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3/19/08

O Nó Sagrado - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Imagem original recolhida na net)
Era uma tarde azul de chambo – época seca que começa em Julho e termina em Outubro.
Isolado do resto do mundo, a vida no planalto corria normalmente com a sua gente envolvida em labores diferentes, como é lógico, e despreocupada com a evolução e inovação, contudo, fiéis a tradição herdada dos ancestrais.
Kandingwele, jovem caçador da linhagem de midamu, chegou exauto na margem esquerda do rio Chudi acompanhado de três cães de caça e pousou no chão quatro dimbutuka, produto de um dia de caça na densa floresta makonde. Limpou com a palma da mão o suor que lhe escorria pela face abaixo e sentou-se na sombra de um arbusto que crescia alegre na margem do rio. Tirou do lipeta um favo de mel, sacudiu-o contra o tronco do arbusto e, destraido, pôs-se a saborear o mel com gosto naquele recanto da natureza digno de admiração.
O sol estava escaldante, o ar pesado e quente. Ao longo do rio a vegetação era toda fresca. Havia sombras de sobra por todo lado e no leito do rio podia-se ouvir o murmúrio das águas correntes que passavam entre os musgos e as pedras levando e espalhando por todo leito folhagem seca e fresca caída das árvores que se prostravam majestosamente ao longo das duas margens.
Passado algum momento, Kandingwele ergueu-se do arbusto e pequenos ramos com folhagem roçaram-lhe cordialmente a face tatuada com esmero. Espreguiçou-se bocejando e marchou cansado até perto das águas do rio. Lavou as mãos lentamente, bebeu a água com avidez de um guerreiro perdido e por fim, lavou o rosto com as duas mãos. De seguida, ergueu-se ajeitando a sua ingonda e no silêncio da imensidão da floresta ouviu vozes e risos estridentes. Deteve-se alguns instantes escutando atentamente e, nesse momento, os cães ladraram com ímpeto correndo em direcção ao nascente do rio, onde três donzelas makondes banhavam-se destraídas e envolvidas numa louca brincadeira que obrigava água a espumar e a emitir um barulho ensurdecedor.
As donzelas assustaram-se.
Sairam da água a sete pés tapando com as palmas das mãos as partes íntimas do corpo.
Kandingwele escondeu-se entre as árvores e, sorrateiramente, pôs-se a assistir as raparigas apavoradas. Dobrou-se sobre o ventre três vezes, como quem não podia mais de tanto rir, e depois manteve-se sereno espreitando entre a ramada as donzelas que se esforçavam a vestir rapidamente. Nisto, puseram-se as bilhas com água à cabeça e sairam apavoradas em direcção à povoação aliando a presença de cães, noutra margem do rio, à presença indubitável do homem.
Quando as donzelas desapareceram da vista, Kandingwele sentou-se, novamente, debaixo da sombra do arbusto e sem dar em conta viu-se mergulhado em profundas meditações através do coração, órgão que, segundo os velhos sábios makondes, pensa e sente. Melancólico, Kandingwele, rebuscou relíquias amorosas de um passado muito recente e guardadas a sete chaves nas profundezas da sua memória. Revisitou com gosto a lista de raparigas que namorara às escondidas longem dos olhos desconfiados dos aldeões e por fim, sorriu de orgulho e satisfação esboçando na sua fisionomia triste uma expressão alegre e animada. Aspirou o ar profundamente, meneou a cabeça vigorosamente para afastar da mente aquelas recordações que lhe enchiam de emoção o coração. Volveu o olhar nas águas que corriam no leito cantando em tom cristalino e depois arrancou nas proximidades uma pétala enorme de uma flor selvagem. Desfez em pedaços insignificantes, sem saber porquê, e lançou-os para o rio. Olhou os retalhos com indiferença enquanto se esmeravam em vão contra a correnteza das águas que faziam os objectos passarem velozes por entre as pedras e o caniçal musgoso que predominava o leito do Chudi. Repetiu vezes sem conta esta brincadeira até que passado algum momento, ouviu o estalar insistente de ramos e folhas secas. Kandingwele revistou rapidamente a mata com os olhos e escondeu-se por entre os arbustos. O som insistente de pisadas de ramos e folhas secas intensificou-se significativamente e de repente, surgiu em frente dos seus olhos, noutra margem do rio, uma bela e sedutora rapariga que levava debaixo do braço esquerdo uma bilha decorada com perfeição por uma ceramísta makonde anónima perdida algures nas inúmeras povoações do planalto. Desceu o rio distraída até às águas, onde encheu a bilha e saiu para pousa-la na margem coberta vegetação verdejante. De seguida, despiu-se naturalmente, desceu, novamente, o rio e lançou-se às águas trauteando feliz com a vida.
