Uma história tristemente irresistível
Visite o website da Sky News e você verá, no menu de tópicos, o título “Madeleine” entre as “Notícias da Grã-Bretanha” e as “Notícias do Mundo”. A história cresceu tanto que mereceu uma categoria só para ela, com a mesma importância das notícias de política ou economia. Não há, obviamente, necessidade alguma de fornecer um sobrenome ou qualquer outro detalhe: Madeleine refere-se a algo que se está convertendo, sem dúvida, na maior reportagem com apelo humano da década.
Não são apenas as atualizações de hora em hora no noticiário da TV ou os programas de rádio que põem no ar a opinião dos ouvintes. Um indicador mais confiável é o falatório nos escritórios, pontos de ônibus ou metrô. Graças à espantosa reviravolta dos últimos dias, a conversa coletiva britânica é sobre o desaparecimento de Madeleine McCann, uma história cada vez mais estranha.
Antes mesmo das revelações da semana retrasada, o caso já estava no centro das atenções. É o que sempre ocorre com o rapto e assassinato de crianças. Tememos esses crimes como nenhum outro; eles acordam medos profundamente enraizados no solo cultural. O seqüestrador de crianças é uma criatura mitológica, vinda das mais antigas lendas gaélicas, de Chapeuzinho Vermelho ou João e Maria. Em maio, quando surgiu a notícia de que uma criança havia desaparecido de sua cama num resort português, todos esses medos familiares foram despertados.
A idéia de que um estranho havia raptado Madeleine era aterrorizante, mas descomplicada: sabíamos como nos sentir. No entanto, a decisão da polícia portuguesa de considerar suspeitos os pais da menina obriga-nos a encarar não um medo antigo, e sim um tabu sombrio: o infanticídio.
A dura realidade, sem dúvida, é que histórias de pais que matam seus filhos pequenos são muito comuns. O namorado que espanca o filho da amada até a morte virou um ingrediente pavoroso do boletim de notícias, normalmente em segundo plano. A tentação da classe média nesses casos é confortar-se com o pensamento de que essas famílias são problemáticas, não são iguais às suas. A qualificação dos McCanns como suspeitos não permite essa resposta preguiçosa. Sua campanha teve tanto apoio da imprensa em parte porque eles são o próprio modelo de um casal de classe média, profissional: ambos são médicos, pertencendo assim ao grupo mais confiável aos olhos da sociedade. De fato, a partir de maio, a cena de uma perturbada Kate McCann agarrando o gato de pelúcia de Madeleine tornara-se a própria imagem do amor materno. O mero pensamento de que o casal é suspeito de matar a filha já é motivo de dissonância cognitiva.
É por isso que as pessoas não sabem como reagir. De uma hora para outra, temos de sustentar dois pensamentos completamente contraditórios. Pois agora os McCanns podem ser duas coisas: vítimas do destino mais cruel que se pode imaginar - não só perder inocentemente a querida filha, mas também serem acusados publicamente de um crime repulsivo - ou culpados da mais elaborada e abominável impostura da História, conquistando fraudulentamente a simpatia e a confiança da mídia global, de um primeiro-ministro britânico e até do papa, para não mencionar a opinião pública internacional. Uma dessas duas afirmações extraordinárias descreve a verdade.
Os tablóides agora cobrem a história com ambas as possibilidades em mente. Notem as manchetes da imprensa sensacionalista britânica, cuidadosamente cercadas de condições e qualificativos, caso a alternativa oposta seja a verdadeira.
Não é esse o desenrolar normal de histórias como esta. Normalmente, os jornais populares, em particular, têm um palpite sobre o culpado (e com muita freqüência acertam). Desta vez não. Os jornalistas que acompanham o caso McCann estão aparentemente divididos em dois campos, a favor e contra o casal. Alguns repórteres recusam-se a falar com os colegas do outro lado. Um editor de um tablóide está mudando de opinião sobre os culpados “de hora em hora”.
É fácil entender o motivo. Na terça-feira, informou-se que a polícia portuguesa encontrara não só o estranho rastro de DNA no porta-malas do carro que os McCanns alugaram semanas depois do desaparecimento de Madeleine, mas também quantidades substanciais de cabelos e até fluidos corporais da menina.
