um pedaço de lenço que a mulher trazia na cabeça e todo estava ensanguentado!

- E os vizinhos? Que fizeram nesse momento?

- Quando os vizinhos acudiram puseram-se imediatamente ao encalço do rasto no meio da escuridão já pesada e no bosque próximo ao velho cemitério, no meio do capim, acharam a cabeça e o braço da mulher e logo presumiram que os leões haviam arrastado o resto do corpo. De manhã só apanharam algumas peças insignificantes do corpo.

- Isso é triste e incrível se tivermos em conta que a zona há um tempo atrás era aparentemente despida de situações similares e de um momento para o outro, como vindo do nada, aparece-nos situações de leões...

- Este cenário não é normal, caro Cosme! - Concluiu o ancião consternado. - Creio que estes leões são movidos por um feiticeiro que tem problema com um familiar ou alguém qualquer. Esse feiticeiro transforma-se em leão juntamente com outra pessoa de sexo feminino, que pode até ser esposa, afim de atacar seus inimigos.

- Até que isso pode ser verdade! - Observou Cosme. - Pois, os leões de Deus não atacam pessoas.

- Mas que fazer?! - Inquiriu o ancião erguendo sua trouxa e fazendo movimento para caminhar.

- Os aldeões devem reunir-se para estudar esta situação... - Respondeu Cosme.

- Adeus, Cosme.

- Adeus, meu velho.

O ancião iniciou a caminhada juntamente com a família que lhe aguardava pacientemente a beira do caminho, entre capim verde e seco.

- Tenha um bom dia de trabalho e veja se regressas cedo a casa!

- Não se preocupe, meu velho. Eu estou já preparado para o que vier. Eu é que surpreenderei os leões antes deles pensarem em fazer o que fôr comigo ou com a minha família.

- Deus te ouça. - Gritou o velhote de costas viradas para o seu interlocutor.

As famílias separaram-se e o casal mergulhou-se na floresta com destino a machamba que distava há cinco centenas de metros da povoação. Enquanto caminhava no meio da floresta densa seguindo um caminho serpenteante que se perdia pela mata adentro e que se cruzava com outras tantas que conduziam à diversos destinos dentro da floresta, Cosme e sua companheira iam ouvindo o chilreio dos pássaros, o trautear incessante das cigarras, o barulho de macacos empoleirados nos galhos das árvores e as vozes entrecortadas dos aldeões que se entregavam ao labor nos campos distantes e verdejantes.

Volvidos alguns momentos, chegaram a machamba. A mulher pousou no centro do campo a peneira que trazia à cabeça. Enclinou o corpo para afrente, desamarrou o bebé no colo e voltou a amarra-lo com tenacidade. De seguida, começou a trabalhar a terra cantarolando feliz com a vida. Em silêncio, Cosme afastou-se da machamba enternando-se na floresta afim de arranjar algumas estaca para concertar o curral de porcos na sua casa.

Passado algum momento, Cosme ouviu um forte grito de aflição e saiu da floresta correndo a sete pés para acudir. Ao chegar na machamba deparou-se somente com a capulana ensanguentada e o bebé a chorar no chão, todo coberto de lama. Tomou o bebé e com a catana no punho precipitou-se a seguir os rastos com vingança na alma.

- Floraaaaa! - Cosme soltou um grito rouco de raiva e continuou. - Floraaaa! Cadê você!...

Vinte metros da machamba e próximo a um arbusto, parou repentinamente: um casal de leões disputava o pescoço da Flora abocanhando-a vezes sem conta e sem vida. Ao aperceber a presença do homem, o macho parou e rosnando fez frente ao estranho exibindo seus dentes afiados e olhos amarelos.

- Daqui não saio sem a minha Flora. - Disse Cosme em voz alta e segurando firmemente a catana com a mão direita. - Sei que vocês não são leões de Deus e por isso, daqui não saio sem o que é meu...

O leão continuou a rosnar procurando amedrontar o homem e reduzindo paulatinamente a distância que lhes separava. Com um movimento lento e atento, Cosme recuou alguns passos procurando controlar os ânimos do felino. De repente, a fêmea desapareceu pelo mato arrastando o corpo morto da mulher, e, vendo esta atitude, o macho seguiu-a desaparecendo ambos pela mata densa. Inconformado, Cosme seguiu-os novamente, como um búfalo ferido, varrendo com a catana tudo quanto era obstâculo à sua frente e próximo a um riacho viu os felinos galgando uma pequena elevação sem a presa. Apercebendo-se disso, Cosme procurou avistar o corpo e de súbito viu-o preso nos espinhos de duas árvores tombadas à beira do rio e do lado onde se achava. Correu desesperado até junto ao corpo, onde desamarrou uma das capulanas que ainda restava e, ensanguentada, serviu-se para amarrar nas costas o bebé que não parava de chorar. Atento a tudo, ergueu o corpo tombado; Calmamente, rodou pelos calcanhares e procurou voltar a aldeia com o cadáver nos braços.

Caminhou durante muito tempo olhando para atrás e às vezes parando desconfiando ser seguido. Já próximo ao limiar da aldeia parou para descansar. Nesse momento, deitou a vista em redor e há uma centena de metros viu o casal de leões atravessando o caminho em diagonal, dirigindo-se lentamente ao lado sul da povoação muito atento ao homem e a presa. Desconfiado, Cosme retomou a marcha e nas primeiras casas da povoação foi recebido por homens e mulheres no meio de gritos de espanto e pavor.
- Allman Ndyoko (Francisco Absalão), Abril 2009 - Extrato do livro Contos de Infância Distante.

O Autor:

  • Francisco Absalão;
  • Nome artístico -Allman Ndyoko;
  • Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
  • Residência actual - Maputo;

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Leia também:

  • "O Navio Ensombrado" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 13 de Fevereiro de 2009 - Aqui!
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  • "O Suicídio" - Um conto de de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 02 de Junho de 2008 - Aqui!
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !

