10/14/10

OS LADRÕES E O CHAMBOCO

Não me lembro ao certo como ali parei. Apenas sei que o ambiente do mercado Mbánguia estava em fervescência como sempre, com os vendedores e compradores a realizarem suas pretensões num ambiente cordial, ameno e respeitoso, tal como as regras costumeiras recomendam. Mas aposto que, naquela manhã de céu azul, eu e minha malta de infância haviamos desembocado naquele aglomerado populacional impelido por algo “nobre” e próprio da adolescência, como, por exemplo, o passeio livre e sem destino pré-definido, facto que acontecia com frequência naquele tempo. Eram passeios que não punham ninguém temeroso, pois, todo mundo se conhecia até pelo nome. Era o tempo de Pemba do antigamente, tão distante que até “despedaça” os coraçoes dos que viveram aquela época saudosa.

Contudo, já voltando ao cerne destas linhas, algo surpreendente naquela manhã e naquele local sucedeu. Certamente que alguém no meio da multidão sabia o que ia suceder, mas também é certo que muitos, como nós, nada sabiam até que, de um momento ao outro, as entradas exitentes nos quatro cantos do quintal do mercado, feitos de estacas e bambú, ficaram forçosamente fechadas e consequentemente a actividade comercial interrompeu-se por ordem de quatro milicianos fortemente armados, que gritavam incansavelmente:

- Silêncio, silêncio, silêncio…

De súbito, o frenesim do mercado interrompeu-se e os populares prestaram prontamente a atenção aos milícias. Junto destes, achava-se um homem vestido ao rigor da época: uma balaláica e calça castanha de caquí e sapatos pretos polidos ao ponto. No entanto, os murmúrios dos que se achavam no mercado foram baixando paulatinamente e o homem de balaláica, ostentantando uma estatura baixa, corpo magro, cabelo curto e barba feita cuidadosamente, dirigiu-se a multidão que lhe devorava com os olhos aguçados pela curiosidade:

- Viva o povo unido!
- Viva, viva, viva! – Era a palavra de ordem e o povo tinha-a na ponta da lingua.
- Abaixo os ladrões, inimigos do povo!
- Abaixo, abaixo, abaixo.

Rapidamente esta palavras suscitaram curiosidade desmedida entre os presentes, pois, o memento em que se vivia, qualquer discurso que iniciasse nestes moldes antevia alguma novidade de interesse popular. Mais, o país vivia a guerra de desestabilização e qualquer mensagem saída da boca de autoridade tinha seu crédito, uma vez que, quanto mais as pessoas ficassem informadas, mais possibilidades haviam de precaver-se. Assim viviam as pessoas nos primórdios da guerra!

- Obrigado. - Palmas fortes ecoaram no recinto comercial. – Hoje viemos apresentar-vos os que sabotam o nosso desenvolvimento, a nossa afirmação como nação independente e a nossa unidade.

Quem seria? Um bandido armado? Estes eram questionamentos óbvios que cada um ali presente fazia. No entanto, este enigma não tardou a desvendar-se, pois, enquanto o homem de balaláica discursava, foram trazidos ao centro da moldura humana quatro homens algemados e com feições intristecidas. Perfilados e cabisbaixos, os homens deteram-se ao lado esquerdo do homem de balaláica aguardando a apresentação pública e a execução do veredicto do tribunal popular. Nos seus olhos e nas suas expressões faciais era notória a vergonha e a humilhação. Todavia, nada tinham a fazer para contrariar o destino que, por ganância ou ironia do próprio destino, eles mesmo haviam traçado ou tecido, contrariando a ordem instalada e desafiando a força e euforia do povo, quem o poder lhe pertencia.

- Estes homens foram confiados para nos servir, mas por ganância preferiram servir interesses pessoais roubando o que é do povo.

O povo acompanhava atentamente o discurso excessivamamente politizado e pacientemente aguardava a súmula do mesmo. Fez-se um silêncio, mas logo a voz do homem voltou a ouvir-se.

