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8/01/07

MOÇAMBIQUE/Cabo Delgado: Separar-se do prepúcio é elemento central da masculinidade.

Pemba, 23 Julho 2007 (PlusNews) - Silvestre João tem lembranças boas e outras menos boas de sua circuncisão. “Vamos comer mel no mato”, lhe disse seu pai quando ele tinha nove anos. Tinha muito mel, e mais: kumbi, o ritual de iniciação dos makhuwa, grupo étnico da costa norte do Moçambique. O menino passou seis meses no mato com um grupo de outras crianças e adultos, todos homens. Ele se desfez de seu prepúcio e aprendeu sobre sua cultura. As más lembranças são “a dor horrível durante o primeiro dia; e uma infecção que levou dois meses para sanar”. As boas são “brincar nus nos arbustos, catar côcos, nadar na lagoa, aprender canções e lendas com os mais velhos.” Seu padrinho – um parente homem que não volta para casa nem faz sexo até que o menino tenha sanado – ficou com ele o tempo todo, espantando as moscas da ferida. Quando Silvestre voltou para casa, a família e os vizinhos comemoraram e lhe compraram livros e canetas para a escola. Agora ele fazia parte da comunidade: como um makhuwa – o maior grupo étnico do Moçambique – um muçulmano, e um homem. Isto foi em 1972. O rapaz cresceu e se tornou enfermeiro. Hoje, Silvestre, com 44 anos, mora em Pemba, capital da província de Cabo Delgado. De Outubro a Fevereiro, meses tradicionais do kumbi, ele é muito solicitado para fazer circuncisões, mas de maneira mais segura do que foi feita a sua.“Os valores da circuncisão ainda persistem”, disse ele ao PlusNews. Hoje, os iniciados passam menos tempo no mato ou têm um médico para cortar o prepúcio, mas o triplo significado – etnicidade, religião e masculinidade – ainda faz com que a circuncisão seja muito importante aqui.
Camadas de significados
Rafael da Conceição, antropólogo da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, capital do Moçambique, e autor de um livro sobre as identidades culturais no norte do país, disse que a circuncisão é essencial para a masculinidade. Um homem não circuncidado é proibido de participar das atividades culturais importantes reservadas aos homens, tais como enterros e rituais ancestrais. “Isto significa que ele será vulnerável à agressão dos espíritos maléficos ou de ancestrais irados”, disse Conceição. “Ele não será completamente integrado no mundo masculino.” As mulheres do norte do Moçambique gostam de homens circuncidados. “Um pênis não circuncidado não é bom. O prepúcio cheira mal, mesmo que o homem se lave muitas vezes, e as mulheres não querem fazer sexo com estes homens”, disse Marta Januário Licuco, ativista pelos direitos da mulher e muçulmana. Se uma jovem do norte namora um homem do sul, sua avó vai alertá-la sobre a possibilidade de o rapaz não ser circuncidado. Segue uma campanha para persuadi-lo a se circuncidar. Pode levar anos, mesmo após o casamento, mas a pressão continuará, sutilmente, incessantemente. “O homem não circuncidado tem vergonha de tirar a roupa, ele vai apagar a luz antes de ir para a cama, ele se sente anormal”, disse Licuco. Licuco usa um véu azul turquesa e um vestido até os tornozelos. Marisia Jacinto, 20 anos, usa um jeans apertado e uma blusa de alcinhas, mas as duas partilham a mesma opinião sobre os homens não circuncidados. “Eu não aceitaria um homem assim – eu o levaria ao médico”, disse Jacinto. Em Cabo Delgado a maioria da população é muçulmana, e o Islã exige a circuncisão masculina, então o ritual do kumbi se sobrepõe à religião. Para o Sheik Muhamade Abdulai Cheba, diretor provincial das madrassas, ou escolas islâmicas, a circuncisão apresenta muitas vantagens: “Ela previne infecções e lesões; ela melhora a qualidade do casamento porque os dois parceiros sentem mais, e o sexo é sadio.”