2/13/09

O NAVIO ENSOMBRADO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Clique na imagem para ampliar - Imagem ilustrativa original do ForEver PEMBA baseada na mixagem de diversas fotos)

Não havia em toda baia de Pemba a praia mais preferida pela minha malta, para a actividade lúdica, do que a Praia da Marinha. Ela ficava por trás do Quartel da Base Naval da Marinha e era muito calma e menos frequentado por banhistas por ter características impróprias ou menos atractivas para um merecido mergulho. Tinha águas quentes e cristalinas e um chão rochoso coberto por um tapete verde de algas e outras ervas marinhas. Aqui e acolá, quando a maré fosse baixa, via-se pequenas poças de água, onde peixes minúsculos e carangueijos vermelhos aguardavam a maré cheia. Já na orla marítima, o cenário era desolador: Búzios, areia grossa, montes de algas secas, ramais, folhas de árvores e frutos silvestres trazidos pela força das águas, da outra margem da cidade, no silêncio da noite, faziam parte do cenário oferecido naquele ponto da baia.

Para além disso, era frequente avistar grupos de mulheres pintados de mussiro e com lenços na cabeça pescando cardumes minúsculos com recurso às redes finas e outras apanhando ameijoas, ostras, carangueijos e caracóis marinhos que guardavam em bacias metálicas e floreadas cobertas de peneiras. Era igualmente frequente cruzar-se com pescadores simpáticos e humildes subindo e descendo às encostas da praia descalços, de tronco nú, trajando calções rotos pela acção contínua das águas do mar, chapéus de palha e empunhando remos, fios e redes de pesca, boías e, por vezes, o pescado.

De longe, ouvia-se o marulhar das ondas, via-se barcos à motor sulcando o mar e casquinhas à vela balançando e cortando impetuosamente as águas com os remos dos pescadores servindo de leme.

Já na parte superior da orla, desenhava-se um cenário diferente e belo, um tanto quanto, esverdeado e acinzentado composto por ervas, arbustos e plantas indêmicas que davam flores fechados e inchados, cor de rosa, que precionados estoiravam produzindo um barulho ligeiro muito apreciado pelos adolescentes da baia. Uma estrada asfaltada serpenteava a orla maritima ligando Paquitequete (rocha mãe da cidade de Pemba), Ingonane, Natite, Cariacó e Wimbe. Frontalmente ao mar, a natureza oferecia uma vista espectacular em que podia-se sentir o cheiro intenso do mar e vislumbrar, na outra margem da baia, as florestas de Ulonto, Bandari e um pouco de Metuge, para além de uma cadeia de pequenos montes no horizonte longínquo que desenhava-se horizontalmente desde à entrada da baia passando por Miéze e chegando a findar no cais local.

Como dizia, a preferência pela Praia da Marinha por parte da minha "legião" não se devia simplesmente à existência de inúmeras poças de agúa por onde podia-se soltar casquinhas de brinquedo artesanal e nem ao cenário oferecido do alto da estrada, mas sim à existência na margem daquela praia de uma flotilha da marinha de guerra avariada, desactivada e com o casco quase a cair de podre.

Este navio servia de sobremesa das nossas brincadeiras e era nele que aconteciam as nossas derradeiras brincadeiras, subindo ao convés, correndo por entre os corredores dos camarotes, acenando na claraboia, descendo à casa das máquinas, correndo com a mão passando na borda do navio e saltando do barlavento para o chão de areia grossa e branca como a neve, onde depois voltavamos a entrar para a casa das máquinas através de um pequeno orifício feito pelas águas do mar no casco da flotilha bem junto à hélice bronzeada que há muito resistia às investidas nocturnas do mar.

Uma certa tarde de Dezembro, após às nossas brincadeiras no mar, uma camada espessa de nuvens escuras cobriu inesperadamente o sol quando lentamente caia no horizonte colorindo o ambiente de um tom alaranjado. O céu ficou sinistro e rugiu vezes sem conta, como se do alto lançassem inúmeros tambores vazios que rolando rapidamente precipitavam-se para o outro lado da baia num percurso quase infindável.

- Vamos ao navio! – Disse Amur visivelmente dominado pelo medo do fenómeno que ocorria.
- Não. – Atalhou Saide e continuou. – Melhor é corrermos para casa...

Mal disse estas palavras, ouviu-se um forte ribombar do trovão acompanhado de um relâmpago assustador que corriscou os céus emitindo faíscas vivas que acabaram se lançando rapidamente na imensidão do azul do mar. Molhados pelas águas do mar da ponta dos pés aos cabelos, saímos correndo atrapalhados ao encontro de um abrigo no navio amigo. Entramos pela abertura junto à hélice, alcançamos a casa das máquinas e no meio da penumbra subimos ao convés passando por dois camarotes trancados. Já no convés, a chuva despenhou-se em catadupa sobre a baia criando má visibilidade no mar e na terra firme.

- Estamos tramados! – Disse alguém entre nós.
- Não se preocupem! – Disse-lhes em jeito de encorajamento. – Isto é simplesmente uma nuvem passageira.
- Espero que realmente as tuas palavras sejam reais. – Desabafou Saide encolhido nos seus vestes molhados.

A chuva caiu todo fim da tarde acompanhado de relâmpagos e rugidos de trovão. Longe da chuva abrandar-se, a noite fez-se presente com as trevas envolvendo lentamente o ambiente. O silêncio no navio tornou-se incómodo e a escuridão pesadíssima. De quando em vez, ouvia-se o ranger das portas dos camarotes e o bater constante e suave de uma chapa na zona entre a popa e a proa.

De súbito, ouviu-se um forte sapatear no corredor dos camarotes acompanhado de vozes imperceptíveis que se confundiam com humanas e animais de tipo gato selvagem. Ficamos atentos com os ouvidos apurados e muito medrosos sem saber o que fazer. De repente, o sapatear infinito e as vozes imperceptíveis cessaram e lá fora a chuva abrandou e a trovoada começou a ouvir-se longe.

- Vamos embora, gente. – Sugeriu Nuro sussurando. – Isto não é normal.
- Mas donde sairemos? – Quis saber Saide medrica.
- Há uma pequena escada no princípio do corredor que leva aos camarotes que sobe até ao mastro. – Respondi-lhe sussurando e mais ou menos tranquilo.
- Então o que esperamos? – Amur briu as mãos reforçando as palavras e prosseguiu. – Vamos devagar e sem barulho.

