Retrato do português que ilustrou Madonna:
A reserva impede-o de revelar o nome da casa e o dos seus proprietários, mas é entre telas de Rubens, Van Dyck e Bruegel que Rui Paes trabalha.
Enviados a Génova:
Isabel Lucas (Texto) Rodrigo Cabrita (fotos)
No Palazzo Reale de Génova, Rui Paes elogia as possibilidades do barroco na pintura
Madonna escolheu um pintor português para ilustrar o seu último livro para crianças. Pipas de Massa conta a história de um velho rico e infeliz que descobre a alegria da partilha.
Um enredo simples a contrastar com o barroco da ilustração assinada por Rui Paes, nome com quem a estrela pop divide o protagonismo desta história traduzida em mais de quarenta línguas, publicada em 110 países e com lançamento mundial agendado para Portugal, no dia 1 de Junho (Dia Mundial da Criança).
Rui Paes estava em Génova quando foi contactado pela Callaway Editions, a editora dos livros infantis de Madonna.
A New York Times Magazine publicara, pouco antes, um artigo sobre uma sala pintada pelo português num castelo da Noruega.
Foi em Fevereiro de 2003.
Esse ambiente palaciano seduziu a autora e quatro meses depois Rui Paes interrompia o trabalho que estava a fazer num palácio daquela cidade italiana para se instalar no seu atelier de Londres a tentar dar forma à narrativa e às personagens criadas por Madonna.
Com um vasto currículo na área do trompe-l'oeil, parte da vida e da obra de Paes decorre em palácios.
Paredes, murais e telas de grandes casas do Egipto, Alemanha, Inglaterra, Líbano, Noruega e, agora, Itália constam de um percurso onde o figurativo vai ganhado cada vez mais força.
É a subir a escadaria do Palazzo Reale, em Génova, que este artista, quase um desconhecido em Portugal, confessa o fascínio pelo barroco - e pelas formas antigas de pintar -, manifestado em traços que parecem fora de época ou, antes, desafiar as tendências do tempo actual.
Vive e trabalha paredes meias com aquele ambiente, num palácio vizinho construído no início de seiscentos e que guarda uma das maiores e mais importantes colecções privadas de pintura, na Europa. "Estar aqui é uma inspiração muito grande.
O barroco é uma das linguagens mais divertidas e cativantes para ser reutilizada.
Na pintura mural, é a técnica mais satisfatória.
Mas tem de ser muito bem compreendido, já que parece ser muito frívolo.
Mas não é.
É muito bem enraizado e dá uma grande liberdade", defende, de olhos postos num fresco que decora a Sala dos Espelhos, do Palazzo Reale.
A reserva impede-o de revelar o nome da casa e o dos seus proprietários, mas é entre telas de Rubens, Van Dyck e Bruegel que Rui Paes pinta, numa sala que dá para a Via Balbi, uma das artérias mais importantes de Génova, projectada no início do século XVII, quando ali começaram a construir grandes palácios, e que hoje já não tem o brilho desses tempos.
Vida palaciana.
É nessa rua, bem junto à Piazza dell'Annunziata, que vive desde 2000, numa estada que interrompe sempre que tem de responder a outras solicitações e que deve terminar dentro de três ou quatro meses. "O Van Dyck pintou os marqueses no século XVII e eu, agora, estou a fazer quadros com os empregados", ironiza, ao ser questionado sobre o trabalho que está a fazer. E percebe-se a reserva no sorriso que quer colocar um ponto final sobre o assunto. A mesma que lhe foi pedida quando lhe falaram da hipótese de ilustrar um livro de Madonna. Ficou surpreso com o trabalho, mas o nome não lhe tirou a fala, garante.
Mandaram-lhe a história e pôs mãos à obra.
Foi cerca de um ano e meio de trabalho feito no campo, perto de Cambridge, e que o ocupou entre dez e doze horas por dia.
Seis meses na concepção e na estruturação, oito meses para a pintura, em aguarela sobre fundo de papel.