Kumbi seguro
Kumbi tem vantagens – e perigos. Os nekangas (mestres da circuncisão) às vezes usam a mesma lâmina para vários rapazes sem esterilizá-la. Se há complicações, eles usam remédios tradicionais. “As ervas às vezes funcionam, e às vezes pioram as coisas”, disse Egídio Langa, diretor do Hospital Central de Pemba, cidade de 100 mil habitantes. As complicações pós-circuncisão aparecem mais nos centros de saúde dos distritos ou da periferia do que nos centros urbanos. Em 2006, Langa era o diretor do distrito de Montepuez, a 170 quilômetros de Pemba, quando líderes da comunidade, preocupados com a segurança do kumbi, vieram procurá-lo. “Eles falaram de hemorragias, febre e até morte”, contou. Ele enviou equipes de enfermeiros a todo o distrito. Durante os dois meses seguintes, eles treinaram os nekangas sobre higiene, forneceram material médico, pediram as listas dos rapazes prontos para a cerimônia e solicitaram que fossem trazidos ao posto de saúde mais próximo, onde enfermeiros treinados operaram diariamente de 50 a 60 meninos de sete a 13 anos. “A experiência foi bem aceita”, disse Langa. “Com um pequeno orçamento conseguimos reduzir um grande risco, aumentamos a proteção contra doenças sexualmente transmissíveis e tornamos a circuncisão segura.” Graças ao sucesso desta experiência, o Núcleo Provincial de Combate à Sida tem a intenção de treinar nekangas sobre a prevenção do HIV entre Julho e Setembro. “Kumbi é um período de transmissão cultural intensa, mas, até agora, as nossas mensagens de prevenção não utilizaram este canal”, disse o responsável pelo Núcleo, Toles Manuel Jemuce.
Correlação?
Segundo dados do governo, 56 por cento dos homens do país são circuncidados. Em Nampula, Cabo Delgado e Niassa, principais províncias muçulmanas onde vivem os Makhuwa, ela é quase universal. Em Inhambane, província majoritariamente cristã, os grupos étnicos Chope e Bitonga também a praticam. Langa, que vem de Inhambane e foi circuncidado quando era criança, disse que a prática da circuncisão estava sendo difundida através dos casamentos mistos. Estudos recentes efetuados na Uganda e na África do Sul indicam que a circuncisão masculina pode oferecer uma proteção de até 60 por cento contra o HIV. Especialistas notaram que as províncias moçambicanas com as menores seroprevalências são aquelas onde a circuncisão masculina é largamente praticada. No entanto, o baixo consumo de álcool e o controle social e sexual mais estrito entre os muçulmanos possam ser um outro fator.
Prós e contras
Elias Cossa, assessor de imprensa do Conselho Nacional de Combate ao HIV/Sida (CNCS), disse que Moçambique definiria sua política nacional sobre a circuncisão masculina antes do final do ano, e que esta medida seria seguida de uma avaliação de viabilidade. Certos ativistas argumentam que um programa de circuncisão desviaria recursos financeiros e humanos já escassos de um sistema de saúde pública sobrecarregado com a Sida, em um país que conta com menos de dez cirurgiões e ainda menos urologistas para uma população de quase 20 milhões. “O tratamento antiretroviral é prioritário. Tratar o paciente é mais importante que circuncidá-lo, porque uma pessoa saudável será capaz de sustentar sua família e protegê-la do HIV”, disse Julio Ramos Mujojo, secretário executivo da Rede Nacional de Associações de Pessoas Vivendo com HIV/Sida (Rensida). Outros ativistas preocupam-se com as implicações culturais e étnicas de um programa de circuncisão. “Poderia ser interpretado como uma maneira de forçar as pessoas a mudarem de religião”, disse Antoninho Cheia Inglês, coordenador do Fórum das ONGs de Cabo Delgado (FOCADE).
Mantendo a tradição
Trinta anos depois do kumbi de João, foi a vez de Buane Chande, 11 anos. Ele também tem boas e não tão boas lembranças dos três meses que passou no mato em 2001. As más lembranças são “a dor, até que passou, ficar longe de minha mãe, e os mosquitos”; as boas, são “brincar, nadar no rio, ouvir as canções e as histórias dos mais velhos.” Quando Chande voltou para casa, “todo mundo estava feliz”, as mulheres ululavam; mataram uma galinha e fizeram uma festa. “Sem o kumbi, os homens não sabem como enfrentar a vida”, disse ele ao PlusNews. “Um colega de escola que não passou pelo kumbi não é bem aceito. Ele continua sendo uma criança, mesmo que tenha 18 anos.” Chande agora tem 17 anos e está acabando o liceu em Pemba. Ser pai ainda está longe, mas ele não tem nenhuma dúvida de que seus filhos vão passar pelo kumbi.
% da circuncisão masculina por província em Moçambique:
TETE
8%
MAPUTO PROVÍNCIA
58%
MANICA
13%
NIASSA
88%
SOFALA
16%
INHAMBANE
89%
GAZA
21%
CABO DELGADO
93%
ZAMBÉZIA
49%
NAMPULA
95%
MAPUTO CIDADE
55%
Fonte: CNCS