Iniciamos a marcha pé-ante-pé e instantes depois ouviu-se o som de arrasto de correntes metálicas no corredor acompanhado de uivos e gritos humanos de desespero. Paramos e dirigimo-nos à claraboia. Os sons metálicos, os uivos e os gritos prosseguiram já com muita intensidade seguido de um outro som de abrir e fechar a porta com impetuosidade. Ficamos com os corpos e cabelos arrepiados e no meio do escuro vimos vultos altos vestidos de branco movendo-se vagarosamente em nossa direcção. Num impulso imperceptível, Nuro forçou uma das vidraças da claraboia e caiu quebrada no chão do lado frontal do navio. Pendurou-se na abertura e com pouco esforço, devido ao seu tamanho, lançou-se à borda lateral esquerdo do navio, onde caiu e sentou-se contorcendo-se de dor. Rapidamente, todos emitamos desesperadamente a proeza do Nuro e já fora do convés saltamos em conjunto para o chão profundo e arenoso, onde em seguida saimos correndo em debandada subindo a encosta da praia e mergulhando no escuro através de um pequeno e cansativo atalho tortuoso que conduzia à estrada que serpenteava o litoral. Assim que alcançamos o asfalto todos ofegantes, imediatamente, atravessamos a estrada e sem olhar para atrás, corremos desesperados debaixo da chuva que não parava de pancadear-nos com os seus pingos doces que, atingindo-nos à cabeça, escorriam involuntariamente até a boca, onde eram imperceptivelmente sorvidos com gosto no meio daquela corrida involuntária. Entretanto, atravessamos o Quartel da Marinha correndo em diagonal e, com a velocidade quase de uma estrela candente, deixamos para atrás espaços baldios e arborizados e, sem dar em conta, derrubamos arbustos e capim alto. Contudo, transcorrido algum momento desembocamos, sãos e salvos, na estrada que separa os bairros de Ingonane e Paquitequete, onde paramos no meio da luz de um poste de iluminação pública e deitamos em conjunto os olhares para atrás todos exaustos e com a respiração arquejante.
- Allman Ndyoko, 05/02/2009.
- Extrato do livro: Contos de Infância Distante.

O Autor:

  • -Francisco Absalão;
  • -Nome artístico -Allman Ndyoko;
  • -Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
  • -Residência actual - Maputo;
  • Breve biografia - Nasceu em Pemba no não muito longinquo ano de 1977. De pais originários do sul de Moçambique, residiu em Pemba de 1977 a 1990 quando foi residir para Maputo onde trabalha e tenta prosseguir os estudos (ciências sociais).

Leia também:

  • "O Incêndio" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 23 de Janeiro de 2009 - Aqui!
  • "O Suicídio" - Um conto de de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 02 de Junho de 2008 - Aqui!
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !

1/23/09

O INCÊNDIO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão).

(Clique na imagem para ampliar - Imagem original do ForEver PEMBA)

Passavam poucos dias que as aulas na escola haviam terminado e o espirito de férias já manifestava-se em nós através de inumeras brincadeiras: caça aos passarinhos, às escondidas nocturnas, o passeio desautorizado ao quartel da “Meia-Via”, o banho na praia do INOS, a visita ao navio abandonado nas imediações da base naval da marinha, a perseguição nos galhos das amendoeiras do jardim infantil, roubo de amoras e jambalão no quintal da SOGERE, entradas “roubadas” nos jogos de futebol do Estádio Municipal, entre outras.

Uma certa manhã de céu azul e de sol dourado, eu, Quino, Amur, Bacar – o filho do árbitro – e Kaidar, o filho primogénito do ché Omar, jogavamos o “bate-sai” com a bola de trapo junto à valeta que delimita os bairros de Ingonane e Natite, precisamente, atrás do belo monumento de emulação socialista, quando de súbito alguém entre nós gritou em macua apontando à zona cimento:

- Olhem pra aquilo!

Paramos o jogo; Kaidar pegou a bola, pôs debaixo do braço e pregou o olhar na direcção da zona cimento. Imitamos o gesto rapidamente e os nossos olhos viram uma nuvem enorme de fumaça preta que teimava subir ao céu acompanhada de grandes labaredas que ameaçavam engolir a zona intermédia entre o fundo do Hotel Cabo Delgado e o prédio Cunha Alegre.

- É o hotel a arder! – Disse Kaidar em voz alta.
- Não. – Atalhou Bacar e acrescentou meio excitado. - Parece o prédio Cunha Alegre...
- É inacreditável! – Gritei pasmado pelo acontecimento.
- Vamos ver de perto. – Sugeriu Quino fazendo movimento para caminhar.
- Não. Não dá, é perigoso. – Advertiu Amur visivelmente dominado pelo medo.
- Vamos, malta! – Insistiu Quino movido pela curiosidade.

Kaidar fitou a malta de esguelha por algum momento. Com uma espressão corporal que denunciava-lhe uma apetencia voraz de matar a curiosidade, cedeu a insistência do Quino iniciando a marcha decididamente com o destino ao coração da pacata e modesta cidade de Pemba, vulgarmente conhecido por “wa Texeira”, entre os nativos.

Timidamente o gesto foi imitado por todos nós e juntos precipitamo-nos a seguir um pequeno percurso da estrada, muito arenoso, que levava a zona urbana. Trajando camisas e camisetes cansados de uso, calças e calções desbotados, empoeirados, rotos nos tornozelos e nas nádegas e denunciando orgulhosa e humildemente a nossa origem, iniciamos, pouco tempo depois, a andar na estrada de terra batida, cor vermelha e poeirenta todos ofegantes e banhados de suor.

Enquanto caminhavamos curiosos, dos dois bairros vizinhos vinham gente despertada pela fumaça e pelas linguas de fogo assustadores que bailavam ao sabor do vento ameaçando à qualquer instante causar tragédia. Mais adiante, juntamo-nos a um grupo de homens, mulheres e adolescentes que também dirigia-se ao nosso destino.

