Mostrar mensagens com a etiqueta histórias de soldados e guerreiros do ultramar. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta histórias de soldados e guerreiros do ultramar. Mostrar todas as mensagens

12/29/09

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulos XV, XVI e XVII


Não Matem A Esperança - Capítulo XV
Dezoito horas.
Os soldados rodeiam a fogueira onde coze o arroz que, com sardinhas de conserva, será o jantar. As armas quedam-se silenciosas, mas bélicas, junto deles e de mim. Os rostos dos soldados brilham distintamente à luz viva das linguetas de fogo, desenhando-lhes os contornos. Há os que riem com as anedotas contadas para passar o tempo; há os que fitam, sem pestanejar e de lábios colados, a panela que se vai sujando de fumo.

A lua, medrosa, começa a sair do ovo imenso que é o céu com a cor da noite. No poente longínquo, os restos de sol, como nos últimos focos dum incêndio gigantesco, tocam a selva. Vai escurecendo dum modo saudoso que nos dá uma sensação de frustração. Relampejando de x em x instantes, umas faíscas nervosas mostram-nos formas mal definidas de nuvens escondidas, esbranquiçadas e gorduchas de água, antecedendo os trovões que, na solidão do mato, são como urros de monstro revoltado.

Na base do planalto em que estacionámos, desenha-se uma circunferência escura e compacta de mata. As copas e os ramos juntam-se, desprendem-se, abraçam-se, agridem-se, formando um todo que, visto de longe, se julga impossível penetrar. No seu seio, contudo, há uma vida animal e febril mais respeitadora que as dos homens. No lado norte, erguem-se as labaredas de uma queimada que conseguiram furar a cúpula selvática e expandirem-se livres e triunfantes.

Os homens encarregados da segurança vigiam o sector de observação que lhes foi confiado.

O cozinheiro de ocasião avisa que o «jantar» está pronto. Come-se para sossegar a barriga. Uns, engolem lentamente e em silêncio, deixando ver perfeitamente a saliência que, na garganta, o arroz forma rumo ao estômago; outros, aqueles a quem a vida ensinou a serem optimistas (questão de hábito?), separam cada colherada com comentários que têm qualquer coisa de forçado.

Depois, a maioria, conversa. Alguns, mais sensíveis a estas coisas, retiram-se assobiando, baixinho, modas das suas terras; outros, ainda, como pasmados perante coisa nunca vista, fixam a lua com lábios em movimento, num monólogo interior.

A noite está adiantada para aqueles que vivem na selva. A lua é rainha. A orquestra do mato toca a sinfonia da vigília nocturna.

Acomodo o meu saco de dormir na cabine da viatura e deito-me, encolhido, no assento. Na caixa, os mais atrasados em procurar posição, impacientam-se até que ficam. Encosto melhor a cabeça à camisola que faz de travesseiro e adormeço com a lua a trazer-me saudades de alguém. De ti Rosita.

No lusco-fusco, os derradeiros fios solares entranham-se no matagal como serpentinas prateadas em confuso folgar. O capim alto ou rasteiro, as mangueiras, cajueiros, maúmas, lusares, tudo isto e muito mais se espaceja ou complica, agarra aqui, solta acolá, e de súbito, se, se contar, aparece uma clareira para uma machamba, para uma palhota e, às vezes, até para uma «temba», onde em noites de luar sedoso se dança o batuque para espantar espíritos maus que trazem a doença irremediável. E, acordando, repentinamente, o silêncio sepultado no inexplicável da noite, o piar taciturno do milhafre anuncia a chegada da toutinegra, murrambé, marrié, namurire e de mais passarada nocturna que toma conta das horas mortas.

Enquanto os homens dormem no seu descanso merecido, eu sonho, velando, com uma terra onde o amor seja sincero. Onde o homem seja respeitado no corpo e na alma. Onde os ruídos de guerra sejam o esvoaçar de aves por entre palmeiras; sejam risos de crianças sem fome; sejam os toques dos sinos, entoando as avé-marias, ao entardecer, na minha aldeia. Uma terra onde os homens caminhem de mãos dadas; se sentem a uma mesa e falem e raciocinem e resolvam na paz, no amor, na justiça feita verdade, não percam tempo nem dinheiro nem brinquem com os povos; se lembrem que a RAZÃO é a única força da vida, que nela assenta a formação do mundo e do homem; que negá-la é negar a existência daquilo que somos e em que vivemos, é aprovar o sofisma. Podem-se fazer milhares de acordos selados pelo dobro das assinaturas, mas se não forem acordados e selados pela RAZÃO, todos eles serão negativos e ofensivos, apenas farão procriar ódios e vinganças, revoltas e perseguições, guerras e mortes, apressando o mundo para o seu fim mais injusto e cruel: a sua destruição.

- Então, pá, alguma novidade?
- Nada.

Porque será que os homens precisam de olhar pela sua segurança? No mundo que sonho não seria necessário: os homens dormiriam de portas abertas, falariam com os corações abertos, competiriam para a vitória de todos, trariam sempre nos olhos a imagem dum Cristo Histórico extenuado na cruz.

E no meu adormecer lento e tardio, o feixe prateado dum luar poético traz-me a esperança desse mundo, no seu manto límpido, optativo duma realização futura.

Não Matem A Esperança - Capítulo XVI
A noite estava a nascer da barriga do dia. Eram cinco horas de Land-Rover. O calor apertava ainda, criando riachos de suor no corpo. Dois furos, quase seguidos, arreliaram a nossa paciência e a do «monhé» que atrasou a sua viagem para nos ajudar. Os solavancos, provocados por buracos-surpresa na picada, faziam-nos dar saltos de marsupial. Devíamos chegar ao acampamento antes da lua. Lá, arranjaríamos um «pisteiro». Um javali, perdido, obrigou-nos a outra paragem. Saltei. Levei a arma à cara. Apontei. Olhou para mim. Emocionei-me... Deu meia volta e partiu à desfilada...

- Então não atiraste?!
- O tipo não estava quieto...

Partimos de novo aos saltos. Pus-me de pé. Ofereci-me à brisa do entardecer, deixando que ela me chicoteasse a face, revolvesse os cabelos, refrescasse o corpo. Acalmei. («Bolas, falhar um javali!...»). De quando em vez, um negro desmontava da sua «ginga» e cumprimentava cheio de salamaleques, uma saudação demasiado espectacular, não sincera, consequência duma tradição imposta, nem sempre pelos métodos mais próprios.

- Cautela! Agarrem-se!

Finquei-me bem de pés e mãos e o pontão foi passado não sem novidade: uma garrafa-termos, que levava cerveja, partiu-se.