Kandingwele saiu do esconderijo profundamente encantado pela beleza extraordinária da jovem makonde. Aproximou-se ao leito do rio e os olhos se encontraram. A donzela sorriu e continuou o banho olhando para o estranho que lhe assistia estupefacto noutra margem do rio. Kandingwele acenou-lhe a mão timidamente e a rapariga retribuiu o gesto naturalmente. Os dois olharam-se tranquilamente nos olhos como se se conhecessem de toda vida. Kandingwele sentou-se no chão cruzando os braços no peito e continuou apreciando a rapariga admirando, sobretudo, os seus seios túrgidos, olhos semi-esbugalhados, lábios escuros e carnudos, o seu olhar contagiante, suas coxas fartas e nádegas bamboleantes.
A rapariga saiu da água, passou as mãos pelo o corpo abaixo escorrendo gotas que lhe cobriam a pele e vestiu-se lançando olhares furtivos e sedutores ao Kandingwele. Quando acabou de vestir-se, pôs-se a bilha à cabeça, acenou a mão em sinal de despedida e serpenteando o corpo, propositadamente, desapareceu da vista seguindo o caminho que conduzia a povoação.
Entretanto, naquele dia à noite, já em casa e dentro do aposento, Kandingwele, não conseguia encetar o sono. Rebolava de um lado para o outro tentando apagar na sua mente aquela extraordinária donzela que vira à tarde daquele dia na margem direita do Chudi. Todavia, as suas recordações eram mais vivas e fortes do que o seu simples desejo de apagar na sua mente aquelas doce lembranças que lhe roubavam o sono. Contudo, já perto da madrugada o jovem foi vencido pelo sono.
No dia seguinte era domingo. Ao entardecer, o som de lipalapanda irrompeu o céu do planalto cortando-o de lés-a-lés e anunciando a sessão dominical de mapiko. Em pouco tempo as ruas ficaram agitadas. O terreiro encheu-se de gente e jovens de povoações distantes chegaram para uma competição de mapiko. Os murmúrios multiplicaram-se e o terreiro ficou barulhento. Era um grande dia!
Entretanto, soaram, por alguns instantes, os sons de vinganga e ntodje e, por fim, o som de lipalapanda cortou, novamente, o céu anunciando o inicio da competição. Kandingwele saiu do quintal e já na rua que conduzia ao terreiro da povoação juntou-se a um grupo de aldeões que se dirigia a competição fazendo comentários dos melhores grupos de mapiko. Enquanto caminhavam com destino ao terreiro, junto deles vinham vozes entrecortadas embaladas em cânticos antigos trazidos até ali pelo vento que soprando sem impetuosidade, levava consigo à terras distantes o tam-tam secular dos tambores, despertando assim os espíritos antigos adormecidos na imensa e densa floresta makonde.
Pouco tempo depois, chegaram ao terreiro e juntaram-se à multidão que cantava acompanhando orgulhosamente as batucadas dos tambores. Havia muita gente. O ar estava pesado e o cheiro humano era intenso. O mapiko com seus vestes e máscara característicos dançava no centro da roda humana fazendo, de quando em vez, brincadeiras engraçadas com o auditório. A sua frente, um grupo de tocadores de batuques esforçava-se em tocar os tambores procurando ganhar a simpatia do público que delirava acompanhando os cânticos dos percussionistas.