- Dizem que um bandido armado ateou fogo os últimos quartos do hotel e fugiu à sete pés, sem deixar rastos. – Explicou alguém no meio da multidão.
- Ouviram?! – Questionou Amur sussurando e tomado pelo medo.
- Não é nada isso. – Tranquilizou Quino muito confiante. – Deve ser um boato.
- E se fôr verdade? – Interroguei-o contaminado pelo temor do Amur.
Quino não respondeu e limitou-se a marchar. Naquele momento ideias medrosas fizeram a minha mente sua oficina e diversas imaginações macábras passaram insistentemente na minha consciência, um tanto quanto, repletas de razão. Pois, a guerra de desistabilização estava nos seus momentos iniciais em Cabo Delgado, pese embora Pemba não se ressentisse tanto como em algumas províncias do centro e sul do país, donde vinham relatos de cenas aterrorizantes protagonizadas por bandos armados; Daí que, todo cuidado era pouco, e razão pela qual todos viviamos em constante vigilância, que na altura apelidou-se de vigilância popular. Porém, deixemos de lado esta página triste da história de Moçambique independente e voltemos ao mais primordial.

Volvido algum momento alcançamos a zona urbana. Atravessamos uma ponteca de ferros de linha férrea atravessados horizontalmente de uma extremidade da valeta principal à outra secundária muito pequena, que delimita a zona urbana e a peri-urbana e começamos a percorrer a avenida Eduardo Mondlane no seu lado asfaltado, que ficava à escassos metros do local do incêndio.

A cidade estava agitada, barulhenta e abarrotada de gente apavorada que aproximava e saia do local do incêndio provocando um murmúrio ensurdecedor. Tanto no hotel, assim como, nos estabelecimentos comerciais e nas residências das redondezas eram visíveis rostos espantados pelo acontecimento e indignados pela ausência de corpo de bombeiros na cidade. Já próximo do sinistro, homens e mulheres civis e alguns militares corajosos tentavam em vão extinguir as chamas com areia e água trazidas da vizinhança em pequenos baldes. Enquanto isso sucedia, na carroçaria do camião ressaltavam faúlhas muito reluzentes acompanhadas de um estalar constante de madeira e as chamas, por sua vez, elevavam-se cada vez mais ao céu ameaçando queimar os fios de transporte de energia eléctrica da rua 12.

No entanto, houve uma explosão repentina acompanhada de uma bola enorme de chamas vermelhas. Abrigamo-nos todos medrosos debaixo de uma das palmeiras que erguia no centro das duas faixas de rodagem da avenida Eduardo Mondlane.

- O que vem a ser isso? – Questionou Amur.
- Deve ser o tanque do camião. – Disse uma idosa que também abrigara-se numa das palmeiras próxima.
- Camião? – Inquiriram todos em coro e incrédulos.
- Sim. – Gritou a idosa arranjando-se uma das capulanas que lhe desprendera do corpo no momento da explosão. – É um camião militar que, sem mais, nem menos, entendeu pegar fogo no meio da estrada quando vinha roncando no sentido descendente da rua 12.

Quando a velha acabou de proferir estas palavras, deflagraram tiros de armas ligeiras no meio do incêndio, fazendo os curiosos correrem em debandada em todas as direcções. Nesse instante, um bando de corvos que grasnava nas palmeiras douradas do centro da cidade bateram as asas em vôo espectacular e desapareceram nas frondosas amendoeiras e incontáveis amoreiras do parque infantil do ring desportivo.

- Vamos pra casa, malta. – Anuiu Amur tremendo de medo.
- Nem pensar! – Contrariou Kaidar. – Agora que estamos aqui vamos procurar saber o que realmente está a passar-se.
- Concordo contigo! – Observou Bacar olhando para a fumaça cinzenta e escura que já abrandava de intensidade deixando mais nítido o camião militar em chama.
- Let´s go, malta. – Decidiu Quino iniciando a caminhada.

Retomamos a marcha já rapidamente por entre as palmeiras douradas da faixa central da grande avenida e pouco depois, alcançamos a rotunda das avenidas 25 de Setembro e Eduardo Mondlane que fica em frente do Hotel Cabo Delgado. Embrenhamo-nos corajosamente no meio da multidão e com muita agilidade como formigas encontramo-nos, finalmente, a escassos metros do camião em chama. Era um Ziro Russo, cor verde e de caroçaria de madeira. Tinha o vidro frontal caido e estilhaçado no capón, seis rodas grandes vazadas e em chama.

- Deus do céu! – Exclamei visivelmente excitado e continuei inquirindo. – Como foi possível isto?!
- Houve um curto circuito... – Respondeu-me alguém dentre os espectadores vizinhos.
- Ninguém morreu? – Quís saber Quino.
- Felizmente, não! – Disse uma senhora que se achava à nossa frente vestida ao rigor a moda macua: lenço na cabeça, blusa de manga comprida, brincos nas orelhas e no nariz, capulanas multicolores, pulseiras nos braços e chinelos nos pés.
- Mas porquê não criam um comando de bombeiros nesta cidade? – Questionou em voz alta um velhote visivelmente irritado com o que sucedia.
- Estão a espera que aconteça o pior! – Alguém respondeu no meio da multidão em tom de voz cómica.

Porém, as chamas consumiram o camião, por completo, no meio de olhares impotentes dos mirones e no fim, o fogo abrandou deixando o local poluido de fumaça esbranquiçada e espessa, acompanhada de um forte cheiro de borracha queimada.

Passado algum momento, a multidão foi esvairando-se até que não tendo mais graça a permanência no local, saimos dalí correndo e brincando animadamente o pega-pega com destino ao jardim infantil, próximo ao campo municiapal.
- Allman Ndyoko, 20/01/2009, para o ForEver PEMBA.
- Extrato do livro: Contos de Infância Distante.

O Autor:
-Francisco Absalão;-Nome artístico -Allman Ndyoko;
-Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
-Residência actual - Maputo;
-e.mail's:

Leia:

  • "O Suicídio" - Um conto de de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 02 de Junho de 2008 - Aqui!
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !

10/31/08

Semana cultural de Moçambique acontece no Brasil.

(Imagem original daqui.)
A cidade de Brasília, capital brasileira, vai acolher de 6 a 9 de Novembro próximo a semana cultural de Moçambique, uma acção promovida pela embaixada moçambicana naquele país da América Latina, em parceria com a Cine-Vídeo e a Soico.
Ao Brasil desloca-se a artista plástica Chica Sales, que vai levar para expor doze quadros de óleo sobre tela, dois feitos em tinta de china sobre papel, quatro aguarelas e dois lápis.