Tudo somado, foram 70 aguarelas, numa escala entre vinte e quarenta por cento acima do tamanho em que o livro foi impresso. Em todo o processo, autora e ilustrador falaram duas vezes. "Da primeira vez, ela ligou-me para dizer que estava muito satisfeita com as ilustrações. Mais tarde fui eu que lhe telefonei a pedir desenhos dos filhos para incluir no livro, e ela mandou."
As reacções iam-lhe chegando através da editora.
No fim, pediu-lhe que fizesse "uma ou duas pequenas" alterações.
Do trabalho no castelo norueguês "importou" para o livro a ambiência e os macacos.
Isso mesmo. São esses os elementos decorativos mais marcantes, inspirados no Castelo de Chantilly, em Paris.
"Nesse trabalho usei uma técnica de chinoiserie do século XVIII, a importação europeia dos elementos decorativos chineses nos grandes ambientes palacianos.
Um dos melhores exemplos está em Chantilly.
É um grande hall de entrada num castelo em cima do fiorde de Oslo.
Embora tivesse sido construído nos anos 20, só um quarto é que era de época.
Tudo o resto foi feito com um certo teor revivalista.
Sugeri, então, o esquema da chinoiserie, rococó.
A sala estava toda dividida em painéis.
Fiz 16 painéis com seis metros por um.
Usei uma série de elementos decorativos, utilizando macacos vestidos como em Chantilly".
Foram os macacos que seduziram Madonna.
São os macacos o elemento que percorre todo o livro.
"Diverti-me muito com este trabalho.
Foi difícil, mas tive toda a atenção, tanto da editora como da própria Madonna", diz em jeito de balanço de uma experiência que gostaria de repetir.
Basta que haja convite e empatia com o ambiente da história a ilustrar.
Afirma que o facto de se ter iniciado nestas lides com Madonna não o coloca em bicos de pés, mas reconhece a importância que tem para a divulgação da sua obra o facto de o seu nome surgir ao lado do da autora de Material Girl "Inevitavelmente, vai ter um papel determinante."
O percurso.
A viver em Londres desde 1986, quando, bolseiro da Fundação Gulbenkian, se candidatou ao mestrado de Pintura no Royal College of Art, Rui Paes conta com várias distinções num currículo que oscilou entre o figurativo, o monocromático e de novo o figurativo. Natural de Pemba, Moçambique, onde nasceu em 1957, filho de um arquitecto e de uma escritora, começou a pintar muito antes de conseguir copiar gravuras de Rafael.
Tinha uns sete ou oito anos. "Sempre que me aborrecia com os meus irmãos, refugiava-me com os meus lápis e guaches numa espécie de ilha onde mais ninguém tinha acesso", lembra, sublinhando pormenores da praia de onde saiu com 11 anos para fazer o liceu em Aveiro.
Andou entre os dois continentes até entrar para a Faculdade de Belas Artes do Porto, depois de ter hesitado em ir para um curso ligado ao ambiente.
O chumbo a Química afastou-o. "Ainda bem", reconhece agora.
Terminado o curso de Pintura, em 1981, foi professor no ensino secundário.
Paralelamente, participava em exposições e venceu o prémio revelação na Exposição Nacional de Arte Moderna, Arús.
Entretanto, concorreu a um lugar no Royal College of Art. Foi aceite. "Nunca tinha pintado tantas horas todos os dias.
Deram-me um lugar para pintar e tive de criar a minha própria disciplina."Fazia, então, uma pintura despojada, monocromática.
Grandes telas, todas a vermelho.
Foi uma fase.
O figurativo haveria de voltar em força quando começou a trabalhar com Graham Rust, um dos mestres da ilusão pictórica.
Nunca mais abandonaria o trompe-l'oeil, que foi intercalando com as telas.
Nunca mais abandonaria, também, Londres.
Em Portugal, tem um filho.
E trabalhos em várias colecções privadas.
Para o ano, talvez haja uma exposição.