Kandingwele fez ao acaso uma ronda com os olhos em torno da multidão e, de repente, algo chamou sua atenção: doutro lado da moldura huamana estava a donzela do rio. Fez um esforço no meio da multidão caminhando ao seu encontro e quando chegou perto a donzela tinha já desaparecido. Ficou perplexo! Olhou em redor como se estivesse a procura de um diamante perdido e, por fim, saiu da multidão todo melancólico e pôs-se a procura da rapariga nos pequenos aglomerados de gente que se achavam nas inúmeras sombras de mangueiras espalhadas pelo terreiro.
De súbito, alguém bateu-lhe suavemente as costas. Kandingwele virou-se interrogativamente e viu à sua frente a donzela do rio sorrindo-lhe.
- O que procuras? – Quis saber a rapariga.
- Eu?
- Sim!
- Nada. – Disse Kandingwele embaraçado e depois acrescentou. – Estou a tentar apanhar ar fresco.
- Muito bem.
- E tu? O que fazes aqui?
- Queria ver se conseguias me descobrir...
- Como soubeste que vinha ao seu encontro?
- Advinhei.
O jovem fez um movimento para caminhar deixando um casal de velhos passar e depois, questionou:
- Chegaste bem ontem?
- Cheguei. – Sorriu. – E tu?
- Cheguei também, mas não consegui dormir nem tão pouco.
- Porquê?
- Não parava de pensar em ti.
A donzela riu. Olhou o interlocutor nos olhos e manteu-se serena e sorridente.
- Nunca alguém havia me deixado assim na vida. – Confessou Kandingwele honestamente.
- A sério?
- A sério. – O jovem esboçou uma expressão facial sincera e patética.
A donzela agitou o corpo toda gingona acompanhando com estilo o rufar dos batuques. Dirigiu o olhar para o centro da roda humana onde dois mapikos dançavam procurando mostrar à todo custo o auditório tudo o que sabiam acerca da arte de dançar mapiko. De seguida, volveu o olhar ao interlocutor.
- Posso te fazer uma pergunta? – Questionou Kandingwele.
- À vontade.
- O que faço para ganhar o seu coração?
A donzela riu. No fim, disse:
- Mostra que és valente.
- Como? – Sorriu. – Matando um leão ou domando um crocodilo?
- Não. – Retorquiu a donzela sorrindo.
- Então, como?
- Pedindo a minha mão em casamento.
Os dois jovens desataram a rir todos satisfeitos.
- A propósito. – Disse a rapariga assim que os risos cessaram. – Como te chamas?
- Kandingwele. E tu?
- Nkalimile.
- Belo nome.
- O seu também é muito belo, pese embora seja meio engraçado. – Observou Nkalimile.
- Porquê?
- Sei lá...
Os dois desataram a rir novamente felizes com a vida. Entretanto, afastaram-se da multidão e caminharam até perto do limiar do terreiro, onde detiveram-se no beiral de uma das palhotas que circundava o terreiro. Já longe do barulho dos populares e dos tambores, kandingwele, quis saber:
- Que linhagem pertences?
- Sou ntchipedi . E você?
- Midamu.
- Bem que não somos da mesma linhagem . – Monologou Nkalimile.
- Já agora, que faço para te ver novamente?
- É muito simples. – Assegurou a donzela. – Vivo na entrada da povoação e também podes me encontrar no rio nas tardes.
- A mesma hora que te vi ontem?
- Com certeza.
- Então, para não te roubar mais tempo,vejo-te outro dia.
- Não tem de quê.
Kandingwele fez movimento para caminhar. Os jovens olharam-se nos olhos intensamente e, no fim, deram-se as costas. Kandingwele dirigiu-se a casa muito feliz e Nkalimile voltou a juntar-se à multidão que assistia e dançava ao som das batucadas de vinganga e ntodje que, de quando em vez, eram intercaladas pelos sons ensurdecedores de lipalapanda .
