Conhecera-o em Mafra, no C.0.M., onde, durante meio ano, nos sacrificámos para termos alguma hipótese de escolher a futura colocação num quartel próximo de casa. Fazíamos o que nos mandavam, mesmo que isso nos violentasse, prolongávamos o esforço para lá dos limites, decorávamos os regulamentos como quem engole a repugnância, manuseávamos as armas com a presteza dos autómatos e desmanchávamos as culatras com a troça de um desfastio.
Encontrámo-nos em Chaves para formar Batalhão, embarcámos no mesmo barco para Moçambique e separámo-nos em Nacala. Durante meses trocámos SPM, mas, repentinamente, os seus aerogramas cessaram.
Um dia, num desses dias em que o calor húmido cola as roupas à pele, encontrámo-nos numa cidade construída no meio dos pântanos. O abraço teve a alegria de uma criança quando lhe reaparece o brinquedo preferido. No café, repleto de ventoinhas de tecto, de fumos de cigarros e conversas agitadas com pressa de recuperar os afectos interrompidos, estendemos o reencontro. Continuávamos, afinal, os mesmos: sedentos de regresso e de paz, contrariados na guerra e desaproveitados na vida, sem vontade de matar mas obrigados a fazê-lo para não morrer, a rotina do estupor a tapar-nos os horizontes; vivíamos de recordações, os passeios a Lisboa e à Ericeira para vermos as coxas das miúdas a atirarem-se aos cadetes de Mafra; os bonecos do Franco no Sobreiro, os escuros corredores da EPI ensombrados pelos fantasmas das batalhas de Naulila ou La Lys; os bifes do Novo Rioma, as melodias sineiras dos carrilhões, aos domingos, a encimarem a monumentalidade barroca de D. João V; os devaneios bucólicos à foz do Lizandro, as marchas na Tapada com os gamos e os veados a mirarem-nos surpresos; as saudades de Coimbra como feridas incicatrizáveis, a quietude das nossas aldeias separadas pelo eco de um berro, as bocas das namoradas sem uso; o velho do Salazar que nunca mais morre, o tempo que demora a passar, o cansaço da escrita que só apetece para a família chegada e, quantas vezes, sem saber o que se dizer.
- Por que deixaste de escrever?
- É sempre a mesma merda, depois das patrulhas só me apetece dormir. Aliás, sabia que, mais dia menos dia, me dariam um mês de descanso e que o faria aqui, sem dinheiro para ir à Metrópole. – Fez uma pausa para um gole de Laurentina. - Sabes quem morreu? O Daniel.
- Não era aquele gajo que dizia que queria meter o chico?
- Tinha essa mania, pintava-se de preto e ia sempre com granadas à cintura; rebentou-lhe uma defensiva e fodeu-se. Matou-se sem glória. Ainda está em Miteda, lá num canto, cheio de chumbo por dentro e por fora, à espera de um barco.
Um tipo esquisito, o Daniel: sorumbático, ombros fortes a rasgarem o blusão, o rosto de feições montesinas, uma reserva forçada como se a vida nunca lhe permitisse uma subtileza. Deliciava-se com a aplicação militar e constava que limpava todos os dias a bicha de Aspirante. No bar, nunca passava de meio chá com duas bolachas e, enquanto os outros folgazavam, ele ficava horas sentado a ver a televisão espanhola.
- Mas, sabes – retornou o Silva quando já passeávamos na marginal - , o tipo tinha melhorado, estava mais dócil e já se ria para os soldados. Não havia operação que não quisesse ir, confiante, «vou ali e venho já», dizia ele. O Capitão ia propô-lo para um louvor ao nível de Governador Geral. Agora, então, é que vai ser uma maravilha com o gajo já morto. E a malta do pelotão já gostava dele, sabes? Dormíamos no mesmo cubículo, jogávamos a sueca, mas nunca nos afeiçoámos. Quando vi a padiola e o tipo estendido é que senti uma coisa cá dentro que ainda hoje não consigo precisar. Pareceu-me um desperdício, um roubo, a cópia dum hipotético futuro meu, notei-lhe a ausência, que ele tinha existido comigo, que estávamos, afinal, no mesmo lugar. Tive medo e, não sei se por isso ou por ele, chorei que nem um desalmado, como se as lágrimas me desculpassem de estar vivo, entendes o que quero dizer? Uma justificação que se dá mesmo sem se ser obrigado. Esta merda é fodida. Andamos aqui todos a ver se safamos o canastro e quando morre alguém parece que temos culpa por não sermos nós.