No campo musical e da dança tradicional e moderna conta-se com a participação do conceituado saxofonista moçambicano Moreira Chonguiça e do agrupamento de canto e dança Milorho.

Haverá, por outro lado, a exposição de capulanas como forma de mostrar a sua influência cultural em Moçambique e no resto do mundo. Neste campo, a artista Suzeth Honwana irá exibir as suas bonecas produzidas à base da capulana.

No que diz respeito à literatura, o escritor Calane da Silva, que é curador do evento, vai lançar o seu último livro, intitulado “Nhembêti ou a Cor da Lágrima”, estando prevista a projecção de filmes documentários produzidos por cineastas moçambicanos, e far-se-á uma exposição gastronómica moçambicana, destacando-se os pratos tradicionais.

Ao realizar-se este evento pretende-se promover a cultura moçambicana no Brasil, reforçando os laços de amizade e de cooperação, fazendo das artes e cultura um pretexto para a exaltação da cultura, cimentando ainda mais a ideia de que ela não tem fronteiras. Num outro prisma, a ideia é aproximar os povos moçambicano e brasileiro, mostrando o que há de bom, ao mesmo tempo que se vai promover as diferenças e as semelhanças, trocando experiências sobre vários aspectos da vida sócio-cultural e massificando a História de Moçambique e do Brasil.
- In Notícias, Maputo, Sexta-Feira, 31 de Outubro de 2008.

7/02/08

Ronda pela imprensa moçambicana: Inaugurada sede do Arquivo Histórico de Moçambique.

É inaugurado hoje, em Maputo, o edifício da sede do Arquivo Histórico de Moçambique, uma instituição pertencente à Universidade Eduardo Mondlane (UEM).
O acto será dirigido pelo Ministro da Educação e Cultura, Aires Ali, acompanhado por vários quadros do cenário educacional e cultural do país e estrangeiros, com destaque para a presença do Reitor da UEM, Padre Filipe Couto, e do Ministro português das Finanças, Teixeira dos Santos.
Esta cerimónia coincide com a semana comemorativa do 74º aniversário do Arquivo Histórico de Moçambique, e o acto será seguido de uma série de debates sobre arquivos e investigação científica, e arquivos e governação.
Ainda no quadro da semana dos arquivos, haverá o encerramento do curso profissional de arquivos, que terá lugar na sexta-feira.
- Notícias, 02Jul2008.

6/02/08

O Suicídio - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Imagem original daqui. Clique na imagem para ampliar)
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O SUICÍDIO
E
m pouco tempo, correra em toda aldeia Kunakavanga de boca em boca e de familia em familia o boato segundo o qual, o jovem Kanhembe havia sido visto na calada da noite envolvido em acto de adultério com Malonda, terceira mulher do nkulungwa Kavanga, régulo da aldeia Kunakavanga. Segundo as más linguas, Kanhembe mantinha o seu romance secreto com Malonda, uma jovem esbelta, clara, tatuada e com dentes afiados como mandavam as regras na sua comunidade, desde os tempos recuados, época em que os dois eram adolescentes. O seu romance veio a conhecer o fim quando, sem consentimento da jovem, os pais decidiram aceitar o pedido de casamento formulado pelo Kavanga sem que este tenha dialogado com a Malonda. Temendo represálias pesadas por parte da família, Malonda não viu outra saída se não seguir o destino que lhe era traçado pela circunstância, pese embora o seu coração estivesse entregue espontaneamente ao Kanhembe. Esta situação trouxe um grande sofrimento ao Kanhembe que assistiu, sem nada fazer, à cerimónia da entrega do seu amor ao velho Kavanga que, orgulhosamente, fez questão de paralisar a vida da aldeia do nkulungwa Nkwemba para os aldeões testemunharem o seu célebre enlace.
O tempo passou e consigo foram as lembrança do célebre casamento do velho Kavanga e, por ironia do destino, passado muitos anos, Kanhembe veio a casar na aldeia Kunakavanga, onde vivia Malonda, seu amor roubado. Como a tradição makonde daquele tempo mandava o homem viver os primeiros dois anos na aldeia e na familia da mulher, Kanhembe veio morar na povoação de Kunakavanga em cumprimento da tradição. Foi nessa altura que gente de má fé espalhou em toda aldeia inúmeros boatos dando conta que Kanhembe andava de cavaqueira com Malonda, esposa do afamado nkulungwa Kavanga. Como não houvesse evidências, Kanhembe foi poupado aos interrogatórios dos velhos conservadores do conselho dos ancião da aldeia Kunakavanga.
Porém, uma certa noite de céu decorado de estrelas e de terra banhada de luar, foi visto alguém, no silêncio da noite, saindo dissimuladamente da cubata de Malonda e se precipitando para o terreiro da aldeia, na direcção em que morava o jovem Kanhembe, num dia em que Kavanga dormia descansadamente na casa da quarta esposa, localizada na entrada da aldeia. Este acontecimento espalhou-se no dia seguinte em toda aldeia, tendo sido, uma vez mais, posto em causa o bom nome do jovem Kanhembe, que na altura do acontecimento se encontrava na aldeia vizinha participando na cerimónia fúnebre de um dos parentes do terceiro grau morto há dias por um leão quando voltava da machamba.
Quando voltou a aldeia, o jovem foi colhido de surpresa pela noticia que não parava de espalhar-se. Sentindo-se ultrajado e sendo tratado pelos aldeões com atitude de real culpado, saiu de casa à tarde sem se despedir e com lipeta nas costas contendo uma longa corda de ntope que servira para empilhar capim que tinha sido usado dias anteriores para cobrir a palhota dos sogros. Kanhembe atravessou o terreiro em diagonal, passou pela rua da Malonda como se quisesse dizer algo e mais tarde seguiu o caminho que levava a floresta conservando um silêncio tumular. Pensativo, passou em frente de uma casa que cheirava a gordura e em que se achava uma infinidade de gente bebendo nkalogwè e de súbito ouviu o seu nome pronunciado com intusiasmo. Não parou e nem se dignou olhar. Continuou a marcha em direcção a floresta. Próximo ao limiar da aldeia, três homens trajando roupas usadas até o remendo olharam-no com espanto e passaram-lhe duvidando a sua sanidade mental. Kanhembe não se atrapalhou e continuou a sua marcha como se a morte na sua grandiosa força lhe chamasse com excessiva urgência.
Entretanto, após ter deixado a aldeia andou alguns minutos num caminho tortuoso que levava às machambas dos aldeões e, mais adiante, bem perto do caminho embrenhou-se pela mata onde, próximo a uma mangueira frondosa parou. Defecou nas imediações e trepou na árvore até aos primeiros ramos, onde tirou a corda, amarrou num dos ramos que se mostrava consistente, fez um nó e pôs-se ao pescoço. Meditou durante alguns instantes e de repente deixou-se cair. Os olhos arregalaram-se, o pescoço estreitou-se e a corda penetrou-lhe às entranhas, obrigando-o a soltar a lingua para fora como se de um búfalo morto se tratasse. Estrebuchou violentamente e, por fim, mantve-se sereno com o mijo a escorrer pelas pernas abaixo. Oscilando ao prazer do vento, o corpo de Kanhembe manteve-se na floresta durante quatro dias e na tarde do último dia, foi descoberto por um caçador que passava por ali a caminho das suas armadilhas e que logo, tratou de comunicar os aldeões. Quando estes chegaram, soltaram o malogrado em estado de putrefacção e trataram de o enterrar sem que o levassem à aldeia.
Dias depois, Kavanga surpreendeu Malonda em acto de adultério na sua cubata com um dos anciãos da sua aldeia. O sucedido chocou aos populares e, rapidamente, o conselho dos anciãos tratou de ocultar o sucedido para que não criasse rebilião.
Francisco Absalão
21/04/2008
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GLOSSÁRIO:
Nkulungwa – Chefe da povoação;
Ntope – Acta selvagem;
Lipeta – Muchila feita de pele de animais selvagens;
Nkalogwè – Oteka ou, por outra, bebida tradicional feita de mipira.
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O Autor:
-Francisco Absalão;
-Nome artístico -Allman Ndyoko;
-Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
-Residência actual - Maputo;
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Leia:
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29/Março/2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24/Outubro/2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19/Março/2008 - Aqui !