No entanto, nos dias subsequentes Kandingwele e Nkalimile encontraram-se no rio e na floresta várias vezes até que uma certa tarde de quinta-feira e de céu nublado Kandingwele sentado na cama de lutandove ao lado do pai e do tio materno informou-lhes da sua pretenção de casar-se com Nkalimile.
- A ideia é boa e eu estava a espera de ouvir algo semelhante faz muito tempo. – Disse o pai rabiscando com uma bengala umas linhas obliquas na terra.
- E quem é a menina? – Quis saber o tio visivelmente emocionado.
- É Nkalimile. Uma bela e educada rapariga que vive lá no fim da povoação.
- É trabalhadora e saudável? – Inquiriu o pai olhando o filho firmemente.
- É, pai...
- Muito bem.
- E de que linhagem ela é?
- É ntchipedi.
Houve silêncio. Depois de alguns instantes, o pai disse:
- Há problema, meu filho.
- Que problema? – Quis saber Kandingwele estupefacto.
- Não é possível casares com essa rapariga. – Disse o tio tocando levemente o ombro do sobrinho.
- Porquê?
- É uma longa e complicada estória... – Explicou o pai. De seguida, acrescentou. – Foi há muito, muito tempo que tudo começou.
O velho calou-se. Reflectiu alguns instantes e voltou ao fio de pensamento.
- Há muito tempo um homem da linhagem vankundya matou um elefante na floresta. Ele e gente da sua linhagem comeram o animal todo de uma só vez e ficaram dali em diante a serem chamados vantchipedi, isto pelo facto de terem conseguido devorar sozinhos um elefante enorme.
O velho fez uma pausa novamente para ordenar as suas ideias, mas logo voltou ao ponto onde havia interrompido:
- Depois deste acontecimento, passaram duas gerações e houve likumbi muito grande. Na véspera do regresso dos rapazes do mato, morreu um deles e, pelo sucedido, todos rapazes adoptaram o nome de vamidamu em alusão às marmitas que era levadas para eles no mato. Depois disso, passaram-se ainda gerações. Portanto, vankundya e vamidamu são parentes dos vantchipedi e não é permitido casar entre eles.
Kandingwele suspirou. Meneou a cabeça como se estivesse a desaprovar a estória e manteu-se cabisbaixo. O tio olhou-o, passou-lhe a mão pelas costas e disse:
- Há muitas outras estórias antigas que proibem casamentos entre certas linhagens. Por exemplo, gente da linhagem vamboei estão impedidos de casar-se com membros da linhagem vanachuluma porque antigamente estes últimos mataram um parente dos vamboei. Apesar desta morte ter sido compensada com uma outra, infelizmente, estas duas linhagens ficaram para sempre inimigas.
- Por isso, filho, tens que procurar rapariga doutra linhagem para casar. – Disse o pai visivelmente abalado.
- Tenho certeza que vais achar, novamente, alguém especial que te fará muito feliz. – Encorajou o tio procurando animar o sobrinho.
Kandingwele manteu-se calado. O pai e o tio não pronunciaram uma palavra se quer e, passado algum momento, o jovem ergueu a cabeça e saiu dali melancólico para passear...
.
Glossário:
- Chambo – Época seca que começa em Julho e termina em Outubro;
- Midamu – Alguém da linhagem vamidam;
- Dimbutuka – Gazelas;
- Vanachuluma –Linhagem Nachuluma;
- Vamboei – Linhagem Mboei;
- Rankundya – Linhagem de Nkundya;
- Likumbi – Lugar onde se realizam ritos de iniciação para os rapazes. Normalmente é lugar perto da povoação, mas escondido no mato, onde os vaali (rapazes ou meninas) vivem durante os meses de sua segregação no mato;
- Lutandove – cama composta de base de estacas e atravessada com cordas tecidas com palha;
- Ntchipedi – Alguém da linhagem vantchipedi;
- Lipalapanda – Chifre de antílope, normalmente, usado para anunciar uma festa ou animar uma sessão cultural;
- Midamu – Alguém da linhagem vamidamu;
- Vinganga – Batuque pequenos, achatados e meio delgados;
- Ntodje – Batuque delgado;
- Mapiko – Dança de máscara;
- Makonde – Povo do norte de Moçambique.