- Vocês conhecem estes homens? – Apontou com dedo em ríste aos quatro homens cabisbaixos.
- Não! – Gritou o povo desordenadamente.
- São trabalhadores de três cooperativas de bens de consumo. – Fez uma pausa para raciocinar. – Há seis meses que vêm roubando produtos de primeira necessidade, como: arroz, óleo de cozinha, açucar, sabão, etc, e este acto fez com que centenas de famílias fosse prejudicadas em abastecimento, isto é, estas famílias receberam alimentos e outros produtos que não corresponde ao real número do agregado familiar e outras ficaram privadas deste direito, como consequência dos actos destes senhores. Como devem saber, cada grão de arroz abastecida às cooperativas pertece alguém de algum agregado familiar, havendo a necessidade de fazer chegar ao destinatário sob o risco de privá-lo deste produto vital para a sua sobrevivência.

As mangueira frondosas do mercado Mbánguia balançaram ligeiramente agitando ramos e folhas como se concordassem com as palavras do discursante. Uma brisa suave cortou o mercado em diagonal afastando o ar quente e húmido que se fazia sentir.

- Assim, – Prosseguiu o homem de balaláica. – pelo que fizeram, foi-lhes aplicado a pena de vinte chambocos cada e seis meses de prisão.

Um ululu forte e calorosos aplausos emergiram do meio da multidão em saudação à decisão tomada e da boca do homem de balaláica soltou-se uma canção revolucionária que foi imediatamente entoada em coro pelos presentes. No fim, foi trazia ao meio da moldura humana uma cama de ikampala e imediatamente o primeiro ladrão, um homem alto, claro, cabeludo e de barba desleixada, foi amarado de bruços junto a cama para não escapulir. De seguida, um miliciano robusto aproximou-se com um chamboco e quando a ordem foi dada, o chamboco assobiou no ar e no fim ouviu-se um estalo forte acompanhado de um grito de cortar o fôlego. Todavia, as chambocadas prosseguiram com o ladrão agritar pedindo mil desculpas. Este gesto, repetiu-se para o resto do grupo e foi muito doloroso assistir, contudo, parte dos espectadores incitava o miliciano a chamboquear demasiadamente para servir de lição a outros homens com pensamento semelhamente a dos quatro ladrões.

Quando o “espectáculo” terminou, as saidas do mercado foram abertas para permitir a retoma da vida do mercado e os ladrões foram levados de Waz para o calaboiço. E como não podia deixar de ser, o sucedido alimentou conversas quase o resto do dia e, pelo interesse que o assunto suscitara, certamente que servira para desencorajar atitudes semelhantes em muitos que até então roubavam ao povo.
- Allman Ndyoko - Moçambique, 13/10/2010


Vocabulário:
Ikampalacorda de palha tecida que normalmente no norte de Moçambique serve para fazer o leito da cama feita na base de estacas;
ChambocoCacete. Chamboco foi uma expressão que evoluiu ou foi frequentemente usado no tempo em que Moçambique adoptara o socialismo;
Chamboquearacto de cacetear;
Waz Carro de fabrico russo, que geralmente era usado pelas forças de defesa e segurança do período socialista.

9/30/10

NO CIMO DO MONTE

(Clique na imagem para ampliar)

Cheguei ao cimo cansado, alagado em suor e a garganta ressequida. Com cuspe e o lenço limpei as reticências de sangue que, ao longo da subida, as silvas tinham escrito nos braços.

Arranquei algumas giestas e sentei-me. Após a retoma do fôlego, estendi-me na caruma e deixei-me estar com as agulhas coladas à camisa a picarem-me levemente.

Olho o céu por entre as copas dos eucaliptos: sereno, dum azul-marinho sem nuvens; o sol, intrometendo-se naquelas, beija-me o rosto, tento olhá-lo, fazendo uma pala com a mão. Assim fico, não sei por quanto tempo, absorto e feliz. Ouço o esvoaçar dos estorninhos, o pio dos rabilongos, o restolhar das perdizes, os estalos das madeiras e das folhas secas, o zoar das moscas contra as quais invisto, os sussurros cavos do sopé em que a aldeia existe.

Um melro, à Guerra Junqueiro, desafia-me num voo de alvoroço. “Filho da mãe... Devias estar a ver-me há muito tempo, tens ninho perto e julgas que vou lá... Descansa bico amarelo que não te enjeito a criação...”. Inspiro o aroma dos eucaliptos a espantar agoiros de constipações inverniças, mando um grito só para escutar a resposta na largueza suspensa; umas pegas estarrecidas mudam de galho.

