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8/13/10

ESQUINA DO TEMPO

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Quando, vindo dos lados do mar, o sol rompe o nevoeiro de fumo da cidade e aquece a frontaria da Empresa em que trabalho, o cego do acordeão arma a sua cadeirinha diante da Casa das Lotarias e senta-se. Chega, pesado de solidão, do bairro da Bainharia, morador de um casebre a desfazer-se sob o olhar de Vímara Peres.

Os acordes de um vira, que se canta e dança para os lados de Viana, furam o barulho dos autocarros e das motorizadas, os claxons apressados dos automóveis e as asneiradas dos transeuntes. Toca bem o ceguinho, tem a sensibilidade no dobro do que lhe falta. É um artista que me suaviza o aborrecimento da rotina, a angústia das lembranças dos que, longe, vão gastando os dias na saudade dos ausentes. Forma-se uma roda para o ver tocar e há sempre quem, esquecendo o pudor, baile ao som da sua música. Os gestos ondulados com o bater ritmado do pé esquerdo a acompanhar os movimentos do fole, o balançar da cabeça de olhos virados para o céu e o trincar da língua a ajudar na execução da melodia, apegam-me à vida. Do alto do meu quinto andar falo com ele e digo-lhe: «Toca ceguinho das minhas tardes de chatice, faz-me esquecer as tristezas e dá-me a mão para continuar a amar e a perdoar. Anda!, refina-me essa chula que me leva aos tempos dos bagos dourados, aos lanches de malvasia com broa, aos Contos Bárbaros de João de Araújo Correia lidos à sombra de uma figueira no quintal da casa onde nasci, ao monte de S. Leonardo com os ecos dos meus berros a esmagarem-se nas fragas que tutelam o Douro e o Torga sem os ouvir. Toca ceguinho, és um irmão nas minhas horas de contas, papeis e telefonemas de aflitos, ar condicionado avariado, as mãos e os óculos e a camisa e o corpo suados e o olhar cansado em cima da secretária. Sou teu (ou és meu?) cúmplice da necessidade de lutar para que o sol não se vá embora sem um sorriso de agradecimento, para que o marketing empresarial continue a falar de produto acrescentado, de lucros, de cash flow, de investimento produtivo para que as setas dos gráficos demonstrativos de resultados subam sempre todos os meses, todos os trimestres, todos os semestres, todos os anos até que a morte apareça e tudo desça para a terra. Não conheces as cores dos carros, nem os contornos das esquinas, nem quem te deita as esmolas no chapéu virado no chão, nem quem te ouve calado O mar enrola na areia que a minha voz de criança tantas vezes entoou, nem quem te espera sempre que o sol vem dos lados do mar. Tu não me vês, mas os meus ouvido estão sempre à espera do bater da tua bengala metalizada no empedrado da rua e da tua música que me lembra o Socorro, os Remédios, a solidão colegial. Quem és tu, afinal? Que condição te fez assim, tocador das tardes de sol de Inverno, entretainer da barafunda do quarteirão citadino com dólares nas montras do câmbio, pasteis requentados nos balcões das confeitarias, o cheiro a óleo queimado, escritórios de paciência, igrejas de preces vespertinas e lágrimas a deslizarem em rugas de sofrimento ou de remorsos, comboios partindo com cansaços sentados em carruagens de segunda. Quem és tu, meu amigo, que tenho (provavelmente) uma cama melhor que a tua, uns olhos para verem coisas lindas e feias (meu Deus!, quantas!), um ordenado que, mesmo esticado, dá para te agradecer, no chapéu cinzento, o prazer de ouvir o teu acordeão do folclore da minha Pátria? Quem és tu, se não um igual, feito de carne e de sangue, cérebro que idealiza futuros, alma que pranteia o passado, mãos que agarram a esperança? Espera por mim. Hoje, quando chegar a hora da minha saída, vamos os dois à beira mar, de braço dado, sentir o sol que aquece a esquina do nosso tempo. Tu tocarás e eu cantarei até que ele vá dormir para o outro lado da terra.»
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro
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8/04/10

A ROGA

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Em Setembro despertava-se da moleza de Agosto. Os que haviam debandado para banhos regressavam com as preocupações recobradas e os que tinham ficado esqueciam as sestas. Os casais iniciavam os preparativos da novidade: consertavam-se os cestos e soldavam-se as latas fundeiras; lavavam-se os lagares e as prensas; varriam-se os quintais, mesmo sabendo que eles ficariam imundos em poucos dias; verificava-se o estado dos toneis depois do dessarro e da mechagem; oleavam-se as tesouras, areavamse os potes e arejavam-se os armazéns e os cardenhos.

Com a esfolha feita os lavradores vistoriavam as vinhas, afligiam-se com um ou outro podre, faziam figas aos agouros de chuvas temporãs - às vezes desejavam-nas perante a secura da polpa dos bagos -, escutavam os feitores, consensualizavam o início das vindimas e mandavam vir as Rogas que, ajustadas com o pessoal diário da terra, seriam os intérpretes da harmonia final de um solfejo tecido só Deus sabia com que receios.