  • Leia também "O Turbilhão Lendário" outro texto de Francisco Absalão transcrito no ForEver PEMBA em 24/Outubro/2007 - Aqui !
O Autor:
- Francisco Absalão
- Nome artístico - Allman Ndyoko;
- Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
- Residência actual - Maputo;

10/24/07

O TURBILHÃO LENDÁRIO - Uma prosa acontecida em Pemba !

(Aqui, imagem de autoria do artista gráfico italiano Piero "Ingonane" que residiu em Pemba de 1989 a 1999)
Nada de melhor nos terá acontecido, naquele ano, do que as nossas férias na baia de Pemba, no norte do país.
Eu e o mano Beto haviamos passado de classe e o kôta prometera, logo nos primeiros dias do ano, umas férias na casa do avô Omar, em Paquitequete .
Assim que ficamos de férias na escola partimos de Maputo para Pemba, de autocarro, na companhia da tia Awa que viera nos buscar à capital.
A viagem fora cansativa mas, ao mesmo tempo, divertida, desde o terminal do TSL, na Avenida das FPLM , até ao controle de Pemba, no bairro de Mahate.
Dali partimos de táxi com destino a casa do avô Omar, no bairro de Paquite, como os pembenses lhe chamam, onde ficariamos quinze dias a gozarmos as férias por entre o marulhar das ondas do Índico.
Enquanto nos dirigíamos para a cidade, que distava uns quilómetros, o taxista ia-nos amostrando a paisagem dominada, principalmente, por embondeiros e algumas árvores menos frondosas e arbustos vulgares.
Do Alto-Gingone, um bairro periférico do aeroporto local, vimos a “esteira” azul do mar deitada manjestosamente ao longo da baia, parecendo um enorme anzol feito de água.
Mas, para o lado direito da estrada que nos conduzia, emergia uma nova cidade próxima da faixa de areia branca que ladeia quase toda a cidade: era a famosa praia do Wimbe, um enorme potencial turístico da região norte do país.
No entanto, pouco tempo depois desembocámos na cidade e passámos pela artéria principal do bairro de cimento.
Enquanto o carro deslizava na estrada asfaltada, vimos de longe os bairros de Cariacó, Natite e Ingonane e, mais tarde, rumamos pela marginal até ao bairro costeiro de Paquitequete, na zona de Kumilamba, onde o táxi parou em frente da casa de um dos vizinhos do avô; descemos, caminhando depois por uma rua estreita que nos levou direitos ao destino.
Ao chegarmos, fomos recebidos com alegria e, dos familiares e vizinhos, recebemos apertos efusivos de mão, à moda dos makimuanes.
Sentado na esteira de palha, na companhia do mano Beto e de outros garotos curiosos que se aproximaram ao chegarmos, pus-me a contemplar a casa que era feita de pau-a-pique, rebocada com matope e coberta de macuti .
O quintal era de bambú suportado por diversas estacas sólidas provenientes de Ulonto, lá na outra margem da cidade.
Depois de todo o cerimonial que um visitante merece, não aguentei mais: ergui-me da esteira e fui para a frente da casa, onde fiquei olhando para o mar azul e ouvindo o som das ondas misturado com o som dos búzios.
Durante muito tempo fiquei ali imóvel e boquiaberto, vendo ao longe pequenas embarcações à vela, pescadores puxando redes carregadas de peixe, barcos a motor transportando passageiros para o Ibo, Mocimboa da Praia, Quirimbas e outros pontos da Província.
Depois de um tempo, deitei o olhar para a margem onde me encontrava e fiquei apreciando a beleza das ondas e assistindo ao espectáculo dos carangueijos que, espantados pelo marulhar das ondas, fugiam em debandada ao encontro dos seus esconderijos que raramente falhavam.
Entretanto, a minha tranquilidade naquele sítio não tardou a chegar ao fim.