- E agora?...
- Não se bebe...

Um bando de macacos atravessou a estrada, lançando à nossa passagem guinchos estridentes. Olhei para trás e vi alguns empoleirarem-se nos braços duma mangueira.

Chegámos ao acampamento.

Falámos e bebemos cerveja gelada com um caçador profissional: atarracado, mas entroncado de rijos músculos, tez morena, abundante calvície, falares e modos desembaraçados. Ama o mato. Enfiou-se nele novo. Construiu casa de alvenaria, casou com uma mulata, aprendeu a matar caça e a vendê-la, ninguém o chateia, vive para os filhos, os negros respeitam-no, nuca teve «milandos». Detesta as cidades. Adora a simplicidade do viver na selva. Emprestou-nos um pneu sobresselente, agradecemos o acolhimento e partimos. Sem «pisteiro» porém. Não apareceu nenhum.

A noite germinava. Como uma flor se abrindo. Como um ser humano sem maldade e sem estupidez. Com ela todo o seu fantástico festival de sinfonias dos bichos-habitantes dum mundo misterioso, dos uivos distantes da quizumba, de estrelas avulsas crivadas num céu de imensidão que impressionava e subjugava. Como era bela aquela noite no mato! Quem me dera ser poeta autêntico para transmitir a beleza, a ânsia, a alegria, a tristeza por mim sentidas nessa noite tão metafísica da minha recordação! Apetecia me ter asas e voar por aquela escuridão imensa. Rebolar-me no capim já cacimbado, reunir os bichos todos daquela noite e, juntos, entoarmos uma poesia-mensagem feita de paz e amor que ecoasse por todos os cantos da terra! («Lírico» - dirá o leitor. «Não!» - brado.).

O condutor bateu com a mão na porta.

- Que é?
- Leopardo!
- Onde?!
- Ali!

Dois olhos amarelos e brilhantes estavam hipnotizados pelos faróis. Tiraram-me a arma das mãos. Não me mexi. Um chorar cortante. De esfrangalhar os nervos. Um calafrio terrível, gelado, a, percorrer-me a espinha. Os pêlos, como agulhas, em pé. Senti-me mal disposto, sem forças. O tiro falhara e fiquei satisfeito que assim tivesse sucedido.

Virámos à esquerda, deixando a picada principal. A princípio, o capim era escravo de grossas mangueiras e cajueiros. O trilho largo, aberto pelo primeiro carro que lá entrara e consolidado pelos seguintes, seguia por entre mato denso que roçava o Land-Rover; alguns ramos, mais inclinados, obrigavam-nos a baixar a cabeça; os solavancos eram maiores. Algumas queimadas dispersas ardiam sonolentas, empestando o ar dum cheiro acre e abafado. A lua, com o seu D mentiroso, chamava as estrelas.

- E se parássemos para comer qualquer coisa?...
- Mais logo...

Ligou-se o farolim à bateria e os faróis apagaram-se.

- Agora nada de atirar ao calha!...

Procurei, assim como os outros, posição certa e começámos a seguir o jacto do holofote. O mato espesso, entrecortado por algumas clareiras queimadas, não dava grandes esperanças. Ansiávamos a planície. («Lá a caça é maningue!»). O bater cavo duma mão no tecto do tejadilho. A viatura parou. Cegos pela luz dois olhos reluzentes.

- Atira tu...

O tiro partiu, seco como uma chicotada e a lonjura trouxe-nos o eco. Grunhidos diferentes, aqueles grunhidos duma fera ferida, disseram que a bala acertara. Saltei e embrenhei-me na vegetação, guiado pelo foco. Perdi-me em procuras, seguindo os movimentos daquele. Regressei desolado...

- O «tipo» rastejou. Não pode ir longe.

Alguns milhanos apareceram e, como um comboio saindo de um túnel, entrámos na planície. Esmagadora! O céu formava um arco de horizonte a horizonte, ligando-os. A lua e as estrelas pareciam maiores. O capim rasteiro dava-nos liberdade de visão. Senti-me pequenino. Olhava para o alto, girava os olhos à volta, e tinha a sensação de ser submetido por algo que não via.

- Pára!

Mais uns olhos obliterados. («Não posso falhar!»). E não falhei. O chango dava às patas em aflitos estremeções. Os seus olhos tristes e nevoentos traziam-me um sinal de morte. Tentou erguer-se, numa manifestação última de vida, e tombou. O seu ventre, ainda a latejar, só deixou de parar quando o seu corpo retezou finalmente. Içaram-no para a caixa de carga. Acendemos uma fogueira que nos daria a direcção conveniente se nos perdêssemos naquela vastidão. Puxei dum cigarro. Uma travagem brusca e aí vou eu, de cabeça, direito às pernas do homem que ia a farolar. Quando me levantei já o tiro fora. Outro chango. Mais dois olhos de morte a acompanharem-me. O cacimbo gelava-me o corpo, penetrando-me os ossos. Vesti uma camisola grossa, mas, mesmo assim, não aqueci. Voltei a sentar-me e a contemplar aqueles olhos muito abertos, como se quisessem perguntar qualquer coisa, olhos que nenhum mau feitiço lançaram a quem os matou. Comecei a chatear-me daquilo. Pensei que fora um homem que matara sem razão, sem verdade, nem sequer com honra, nem igualdade de situações: farol para ali, olhos fixos e mata! Há alguma ombridade?! Entreguei a arma e preparei-me para adormecer, encostado aos corpos mortos de dois seres roubados à selva.

Não Matem A Esperança - Capítulo XVII
O avião chegara ao fim da tarde e trouxera o correio. Teve uma carta da mãe. Falava-lhe da sua casa, da sua terra, de saudade e tinha palavras de incitamento suave e maternal à paciência e esperança humanas. Uma frase, porém, lhe ficara e se agitava dentro de si: «Meu filho tenho esperanças em ti. Ainda és novo e hás-de ser alguém.». Aí estava. Sim, ele queria ser ALGUÉM válido que as gentes vissem que merecia a pena ser meditado. Desejava-o muito. Queimava-o um fogo quente e acariciador, provocando-lhe o nervosismo dos insatisfeitos. Um fogo que o enlouquecia de ânsia de concretização. Não era vaidade nem ambição exageradas. Era um desejo humano de se realizar, consciencializar, e mostrar aos cretinos algo que os tornasse mais imbecis e aos racionais oferecer uma ajuda para a sua luta contra os portadores de fantasmas.