Eram os serranos. Vinham das terras de Baião, ali na fronteira do maduro e do verde, ou das cercanias beirãs em que os migalhos de cepas se perdiam nos fraguedos sem benefício. Juntavam-se por afinidades familiares, de amizade, ou pelos empenhos aos rogadores. Desciam ao Douro certos de uma jorna aumentada com que cultivariam os seus bocados ou reporiam os gastos com as vestimentas das festas de Verão. Cantando e dançando a chula ou o malhão ao som das concertinas, dos bombos, dos ferrinhos, das harmónicas de boca e, em alguns casos, das violas braguesas, chegavam cansados mas alegres. Roga que não exibisse este instrumental não era roga, porém, um ajuntamento despersonalizado sem hipóteses de renovação assalariada, a não ser que, no ano seguinte, se incorporasse em outros grupos de merecimento. Enchiam as estradas e os caminhos rumo às Quintas, onde, durante longos dias, cortariam as uvas, transportando-as até os lagares que, depois, pisariam em noites de pousa, quantas vezes prolongadas em incubações urgentes.

Eu via-as a meio do Caminho Velho que dá de Remostias a S. Gonçalo. Traziam, penduradas nos bordões, as trouxas para acartarem os cestos, alguma roupa extra para maliciar em bailaricos e, nos rostos congestionados, um entusiasmo festivo. Alcançado o alto sobranceiro ao vale vinhateiro - a quem os antigos chamavam Poço do Vinho de Feitoria - que se estende até os muros do Peso, os homens e as mulheres da Roga cumprimentavam efusivamente os já conhecidos de vindimas anteriores. Os novatos, medrosos e rituais, de olhar esquivo, insinuavam-se no agrupamento até se igualarem na confraternização. Combinavam-se rodadas de quartilhos e enrubescidos bailaricos. Os patrões desciam as escadas que ligavam a cozinha ao terreiro, as reverências prodigalizavam-se no contágio da euforia, e havia quem distinguisse a dona da casa: «Vindo eu daqui tão longe/ Sem pôr os pés na calçada/ Venho dar os parabéns/ À senhora esposada.» O som da concertina e dos ferrinhos alegrava os corações que se esvaziavam de diferenças. Quando a noite se anunciava, a ceia retemperava esforços e espevitava vigores. O Feitor aconselhava o deitar cedo; os homens e as mulheres escolhiam os lugares em cardenhos separados, à mistura com pilhérias libidinosas.

O dia começava cedo com dejejum de bagaço, broa e uma lasca de bacalhuço; a meio da manhã, serviam-se batatas com sardinha de barrica. O retinir das tesouras, pelos anfiteatros do gigantesco Coliseu Duriense, confundia-se com as cantigas e os chistes. Todos, novos e velhos, isentavam-se de pudores, mas, não chegavam ao destempero. Os novos arquitectavam namoricos e muitos beijos se roubavam a coberto da folhagem dos bardos. Os velhos, de nostálgicas sensualidades, instigavam-nas como num remorso por tempos de pouco proveito... As mulheres cortavam os cachos com a preocupação de não deixarem respigo ou bagos pelo chão, e gritavam «cesta!» para que o rapaz mais próximo a levasse para os cestos vindimos. Os homens aproveitavam para descansar, limpavam o suor, esvaziavam o garrafão e fumavam um cigarro; quando a fiada se completava, punham as trouxas nos ombros que fixavam nas testas com tiras de couro ou pano de saco. Subiam dos côncavos profundos, desciam as encostas arriscadas, arrastavam-se pelas estradas de asfalto escaldante, poisando, a intervalos, os carregos nos muros, para prosseguirem, depois, ao compasso da concertina ou da gaita de beiços do primeiro da fila, até alijarem a carga, com bufos de alívio, nos lagares.

Terminado o trabalho do dia, as mulheres e os homens aperaltavam-se – mais elas do que eles -, misturavam-se aromas de perfume Tabu, os rostos recuperavam  serenidade. No fim da ceia juntavam-se os instrumentos, afinavam-se modas e dançava-se sob a luz mortiça. Acudiam aos portões trabalhadores de outras vindimas, pediam licença, o quinteiro transformava-se num palco de gente saltitante, requebrada, envolvente, com o malhão no corpo, a chula na alma, a satisfação nos olhos, o riso nos lábios, o fogo no sangue e a disputa concupiscente das raparigas mais bonitas.