Um garoto aproximou-se interrompendo a minha concentração na observação da natureza e, com uma ponta de timidez, informou-me:
- Precisam de ti.
- De mim? – Interroguei-o sem desviar o olhar do mar.
- Sim.
- Aonde?
- Lá no quintal.
- E quem precisa de mim? – Quis eu saber, olhando os seus olhos.
- Avô Omar. – Replicou ele, desviando o olhar.
- Voltou?
- Sim. – Sorriu. – Faz um tempo.
Saí dali e fui até ao quintal. “escoltado” pelo miúdo, que não parava de me lançar olhares furtivos, e, ao chegar, saudei o avô e fiquei conversando com ele desde o rpincípio da tarde até ao anoitecer.
Passados alguns dias e após termos pedido autorização ao avô, eu e mano Beto, e outros garotos do bairro, fomos à praia brincar.
Era sábado; a praia estava repleta de banhista e os pescadores ainda não tinham voltado do mar.
Ficámos na margem apanhando búzios, construíndo castelos de areia, perseguindo caranguejos, brincando com garrafas-azuis e ajudando os pescadores a puxar as redes e a tirar da água os pequenos barcos à vela.
Foi neste dia que ouvi dos nossos novos amigos a lenda do turbilhão Nunumuana, que fica a algumas milhas da Baía de Pemba.
Fiquei curioso e ao mesmo tempo cheio de medo.
Naquele dia não saí de noite para ver o mar sob o luar e muito menos para contar quantos segundos passam entre o acender alternado dos faróis das rochas de Ingonane e Ulonto.
Um certo dia, estando eu na companhia do avô Omar a pescar na zona portuária da baía, interroguei-o acerca da veracidade da misteriosa lenda que corria de boca em boca entre os garotos pembenses.
Ele garantiu-me a veracidade da história e prometeu contar-me tudo, noutro dia, porque a história era longa e complicada.
Os dias foram passando, um atrás do outro, e todas as noites ouvíamos histórias diversas contadas pelo avô, mas, curiosamente, o kôta não se lembrava de contar a história do turbilhão.
Nisto, numa certa noite de luar, décimo terceiro dia da nossa estada em Pemba, a curiosidade obrigou-me a pressioná-lo a contar a história prometida, pelo que o velho me respondeu:
- Tudo bem. Eu vou contar, já que insistes tanto.
Acendeu um tabaco, fumou em silêncio com o olhar perdido num ponto indefinido, como se estivesse a pensar em algo guardado nas profundezas da sua memória, sorriu perceptívelmente fazendo animar a sua face sulcada de profundas rugas e, por fim, começou a narrar a história.
- Reza a lenda que foi há muitos anos, muitos anos mesmo – Repetiu com firmeza, a ponto de acordar o mano Beto que já apanhara uma soneca. – que um barco transportando uma terrível curandeira e seus ajudantes naufragou, numa zona a algumas milhas da nossa costa, e o naufrágio matou todos os ocupantes.
- Ninguém se salvou? – Quis eu saber, curioso.
- Ninguém! – Disse, meneando a cabeça e pegando, ao lado do tronco onde estava sentado, numa “ exportação ” de nipa , que de seguida levou aos lábios, e bebeu um golo pelo gargalo.
Depois de pousar a garrafa no chão, avivou a fogueira que ardia no centro da roda humana, feita de miúdos do bairro ávidos de ouvir histórias antigas transmitidas oralmente de geração em geração, e em seguida continuou:
- Daí, os náufragos transformaram-se em fantasmas ferozes, a ponto de consiguirem, com a ajuda de um turbilhão acompanhado de ventos tempestuosos, imobilizar um navio enorme. A partir daquele dia, todos os peixes da baía passaram a ser deles e, quem pescasse à noite, era frequente deparar-se com fantasmas recolhendo redes e libertando peixes das redes e dos anzóis. Foi nessa época que o peixe, o alimento principal dos nativos, começou a escassear e os pescadores passaram a morrer em massa, vítimas de misteriosos ventos fortes.