Lá fora, o sossego era violentado pelo coaxar dos batráquios no atoleiro, pelo pipio das aves vadias da noite, pelos «uis» agoirentos, soando ao longe, das hienas manhosas, e que tinham qualquer coisa de sicário. As estrelas, na altura, estavam privadas de lua. De quando em vez, uma mudava de sítio numa correria maluca até se perder sem que mais a nossa vista a alcançasse. O gravador falava baixinho (o botão de som estava no 2) as músicas da sua preferência. A bobina rolava lenta. «Abriu» José Gomes Ferreira:

Há anos de raiva
Que te busco em vão
Melodia!

A sua melodia era a esperança. Esperança de encontrar nas horas do amanhã a efectivação de todos os seus ideais, repletos de mensagens gritantes de revolta e nojo pelos homens que se assassinam mútuamente; de mensagens triunfantes de amor e alegria para com os povos que vivendo na liberdade, lutando com as armas da inteligência, da razão, do suor e da vontade indómita de vencer pelo trabalho honrado, esgadanhando a terra desértica e escaldante com as suas próprias mãos, plantaram as árvores que deram os frutos das belas realidades sociais.

Mas quem te ouve, Melodia,
Para além do contorno do silêncio?

Não seria apenas no limite do silêncio que a sua voz se escutaria. Havia de gritar, mais alto que o trovão, a sua raiva contra os homens estultos, dominados pelas algemas da estupidez.

Pobre voz que trago em mim
E há-de morrer ignorada
Nas trevas dum sol profundo
Sem luas de superfície

A sua voz seria para os que a quisessem ouvir. Havia de nascer no fulgor duma aurora de liberdade, misturar-se com o chilrear das aves bem dispostas da manhã, penetrar nos corações das gentes, prolongando-se pelas noites de lua cheia ou lua nova ou quarto crescente ou quarto minguante (todas as noites de todas as luas). A sua voz não morreria ignorada pelas pessoas honestas.

O vento divulgava-se pela rede antimosquiteira da janela, como se viesse fazer coro com a música, com a poesia, com os seus pensamentos. O relógio duma Igreja tropical repetiu doze vezes o mesmo som. O seu colega de quarto entrou.

- Então pá?
- Então o quê?
- Nada de novo?
- Novo? Mas isto é sempre a mesma porcaria?

Ele sorriu significativamente. Puxou dum cigarro e leu mais uma vez: «(...) Ainda és muito novo e hás-de ser alguém.».

Fechou-se a luz e. olhando a ponta do cigarro, repetia só para si: «ALGUÉM... ALGUém... Alguém... Alguém... alguém...».
- Manuel Coutinho Nogueira Borges

12/15/09

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulos VIII, IX e X


Não Matem A Esperança - Capítulo VIII
O Verão ia quente. Nas obliquidades dos montes, a verdura fresca e saudável das vinhas desaparecia; iam amarelecendo sob as inclemências solares, os bagos dos cachos aganavam. O povo andava alarmado. Previa-se um ano seco. Os proprietários faziam contas de cabeça, multiplicando ou dividindo, somando ou subtraindo, e o resultado era sempre o mesmo: «Ao valha-nos Deus! Que desgraça a nossa!». A Casa do Povo nunca teve tanta assistência. As gentes queriam ouvir que dizia o «Boletim Meteorológico». Depois, nas ruas sem luz e cheias de buracos, discutiam e comentavam: «Ora vejam bem! Aqui, na Espanha, que é mesmo ao lado, a chover e nós a secar! Até nisto nos levam vantage!».

Em cada dia que nascia olhava-se Abões a ver se vinham nuvens escuras. Mas não havia meio. Os poucos trabalhos que antecediam as vindimas eram feitos às manhãs e, até mesmo assim, não se podia com aqueles calores: «Um home com estes escaldões até se lhe consomem os ossos.».

Os lavradores iam imaginando os salários que deviam dar aos trabalhadores, na iminência quase certa, por aquele andar, de fracas colheitas. Estes, adivinhando os intentos daqueles, lamentavam-se. A chuva, no Inverno, por vezes mal recebida, agora, porém, não era capaz de vir refrescar aquele estio tórrido, os vinhedos e os corações das gentes: «Raios partam esta vida! Quando se julga que endireita logo quebra!». E, tomando a fresca depois da malga de caldo, os pais contavam com os filhos ao colo, outros anos em que de vez de se vindimarem uvas se vindimaram passas: «Um ano, já lá vão sete cobre ele, é que foi. Quem colhia cem só tirou p'raí umas vinte. A desproporção!».

Baldadas as implorações à natureza, a plebe lançou os olhares e as suas preces para a capelinha da Nossa Senhora da Ermida. Lembraram-se d pedir ao pároco para que a santa fosse levada para a Igreja matriz numa procissão de velas. É que já num ano isso se fizera e a chuva caíra.

A aldeia movimentou-se. Ao longo dos caminhos e nas janelas das casas acenderam-se velas. Era estranho ver aquelas gentes de pavios a tremelicar na escuridão – pareciam figurantes de um filme histórico em desempenho de error. Em breve, a escultura da Senhora da Ermida, em cima dos ombros calejados, passava em seu andor repleto de flores. Os mistérios do terço eram rezados com fervor. O povo chorava. O povo que se embebedava e se anavalhava nas tabernas e nas esquinas, o povo que não pensava e fazia tudo que lhe mandavam fazer. Cânticos de louvor levavam à Senhora que sorria as esperanças dum povo que queria sobreviver e sorrir com ela, deitando para longe o enguiço da miséria.

E aquela, na Igreja, em altar mais rico do que o da sua humilde capela, quedava-se, de sorriso moldado pelas mãos do esculpidor, sob as arcadas silenciosas e frias que, aos domingos, as vozes das gentes, rezando, aqueciam.

E o povo, sempre devoto e fiel, continuava a acreditar no milagre da chuva.

Não Matem A Esperança - Capítulo IX
Indolentemente, baloiça-se nas suas pernas retezadas, roça o ventre no chão, e deita-se, preguiçosa, na sombra de um degrau. Três gatinhos, seus filhos, miando ansiosamente, acorrem, submissos, ao aconchego materno. Aquela estende-se ainda mais e as bocas esfomeadas ocupam-lhe o ventre. As folhas dos limoeiros e das macieiras revolvem-se sem destino à aragem da tarde. No alto, flocos de nuvens, umas metálicas e negras, outras azuis claras como os lilases, evolucionam cadentes, muito lentas, quase paradas... O sol, em rutilantes agulhas, trespassa a cortina daquelas, provocando cataratas no cimento. Ouvem-se risos desencontrados, acompanhados dos choros das crianças e dos ralhos das mães.