O rogador (como me lembro!) era um tipo alto, pescoço de bisonte, ombros hercúleos, mas – contraste humilhante - , mancando desajeitadamente; quando andava, a sua perna direita parecia que enxotava cães que se lhe tivessem filado. Chegava-se à Micas, mulher de muitos homens, e berrava-lhe, julgando que cantava: «Ai anda cá ó cantadeira/ Vem p´ra minha beira/ Anda cá p’ró pé de mim/ Ai quando estás à minha beira/ Querida cantadeira/ Ai para mim é um jardim.» A Micas, de olhar malhadiço, respondia-lhe: «Já te ouvi querido cantador/ Estou agora a chegar/ Aqui estou à tua beira/ Ouve lá ó cantador/ P´ra contigo dançar.» Depois, num repente, descabreavam pelo meio dos outros, que se afastavam a entusiasmá-los com palmas, num vira e revira incrível. Ele agarrava-a, soltava-a, recuperava-a, sempre a abanar com a perna, e a Micas, agitada num riso de gralha, a deixar-se levar com o descaro da experiência. Acabada a música, ficavam à espera da seguinte, enlaçados, a arfar, de olhos desassossegados.

Quando as estrelas iam altas e a lua se pousava no Cume, o Feitor ordenava o recolher. Apagavam-se as luzes, fechavam-se os lagares e os portões, os cães ladravam, a gataria reatava o cio, os bêbedos esborrachavam-se contra as paredes, arremessando asneiradas e desafios de navalhas, a brisa de S. Pedro amaciava frémitos e o sono vinha pesado que, ao outro dia, a vindima e as cantigas continuavam.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
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7/22/10

TERESA

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Naquela manhã fria de Dezembro, um sol medroso espreitava pelas nuvens e as pessoas agradeciam folgando os agasalhos.

Encostado ao muro da morgue, eu via os carros a fazerem a curva dos trilhos dos antigos eléctricos. Em frente, no bem tratado jardim, uns patos pachorrentos grasnavam, satisfeitos, a aproveitarem as clareiras do céu, enquanto uns velhotes sumidos enganavam a reforma lendo as notícias dos crimes passionais e da necrologia. O hospital, velho convento do século passado, engolia doentes anunciados por esbaforidas sirenes que partiam, depois, silenciosas, cansadas de tanto berrar. Mais acima, pelas traseiras do quartel, entravam e saíam jipes com fardas.

A minha amiga Teresa, indefesa e inocente, era autopsiada ao mando da Lei. Uma pequena fila de carros funerários, enfeitados de cromados e interiores de púrpura, aguardavam vez numa postura de táxis. Uma morgue é um supermercado da morte de facturação consignada, com fingimentos dos compradores, como se os sentimentos se encenassem para melhorar o preço que a dor não discute, baralhada pelo espanto e as lágrimas.

Enquanto o sol vinha e ia, a minha memória remontava à meninice, àquelas tardes de sueca em casa da Teresa, com o Pai como parceiro, discussões sobre os ases, as manilhas e os riscos apontados numa mortalha com que ele fazia os cigarros de onça. A sesta semicerrava as portas do casario, mas nós passávamos o tempo nas algazarras das oportunidades dos trunfos. Quando o cansaço chegava, o Senhor Francisco – santo e honrado homem que fizera nome como feitor nos socalcos durienses – ia amainar as fúrias no sossego da sua cama, enquanto eu e a malta da escola íamos suar para o adro da capela da Senhora da Graça com cinco minutos a jogar a bola e outros cinco a procurá-la nas vinhas circundantes; ou, então, subir o monte de S. Pedro, cheios de praganas, à cata de grilos e dos ninhos de melros com sonhos de perdizes e coelhos à cintura em entradas triunfantes na aldeia como o Dr. Cândido.

Perto, alguém chorava, num gemido de desgosto, numa impotência revoltada incapaz de desarmar a irremediabilidade: uns olhos de criança tão vazios como uma estrela de madrugada de inverno, olhos de injustiça sem paga, de perda sem retorno.

Um auto-fúnebre movimentou-se e entrou, de traseira, no terreiro do Instituto de Medicina Legal. Um caixão negro veio lá de dentro, meteram-no naquele, tal uma qualquer carga, o viúvo, de luto carregado, sentou-se lateralmente e, no seu colo, a criança chorando uma saudade sem entender, ainda, o seu tamanho. Arrancou, e aí foi ele, para a confusão do trânsito, tentando recuperar a espera que a cova estava longe e devia ser tapada antes de o dia morrer. Tudo morre, os corpos, a esperança, a certeza, os dias, as noites. Morre tudo porque nasce.

O sol escondeu-se e o vento desarvorou pelas ruas. Uma ambulância, como um susto, afligiu a urgência hospitalar, os bombeiros, espavoridos, levaram a maca em correria, um deixou cair o barrete, outro gritou «deixem passar, por favor!», cabeças mórbidas debruçaram-se, curiosas das desgraças, e puseram-se a olhar umas para as outras a perguntarem por mais.