3/19/08

O Nó Sagrado - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Imagem original recolhida na net)
Era uma tarde azul de chambo – época seca que começa em Julho e termina em Outubro.
Isolado do resto do mundo, a vida no planalto corria normalmente com a sua gente envolvida em labores diferentes, como é lógico, e despreocupada com a evolução e inovação, contudo, fiéis a tradição herdada dos ancestrais.
Kandingwele, jovem caçador da linhagem de midamu, chegou exauto na margem esquerda do rio Chudi acompanhado de três cães de caça e pousou no chão quatro dimbutuka, produto de um dia de caça na densa floresta makonde. Limpou com a palma da mão o suor que lhe escorria pela face abaixo e sentou-se na sombra de um arbusto que crescia alegre na margem do rio. Tirou do lipeta um favo de mel, sacudiu-o contra o tronco do arbusto e, destraido, pôs-se a saborear o mel com gosto naquele recanto da natureza digno de admiração.
O sol estava escaldante, o ar pesado e quente. Ao longo do rio a vegetação era toda fresca. Havia sombras de sobra por todo lado e no leito do rio podia-se ouvir o murmúrio das águas correntes que passavam entre os musgos e as pedras levando e espalhando por todo leito folhagem seca e fresca caída das árvores que se prostravam majestosamente ao longo das duas margens.
Passado algum momento, Kandingwele ergueu-se do arbusto e pequenos ramos com folhagem roçaram-lhe cordialmente a face tatuada com esmero. Espreguiçou-se bocejando e marchou cansado até perto das águas do rio. Lavou as mãos lentamente, bebeu a água com avidez de um guerreiro perdido e por fim, lavou o rosto com as duas mãos. De seguida, ergueu-se ajeitando a sua ingonda e no silêncio da imensidão da floresta ouviu vozes e risos estridentes. Deteve-se alguns instantes escutando atentamente e, nesse momento, os cães ladraram com ímpeto correndo em direcção ao nascente do rio, onde três donzelas makondes banhavam-se destraídas e envolvidas numa louca brincadeira que obrigava água a espumar e a emitir um barulho ensurdecedor.
As donzelas assustaram-se.
Sairam da água a sete pés tapando com as palmas das mãos as partes íntimas do corpo.
Kandingwele escondeu-se entre as árvores e, sorrateiramente, pôs-se a assistir as raparigas apavoradas. Dobrou-se sobre o ventre três vezes, como quem não podia mais de tanto rir, e depois manteve-se sereno espreitando entre a ramada as donzelas que se esforçavam a vestir rapidamente. Nisto, puseram-se as bilhas com água à cabeça e sairam apavoradas em direcção à povoação aliando a presença de cães, noutra margem do rio, à presença indubitável do homem.
Quando as donzelas desapareceram da vista, Kandingwele sentou-se, novamente, debaixo da sombra do arbusto e sem dar em conta viu-se mergulhado em profundas meditações através do coração, órgão que, segundo os velhos sábios makondes, pensa e sente. Melancólico, Kandingwele, rebuscou relíquias amorosas de um passado muito recente e guardadas a sete chaves nas profundezas da sua memória. Revisitou com gosto a lista de raparigas que namorara às escondidas longem dos olhos desconfiados dos aldeões e por fim, sorriu de orgulho e satisfação esboçando na sua fisionomia triste uma expressão alegre e animada. Aspirou o ar profundamente, meneou a cabeça vigorosamente para afastar da mente aquelas recordações que lhe enchiam de emoção o coração. Volveu o olhar nas águas que corriam no leito cantando em tom cristalino e depois arrancou nas proximidades uma pétala enorme de uma flor selvagem. Desfez em pedaços insignificantes, sem saber porquê, e lançou-os para o rio. Olhou os retalhos com indiferença enquanto se esmeravam em vão contra a correnteza das águas que faziam os objectos passarem velozes por entre as pedras e o caniçal musgoso que predominava o leito do Chudi. Repetiu vezes sem conta esta brincadeira até que passado algum momento, ouviu o estalar insistente de ramos e folhas secas. Kandingwele revistou rapidamente a mata com os olhos e escondeu-se por entre os arbustos. O som insistente de pisadas de ramos e folhas secas intensificou-se significativamente e de repente, surgiu em frente dos seus olhos, noutra margem do rio, uma bela e sedutora rapariga que levava debaixo do braço esquerdo uma bilha decorada com perfeição por uma ceramísta makonde anónima perdida algures nas inúmeras povoações do planalto. Desceu o rio distraída até às águas, onde encheu a bilha e saiu para pousa-la na margem coberta vegetação verdejante. De seguida, despiu-se naturalmente, desceu, novamente, o rio e lançou-se às águas trauteando feliz com a vida.
Kandingwele saiu do esconderijo profundamente encantado pela beleza extraordinária da jovem makonde. Aproximou-se ao leito do rio e os olhos se encontraram. A donzela sorriu e continuou o banho olhando para o estranho que lhe assistia estupefacto noutra margem do rio. Kandingwele acenou-lhe a mão timidamente e a rapariga retribuiu o gesto naturalmente. Os dois olharam-se tranquilamente nos olhos como se se conhecessem de toda vida. Kandingwele sentou-se no chão cruzando os braços no peito e continuou apreciando a rapariga admirando, sobretudo, os seus seios túrgidos, olhos semi-esbugalhados, lábios escuros e carnudos, o seu olhar contagiante, suas coxas fartas e nádegas bamboleantes.