Estremeci, escutei o som do mar e olhei em redor do quintal iluminado pela lua que derramava a sua luz sobre todos os bairros da cidade.
Depois, apurei os ouvidos e fiquei ouvindo a história que o avô contava, gesticulando e falando num tom de voz carregado de uma miscelânia de emoção e terror.
- Então, os nativos da baía reuniram-se para resolver o problema e, para tal, chamaram o curandeiro Amisse que, com a ajuda dos ancestrais, conseguiu falar com a curandeira náufraga. Durante o diálogo ela proibiu a pesca nocturna, o uso da rede de malha fina, e o derramamento de líquidos estranhos nas águas e, além disto, ordenou que todos os barcos que passassem pela zona do turbilhão atirassem para o mar alimentos diversos, de preferência carne fresca, como forma de pagar tributo pelos peixes apanhados na baía. Estes alimentos serviam para alimentar os peixes nas profundezas do mar, para melhor se reproduzirem e crescerem saudáveis.
O kôta tossiu três vezes interrompendo a locução; bebeu um trago da sua “primeirinha”, e prosseguiu:
- Quem não obedecesse ao que Nunumuana dissera, uma gigantesca massa de água que se revolve rapidamente cobri-lo-ia imediatamente e, se se tratasse de um barco naufragaria, e os seus ocupantes transformar-se-iam em fantasmas imortais e, depois, ocupar-se-iam de vigiar o mar e impôr a ordem quando se julgasse conveniente.
O velho fez uma pausa.
Puxou do tabaco enrolado num pedaço de papel de caqui, e aspirou voluptosamente o fumo que invadiu temporariamente o espaço da roda feito pelos miúdos que o escutavam com paciência e manifesto interesse.
Depois, enterrou na areia a ponta acesa do cigarro e logo voltou ao fio da história:
- Na verdade, após a cerimónia com o curandeiro, toda a gente passou a respeitar e a cumprir rigorosamente o que Nunumuana dissera e, em consequência disso, os peixes multiplicaram-se na baía, as mortes dos pescadores diminuíram drasticamente, e os nativos e outros habitantes passaram a viver felizes.
O Kôta calou-se e fez-se um silêncio absoluto durante o qual pude ouvi-lo a ressonar como um contrabaixo desafinado.
Olhei para os garotos à minha volta, vi que ainda se achavam atentos como mochos e, por fim, tossi propositadamente.
O velho assustou-se, acendeu novamente o tabaco que havia enterrado na areia e libertou uma grande fumaça que o fez tossir vezes sem conta.
Após um tempo bebeu de uma só vez a sua “ primeirinha ”, entoou em Kimuane uma canção sobre a lenda e, por fim, ergueu-se e começou a dançar enquanto o acompanhavamos em côro, batendo palmas.
Dois dias depois, eu e o mano Beto tomámos o autocarro de volta para Maputo, onde chegámos ao terceiro dia.
Passada uma semana, um impulso não me deixava e, consequentemente, impeliu-me a escrever estas linhas como forma de imortalizar a lenda e dar a conhecer a toda gente como os pembenses passaram a valorizar e a preservar o mar e os seus recursos.
O Turbilhão Lendário por Francisco Absalão - In Blocos OnLine
  • Biografia de Francisco Absalão segundo o "Blocos On Line" - O nome artístico é: Allman Ndyoko. Nasceu em 11 de Abril de 1977 em Pemba, província de Cabo Delgado -Moçambique. Residência actual: Maputo.

10/19/07

Ronda pela net - A África que encanta crianças...

(Imagem original daqui)
Os mistérios e mitos da "agreste" África vão sendo desvendados, expostos cada vez mais neste mundo mágico da informação que é a net e, com o conhecimento, vai acontecendo a transformação gradual do antipático, do inóspito e violento em charme, em poesia, em beleza e até em novidade e encanto para o mundo que a desconhece e até para as crianças.