- Quero broa... Tenho fome... Dá-me, mãe, dá?...
- Já vai! Olha! Credo! Nem me deixas pousar o caneco! Santo Deus!

E as crianças calam o estômago com o pão de milho. (Crianças tão puras e inocentes! É pena que a necessidade, que é negra e triste, vos vá tornando más!).

Nas lajes do atalho, chocalham, agora, os socos de um camponês, à mistura com interrogações dezenas de vezes já repetidas.

- Pois é, Ti Tónio, a cava vai mal...
- 'Stá dura... Se chovesse... Mas não há meio de cair uma pinga d'auga...
- Deixe lá que se chovesse não era melhor. A rapaziada encharcava-se de lama...
- Pois é, mas no meio disto tudo que tal um copázio?!...
- Bá lá!... Já'agora!...

E o chocalhar dos socos, à mistura com conversas dezenas de vezes já repetidas, perde-se na distância, até se abafar na taberna do Manuel da Antónia.

Negros abelhões poisam e voam em procura do néctar das flores matizadas. Um pássaro, entontecido pelo lumaréu, ziguezagueia, espadanando as asas frágeis, as asas da sua liberdade. Poisa num galho da ramada e aí se queda, observando à volta a confirmar a segurança do pousio. O monodiar dos melros e pintassilgos, presos acolá naquelas gaiolas, entoando, talvez a esperança de amanhã poderem voar e cantar sem clausuras: nervosos, inquietos, para cá e para lá, olhando para todos os lados, como que desconfiados, chapinando na água, para depois se sacudirem donairosos. Na casota, o rafeiro ladra ao camarada que lhe roubou um osso e aqueles que parecem ainda mais inquietos.

Um pobre bate ao portão e pede uma esmola «pela alma de quem lá tem».

A criada enche os recipientes das aves burguesas com água e outros com painço. O papagaio tagarela. Os gatos espantam-se. E o Chico vem regar os limoeiros.

- Então o Zé?
- Foi p'ra França.
- Não me diga...
- Foi. Levou o Manel, tamém. Atão foram ver mundo!
- Há quanto tempo?
- Não me alembra bem, mas p'raí há dois meses. Pois foram. Já escreveram e dizem qu'stão muito bem.
- Melhor, melhor.
- Deus os ajude. Fartavam-se de trabalhar e não supria nada, agora vamos lá ver... Já que não se arranjaram cá que se arranjem lá. Aquilo são outras terras!

O Chico: camisa, calças e barba de oito dias, com uma carrada de filhos em casa: roxos, magricelas, semi-nús, a esburacarem o chão para mentirem à fome e que aguardam os primeiros contos de réis dos irmãos que estão em França para se vestirem e comerem mais à farta.

- Oiça lá, ó senhor Chico: não gostava de ir até França?
- 'Stá boa essa!... E a mulher e os filhos?... Isso é que mata tudo!... Se os tivesse já todos criados... Assim...

Não Matem A Esperança - Capítulo X
Não sei quando, onde e como protestaste para a vida. Conservo uma ideia vaga, uma ideia que, na sua vacuidade, me mostra a máscara de um sofrimento estranho, um sofrimento feito de humildade e amor que já é desta época.

Trabalhaste nas ruas e nos caminhos, calcorreaste as subidas dos montes da minha terra, o teu corpo habituou-se cedo, talvez cedo de mais, a sentir na carne a aspereza da vida. Nasceste pobre como a grande maioria daqueles que habitam este planeta, mas a tua pobreza deu-te a formosura de que os ricos se julgam possuidores. Cresceste nas dificuldades, espicaçada pela negrura da necessidade. Aos dezasseis anos caíste na cilada, como uma ave na ratoeira, armada pelos homens traiçoeiros. Aí ficaste cativa, debaixo da prisão do céu, com as nuvens destapando o sol e, ao longe, a melodia recriando-se por entre as escarpas, no fundo das quais, o rio corria manso, farto de vagar, lambendo os seixos e, no alto, mulheres rindo às gargalhadas e outras chorando, tingidas de luto. Já não eras tua. Tinhas-te dado. Foi amor? Loucura? Que foi? Pensaste muito e nada concluíste. É sempre assim: o repentino foge, corre-se atrás dele, mas depois vem a perpetuidade real, a dolorosa certeza de que a vida se prolonga para além das cordilheiras em que o sol morre e a lua nasce. E já não se pode voltar atrás. Há dois caminhos: ou se ergue a cabeça e se continua ou se a baixa e se cai depois; a mentira não se admite, o fingimento não serve. Continuaste. Porquê? Nem tu o saberás.

Porque será que as pessoas são tão más? Más como a fome que degola os inocentes que nascem das relações sexuais dos seres humanos, más como as guerras que os interesses fabricam e os políticos teimosos e fanáticos e cegos e gananciosos e maus sustentam, más como a manhosice das pessoas que lidam connosco nos cruzamentos e nos «stopes» da vida, más como, etc. Viveste no meio de pessoas más (como todos nós viveremos sempre), mas nunca te renegaste. Sofreste tudo com a paciência e a capacidade de amor que sempre te acompanhou. Sofreste a acção do tribunal da sociedade (sociedade porca e imunda) sem te importares, fazendo disso o alento para aguentar a vida, uma vida curta (como todas as vidas).

Acartaste canecos de água e de vinho para o patrão que te possuirá. Nunca exigiste nada. As lágrimas ficavam para a noite, na solidão da tua cama, com a lua a fazer carícias nas telhas da casa.

Nasceu-te um filho. Um filho de pai rico e mãe pobre (que culpa temos nós da ato nascer-se assim. Vale mais nascer-se ou só de pais pobres ou só de pais ricos: há mais igualdade. Mas outros vieram e cada um havia de ser o que quisesse e as contingências permitissem. Não serias muito feliz se vivesses ainda hoje. Ver filhos partir às portas das tabernas a serem maltratados por este e por aquele é coisa que nenhuma mãe gosta de ver.

Trabalhaste sempre, não desistias. Punhas rodilhas nos pés para que sangrassem menos. (Eu queria escrever a tua história com a fungível possibilidade de ela ir ao além túmulo! É-me impossível e terás de me perdoar).

O senhor rico chamou-te. Deu-te o mesmo tecto. Mas antes não o tivesse feito; é que o vias ir, na escuridão da noite, ao encontro de outra mulher e até as portadas das janelas trancava com tábuas e pregos. Nada dizias, o coração fervendo, os vómitos do desgosto à flor dos lábios, os nervos ameaçando partir.

