5/14/11

Escritos do Douro - MEMÓRIAS DOS NOSSOS BOMBEIROS

                                                                                                   M. Nogueira Borges

""Conheci-o em Moçambique, para onde fora mobilizado, no ano de sessenta e oito. Mais concretamente, foi em Porto Amélia que começou uma das minhas mais lindas amizades. O Jaime Ferraz Gabão – é dele que se trata – deixara um dia a sua Régua em busca de outros horizontes que lhe desse, e aos seus, novo sentido à vida. Pertenceu a essa plêiade de cabouqueiros que em África assegurou a sobrevivência sem chibatas, antes com suor repartido entre brancos e negros, respeitando as gentes, pois há sempre uma alma para dar a Deus. ... ... ""
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I- «Era ainda pequenino, acabado de nascer», mas lembro-me, no meio de alguma sombra, do primeiro fogo que vi. Eu brincava, com o Aires e o Manel, no quintal da casa onde nasci ; seria Verão, e no entardecer,  porque o meu Avô, ao fundo, sentado num cesto vindimo, vestia colete e embrulhava um cigarro de tabaco de onça. O ar tinha uma calma de convento e só os crianças algaraviavam nos caminhos. Corríamos com os arcos, que descarrilavam dos ganchos, perdendo-se nos bardos de um calço rente ao muro. De repente, o meu Avô pegou na bengala que o ataque lhe impusera, levantou-se a gesticular, mandou-nos parar, e gritou pelo Alberto que dava palha ao Castanho. Minha Mãe também acorreu, pois quando o Pai se alterava toda a estirpe desassossegava.

Em Santo Estevão, no caminho alto que dá para o Rodo, uma chama, logo espalhada em contágio descontrolável, começava a devorar uma casa e outras anexas. Quase todas tinham muita madeira na sua feitura e o incêndio alastrou com a rapidez de um roubo. O povo despertou num clamor de tragédia. Mulheres, de canecos à cabeça, corriam a despejar a água colhida numa fonte escassa, situada no fundo da rampa; os homens, de sacholas e pás, lançavam a terra que arranhavam no caminho. Eu e os meus amigos largamos tudo e fomos para o pé do meu Avô a quem faltou a saliva para colar a mortalha. Batia com a bengala no chão e dizia para o Alberto: «Depressa! Chama o carro de praça para ir avisar os bombeiros!» Lembrei-me do inferno e dos pecadores. Jurei que iria ser sempre «um rapaz muito bem comportado», pois se as chamas infernais eram assim, então a minha Mãe tinha razão quando me dizia para comer a sopa toda.

Mal o carro vermelho, tocando a sineta, chegou ao Fial parece que as labaredas amainaram em respeito. Mas alegria tivemos nós quando o vimos a fazer a curva da árvore queimada, capacetes e machados reluzentes de homens que vinham «acabar com o fogo». Vários, aos gritos, se lhes dirigiram, ensinando o atalho onde o carro não cabia. Em desafio, pareceu, as chamas alteraram-se como se tivessem encontrado restos de papel. Correndo, os bombeiros lançaram-se àquele inferno verdadeiro, espalhando instruções, clamando ânimos, recusando desfalecimentos. Ainda hoje, ao escrever estas linhas, me emociono com o recordativo. Quando, no final, vencido o abrasamento, eles, descompostos e afogueados, desceram para a Régua, deixaram atrás de si o triunfo cantado no agradecimento dos atormentados, que, varrendo as cinzas da sua amargura, sonhavam com casas de cantaria.

Fiquei sempre com essa impressão juvenil de reverência e carinho pelo sacrifício e solidariedade dos nossos bombeiros, consolidada vida fora, algumas vezes lembrada quando as peripécias da vida, muitas vezes, me esbofeteiam com a surpresa.