De repente, uma história completa constrói-se sozinha, a partir de informações vazadas e fragmentos especulativos. Essa história diz que os McCanns sedaram seus filhos a fim de jantar com amigos sem serem perturbados (o que explicaria o fato de os dois filhos mais novos do casal não terem acordado apesar do caos da noite de 3 de maio). Ao voltar, eles encontraram Madeleine morta.
Temendo perder a guarda dos gêmeos se confessassem a verdade, eles esconderam o corpo de Madeleine e, mais tarde, guardaram-no no compartimento do estepe do carro alugado, até finalmente enterrá-lo em algum lugar. Mas onde? A versão contra os McCanns tem resposta até para isso. Afirma-se que a polícia portuguesa planeja buscas na Igreja de Nossa Senhora da Luz, na Praia da Luz, onde o casal rezava regularmente e do qual obtivera as chaves, para visitar o templo a qualquer hora. Segundo as notícias, detetives querem escavar a área em torno da igreja - incluindo uma rua que estava em obras quando Madeleine desapareceu.
A história se sustenta até que comecemos a fazer perguntas. Como duas pessoas sob vigilância constante da mídia poderiam ter carregado e escondido o corpo da filha sem ser notadas? Se o casal realmente tivesse guardado um corpo no carro, o cheiro não seria óbvio? Como duas pessoas sem conhecimento da paisagem local poderiam ter encontrado um esconderijo que, meses depois, continua secreto? Seria plausível imaginar que, nos momentos seguintes ao trauma da morte de uma criança, duas pessoas concebessem um plano de acobertamento, executassem-no friamente e permanecessem inabaláveis desde então? Alguém conseguiria manter essa fachada, uma mentira global, por tanto tempo sem desabar?
Discussões como essa ocorrem em toda parte. Os McCanns certamente estão odiando, mas não podem dizer-se surpresos. Por razões totalmente compreensíveis, eles optaram por transformar a perda da filha em propriedade pública, recrutando a mídia para sua causa. Portanto, agora somos moradores reunidos na praça da vila, dando palpites sobre os misteriosos acontecimentos que envolveram uma família nas trevas.
Como essa história acabará? É isso que a torna tão tristemente irresistível: ninguém sabe. Até que se saiba, a justiça básica exige que os McCanns sejam considerados inocentes. A decência exige o mesmo. Pois se eles, no fim das contas, forem culpados, haverá tempo de sobra para condenações. Mas se eles forem inocentes, presumir o contrário é cometer um segundo crime contra pessoas que já sofreram o bastante.
Não são apenas as atualizações de hora em hora no noticiário da TV ou os programas de rádio que põem no ar a opinião dos ouvintes. Um indicador mais confiável é o falatório nos escritórios, pontos de ônibus ou metrô. Graças à espantosa reviravolta dos últimos dias, a conversa coletiva britânica é sobre o desaparecimento de Madeleine McCann, uma história cada vez mais estranha.
Antes mesmo das revelações da semana retrasada, o caso já estava no centro das atenções. É o que sempre ocorre com o rapto e assassinato de crianças. Tememos esses crimes como nenhum outro; eles acordam medos profundamente enraizados no solo cultural. O seqüestrador de crianças é uma criatura mitológica, vinda das mais antigas lendas gaélicas, de Chapeuzinho Vermelho ou João e Maria. Em maio, quando surgiu a notícia de que uma criança havia desaparecido de sua cama num resort português, todos esses medos familiares foram despertados.
A idéia de que um estranho havia raptado Madeleine era aterrorizante, mas descomplicada: sabíamos como nos sentir. No entanto, a decisão da polícia portuguesa de considerar suspeitos os pais da menina obriga-nos a encarar não um medo antigo, e sim um tabu sombrio: o infanticídio.
A dura realidade, sem dúvida, é que histórias de pais que matam seus filhos pequenos são muito comuns. O namorado que espanca o filho da amada até a morte virou um ingrediente pavoroso do boletim de notícias, normalmente em segundo plano. A tentação da classe média nesses casos é confortar-se com o pensamento de que essas famílias são problemáticas, não são iguais às suas. A qualificação dos McCanns como suspeitos não permite essa resposta preguiçosa. Sua campanha teve tanto apoio da imprensa em parte porque eles são o próprio modelo de um casal de classe média, profissional: ambos são médicos, pertencendo assim ao grupo mais confiável aos olhos da sociedade. De fato, a partir de maio, a cena de uma perturbada Kate McCann agarrando o gato de pelúcia de Madeleine tornara-se a própria imagem do amor materno. O mero pensamento de que o casal é suspeito de matar a filha já é motivo de dissonância cognitiva.