Para matares a fome àqueles que eram do teu sangue ou imploravam debaixo das janelas (fala Peche! Diz como era, caramba!), tinhas que o fazer às escondidas de modo a não caíres nas embirrices de quem mandava. E, no entanto, o senhor rico que te seduzira, deixaria mais tarde proventos a quem nunca os mereceu e nem sequer eram de sangue igual, sabiam latim, cultivavam malícia. Mas não importa, pois não? Contentem-se os famintos.

Morreste ingloriamente numa tarde inglória da minha infância. Pediram um padre para que te fosse pôr no chão onde todos acabamos por apodrecer e esquecer, mas não veio ninguém. É que tu não eras casada à face da Lei e da sociedade, Porquê? Não sei. Pergunta-lhes, talvez os pseudomoralistas deste mundo te saibam responder.
- Continua.

12/01/09

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulos VI e VII


Não Matem a Esperança - Capítulo VI
Procuro no poço da minha memória, vasculho as pedras rugosas, esgadanho a terra movediça e apalpo a tua recordação. Foste pobre. Trabalhaste que nem um desalmado, criaste calos nas mãos e na alma. Foste rico. Apertaste a bolsa furiosamente com um nagalho, amontoaste, quiseste fazer fortuna. Morreste. E o sonho de uma grande fortuna morreu contigo. E lá do teu mundo em que te esqueces, perguntarás: «Para quê?». Sim, para quê? Todas as fortunas servem para nada. Todas as fortunas se esvaiem. Conheci-te já velho. Eras um velho alto, forte, corado no rosto e amparavas-te a uma bengala e bebias o vinho por uma cabaça. Gastavas um cesto de vindima por ano, sentando-te todas as tardes, além, no fundo do quintal, com a tua bengala ao pé. Eu fugia para junto de ti quando alguém me batia pelas asneiras que a minha irresponsabilidade de criança cometia. Reconhecia-te autoridade para o meu refúgio. Fazia-te festas, colocavas-me no teu colo e beijavas-me, roçando o teu bigode na minha cara imberbe. Gostava de ti, sabes? Só não gostava quando te pedia um brinquedo e tu dizias que era um por ano. Tu lembras, não lembras? E eu, então, pegava num pedaço de cana e fazia-te a barba... E tu gostavas e davas-me tostões para rebuçados. Em casa, as criadas, tiravam-te, sem tu saberes, azeite e batatas, por que davas tudo por ração e a ração não chegava. Eu vi muitas vezes minha mãe chorar, à mesa, por que tínhamos que comer batatas sem azeite havendo tanto na dispensa. E as lágrimas de minha mãe eram o azeite. Era demais. Tu não reconhecias isso? E para quê? Morreste e cá deixaste. Dos que originaste nem todos te souberam seguir. Estavam habituados a pouco e depois de tu morreres, quando se viram commuito, estragaram. De nada valeu trabalhares que nem um galego e poupar que nem um avarento. Tu saberás perdoar-lhes como perdoaram a ti. Uma mulher te amou e sofreu e morreu a sofrer por ti. Deste-lhe um tecto igual ao que te cobria, mas não lhe deste o carinho, o amor, a lealdade que ela queria e merecia. Foste mau. Muito mau. Não te admires da minha sinceridade. Sabes, muita gente não gosta de mim porque não sei fingir e digo a verdade. E têm medo de mim assim, chamam-me antipático, bruto. O que eles queriam era que eu dissesse sempre que sim com eles, lhes aparasse todo o jogo. Mas eu não me acobardo naquilo que mais nobre e puro há no homem: a sua integridade moral. Não me importo que me detestem os mentirosos, os interesseiros (os que gostam mais deste ou daquele consoante lhes enchem mais ou menos a bolsa insaciável), os bonecos de luxo de estimação, os que batem com uma mão no peito e roubam com a outra, os que dão beijos pela frente e lançam punhais pela retaguarda. Não me interessa de nada. Antes assim, com a tranquilidade consciente, do que viver no meio desta escumalha toda sendo como eles. A esses mando-os dar uma voltinha pelo Marão da vida a ver se aprendem mais alguma coisa do que aquilo que a sua tacanhez lhes ensinou. Mas porque foste assim tão mau para com a tua mulher que sempre te guardou lealdade, te deu os TEUS filhos, para aquela mulher que nos tempos da sua juventude te entregou a reputação, cega por um amor puro? E porque não calaste as bocas porcas e ignorantes e incivilizadas do mundo, levando-a a uma Igreja para um padre vos pôr as alianças que se compram nas ourivesarias em negócio regateado? Sabes, a sociedade é assim. Faz-se porque é bonito, porque é o bem, porque a tradição manda, porque os preconceitos tapam os olhos da inteligência. Mas eu não te censuro por não teres ido à Igreja, o que eu te censuro é teres atraiçoado um amor autêntico (daqueles que não precisam de carimbos nem de selos), um amor do qual te vieram os filhos da tua vida. Isso não se faz. Uma mulher que é nossa é-o sempre até morrer. Não te rias dessa maneira. Repara que choro. E nós nunca devemos rir dessa maneira para uma pessoa que chora como eu, agora.