A minha amiga Teresa, cheia de vida e de trabalho, morreu-me no bocal do telefone naquele modo de dizer: «Sabes quem morreu? A Teresa! Nem sei bem como foi. O corpo sai amanhã do hospital.» Uma pessoa fica sem jeito, porque a morte não tem maneiras, sabe-se que ela existe, quase sempre nos outros, e, quando nos bate à porta, é como uma anormalidade que não se conta, uma realidade que não merecemos.

A meu lado há quem narre histórias de mortes violentas num consolo justificativo, numa desculpa de aceitação fatalista. Afasto-me para que o ruído da cidade impeça o escutar da morbidez.

Um gesto, uma paragem, o autocarro a chiar, depois a arrancar, levantando as folhas e os papeis do chão, as pessoas a segurarem-se para não se esmagarem. A Teresa, retalhada, lá se foi, os filhos sem Mãe, e o sol a fugir, e as lágrimas a caírem, e o vento a gemer, e o frio a gelar, e os lábios a tremerem, e o vazio da sua falta, e um buraco rectangular à espera no cemitério da freguesia. Para lá vai, transportada com pressa que os quilómetros são tantos e a Agência leva caro que se farta que a morte está pela hora da morte.

Gostava que morrer não fosse o fim da convivência, o arquivar da memória; não tivesse nada de prematuro ou inglório ou revoltado; que a felicidade se estendesse num tempo sem tempo - sem morte.

O carro que transporta a Teresa desapareceu por entre os renques do jardim onde os velhos fazem, agora, as palavras cruzadas; por entre a chaparia de insultos e vinganças de ultrapassagens em que as cidades se infernizam até ao choque final, até à morgue mais próxima.

Olhei para o alto e, cintilando-me nas lágrimas, o sol ia morrendo.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
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6/17/10

RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulos VIII, IX e X

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Capítulo VIII

Passa pouco das onze. O piloto de terra sobe para bordo. Uma invulgar fiada de espuma, fantasticamente nítida, separa as águas de estrias esverdeadas de outras esbranquiçadas com restos de sujidade espalhando-se aos baldões. Pretos pescam em almadias. O Niassa, depois de descrever uma curva prolongada para fugir dos areais, acosta, empuxado suavemente pela bossa do Maputo, entre o Osaca e o Mar Felice. Familiares, aqui radicados, acenam. Rondas da PM guarnecem o cais. A fanfarra, de predominância negra, toca marchas militares. O pessoal excita-se. A televisão filma para se ver lá no puto. Fotógrafos sobem a guindastes. Arribam fardas da Marinha e do Exército para recepcionarem a carga... Formámos à parte dos fuzileiros que tinham embarcado em Luanda. Arrancámos com um caixa a marcar a cadência. Lá vamos, não cantando e rindo, mas em silêncio garboso, como convém: «Temos que marchar com garra!», dissera-nos o Comandante. Os edifícios são airosos, de traça coeva. Uma pequena multidão negra, branca, mestiça, monhé, china, ao longo dos passeios, observa com cara acostumada. Chega-se à Praça com um garboso Mouzinho de Albuquerque empoleirado num soberbo cavalo. Em frente, a Câmara; à direita, a Catedral de torre pontiaguda, clamando ao Alto; à esquerda, prédios com reclamos de bebidas. Toques de sentido à medida que chegam Mercedes. Ouve-se o hino do Exército. Uma volúpia patriótica aumenta-me o suor. Do cimo da varanda municipal, o General-Chefe tange as cordas do incitamento. No fim, os acordes da Portuguesa, ecoando na amplidão da praça, quase me tolhem. O regresso ao barco faz-se - não me parece encenação - por entre vivas a Portugal.

Eram seis horas quando fui chamado ao Comando para receber e distribuir o correio. Terminei o meu turno de serviço pelas vinte e uma.

Saí com os Furriéis do meu pelotão, trocamos umas notas, nuns mexeriqueiros das imediações portuárias, e fomos em busca de uma cervejaria beber umas bazukas acompanhadas de pratinhos de camarão. O trânsito pela esquerda confunde-me. A Rua Araújo abarrota, satisfazem-se todas as sedes.

Recolho pelas duas da manhã. Trabalhadores, formigas no fundo do porão, colocam caixotes nas prateleiras dos guindastes. A iluminação, que do cais se prolonga cidade fora, dilui-se na morrinha do cacimbo.

Capítulo IX

É o último dia em Lourenço Marques. O barco continua a carregar. Entra tudo, cunhetes de munições e até Unimogs. Quebranta-me uma exalação húmida. Vai ser bonito habituar-me a isto. Vamos dar uma volta pela cidade, sem afastamentos, como quem tacteia, timidamente, o desconhecido. Nem parece que há guerra em Moçambique. Um bulício cosmopolita, esplanadas a abarrotar, lojas movimentadas, consumismo no ar, carros e carrinhas nipónicas, de modelos caros, em trânsito incessante; vivendas rodeadas de jardins, algumas escondidas por muros onde assoma arborização tropical; raparigas, minimamente vestidas, alegres e tostadas; senhoras brancas empurrando carrinhos de rebentos, senhoras pretas levando-os às costas, mistura de raças sem lugares marcados, muitas indianas, de sinal na testa, limpando o chão com as suas compridas e floridas vestimentas; prédios em construção com andaimes aligeirados e os machimbombos, cheios de algazarra, cruzam-se nas amplas avenidas.