A rapariga saiu da água, passou as mãos pelo o corpo abaixo escorrendo gotas que lhe cobriam a pele e vestiu-se lançando olhares furtivos e sedutores ao Kandingwele. Quando acabou de vestir-se, pôs-se a bilha à cabeça, acenou a mão em sinal de despedida e serpenteando o corpo, propositadamente, desapareceu da vista seguindo o caminho que conduzia a povoação.
Entretanto, naquele dia à noite, já em casa e dentro do aposento, Kandingwele, não conseguia encetar o sono. Rebolava de um lado para o outro tentando apagar na sua mente aquela extraordinária donzela que vira à tarde daquele dia na margem direita do Chudi. Todavia, as suas recordações eram mais vivas e fortes do que o seu simples desejo de apagar na sua mente aquelas doce lembranças que lhe roubavam o sono. Contudo, já perto da madrugada o jovem foi vencido pelo sono.
No dia seguinte era domingo. Ao entardecer, o som de lipalapanda irrompeu o céu do planalto cortando-o de lés-a-lés e anunciando a sessão dominical de mapiko. Em pouco tempo as ruas ficaram agitadas. O terreiro encheu-se de gente e jovens de povoações distantes chegaram para uma competição de mapiko. Os murmúrios multiplicaram-se e o terreiro ficou barulhento. Era um grande dia!
Entretanto, soaram, por alguns instantes, os sons de vinganga e ntodje e, por fim, o som de lipalapanda cortou, novamente, o céu anunciando o inicio da competição. Kandingwele saiu do quintal e já na rua que conduzia ao terreiro da povoação juntou-se a um grupo de aldeões que se dirigia a competição fazendo comentários dos melhores grupos de mapiko. Enquanto caminhavam com destino ao terreiro, junto deles vinham vozes entrecortadas embaladas em cânticos antigos trazidos até ali pelo vento que soprando sem impetuosidade, levava consigo à terras distantes o tam-tam secular dos tambores, despertando assim os espíritos antigos adormecidos na imensa e densa floresta makonde.
Pouco tempo depois, chegaram ao terreiro e juntaram-se à multidão que cantava acompanhando orgulhosamente as batucadas dos tambores. Havia muita gente. O ar estava pesado e o cheiro humano era intenso. O mapiko com seus vestes e máscara característicos dançava no centro da roda humana fazendo, de quando em vez, brincadeiras engraçadas com o auditório. A sua frente, um grupo de tocadores de batuques esforçava-se em tocar os tambores procurando ganhar a simpatia do público que delirava acompanhando os cânticos dos percussionistas.
Kandingwele fez ao acaso uma ronda com os olhos em torno da multidão e, de repente, algo chamou sua atenção: doutro lado da moldura huamana estava a donzela do rio. Fez um esforço no meio da multidão caminhando ao seu encontro e quando chegou perto a donzela tinha já desaparecido. Ficou perplexo! Olhou em redor como se estivesse a procura de um diamante perdido e, por fim, saiu da multidão todo melancólico e pôs-se a procura da rapariga nos pequenos aglomerados de gente que se achavam nas inúmeras sombras de mangueiras espalhadas pelo terreiro.
De súbito, alguém bateu-lhe suavemente as costas. Kandingwele virou-se interrogativamente e viu à sua frente a donzela do rio sorrindo-lhe.
- O que procuras? – Quis saber a rapariga.
- Eu?
- Sim!
- Nada. – Disse Kandingwele embaraçado e depois acrescentou. – Estou a tentar apanhar ar fresco.
- Muito bem.
- E tu? O que fazes aqui?
- Queria ver se conseguias me descobrir...
- Como soubeste que vinha ao seu encontro?
- Advinhei.
O jovem fez um movimento para caminhar deixando um casal de velhos passar e depois, questionou:
- Chegaste bem ontem?
- Cheguei. – Sorriu. – E tu?
- Cheguei também, mas não consegui dormir nem tão pouco.
- Porquê?
- Não parava de pensar em ti.
A donzela riu. Olhou o interlocutor nos olhos e manteu-se serena e sorridente.
- Nunca alguém havia me deixado assim na vida. – Confessou Kandingwele honestamente.
- A sério?
- A sério. – O jovem esboçou uma expressão facial sincera e patética.
A donzela agitou o corpo toda gingona acompanhando com estilo o rufar dos batuques. Dirigiu o olhar para o centro da roda humana onde dois mapikos dançavam procurando mostrar à todo custo o auditório tudo o que sabiam acerca da arte de dançar mapiko. De seguida, volveu o olhar ao interlocutor.
- Posso te fazer uma pergunta? – Questionou Kandingwele.
- À vontade.
- O que faço para ganhar o seu coração?
A donzela riu. No fim, disse:
- Mostra que és valente.
- Como? – Sorriu. – Matando um leão ou domando um crocodilo?
- Não. – Retorquiu a donzela sorrindo.
- Então, como?
- Pedindo a minha mão em casamento.
Os dois jovens desataram a rir todos satisfeitos.
- A propósito. – Disse a rapariga assim que os risos cessaram. – Como te chamas?
- Kandingwele. E tu?
- Nkalimile.
- Belo nome.
- O seu também é muito belo, pese embora seja meio engraçado. – Observou Nkalimile.
- Porquê?
- Sei lá...