II- A sirene dos Bombeiros ouvia-se no alto de S. Gonçalo. Era um chamado que afligia. Começava por um grito de desespero, de quem é atacado à falsa fé, seguido por prolongado gemido de sofrimento, esperando uma ajuda caridosa. Repetido, como se ninguém acudisse, esse apelo sonoro, num eco estendido pelos montes e vales, dilacerava as almas e escurecia a natureza. Os homens suspendiam as fainas, soerguiam-se, olhavam em redor, lançavam o olhar para Avões ou São Domingos, firmavam-se em Remostias ou no cimo do Peso; queriam ver onde se elevava o fumo, se era dentro ou fora da “vila”. Tiradas as “teimas” e assente a origem, debruçavam-se, de novo, para a terra que lhes dava o suor do sustento.

Os tempos de que trato eram de necessidade, em que uma sardinha de barrica dava para três, comia-se cebola com sal e broa com azeitonas, mas havia uma enorme riqueza de solidariedade. As gentes sofriam com o mal alheio, gostavam de ajudar e sentiam como suas as lágrimas vizinhas. A escassez irmanava no relevo dos gestos. Ser bombeiro era fazer parte dessa honra, ditada pelo falar popular, soldados da paz e serventes da humanidade, voluntários do mundo e escravos da lida contra o infortúnio, corpos fardados e almas civis.

III- As noites do Douro, nesse Agosto de 53, eram mais escuras do que hoje. A sua claridade vinha da lua, dos faróis de carro que, de quando em vez, alumiavam o silêncio dos vinhedos, um ou outro poste, de longe em longe, plantado pela boa vontade da Chenop, o petromax de quem levava a recolher a ebriedade, que esquecia nas tabernas as injustiças da sua sorte  desajustada na sua contabilidade doméstica.
Foi numa dessas noites que a Régua se cobriu com o clarão da tragédia. A Casa Viúva Lopes, forte estabelecimento comercial da época, ardia diante do pasmo assustado da terra, tolhida pelo sobressalto e pelo dó. Nem o rio ali ao pé nem o clamor da população segurou o recheio ou as traves que o defendia. Bem lutaram os bombeiros; lutaram até ao fim e até à morte. Lá ficou o Senhor Figueiredo, imortalizado pela pena do nosso Escritor, também ele imortal, João de Araújo Correia, como o João dos Óculos, que ganhava a vida a desenhar palavras no chumbo tipográfico. Lá ficou, queimado pelo seu voluntarismo, pela dedicação e amor ao próximo.

Na nossa Região, os Bombeiros Voluntários da Régua sempre foram uma referência. Associação humanitária a dar «vida por vida», num ditame nunca contestado, servindo, sem olhar a quem, nas dificuldades físicas e morais, na vida e na doença, na esperança e na morte. Mais uma vez se comprovara, bem duramente, a tradição e a lenda da sua história.

IV- Conheci-o em Moçambique, para onde fora mobilizado, no ano de sessenta e oito. Mais concretamente, foi em Porto Amélia que começou uma das minhas mais lindas amizades. O Jaime Ferraz Gabão – é dele que se trata – deixara um dia a sua Régua em busca de outros horizontes que lhe desse, e aos seus, novo sentido à vida. Pertenceu a essa plêiade de cabouqueiros que em África assegurou a sobrevivência sem chibatas, antes com suor repartido entre brancos e negros, respeitando as gentes, pois há sempre uma alma para dar a Deus. Ofereceu-me a sua mesa e as suas palavras nas noites em que brilhavam as acácias rubras sob os candeeiros escurecidos pelos mosquitos. Sentia-lhe a saudade pelo regresso, mas, também, receio de um dia ter que abandonar tudo - por pouco que fosse – depois de anos de sacrifício. Colaborámos, na distância – ele há tempos e com melhor saber – nos semanários regionalistas da nossa terra, cada qual na sua independência e companheirismo. Eu regressei e ele ficou.

