Fui a Moçambique. Vinte dias para cumprir um sonho antigo. Vi praias lindíssimas, com o mar em tons de esmeralda, areias finas e brancas e, coisa espantosa, as árvores a sair do mar junto à costa. Esta pejada de árvores: acácias, pinheiros africanos, mangueiras, coqueiros e outras que não identifiquei.Mas estive também no interior. No meio de aldeias de colmo, pátios bem varridos, mulheres com os filhos às costas suspensos das capulanas. O mínimo para viver. Uma simpatia que irradiava ao primeiro contacto. Chegavam-se a nós e estendiam invariavelmente as mãos para as apertarmos. As crianças encostavam-se e davam-nos as mãozinhas negras. O toque, uma forma essencial na comunicação africana. Mas vi também muitas coisas confrangedoras, a molestar a nossa consciência de ocidentais bem instalados na vida. Era noite. A sombra de um enorme hospital, antigo seminário nacionalizado pelo governo, projectava-se no vasto terreiro fronteiriço. Entrei pela porta principal e subi as escadas estreitas que me levaram ao coro da igreja agora transformada em enfermaria. Um salão enorme, com um pé direito altíssimo. Em baixo, camas de ferro primitivas e velhas, encostados pés de cama com cabeceiras, em várias filas que se estendiam desde a entrada da igreja até ao altar mor. A luz de alguns candeeiros fosforescentes iluminavam o recinto com uma luz crua. Os doentes cobertos com panos. Um silêncio opressivo. Confesso, senti-me incomodada. E a imagem dos nossos hospitais, mesmo os mais pobres, com camas articuladas, separadas por cortinas a proteger alguma intimidade, um mínimo de conforto a adoçar a tristeza do lugar, passou-me pela mente. Quando me retirei vinha com o coração pesado. Era a primeira imagem que colhia do Marrere onde acabava de chegar e nem um céu pejado de estrelas no céu negro de chumbo conseguiu aliviar o negrume que se instalara em mim. No dia seguinte, a luz de um dia cheio de sol iluminava uma paisagem verde com árvores frondosas: um bosque de mangueiras ao fundo, árvores de sumaúma, papaias e bananeiras. Aqui e ali, cones de formigueiros de terra vermelha. E uma paz campestre a contrastar com a opressão da noite anterior. Fui dar um passeio pelas machambas, alinhadinhas, pejadas de legumes verdes. Espalhadas, palhotas de adobe e colmo, com uma porta e uma janela – as típicas casas macuas – e um terreiro muito varrido. A certa altura, no meio do meu passeio, dei de caras com alguns paus espetados ao alto. “Que significam?” quis saber. “É o lugar onde as famílias vêm venerar os antepassados.” (Em toda a África o culto dos antepassados é muito vivo. Tão forte que mesmo um governo de cariz marxista, por convicção ou por contemporização com as tradições da população, não se coíbe de homenagear os antepassados em alturas especialmente importantes. Por exemplo, por ocasião de uma inauguração.) Nesta região não há fome, disse-me o padre Zé em casa de quem estava instalada. Graças a Deus. Mas no sul do país - eu estava na zona de Nampula - há. Quando visitei a Casa do Gaiato, na região do Maputo, o Padre responsável disse-me que sustentavam uma creche de muitas dezenas de crianças. “Porquê? As mães não estão em casa?” “Não é por isso. É por causa da fome. Ao menos aqui têm uma refeição de boa qualidade e abundante.”