Vedadas as saídas, até à hora da largada, entretenho-me, no bar, a ouvir mais um concerto da Orquestra Cotrim, três gastos mas respeitáveis músicos que ganham a vida, enganando a velhice nestas andanças, a entreter contingentes. Afastado da solfa, ao fundo, à volta de uma mesa de pano verde, arrumadas as cartas e os dados, um grupo de milicianos escuta o capitão Silvino que vai comandar um Esquadrão de Reconhecimento na sua terceira comissão. Tem olhos avermelhados, o indicador e o médio da mão direita amarelados, peito cheio, braços ginasticados, voz grossa e tiques de Cavalaria. Fala com fatuidade, beberricando, nas pausas, em goles de experimentado. Conta peripécias dos Dembos angolanos e das bolanhas guineenses, percebe-se que recria factos a seu jeito, adora a iconografia militarista e não descura um certo devaneio imaginário.

O Comandante de Bandeira convida um grupo de Alferes para a sua mesa de jantar e custa-me fazer sala e exercitar etiqueta.

Pelas cinco da manhã, o Niassa, com um grunhido de fera, levanta ferro. O Maputo ajuda o desencorar, ouvem-se duas sinetadas, depois aparta-se. Alguns embarcados, mais resistentes, acenam para o cais e renovam-se promessas de correio. As luzes da marginal encolhem-se sob a neblina.

O mar do Canal de Moçambique não provoca balanço. O Índico, com costa à vista, tem uma tonalidade de azul turquesa. Passa-se ao largo de Inhambane. O barco vai carregadíssimo. Ficaram os fuzileiros, mas vão homens da guarnição provincial. Os convés abarrotam de viaturas, um ar de tralha, balbúrdia de mudança breve. O calor aperta. Nada-se em suor. Cada um já sabe, mais ou menos, para onde vai. Procuram-se os tarimbados, os chicos na linguagem miliciana, em busca de conselhos ou de enganos  para disfarçar receios. Os mapas do Norte saltam de mãos em mãos. Há um indisfarçável nervosismo que se percebe nos rostos, nos gestos, nos mutismos, nos isolamentos, nas altercações pueris, no abuso do álcool.

Sento-me numa cadeira de lona, contento-me com a aragem que amacia a baforada, fumo um LM num depurado prazer, alheio-me da desordem em redor e monologo como quem necessita de acertar contas consigo próprio. O turbilhão, cá dentro, não tem sossego, remoinho da minha impotência. De cada vez que venho à superfície, tomo noção – numa brevidade aflita – de que não me quero afundar na desistência, que devo lutar pela vida, nem que grite por socorro, nem que renove a Deus – com medo de que alguma vez não me tenha acreditado - juras de fidelidade eterna em troca da salvação, nem que grite pela minha Mãe para me deitar os seus braços umbilicais. Construo a armadura invisível para me defender da contrariedade do que sinto e penso, infante dócil às ordens de espadas cintilantes, impossibilitado de lhes fugir, porque quando os soberanos que as usam se auto-nomeiam e prolongam a vida – há quem os suponha eternos – os fugitivos são sempre apanhados, na esquina de um retorno que a carência de um afastamento livre compele, por um castigo dobrado. Sou filho de uma conjuntura sobrevinda numa época de mitómanos ideológicos, podendo ter nascido antes ou depois deles, ou nem ter nascido, ou ter nascido outro, longe (desconhecedor) desta história, como se o acaso, que me mandou ir às sortes, fosse transferível para uma definitiva impossibilidade, pura e simplesmente a inexistência... Uso a realidade para amanhã – se a tiver - requerer a paga, o equilíbrio - nunca equivalente, mas, ao menos, não ingrato ou omisso - entre o despojamento dos sonhos e os riscos forçados. Sem heroísmos e sem fugas, cumpro a sina de uma cigana que, uma noite, numa barraca da Feira Popular do Porto, disse perante a palma da minha mão: «Está aqui escrito que há-de atravessar águas do mar...» Mas porquê e para quê? Uma cigana, mesmo bruxa, não sabe tudo.

Anda, então, arcaico paquete, caravela de novos forçados, galga-me este mar que tenho pressa de regressar à minha utopia de liberdade.

Capítulo X

A selva, pelas quatro da tarde, emerge luxuriante, debruando a enseada de Nacala, duas meias luas como asas de um quiróptero fossilizado. As bagagens amontoam-se nos tombadilhos e os militares, sentados nelas, lembram rafeiros guardando a ração.