Era uma criança quando morreste. O corpo ia-te pesando e a bengala já mal aguentava. E caíste um dia na cama para nunca mais te levantares. Eu vi-te. E chorava muito por saber que ias morrer (sim, eu já sabia que ias morrer, pois o meu sentido de criança pressentia-o). E tu querias sorrir para mim, mas a paralisia não te deixava. E eu ia-te beijar nos meus intervalos de brincadeira (perdoa-me o ter brincado com os meninos pobres da minha idade, enquanto tu morrias aos poucos). E as lágrimas (lágrimas de arrependimento e saudade que a morte sempre traz) saltavam-te para as faces ao veres-me na tua frente. Pensavas o que seria eu mais tarde, mais tarde quando o teu corpo frio e digno (não há posição mais digna que a morte) estivesse já nas fezes dos bichos subterrâneos. E pedias papel para escrever, mas a letra não se percebia, as mãos estavam-te presas pela inércia dos nervos; quererias emendar alguma coisa de que te tivesses arrependido? Há momentos assim: em que já é demasiado tarde para voltar atrás. Os que te amavam fizeram tudo para que vivesses. Os que te invejavam fizeram tudo para que morresses. Vieram médicos da família para te ver. Algumas pessoas que antigamente te batiam nas costas impediram que outros, vindos de longe com a sua fama aos ombros, diagnosticassem a tua doença; tinham medo que eles te salvassem. Mas deixa lá que já estás vingado – a morte é «privilégio» de todos. Morreste que nem um santo, dizem os que assistiram ao teu adeus (já reparaste que toda a gente morre como um santo?). E lembro-me do ambiente do dia da tua morte. Tenho ainda nos ouvidos os gritos de minha mãe que me cobriu toda com seu corpo a esconder-me da verdade e eu agarrei-me a ela e chorei também. E vi pessoas vestidas de negro que se mexiam em bicos de pés e cochichavam umas com as outras e se mostravam muito atenciosas para minha mãe. Tive nojo e medo dessas pessoas e estive mesmo para gritar (mas eu não podia, ainda era criança): «Cuidado!». Esses vultos entravam pela porta dentro, uns atrás dos outros, como se estivessem todos na rua à espera de que morresses. Depois trouxeram um tabuleiro, daqueles em que mandavas pôr os figos a secar, e depositaram-no em cima duma caixa. Vestiram-no bem, com gravata e tudo (a sociedade tem a preocupação de vestir os mortos como se vestem os políticos para botar discurso), puseram-te no tabuleiro e taparam-te com um lençol branco, enquanto umas velas (sempre detestei as velas, fazem lembrar os mortos), de pavios tristes, alumiavam o silêncio do teu corpo. Nessa noite dormi mais agarrado a minha mãe. Tive medo. Um medo que me dava ganas de gritar que eras nosso, de berrar àquela gente que me passava as mãos pela cara e dizia: «Meu menino, coitadinho!...» que se fosse embora velar os seus mortos lá em casa. Quando acordei já estavas na urna (tudo calculado, tudo calculado), uma urna bonita, cara, toda forrada, de não sei quantos contos de réis e até tinha uma chave dourada (hás-de-me dizer se resta alguma coisa disso). E aqueles vultos negros, de mulheres principalmente, cirandavam à volta como moscas zunindo. E levaram-te, numa tarde, com homens engravatados a pegarem-te no caixão e gritos desesperados de quem te via partir sem a esperança de que voltasses. E pela estrada fora, a gente que te acompanhava, ia de chapéus nas mãos com o ar de quem cumpria um ritual, muitos indo lá só com o receio do que os outros dissessem se não tivessem ido. Eu fiquei impávido, vendo-te levado por outros homens e não disse nada. Olhei sempre, sempre, até a multidão desaparecer no fundo da recta. Voltei, pelas mãos de minha mãe, à casa que ficou vazia sem ti. Sentia-se que faltava alguém, mas esse alguém nunca mais voltou.

Não Matem a Esperança - Capítulo VII
Uma dessas famílias de saltimbancos que arrastam, de terra em terra, de feira em feira, sofrimento e miséria, pousou na aldeia. Armou sua barraca de pano. Simples a operação: um lençol que já fora branco e, agora, nem branco nem negro, não tinha cor, um pau espetado e aí está a cónica cortelha. Uns por cima dos outros ali dormirão seres humanos.

No dorso da burra, de pé, em equilibrismos e decorados falarios, aumentados por um funil, ergue-se o chefe.

- Venham ver! Venham dois irmãos: um de sete outro de nove anos,fazerem maravilhas; fazem o salto mortal, dão cambalhotas e muitas mais coisas que só à vista se acreditam!

O povo escuta e interessa-se. A sua monotonia estremece. A indiferença transforma-se em curiosidade. Tudo que desperte estes espíritos adormecidos e mofosos tem atenção. O que esta gente precisa é, de vez em quando, de uns murros na sua rotina. São os velhotes, troncos curvados pelos anos, colete a boldrié, arrastando os tamancos, que se levantam das soleiras e dos bancos das tabernas e das casas a apreciar o «circo»; é o rapazio que deixa de esgadanhar o chão e brincar às escondidinhas para ir ver os «trapezistas»; os moços adultos ou adolescentes que abandonam a sueca ou o sete-e-meio e deixam de gritar «coringas!» no andor da capela para observarem os «saltimbancos». Em breves comenos, o terreiro está apinhado. Empurram-se uns aos outros na busca do melhor sítio.

- Bá, ó Zé, nada de empurras, ouviste?! Lá ver!...
- Tu é que és o gordo ou quê?! Até parece que não cabes! Olha o catano!...

Os mais idosos não procuram as melhores posições: dão-lhas. Têm direito à primeira fila, como família burguesa que marca de tarde as cadeiras da plateia para a sessão da noite. A garotada fura, de gatas, pelas pernas da assistência.

- Que raio de canalha esta! Que andais aqui a fazer?! Ide para casa, ide!

«A canalha», porém tem o direito de ver. Querem admirar as «maravilhas» dos «artistas».
No cimo do animalejo, o chefe anuncia: «Atenção! Vamos começar o nosso espectáculo!». Desce. Pega num bombo e ataca-o com marteladas furiosas e estridentes. Dois rapazitos, troncos-só-ossos, olheirentos, faces amantinas, saiem da barraca. Perfilam-se. Fazem vénias de agradecimento aos assistentes que batem palmas. Um, deita-se numa manta, erguendo ao mesmo tempo os braços e encolhendo as pernas, o outro finca as mãos nos joelhos, os ombros nas mãos daquele e, num salto, fica erecto, pernas retesadas até a assistência se cansar de aplaudir. Levantam-se. Num imprevisto, o que parece ser o mais novo, dobra-se, no ar, num salto que deixa o povo boquiaberto.

- Viste Chico? Fantástico! Isto é que é um salto mortal! Sim senhor! É objecto!

O miúdo desfaz-se em mesuras. O bombo, triunfante, trepida ainda mais. Agora muda de tom, silencia, quase. Aparece uma corda. Os rapazitos pedem que alarguem o círculo. O povo cede e afasta-se exageradamente. Um daqueles envolve a cintura na corda. O outro agarra a extremidade e faz girar o irmão num carrossel, a princípio lento, em seguida acelerado. O tamboril aumenta. Rufa. Com força. Mais força ainda. Mais ainda. Diminui. O carrossel humano roda devagar já. Aquele decresce até ao silêncio. O «artista» endireita a cabeça. Toca os pés na terra. Pára. A gente grita: «Bravo!». Aproveitando o entusiasmo, uma mulher, de saia e blusa pintadas de remendos, comida nas carnes, aparece, estendendo humilde, demasiado humilde, um prato. Aprimeira dádiva tilinta. A dois assobios um cão indolente e careca torna-se presente. Uma vergasta rodopia em retorces rápidos.

- Biscoito levante-se!

O cão ergue as patas dianteiras. Sem convicção. Maquinalmente.

- Quieto Biscoito!

O canídeo não se mexe.

- Salta Biscoito!