A toda a volta, sem um intervalo, uma mínima fenda que seja, a sólida serrania esmaga numa ansiedade de respiro. São fieiras e fieiras de vinhedos ondulando por socalcos de geometria paralela com equidistâncias traçadas a compasso, uma dimensão verde que cega, um contraste de paz e de medonho, uma escadaria de santuário milenar que termina num apogeu de obelisco como se, depois dela, só Deus estivesse para receber as promessas cumpridas. Disseminadas nesta orografia de milagre, como temperos pictóricos, casais, modestos ou solarengos, adormecem na vertigem, ligados por veios terrados de muitos passos e encontros. Onde as gentes tomaram as posses que as heranças e os usucapiões determinaram, a casaria, aconchegada ao campanário que marca as horas e clama as almas, fez-se povoado para cumprir a história: ficar sempre como se é ou transformar-se no que se pode.

Lá ao fundo, sob a transparência do calor, o rio, num S perfeito, desliza em vagar estival, cansado das fúrias de Janeiro que nenhuma barragem domina porque a natureza não se doma, respeita-se.

Viro-me a um ruído conhecido. Lá vai ele, entre postes de electricidade, ronceiro, miniatura ferroviária, curvando quase a descair, resfolegando nas subidas como cavalo expelindo vapor pelas narinas, apitando forte não vá algum distraído oferecer a sua vida a uma coisa daquelas, subindo a custo o gigantismo da paisagem, até desaparecer como um tunante das montanhas.

Começo a descida. Paro junto de uma antiga pedreira, agora um silvado. Os grilos calam-se, colho um pintor de touriga e recordo-me da lenda das facadas. É aqui que aparece o Pitonga. Morreu numa luta de navalhas com o Fragão que envelhece numa penitenciária. Diz o povo que pareciam dois lobisomens a espumarem de ódio. Porquê? Ora... porquê!... «Uns copos a mais, mulher para aqui, mulher para ali, és um corno, corno manso és tu, não és homem nem és nada, navalhas fora do bolso, e aí está a desgraça dum homem... Foram os dois por aí acima, um atrás do outro, “ladrão que te mato, não me importo de ir para a cadeia, vê se és capaz”, o Pitonga ficou logo estendido e o Fragão foi-se entregar à Guarda.» A alma do Pitonga pena nestes sítios, já houve quem a visse numa túnica de sangue; os guardadores das vinhas juram que é pelas três da madrugada, quando o sono lhes aperta e aqui vêm encostar-se, que o Pitonga usa esta ladeira para o sortilégio da aparição. Um, o Quim, ouviu-o e viu-o, em jeito de vagamundo, numa voz que parecia vir do cavado de um poço: «Quim, quando encontrares a minha, diz-lhe que não demore que estou com falta dela.» E ai de quem o desdisser porque o guardador já afiançou que lhe faz o mesmo que o Fragão fez ao Pitonga.

O sol vai-se finando. No ocaso, uma mancha de desmaio alaranjado. É a hora dos velhos do Asilo desentorpecerem debaixo das ramadas. A algaraviada da criançada distrai a quietude. As Avé-Marias, no campanário, clamam à devoção. Abarco, num relance, a majestade da terra e aí vou eu sorrir à vida que as crianças espalham.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no Blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

Moçambique - HISTÓRIA - A FORTALEZA DE SÃO JOÃO BAPTISTA DO IBO

A FORTALEZA DE SÃO JOÃO BAPTISTA DO IBO
A FORTALEZA DE SÃO JOÃO BAPTISTA DO IBO
MEMÓRIAS DAS ILHAS DE QUERIMBA.
FORTIFICAÇÕES MILITARES NA ILHA DO IBO, em CABO DELGADO - MOÇAMBIQUE por Carlos Lopes Bento.
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler. Link para formato "pdf" - http://www.youblisher.com/files/publications/10/55598/pdf.pdf)

Moçambique - HISTÓRIA - EPIDEMIA DE VARÍOLA NA ILHA/VILA DO IBO, ENTRE ABRIL DE 1883 E JANEIRO DE 1884

EPIDEMIA DE VARÍOLA NA ILHA/VILA DO IBO, ENTRE ABRIL DE 1883 E JANEIRO DE 1884
MEMÓRIAS DE CABO DELGADO
EPIDEMIA DE VARÍOLA NA ILHA/VILA DO IBO, ENTRE ABRIL DE 1883 E JANEIRO DE 1884
Por Carlos Lopes Bento.
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler. Link para formato "pdf" -http://www.youblisher.com/files/publications/10/55591/pdf.pdf)