Um dia abraçámo-nos na Rua dos Camilos. Ele viera nessa leva, inventada por uma qualquer pejorativa mente, de “retornados“. Ainda tentara ficar, mas a onda de oportunismo e adesão cobarde aos valores nunca professados, não lhe sossegavam as entranhas. Chegou de olhos tristes e coração despedaçado. Depois de alguns anos de aptidões reconquistadas, o Jaime adoeceu no corpo, que no espírito nunca sarou. Prolongou a doença o mais que pôde, mas quando ela chegou ao fim não encontrou grande resistência: ele já se cansara de lutar, de andar de abrigo em abrigo em busca da serenidade.
Foi numa tarde de Junho, quando a Régua é um inferno de calor, que ele subiu para o Peso onde descansa eternamente. Foram os nossos bombeiros  que o levaram, associado que era. Atrás, com os seus familiares e amigos, eu recordava-o numa mistura confusa, em que cabiam as memórias dos meus mortos, dos fogos e das cinzas, mas, também os carinhos dispensados aos vivos, ajudando, até, a nascer muitos que perpetuam o nosso mundo.

Agora que vem aí o Verão, estação para algumas descomposturas e traições humanas, ofensivas da natureza e dos socorros dos soldados da paz, que não falte o apoio e a boa fé de quem manda, mesmo neste tempo de desgosto e baixeza moral.

Abril 2011

Nota: Agradecemos ao escritor M. Nogueira Borges, natural do concelho de S. Marta de Penaguião, por ter escrito para o Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua este brilhante texto sobre as suas memórias dos bombeiros e, em especial, sobre os da Régua. O nosso muito obrigado por ter evocado factos e figuras que ainda hoje são inesquecíveis na longa história dos Bombeiros da Régua.
- Matéria cedida por M. Nogueira Borges e J. Alfredo Almeida para Escritos do Douro em Maio de 2011. Clique nas imagens ilustrativas do texto acima para ampliar.
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Memórias dos Nossos Bombeiros - 1
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 28 de Abril de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
MEMÓRIAS DOS NOSSOS BOMBEIROS
Memórias dos Nossos Bombeiros - 2
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 5 de Maio de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
MEMÓRIAS DOS NOSSOS BOMBEIROS - 2
Transcrito do Blogue "Escritos do Douro"

5/04/11

Sport Clube da Régua - Conheça o Reguense Jaime Ferraz Rodrigues Gabão 2

Conheça o Reguense Jaime Ferraz Rodrigues Gabão
As cartas enviadas desde Porto Amélia em Moçambique sobre o Sport Clube da Régua.
Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Nasceu na cidade do Peso da Régua em 13 de Abril de 1924.
Com 68 anos, faleceu a 18 de Junho de 1992, dia do Corpo de Deus, em Lisboa - onde, uns dois meses antes, se submetera a melindrosa intervenção cirúrgica.


Conheça algumas das cartas enviadas e publicadas pelo Jornal Notícias do Douro, sobre o SC da Régua. (continuação)
 
 
 
 
 
 
 
Clique nas imagens acima para ampliar
Transcrito do site - Sport Clube da Régua
Continuação daqui -> Sport Clube da Régua - Conheça o Reguense Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Alguém disse: Cruzar a linha não é muito fácil, em especial quando não há vantagens ou ganhos em retorno. É nesta hora que você percebe e entende quem tem consideração, quem reconhece! Minha gratidão imensa ao Dr. José Alfredo Almeida, Amigo sempre presente pela pesquisa dos textos, ao pessoal do Notícias do Douro pela autorização, na pessoa do Dr. Armando Mansilha, salientando também o velho Amigo, funcionário e jornalista Fernando Guedes, que se encarregou de fotocopiar os recortes acima expostos e ao Sport Clube da Régua, a quem meu saudoso Pai ofertou amor e inúmeras horas de dedicação intensa, desinteressadas e permitiu a digitalização-publicação no site do clube. Seu pensamento-coração, mesmo longe, em terras de África (Porto Amélia, hoje Pemba), estavam também no rincão natal. - Jaime Luis Gabão, 4 de Maio de 2011.