Era ao fim da tarde quando África é uma perturbação enlanguescida. O sol, bolha de sangue estampada no horizonte, morria, lentamente, num desmaio de donzela consolada pelas carícias do mar. A noite caía cedo – como caem todas as noites africanas -, uma brisa de sirgo sensualizava os corpos e espevitava frémitos. As mulheres, de vestidos leves ou calções generosos, espalhavam perfumes e ousadias. Os homens, de balalaicas impecáveis, fumavam LM e miravam as capulanas das negras roliças. As peles tinham a cor da nascença ou da frequência da piscina. Caminhava-se num chão de vidro, os sorrisos atirados para os lados. A guerra estava longe, mesmo que fosse ali ao lado, para lá da picada vermelha, da escuridão da selva, da desconfiança das tembas. Nas esplanadas, o gelo desfazia-se no uísque ou nas coca-colas; a cerveja gelada acompanhava-se com pratinhos de camarões, ameijoas ou pedacinhos de dobrada; as faces enrubesciam, as barrigas, bem instaladas, avolumavam-se - respirava-se um ar de insolvente abundância.
- Não te choca este ambiente? Até esta paneleirice inglesa de os carros andarem pela esquerda com os volantes do lado direito me mete confusão! – exclamou o Silva. - Anda um tipo, no mato, de canhangulo em punho – prosseguiu nervoso -, sujeito a levar um tiro nos cornos, a lutar pela Pátria como dizem os cabrões, chega-se aqui e parece que nada se passa.
- Fazem um esforço para esquecer que a guerra existe. – fingi sentenciar. Eles até dizem que a guerra só os empobrece, como se acreditassem que acreditamos. Há aí tipos a fazerem fortunas. Sentem-se desobrigados e alguns dizem que resolviam isto sozinhos, falavam com a Frelimo e dividiam ao meio o poder. Nós andamos cá a complicar, a esvaziar o Tesouro para nada. Toleram-nos, acarinham-nos, convidam-nos para almoçar e esforçam-se por nos tornar importantes.
O Silva trazia o cansaço do mato que, quando longe dele, procura, mais que o ócio, o farejo da fêmea. Reparava nas raparigas com um olhar que tanto parecia uma imploração condoída como um prenúncio de vulcão prestes a explodir. Tinha o rosto seco pelas vigílias cacimbadas e pelo desejo reprimido. Só a inibição social o detinha. Mas não pretendia o sexo fácil, comprado por meia dúzia de quinhentas, sim a naturalidade de um ímpeto civilizado, a satisfação racional que lhe matasse a fome de homem e não de macho. Na Metrópole, ficara a Joana, cabelos compridos e lábios de polpa, sentada nos bancos de Direito, a ouvir aquelas secas das Obrigações, a escrever-lhe noite sim noite não, ele duvidando, às vezes, se a encontraria, que o amor é muito bonito quando a presença não se imagina mas sente. Já sabia que o verdadeiro amor é o do sangue, o único que é cego a sacrifícios e não discute contas. Jurara fidelidade, aquela promessa fogosa que a despedida longa solicita, mas omite o imprevisto.
- Já reparaste – atirou o Silva – que aqui as raparigas parece que crescem mais depressa do que lá no puto? - Veem-se aí catraias, acabadas de nascer, quinze, dezasseis anos, corpos de mulheres feitas, desinibidas e a pedir tudo! – insuflou, enquanto um sorriso concupiscente lhe envolvia os olhos.
- Acautela-te e não te deixes levar por aparências. O sonho de muita miúda que te mira é apanhar um alfereszito e amarrá-lo a um embondeiro. Então as mulatas adoram galões e camuflados. Não te esqueças que tropa é sinal de submissão – chacoteei.
- Quer-se dizer que o mais seguro é na temba...– acentuou Silva em tom desconsolado.
- Olha para aquilo! – anotei. - Andam cem cães atrás e os pais nunca a largam. O tipo é um coca-cola ligado ao cajú e ela é uma broeira que só tem corpo e passeia os livros na Escola Técnica. É só encenação, espremida não dá nada, quando abre a boca é de fugir.
- Não me importava nada de experimentar. Quem fugia, se calhar, era ela com o susto! – motejou Silva.
Dir-se-ia que toda a gente afluíra à beira-rio, baptizado por Vasco da Gama, há séculos, de Bons Sinais, já sem os vestígios da fortaleza que a história de mil e quinhentos diz ter existido em comércio esclavagista. De cá para lá, desde a ponta em que se erguia o palácio do Governador até à outra da zona da piscina, os corpos deslizavam na mornidão amansada por um cacimbo prematuro. Chamavam-lhe o picadeiro, montra das vaidades e da alcoviteirice.