Assim fez. Ao retardador. Empoleirou-se nos ombros do garoto. De novo mais palmas. O Biscoito não agradece. O «Domador» acariça-o e cospe-lhe nas ventas. A mulher-mãe aparece com o prato das esmolas, como na missa um ajudante, e recolhe-se envergonhada, silenciosa, triste. O chefe-pai anuncia que «a primeira parte do espectáculo terminou. A segunda parte é daqui a alguns instantes.».

Enquanto as gentes comentavam, fumavam e zaragateavam, ele retirou-se e foi abafar os seus gritos onde ninguém lhe pudesse escutar as asneiras da revolta.
- Continua.

11/23/09

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulos IV e V


Não Matem a Esperança - Capítulo IV
A cabeça inclinava-se para a frente, imóvel, sem o mínimo trejeito, o que tornava a sua corcunda mais pronunciada. Os olhos grandes, circundados por lívidas olheiras, eram dois candeeiros volantes que se destacavam débilmente daquele conjunto alvacento que as longas barbas formavam com a sua devastada cã. A cobrir-lhe a camisa, sujíssima, um casaco coçado, cheio de nódoas, bolsos rotos, um dos quais continha um pedaço de pão recesso, que a macienta mão daquele velho defendia ciosamente. As calças fendidas, nos joelhos, mostravam a magreza das suas pernas, que facultava a antevisão dum corpo sóbrio de carnes e abastado de ossos. Completavam a sua paradoxal indumentária uns sapatorros gastos e esburacados.

Fora assim: à luz duma noite, aquela estátua de homem moldada pelas mãos da vida, zurzida pelas surpresas do mundo. E, agora, voltava a vê-lo. Aproximava-se. Os seus passos eram concisos. Sentiu desejo de ir ao seu encontro, abraçá-lo e dizer-lhe: «Aqui me tens! Diz se precisas de mim!». Aquele velho, indiferente, passou, desprendido, absorto, como se no mundo só houvesse ele, atento ao lajedo do passeio que os seus pés calcorriavam apressados. Segui-o. Viu-o agachar-se e agarrar uma perisca. Correu para ele e ofereceu-lhe cigarros.

- Tome; Fume daqui!
- Pedi-lhe alguma coisa?
- Não, mas...
- A mim nunca ninguém me deu nada! Não é agora que vou aceitar! Não preciso de nada!

Estático, meio atarantado, deixou-o desaparecer, curvado, investigando o chão.

Não Matem a Esperança - Capítulo V
Chegou lá cima cansado e o suor a escorrer-lhe do corpo. A garganta ardia, a cabeça latejava como marteladas compassadas de martelo-pilão. Com cospe e o lenço limpou reticenciados de sangue que, ao longo da subida, as silvas tinham escrito nas partes dos pés que as sandálias não protegiam e a que algumas moscas se entregavam já inebriadas. Arrancou meia dúzia de giestas e sentou-se. Reclinou-se lentamente até se estender todo. Deixou-se estar. Olhou o céu: cinzento, dum cinzento negral, a acariciar os cerros dos montes. À sua direita, o sol sorri-lhe por entre as folhas. O ar do restolho, pinheiros e eucaliptos, alegra-o. Sôfrego, aspira-o bem para dentro, como a querer levá-lo ao fundo de si mesmo. Estorninhos esvoaçavam, uma toutinegra canta, escondida na copa de alguma árvore. As moscas nem aqui o largavam, mas quanto mais conhecia os homens mais adorava as moscas.

Lá no fundo, o rio, num S tipográfico, corre preguiçoso e envergonhado e quase seco. No outro dia andou lá com a malta e nem sequer se molharam. «Ingrato! No Verão não nos tiras o calor, mas no Inverno, se te der na real gana, até as casas nos levas!» - Isto diria aquele campónio, em frente, dobrado para a terra.

Encaixilhados pelos troncos, enormes manchas de vinhedos cobrem de verde montes ondulantes, ora espigando-se para o alto, ora descendo suavemente. Os socalcos, sustidos por paralelas paredes, lembram mastabas egípcias. Aqui e ali, como títeres impassíveis perante tamanha grandeza, casas de fachadas insensíveis, algumas com vestustos brasões a lembrar aos ignorantes que ali viveu gente da grande e à janela das quais alguma jovem enclaustrada sonha coisas lindas, suspira de amor pelo moço da lavoura; outras, insignificantes, à porta das quais alguma criança esfomeada suspira pão; postes com formas de foguetões levam a electricidade às casas dos que a podem ter.

Um ruído característico intromete-se-lhe. Vira-se. Lá vai ele: ronceiro, arrastando-se penosamente na subida de trilhos de linha reduzida. Apita forte, não vá algum distraído oferecer a vida a uma porcaria daquelas. Dobrou no fundo da recta-subida. E aquele pouca-terra-pouca-terra perde-se na distância.

Começa a escurecer. Muda de lugar. Um coelho salta-lhe aos pés. Vai para as rochas. É aqui, diz o povo, que aparece o Titonga. Sim, o Titonga morreu numa luta à navalhada com o Bragão que cumpre agora os vinte e cinco anos de cadeia. «Que luta rapazes! Ah! Caramba! Pareciam dois lobisomens! Até bufavam, pá! Porra! Aquilo metia impressão!». Sim, o povo diz que foi assim. E porquê? Ora... Porquê? «Uns copázios a mais e aí está a desgraça de um home... A cabeça começa a andar à roda, palavra puxa palavra, a família (que não devia ser chamada para nada) é ofendida e pronto...». O Titonga é que morreu. Calhou ser ele. Bem, «ele tamém era umfraca-chiças...». E, agora, a «alma penadinha» do Titonga anda por cá. Por volta das duas da manhã é que ele aparece nestas fragas. Houve já quem lhe falasse. Os guardadores de vinhas que vêm até aqui passar pelo sono, já todos o ouviram dizer: «Olhai rapazes, aquele que me matou está agora a sofrer enquanto eu sou feliz». Houve um daqueles, o Fernando Verde, que lhe chegou a responder: «Deixa-te lá estar muito tempo sem mim nessa tal felicidade. Eu prefiro esta de cá. E o Fernando Verde criou fama na aldeia e arredores.

O sol vai finando. No ocaso, apenas uma mancha semi-circular dum alaranjado castanho. A terra está em sombra. É a hora dos velhos do asilo virem para o seu passeio desentorpecer os músculos já no fim. Escuta-se mais distintamente, perdida no éter, a algaraviada das crianças. A tigela do caldo com migalhas de pão tornou-as alegres e satisfeitas, mas, logo, ao deitar, adormecerão com a fome a roer-lhes as entranhas. As avé-marias soam no campanário da Igreja, uma Igreja muito antiga e muito velha, amparada por escoras de pinho. No alto, pequenos novelos roxos de nuvens, aquelas nuvens que chegam com a noite para poderem galopar à vontade.