- Agora é a sério! – berra um Capitão de olhar malinado.
- Não comece já a meter medo, meu Capitão! Olhe que os cus não têm galões! – retorque, matreiro e com o à vontade de muitos copos, o Marques, conhecido, na oralidade de bordo, pelo Alferes Pinguinhas.

Ameniza-se o nervoso da espera combinando SPMS com os que não desembarcam por seguirem para Porto Amélia e Mocímboa. A chaminé de uma fábrica de cimento («É do Champas!» - dizem alguns) parece um vulcão iluminando a noite que tombou abruptamente. A humidade elanguesce, os barulhos ecoam numa calma de laguna. Um jeep desce veloz para o Cais, deixando para trás nuvens de pó vermelho. Dois ombros estrelados apeiam-se, batem-se continências, o Brigadeiro sobe. Reúne-se na Sala de Jantar com a Oficialidade, debita boas vindas, frases feitas de entusiasmo, após o que inicia os cumprimentos. Ouve-se um rumor de sobressalto, mal compreendido, duas ou três fardas que se afastam, puxando um corpo em convulsões: o Pimentel começara a bater com as botas no chão e uma espuma epiléptica a babá-lo. Os que se aperceberam, disfarçaram, envoltos num espanto depressa devorado pela excitação, como quem abafa um insólito.

Espera-nos um comboio de museu. Por entre corridas e berros, junto o meu pessoal, com todos os pertences, numa Berliet a desfazer-se, e acomodamo-nos, depois de transposta a vereda, numa carruagem com tábuas e cobertores. Em frente, já mais distante, o navio continua a largar carga e homens. Há uma pressa de despacho, luta-se por lugares como se uns fossem melhores do que outros. De algumas casas de alvenaria, que se pensa serem de encarregados da fábrica, há olhos curiosos; nos terreiros das palhotas envolventes fogueiras cozem a mandioca do sustento. Ouve-se um apito. Lanço um adeus derradeiro, numa emoção de fim, ao Niassa e às fardas debruçadas. Voltaremos a ver-nos? Quantos de nós irão, feitos soldadinhos de chumbo ou vivos desarreigados, para o outro lado do mar? Levar-me-ás, velho Niassa, de regresso ao chão de onde sou, onde brinquei e amei e me julgo com direito a morrer? Para onde me leva o destino, essa negação da ousadia, como se a causalidade fosse marcada ao nascer e tudo nela se justificasse, mesmo um mando de estupidez? O esticão do comboio devolve-me à terra. A malta aligeira-se e prepara-se para esquecer no sono as impressões recentes. Pelas janelas vêem-se viaturas escaqueiradas como relíquias de desastres. Um silvo agudo acorda os necrófagos da noite africana.
FIM

- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.

6/14/10

RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulos V, VI e VII

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Capítulo I;
Capítulos II, III e IV;
Capítulo V

Afinal, largámos às seis. Levantei-me do beliche - não resisti à despedida - e pude assistir à entrada do Vera Cruz apinhado de fardas. Estava ali a imagem da geração sacrificada de um povo em ebulição, sem demandas das Índias, guerreando, agora, emancipações de outros impérios, cruzando os mares, cumprindo insistênciasditatoriais em nome de uma grandeza que as ideologias circundavam. Uma juventude a quem calhou a sorte de viver este tempo, de enterrar mortos e confortar feridos, encolher servidões mas vangloriar-se de não ter fugido – algum orgulho resistia à resignação -, sofrer anátemas históricos recusando julgamentos, imolada nos altares das hagiografias profanas sem culpas promissórias, iludida por utopias.

Depois do almoço, arrasado pelo calor e pelos nervos, o sono desligou-me de tudo, acordando com o aviso do torneio de tiro ao alvo.

Navega-se não muito afastado da costa. O céu tem a coloração do chumbo, o mar a do zinco. Adivinha-se chuva. As águas riscam-se de grossos debuxos em paralelas curvas e contra-curvas, confluindo alguns. A maresia é intensa. Escurece cada vez mais. Uma recta gigante separa as nuvens do horizonte, formando uma linda fita azul, igual às que as meninas usam para segurar as tranças. Há camaradas que, finalmente, se começam a levantar, de olhos inchados e lábios de palha. Queixam-se de dores de cabeça.