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Do jornal "Estado de São Paulo"-Brasil, Quinta-feira, 11 de Outubro de 2007:
África que encanta crianças
Editoras enfim descobrem o tom certo, sem ser superficial ou didático e sem resvalar no preconceito, para divulgar o melhor da cultura africana em livros infantis.
Beth Néspoli
.
Sabe como se pronuncia leão em swahili, uma das línguas faladas na África?
- Simba!
- Ah! Por isso o nome do leão no famoso filme da Disney?
A descoberta agrada a crianças e a adultos e vem das páginas do livro infantil Um Safári na Tanzânia, que acaba de ser lançado pela editora SM.
Num país mestiço como o nosso, que tem na África uma matriz cultural importante na formação da identidade nacional, tal publicação é relevante, bem-vinda e deveria estar em todas as bibliotecas públicas.
Embora mais presente nos últimos cinco anos, esse tipo de livro infantil ainda pode ser considerado novidade no mercado editorial.
Mesmo os muito pequenos, que ainda não sabem ler, podem se encantar com as ilustrações de Julia Cairns para o texto de Laurie Krebs, em Um Safári na Tanzânia, que, de forma lúdica, ensina a contar, usando o olhar de um grupo de crianças que passeia pela savana.
Eles vêem javalis, gnus, hipopótamos e leões, sempre em grupo, em número crescente.
No fim do volume, uma espécie de posfácio didático, eficiente e atrativo traz o nome em swahili dos animais vistos pelas crianças, um mapa que localiza a Tanzânia no continente africano e um texto curto sobre o país e o povo Masai que habita a região que faz fronteira com o Quênia.
Outro lançamento infantil da SM é Yemanjá.
A autora, Carolina Cunha, profunda conhecedora da cultura iorubá, escreveu seu primeiro livro para crianças em 2002, Aguemon, também com temática africana, que, editado pela Martins Fontes, foi indicado para o Prêmio Jabuti.
Nas páginas de Yemanjá, o leitor encontra glossário que explica termos como ifá (oráculo iorubá) e ebó (oferenda aos deuses).
De certa forma, Carolina Cunha tenta dar às crianças de hoje algo que ela própria sentiu falta na infância.
Baiana, menina branca de classe média, ela conseguiu que os pais trouxessem da Inglaterra o brinquedo pedido: um bebê negro.
“Não tinha boneca negra em Salvador, só de pano, não é absurdo? Vivendo na Bahia, era inevitável que eu entrasse em contato com a religiosidade de raiz africana. Lembro-me da empregada lá de casa que toda noite de quarta-feira se arrumava, linda, para ir a um ritual que era cercado de mistério. Eu ficava muito curiosa, mas não entendia direito.”
Agora ela não só entende como compartilha essa compreensão, de forma poética e simples, com crianças brasileiras em seus livros.
Envolver o leitor mirim com lendas e mitos da cultura africana certamente é um filão editorial já descoberto.
Por isso mesmo, é preciso tomar cuidado.
Há o risco de simples superficialidade ou, pior ainda, da falsa arte, da historinha inventada unicamente com fins didáticos que, ao fim, não tem potência nenhuma.
Muito interessantes, nesse sentido, são as histórias assinadas por autores africanos.
Pelo menos nas conferidas pelo Estado, nada é explicitamente didático com relação à cultura negra.
Assim é, por exemplo, O Que Tem na Panela, Jamela?, também da SM.
Niki Daly, o autor, nasceu na Cidade do Cabo, na África do Sul.
E o que dizer de um infantil do premiado moçambicano Mia Couto?
Pois ele é um dos autores da coleção Mama África, da editora Língua Geral, que tem entre seus autores outro escritor de renome, José Eduardo Agualusa.
E eles são tão bons escrevendo para crianças quanto para adultos?
A resposta é um sonoro sim, a julgar por O Beijo da Palavrinha, de Mia Couto, e O Filho do Vento, de Agualusa.
“Entender a existência de diferentes visões de mundo é passo fundamental para combater intolerância e preconceito”, diz Dolores Prades, da editora SM.
Se é na infância que mais se aprende, livros agora não faltam.