! Mas voltando um pouco atrás. Enquanto estive em Nampula fui visitar um convento de freiras que dão a sua vida pela população local. Sítio lindo! Cheio de buganvílias de várias cores e árvores, muitas árvores. Lá perto havia um infantário e uma creche para órfãos. Crianças muitas, a maioria filhos de vítimas da sida que é uma praga em Moçambique. Negrinhos e negrinhas doces que se encostavam a nós e nos apertavam as mãos. A criança mais nova teria não mais de três meses. A mãe morrera de parto e o pai tinha mais quatro filhos. Por isso entregara aquela à caridade da “mamã Júlia”, mulher de cerca de sessenta anos de olhar e fala muito doces. (Em Moçambique as mulheres são tratadas habitualmente por mamãs.) Visitei a casa onde as crianças estão albergadas. Que pobreza! O chão era de cimento, poucos compartimentos com caminhas protegidas por mosquiteiros, um hall de entrada com duas mesas onde estava encastelada a pouca roupa das crianças. Brinquedos, não vi. Um bebé estendido no chão berrava desalmadamente. Cá fora algumas cadeiras de plástico e uma cozinha primitiva. Uma luz baça de um candeeiro (já era noite; naquela região anoitece às cinco e pouco da tarde), iluminava o recinto. “Somos duas mamãs. A outra é portuguesa. Ela cuida dos rapazes. Eu trato das meninas”. “E a comida?” perguntei eu. “Ai isso não falta. As irmãs mandam-nos o que é preciso. Eu só cozinho”. E mais uma vez me saltaram ao espírito imagens do nossa terra. Infantários onde não falta nada, onde há educadoras tecnicamente preparadas para lidar com crianças, brinquedos em abundância, muita higiene e um exagero de programação das actividades que pretendem despertar as crianças para o conhecimento e para a sensibilidade. Aqui, apenas a bondade e a boa vontade de duas mulheres velhas que fazem o que podem, mas podem pouco. Aqui apenas um lugar protegido para dormir e refeições substanciais. A minha visita a Moçambique acabou em Maputo. Uma cidade de contrastes flagrantes. O bairro da Polana Cimento é a zona rica. Casas lindíssimas, ruas cheias de árvores frondosas, avenidas vastíssimas, ruas acolhedoras. Um local onde deve ser delicioso viver. Depois a zona da baixa onde os pavimentos estão esventrados, muitas casas degradadas, mas mesmo assim com muitas coisas bonitas para ver. Um belo jardim no meio da cidade, a estação de caminho de ferro concebida pelo Eiffell, lindísima! O Centro Franco-Moçambicano, edifício moderno cheio de originalidade onde vi uma exposição curiosíssima integrada no projecto “armas pela paz” com esculturas, algumas magistrais, feitas apenas com peças de armas. O museu de arte, com escultura e pintura de traços fortes, corpos retorcidos, muitos rostos e cores intensas no que toca à pintura – mostra uma arte plástica marcadamente africana, completamente distinta da arte europeia. Os inúmeros mercados de rua onde se vende toda a espécie de artesanato africano. E para além de muitas outras coisas interessantes, a avenida marginal, cheia de árvores, ladeando a vasta baía de Maputo. Finalmente a zona pobre: ruas estreitas de terra a abarrotar de casebres, alguns com colmo, mas a maioria coberta de chapa de zinco. Uma pobreza esmagadora. Embora impressione, não admira que todas as casas com melhor aspecto ostentem grades e arame farpado e até, na zona rica, fios electrificados e guardas à porta. Não vi, mas disseram-me que há bandos de crianças que dormem na rua e são elas que normalmente assaltam as pessoas e é delas que a população se protege com semelhante arsenal. Órfãos da guerra? Órfãos da sida? Miséria humana de que os homens se deviam envergonhar. Esta é a Maputo que me encantou por um lado, mas que me entristeceu por outro, seja pela degradação de algumas zonas, seja pelo cancro de miséria que atinge uma boa parte da sua população. Fui a Moçambique e vim com a alma cheia: da sua beleza, da simpatia dos moçambicanos e de tristeza por um país que a guerra empobreceu ao extremo e que só há pouco começa a levantar-se. Oxalá que este ressurgimento seja para todos e não apenas para a camada mais favorecida da população. Este é o meu voto de esperança.
Manuela Salvador Cunha - Professora do Ensino Secundário.
In O Primeiro de Janeiro - Porto de 02/09/07