É por isso que as pessoas não sabem como reagir. De uma hora para outra, temos de sustentar dois pensamentos completamente contraditórios. Pois agora os McCanns podem ser duas coisas: vítimas do destino mais cruel que se pode imaginar - não só perder inocentemente a querida filha, mas também serem acusados publicamente de um crime repulsivo - ou culpados da mais elaborada e abominável impostura da História, conquistando fraudulentamente a simpatia e a confiança da mídia global, de um primeiro-ministro britânico e até do papa, para não mencionar a opinião pública internacional. Uma dessas duas afirmações extraordinárias descreve a verdade.
Os tablóides agora cobrem a história com ambas as possibilidades em mente. Notem as manchetes da imprensa sensacionalista britânica, cuidadosamente cercadas de condições e qualificativos, caso a alternativa oposta seja a verdadeira.
Não é esse o desenrolar normal de histórias como esta. Normalmente, os jornais populares, em particular, têm um palpite sobre o culpado (e com muita freqüência acertam). Desta vez não. Os jornalistas que acompanham o caso McCann estão aparentemente divididos em dois campos, a favor e contra o casal. Alguns repórteres recusam-se a falar com os colegas do outro lado. Um editor de um tablóide está mudando de opinião sobre os culpados “de hora em hora”.
É fácil entender o motivo. Na terça-feira, informou-se que a polícia portuguesa encontrara não só o estranho rastro de DNA no porta-malas do carro que os McCanns alugaram semanas depois do desaparecimento de Madeleine, mas também quantidades substanciais de cabelos e até fluidos corporais da menina.
De repente, uma história completa constrói-se sozinha, a partir de informações vazadas e fragmentos especulativos. Essa história diz que os McCanns sedaram seus filhos a fim de jantar com amigos sem serem perturbados (o que explicaria o fato de os dois filhos mais novos do casal não terem acordado apesar do caos da noite de 3 de maio). Ao voltar, eles encontraram Madeleine morta.
Temendo perder a guarda dos gêmeos se confessassem a verdade, eles esconderam o corpo de Madeleine e, mais tarde, guardaram-no no compartimento do estepe do carro alugado, até finalmente enterrá-lo em algum lugar. Mas onde? A versão contra os McCanns tem resposta até para isso. Afirma-se que a polícia portuguesa planeja buscas na Igreja de Nossa Senhora da Luz, na Praia da Luz, onde o casal rezava regularmente e do qual obtivera as chaves, para visitar o templo a qualquer hora. Segundo as notícias, detetives querem escavar a área em torno da igreja - incluindo uma rua que estava em obras quando Madeleine desapareceu.
A história se sustenta até que comecemos a fazer perguntas. Como duas pessoas sob vigilância constante da mídia poderiam ter carregado e escondido o corpo da filha sem ser notadas? Se o casal realmente tivesse guardado um corpo no carro, o cheiro não seria óbvio? Como duas pessoas sem conhecimento da paisagem local poderiam ter encontrado um esconderijo que, meses depois, continua secreto? Seria plausível imaginar que, nos momentos seguintes ao trauma da morte de uma criança, duas pessoas concebessem um plano de acobertamento, executassem-no friamente e permanecessem inabaláveis desde então? Alguém conseguiria manter essa fachada, uma mentira global, por tanto tempo sem desabar?
Discussões como essa ocorrem em toda parte. Os McCanns certamente estão odiando, mas não podem dizer-se surpresos. Por razões totalmente compreensíveis, eles optaram por transformar a perda da filha em propriedade pública, recrutando a mídia para sua causa. Portanto, agora somos moradores reunidos na praça da vila, dando palpites sobre os misteriosos acontecimentos que envolveram uma família nas trevas.
Como essa história acabará? É isso que a torna tão tristemente irresistível: ninguém sabe. Até que se saiba, a justiça básica exige que os McCanns sejam considerados inocentes. A decência exige o mesmo. Pois se eles, no fim das contas, forem culpados, haverá tempo de sobra para condenações. Mas se eles forem inocentes, presumir o contrário é cometer um segundo crime contra pessoas que já sofreram o bastante.
Jonathan Freedland escreveu este artigo para o jornal inglês ‘The Guardian’. Foi traduzido por Alexandre Moschella e publicado, hoje, em O Estado de S. Paulo. (Blog do Noblat)