Afinal não choveu. O oceano mexe-se muito. O navio está mais inclinado para bombordo. Passou as horas, em Luanda, a carregar. Dizem os entendidos que a carga foi mal distribuída. A sopa, na sala de jantar, ondula nos pratos e, ao andar, temos que descair para estibordo. Tenho medo que esta merda vire. De um portátil, abandonado numa pérgula, a Rádio Lobito transmite fados de Coimbra. Apetece-me gritar, as lágrimas estoiram e, no negrume, fumo cigarros ao ritmo daquelas. O barco, da proa à ré, balança sem intermitências. Tremuras prolongadas percorrem-no como se se fosse partir todo, moribundo no estertor final. Recolho-me ao camarote. Contemplo o Oceano da escotilha. A ondulação assusta, cheia de força, castelos de espuma na crista, fazendo e desfazendo-se numa feroz luta de vagas que cavalgam assustadoras até estrondearem no casco, raivosas por este lhes impedir o prolongamento do tropel. Amainam, por breves segundos, em rodopio coleante, todas eriçadas, a aprestar o assalto, emitem o silvo de uma serpente, e aí vêm elas, loucas, histéricas, direitas ao meu respeito, vergastar o vidro do óculo por onde as contemplo. O vento varre os decks, insinua-se nos corredores e escadas interiores; há portas que se abrem e se fecham como num filme de terror; os ferros das camas rangem; o camarada do beliche direito lança uma imprecação, olha-me aterrado, «e se esta porcaria vai ao fundo?!», pede-me um cigarro, «por que não me raspei disto?!»; parece que o Niassa não sai do mesmo sítio, vai à frente e volta atrás, afocinha quando os pés da cama descem, ergue-se quando a cabeceira escorrega.Zonzo, de receios contraídos, adormeço, imaginando o Bartolomeu Dias, numa casca de noz, a dobrar este Cabo.
 
Capítulo VI
 
A manhã surge luminosa, o mar esverdeado, quase parado, num oposto surpreendente à tempestade de véspera. Para Lourenço Marques faltam 1397 milhas.
 
O dia corre monótono, as conversas esgotam-se; há quem leia bastante ou se arraste pelos tombadilhos; nos bares, jogam-se suecas e kings, rilham-se batatas fritase bebem-se coca-colas; engolem-se aspirinas de ressacas, olhares no vazio da lonjura, sem uma palavra, bocas cerradas e serradas por uma atormentada (in)capacidade de ir ali; alguns embrulham-se em desvanecimentos, ajanotando-se nos camuflados, dando-lhes um uso constante para os desgomarem, ansiosos por acção.
 
Uma e meia da manhã; inicio a minha ronda de serviço. Vou à ponte. A lumieira do cigarro do vigia, avivada de cada vez que vai à boca, conforta-me. Alguém vela pelo rumo deste mastodonte. A chaminé, preta e bojuda, expele espessas fumaradas rapidamente levadas pelo vento gelado; o som matraqueado dos motores, audível pelas clara-bóias levantadas da casa das máquinas, indicia o máximo da velocidade; as bocas de alguns soldados, abertas e rociadas, dormindo ao relento para fugirem do abafamento dos seus casulos, dão uma estranha sensação de desprezo humano; os mais persistentes ressonam em camas coladas umas às outras, no meio de tábuas, malas, botas, fardas e uma repulsiva pestilência de urina, suor e tintas; nos canis, os quadrúpedes mexem-se inquietos, nervosos, e um fura a noite com uivos tristes, desfazendo nas ondas o eco do cio. Vou, depois, à proa; comungo dos gemidos do vento, com o abaixo-acima daquela, o marulho da imensidão oceânica, o mar-mundo, a noite-saudade, o horizonte-ânsia; debruço-me para ver a quilha rasgando as águas num permanente acento circunflexo de espuma doirado pelo luar. O céu, sem uma mancha de pecado, e a lua, metálica, recitam poemas de inocência; as estrelas, de vidro, dão um ambiente de cabaret a esta noite que não é minha. Olho para longe, para bem longe, a ver se algo diferente me surge, e nada, só uma vertigem de vazio. “E se o barco fosse mesmo ao fundo? O que é um gigante para o gigantesco? Ao fim e ao cabo, o mar brinca com estas toneladas todas, se lhe dá na irracionalidade eleva-as, volteia-as quantas vezes quiser e manda-nos todos a correr para os botes que não vão valer de nada; ficaríamos para a história colados nas profundezas”, penso, enquanto tusso cheio de tabaco. Os decks são parlatório de sonos desencontrados; das amuradas, corpos debruçam-se de olhos fitos na babugem que se preme contra o aço. Passa o sereno, feito guarda-nocturno do silêncio, enquanto o leme automático faz o bingo das milhas do dia seguinte. Coam-se as minhas lembranças remedidas no tempo: aquele seco edital, afixado na porta da mercearia onde em criança comprava cartuchos de rebuçados, a convocar-me para Mafra, arrancando-me de Coimbra como um dente a sangue frio; aquela chegada de Janeiro, sob um temporal desfeito que mal dava para descortinar o Convento, a entrada por uma porta lateral onde choquei com armas ensarilhadas num bivaqu interior, as redes de camuflagem, o bolor dos corredores transformados em catacumbas de martírios antigos repetidos, o cheiro a mofo das casernas se desabitadas há séculos estivessem, a luz minguada das lâmpadas escurecidas, o engraxar, com cuspe, das botas e dos polainitos, os cabelos à escovinha, o rastejar sob o arame farpado, os saltos para o galho, o equilibrismo do pórtico, a dança de gatos nas cordas sobre a Lagoa, os tiros nos alvos em carreira, o rebolar nas escadarias, as emboscadas na Tapada, os crosses para a Ericeira, os dias e as noites das cercanias torrejanas, acartando, às costas, um transmissor rádio, de castigo por singelos falares caprichosamente interditados, até o Capitão-castigador, num clarão de remorso, me mandar pousar o fardo no jeep.
 