Põe-se de pé nas rochas. Abarca num relance tudo o que se lhe apresenta. Com avidez, absorve o ar já frio, e aí vai ele, coração contente, sorrir às crianças da sua aldeia.
- Continua.

11/16/09

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulo III


Não Matem A Esperança - Cápítulo III

Quando estava chatiado (o que, parecia-lhe, só não sucedia a quem não pensava), vinha até ao outro extremo da cidade em que fingia viver e sentava-se numa pedra gasta pelas águas e olhava o mar.

Na praia, sem barracas, havia os que puxavam a cana de pesca para matar a fome lá em casa ou faziam desporto para dar pontapés no tempo; os que amavam e faziam promessas sob o rugido manso do oceano que abafava o som das palavras; crianças pobres, criadas no abstinente do fácil, brincando o jogo do esquecimento, rebolando-se na areia, engalfinhando-se mútuamente; senhoras sérias – daquelas obcecadas com o bronzeado – tapavam os olhos com os braços e ofereciam o corpo às últimas forças do sol de Verão-quase-no-fim; um cão preto e ruço e bem tratado (um cão burguês) brincava com uma criança de tranças loiras (mesmo loiras) e bem vestida e bem tratada (uma criança de burgueses) que lhe fazia lembrar Lelouch e o seu HOMEM E UMA MULHER.

Um avião roncou lá em cima. E as pessoas levantaram os olhos.

(Eram tardes dolorosas, de tropicalismo exacerbado, homens de troncos nus que escorriam suor; eram tardes longas, com saudades à mistura, com crises de nervos em que apetecia partir tudo e não se podia, em que as ganas para se berrar a plenos pulmões o que se sentia, tinham de ser dominadas pela amargura de renúncia à verdade. Eram tardes longas, longas e tristes, aquelas em que o helicóptero cirindava sobre as nossas cabeças, qual mosquito gigante, ou passava ao largo com uma rapidez aflita, levando dentro alguém que espiava vida, uma vida jovem, uma daquelas vidas que morrem na guerra.

África! Em algumas das suas picadas ficaram para sempre as vidas de amigos que chorava, que choraria sempre, amigos que recordava com mágoa, impotente, e as lágrimas que lhe saíam sem pedirem licença eram a sua angústia, presa por um fio na dobra da garganta. Ele queria gritar um poema a esses amigos que morreram na guerra, atingidos pelos estilhaços da metralha, mas, na realidade, não podia. Ele não podia dizer coisas proibidas. (A não ser, à noite, na cama, com a mulher.).

O par que se amava levantou-se e, sacudindo a areia, dei-los abraçados pela praia fora, rumo ao futuro.

(Não os entendiam. Os seres que os rodeavam não faziam parte do elo profundo que os unia. Já tinham o seu passado. As suas vidas transplantaram-se para uma báscula materialista, deportando-se, logo, as suas acções, os seus julgamentos dos outros. Apreciavam-nos como se fossem iguais a eles. Os seus olhos não eram sinceros: fingiam e mentiam interiormente. Detestava-os. Não os odiava. Que lhe importava que eles pensassem aquilo que pensavam? Queria lá saber dos seus interesses mesquinhos e das suas ganâncias? Estava farto deles, Farto de ver sorrisos amarelos, forçados, ditados pelas conveniências. Farto de malandros norteados pelo aburguesamento do não pensar e do deixa correr. E não lhe viessem com pancadinhas nas costas e risos de ocasião dizer que não valia a pena pensar. Ele queria pensar, queria preocupar-se com eles, com aquelas crianças pobres que brincavam na areia para esquecer a fome; com aquela mulher nova na idade e velha no corpo que, do filho ao colo, cheio de feridas, ia de carro em carro pedir uma esmola aos senhores que tinham vindo até à marginal refazer as pazes do amor ou pensar a melhor maneira de levar um semelhante num negócio ou descansar cabeça do barulho da cidade).

Um ronco de barco partia. Proa apontada ao sul, casco rasgando as águas em busca do mundo para além do infinito do seu olhar.

(Também já partira. Num barco assim. Um barco que levou gente, muita gente, para além. Gente que chorava e, também, sorria sem consciência. Gente que levava a esperança de voltar. Mas alguns não voltaram (e como é triste voltar sem eles). Verteram o seu sangue quente que ensopou as escaldantes e poeirentas estradas da selva. Em terra, havia lenços brancos que acenavam, acenavam sem parar. E havia lágrimas de mães e de pais que criaram os seus filhos e os viam partir, sabiam lá até quando; e havia raparigas que viviam a ansiedade dum amor de juventude perante o abismo da incerteza; e havia carpideiras que fingiam chorar não sabiam por quem e para quê e desmaiavam nos braços de estranhos; e havia homens que trabalhavam no cais, indiferentes, minados pela rotina dos gestos e das acções, fartos de verem já tantas partidas iguais. O barco navegava sempre até que não viu mais lenços brancos e só viu a esperança estampada nos olhos dos que o rodeavam, aquela-arma-dos-homens-que-vão-para-a-guerra. E ele, então, apesar de odiar a guerra, sentiu-se superior àqueles que falam, falam, e não dizem nada.).

O relógio, ditador da vida, marcava o ritmo. Tinha de voltar. Ao movimento das pessoas e dos carros. Com encontrões, com guinadas para a direita e para a esquerda, guinchar de travões, arranques estrepitantes de carros sport dos meninos e das meninas ricas; com polícias passando multas aos carros mal estacionados, em transgressões de trânsito; com homens perseguindo outros homens iguais no corpo mas diferentes nas filosofias; mãos no ar oferecendo, num papel com um número, a ilusão da fortuna àqueles que pouco ou nada têm ou àqueles que tendo muito ainda querem mais; sinaleiros apitando furiosa e teatralmente aos volantes que vieram da província e não sabem que na cidade é proibido pisar o risco; condutores maltratando-se pelas palavras mais genuínas do dicionário da má educação. Tinha que voltar. Voltar a cruzar-se com aqueles que se postavam às esquinas das ruas, às portas dos cafés ou das casas de discos ou dos supermercados comendo a estupidez da vida, feita da fatuidade que só os imbecis sabem usar. Mas desculpava-os. É que eles ainda não tinham partido num barco, com muita gente vestida toda da mesma maneira, para longe, para além.
- Continua.