Os dois desataram a rir novamente felizes com a vida. Entretanto, afastaram-se da multidão e caminharam até perto do limiar do terreiro, onde detiveram-se no beiral de uma das palhotas que circundava o terreiro. Já longe do barulho dos populares e dos tambores, kandingwele, quis saber:
- Que linhagem pertences?
- Sou ntchipedi . E você?
- Midamu.
- Bem que não somos da mesma linhagem . – Monologou Nkalimile.
- Já agora, que faço para te ver novamente?
- É muito simples. – Assegurou a donzela. – Vivo na entrada da povoação e também podes me encontrar no rio nas tardes.
- A mesma hora que te vi ontem?
- Com certeza.
- Então, para não te roubar mais tempo,vejo-te outro dia.
- Não tem de quê.
Kandingwele fez movimento para caminhar. Os jovens olharam-se nos olhos intensamente e, no fim, deram-se as costas. Kandingwele dirigiu-se a casa muito feliz e Nkalimile voltou a juntar-se à multidão que assistia e dançava ao som das batucadas de vinganga e ntodje que, de quando em vez, eram intercaladas pelos sons ensurdecedores de lipalapanda .
No entanto, nos dias subsequentes Kandingwele e Nkalimile encontraram-se no rio e na floresta várias vezes até que uma certa tarde de quinta-feira e de céu nublado Kandingwele sentado na cama de lutandove ao lado do pai e do tio materno informou-lhes da sua pretenção de casar-se com Nkalimile.
- A ideia é boa e eu estava a espera de ouvir algo semelhante faz muito tempo. – Disse o pai rabiscando com uma bengala umas linhas obliquas na terra.
- E quem é a menina? – Quis saber o tio visivelmente emocionado.
- É Nkalimile. Uma bela e educada rapariga que vive lá no fim da povoação.
- É trabalhadora e saudável? – Inquiriu o pai olhando o filho firmemente.
- É, pai...
- Muito bem.
- E de que linhagem ela é?
- É ntchipedi.
Houve silêncio. Depois de alguns instantes, o pai disse:
- Há problema, meu filho.
- Que problema? – Quis saber Kandingwele estupefacto.
- Não é possível casares com essa rapariga. – Disse o tio tocando levemente o ombro do sobrinho.
- Porquê?
- É uma longa e complicada estória... – Explicou o pai. De seguida, acrescentou. – Foi há muito, muito tempo que tudo começou.
O velho calou-se. Reflectiu alguns instantes e voltou ao fio de pensamento.
- Há muito tempo um homem da linhagem vankundya matou um elefante na floresta. Ele e gente da sua linhagem comeram o animal todo de uma só vez e ficaram dali em diante a serem chamados vantchipedi, isto pelo facto de terem conseguido devorar sozinhos um elefante enorme.
O velho fez uma pausa novamente para ordenar as suas ideias, mas logo voltou ao ponto onde havia interrompido:
- Depois deste acontecimento, passaram duas gerações e houve likumbi muito grande. Na véspera do regresso dos rapazes do mato, morreu um deles e, pelo sucedido, todos rapazes adoptaram o nome de vamidamu em alusão às marmitas que era levadas para eles no mato. Depois disso, passaram-se ainda gerações. Portanto, vankundya e vamidamu são parentes dos vantchipedi e não é permitido casar entre eles.
Kandingwele suspirou. Meneou a cabeça como se estivesse a desaprovar a estória e manteu-se cabisbaixo. O tio olhou-o, passou-lhe a mão pelas costas e disse:
- Há muitas outras estórias antigas que proibem casamentos entre certas linhagens. Por exemplo, gente da linhagem vamboei estão impedidos de casar-se com membros da linhagem vanachuluma porque antigamente estes últimos mataram um parente dos vamboei. Apesar desta morte ter sido compensada com uma outra, infelizmente, estas duas linhagens ficaram para sempre inimigas.
- Por isso, filho, tens que procurar rapariga doutra linhagem para casar. – Disse o pai visivelmente abalado.
- Tenho certeza que vais achar, novamente, alguém especial que te fará muito feliz. – Encorajou o tio procurando animar o sobrinho.
Kandingwele manteu-se calado. O pai e o tio não pronunciaram uma palavra se quer e, passado algum momento, o jovem ergueu a cabeça e saiu dali melancólico para passear...
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Glossário:
- Chambo – Época seca que começa em Julho e termina em Outubro;
- Midamu – Alguém da linhagem vamidam;
- Dimbutuka – Gazelas;
- Vanachuluma –Linhagem Nachuluma;
- Vamboei – Linhagem Mboei;
- Rankundya – Linhagem de Nkundya;
- Likumbi – Lugar onde se realizam ritos de iniciação para os rapazes. Normalmente é lugar perto da povoação, mas escondido no mato, onde os vaali (rapazes ou meninas) vivem durante os meses de sua segregação no mato;
- Lutandove – cama composta de base de estacas e atravessada com cordas tecidas com palha;
- Ntchipedi – Alguém da linhagem vantchipedi;
- Lipalapanda – Chifre de antílope, normalmente, usado para anunciar uma festa ou animar uma sessão cultural;
- Midamu – Alguém da linhagem vamidamu;
- Vinganga – Batuque pequenos, achatados e meio delgados;
- Ntodje – Batuque delgado;
- Mapiko – Dança de máscara;
- Makonde – Povo do norte de Moçambique.
  • Leia também "O Turbilhão Lendário" outro texto de Francisco Absalão transcrito no ForEver PEMBA em 24/Outubro/2007 - Aqui !
O Autor:
- Francisco Absalão
- Nome artístico - Allman Ndyoko;
- Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
- Residência actual - Maputo;