Era uma cidadezinha de moradias predominantemente familiares, estilo colonial, com um jardinzinho sempre bem tratado pelos mainatos. Por si própria se fez, sem o ouro metropolitano, saneados os pântanos que não dispensavam, tantos anos depois, a pulverização diária, impregnando, pelo cair da tarde, o ar dum cheiro repelente de fenotrina. Na generalidade, os seus habitantes tinham a franqueza nascida em terras transmontanas ou beirãs, e ofereciam, nas suas salas climatizadas, copos de uísque cheios de gelo com «chim! Chim!» de sorrisos. Os arruamentos, rectilíneos, cruzavam-se como se medidos em estirador de arquitecto, os poucos prédios em altura eram uma apressada resposta à multiplicação demográfica que a guerra gerara. Visitavam-na não só a flutuação militar ou os endinheirados do Malawi que atravessavam a fronteira de Milange como se fosse a Valença Moçambicana, mas, também, os senhores do cajú, do chá e do óleo de copra, abundantes nas plantações conquistadas ao mato. Na época das chuvas, com as picadas intransitáveis, impróprias para Nissans e Land-Rovers, quanto mais utilitários, a cidade recuperava a identidade. O aeroporto, longa fita de terra batida, metade asfaltada, que permitia a escala dos friendships da DETA ou os ronceiros Dakotas com a Cruz de Cristo pintada, dava-lhe um ar civilizado.
No mato circundante ficava a temba, caniço habitado pelo diminuto proletariado negro, macuas meios indeiscentes e mulatos de desconhecidas paternidades, que, no fim do trabalho, iludiam o descanso na aguardente de cana e batucavam espíritos entre o capim. As tarimbas, noite dentro, não tinham sossego, as mulheres entregando-se, contando moedas, à febre duma juventude que despia e vestia fardas como se despachasse um desassossego. Na cantina do branco, comiam-se pernas de caranguejo e bebiam-se bazukas à sobreposse, enquanto, no alpendre, corpos suados e ébrios, se agitavam diante do gira-discos das marrabentas. Era um lupanar ao relento com o cacimbo já colado aos corpos e às coisas, o suspiro da selva insinuando-se nas palhotas que escancaravam intimidades; um alcouce de misérias, ónus acusatório de um comportamento tiranizado, a ostentar as fraquezas como macropias de heroísmo.
O Silva, atarantado pela liberdade, longe dos buracos, das rações de combate e dos tiros, pedia sempre, pelo meio da manhã, um jeep que o levava à praia e o ia buscar ao anoitecer para encher a barriga de camarão, bife de impala e cerveja que o inebriava pelo silêncio da madrugada. Cantava, então, fados de Coimbra que o Capitão do Quadro, de mentalidade miliciana, aplaudia com tosse exagerada e um (des)concerto dos presentes. Numa dessas noites, de copos avançados, Silva atravessou-se:
- E agora – disse ele –, vamos encenar uma Serenata Monumental! O Largo da Sé Velha é um mar negro de capas, calmo e trágico. Calmo, porque precede a revolta; trágico, porque não a pode concretizar. Mas, malta! - exaltando-se - a hora está a chegar! A submissão não é eterna! Tudo acaba, até a infelicidade! Virá o dia em que brancos e pretos, as raças todas se abraçarão, e o Mundo há-de ser uma bebedeira de amor!
- Alferes Silva...– cortou, tolerante, o Capitão Velasco. – Está na hora de irmos dormir...
- Meu Capitão, o sono é a morte dos que não querem gritar a vida! Peço a todos – abarcando, com um movimento circular, os que assistiam, de desfrutados sorrisos, ao serão imprevisto - que levantem os braços, assim como eu estou a fazer, agitem as mãos como se tivessem capas, e berrem um grande eferreá pela esperança!
Uns melhor, outros pior, imitaram-no.
Depois, foi vê-lo e ouvi-lo, de olhos marejados, entoar a Samaritana, o corpo estremecendo num desespero angustiado.
A noite suspendeu-se de espanto. No lodo do rio, os crocodilos despertaram; no capim, cerce aos muros do quartel, ouviram-se restolhadas de bichos; as palmeiras da marginal agitaram-se em sussurros de brisas; a lua, virgem donzela, corou de lascívia; a escuridão desvendou ouvintes com dentes de neve; as lágrimas saltaram de emoção; os corações estoiraram contra os arames farpados; as picadas, para lá do asfalto, foram percorridas por asas de liberdade; nos terreiros do mato os tambores e as marimbas pararam de tocar; os babuínos, nos galhos das baobás, deixaram de latir; as jacarandás lilases ficaram rubras como as vagens das acácias; os duendes do melungo puseram-se, estupefactos, à escuta; os grilos encolheram as capas amarelas; as cigarras pararam o estrídulo e, na caserna, uma gelada desilusão adormeceu.
Silva antecipou, em dois dias, o regresso ao Planalto, aproveitando a boleia de um Alouette para Mueda, onde apanharia uma qualquer coluna para Miteda.
- Silvestre! – berrou-me. - Dá cá um abraço e continua-me com essa missão humanitária de consolar o mulherio solitário...
- Olha que a solidão é nossa, Silva...
Foi a penúltima vez que o vi, acenando-me, enquanto o helicóptero, como brinquedo de Feira Popular, se elevava. Passados poucos dias, pelos canais de informações militares, soube que o Silva ficara na Curva da Morte quando fazia o retorno a Miteda.
Revi-o, nos porões do Pátria, o nome escrito nas tábuas que encaixotavam o seu esquife. Ao lado ia o do Daniel.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
- Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.
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