Ao longe, muito longe, diviso uma luz. Será um barco ou algum ponto da costa sul africana?
 
Capítulo VII
 
O Chefe de Mesa, mal me sento para almoçar, entrega-me um rádiotelegrama: a minha Mãe continuava a rezar por mim. Levanto-me e vou encher o mar. O Capelão, aparecendo não sei de onde, abraça-me e convida-me para a sua mesa. Se há Padres abençoados este é um deles. O Padre João ensinou-me que maisimportante do que aquilo que se diz é o que se ouve. Passamos a tarde a discutir Deus e a Fé. Se necessitasse de conversão, converso ficava.
 
Navegamos com a costa da África do Sul à vista. Aquela luzinha que ontem vira era já um indício dela. Um avião, em reconhecimento, sobrevoou-nos por pouco tempo. Escurece. East London, já iluminada, franqueia-se por entre a poalha. Um farol manda avisos sucessivos, desenhando cones de luz. Pontos brilhantes, como velinhas alinhadas, idealizam uma extensa marginal; os binóculos passam de mão em mão e podem-se ver os faróis dos carros.
 
Venho para a Turística onde funciona a Secretaria Militar. Sento-me a uma mesa e escrevo um maço de aerogramas. O Niassa parece um balancé. Os pratos no comedor retinem como grilos em noite de Verão; as cadeiras giratórias fazem cento e oitenta graus porque, fixas no meio, não podem fazer trezentos e sessenta; caem papéis e furadores e esferográficas e livros de registos (as máquinas de escrever estão pousadas no chão) e cinzeiros e óculos e... O sereno desabafa e historia:
 
- Há trinta e sete anos que ando no mar e, em vez de me darem a reforma que mereço, puseram-me de sereno. Veja só: sereno! - pronunciando a palavra com desdém, enquanto tirava um Português Suave. - Passei neste Niassa temporais medonhos! Olhe, numa ocasião, em Leixões, estivemos três dias a apanhar nas trombas que foi um disparate! As vagas batiam neste costado – apontando as vigias – que pareciam fragas! Foi num Carnaval, veja bem o carnaval que nos deram! Sem passageiros, com apenas vinte toneladas de melaço no porão, isto era um brinquedo! Não entrámos na doca nem por nada. O Pátria e o Império foram, como tiros, para Vigo e nós, ali, a apanharmos porrada! Conseguimos virar para Lisboa, mas, por azar, a barra estava fechada. Navegámos a Sesimbra, demos a volta, e conseguimos apanhar mar e vento a favor. Foi o que nos safou, porque, quando não, tínhamos ido para o charco nesses dias. Quando fomos a dar conta, estávamos em Belém – gargalhando – com as máquinas paradas. Depois, um rebocador lá nos levou sãos e salvos. O quê?! Temporal aquilo?! O que nós apanhámos no Cabo foi um mar normalíssimo. (Não sei se ele notou o meu espanto). Isto, quando agarra mesmo temporal, parece um submarino! O que mais pedia, quando saímos de Lisboa, era que, no Cabo, estivesse o mar que esteve. Olha!, olha!, se visse em Leixões! Estas cadeiras e estas mesas escaqueiraram-se contra estas paredes como ovos! Sabe lá...
 
Levanta-se para ir à cozinha escorar a copa. O sereno, encaixado nos seus sessenta e sete anos de vida e trinta e sete de mar, senta-se de novo. Deixo-o no seu trabalho de numerar os cartões dos beliches. Fecho a porta, ele começa a assobiar.
 
Durban desponta de madrugada. Ao começo, umas luzes dispersas e envergonhadas, depois, clarões alaranjados de fábricas enormes. Uma cordilheira emerge e um farol (há imensos ao longo da costa Sul Africana), incansável, silva. Percorreram-se, a uma velocidade de 14,4 nós, nas últimas 24 horas, 346 milhas. Lourenço Marques estava a 39.
Continua...

- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.

6/09/10

RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulos II, III e IV

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Capítulo I
Capítulo II

Eram nove horas quando passámos as Canárias. Foi o primeiro sinal de terra depois de Lisboa: sombras longínquas emergindo na imensidão, ponteadas por silhuetas de casario, rapidamente engolidas pela fita do horizonte.

Regressámos, após o aturdimento, aos lugares de rotina, aos cigarros, aos livros, às conversas do mais-valia-estares-calado, à modorrice das cadeiras de lona, ao anedotário forçado, à cegueira do mar.

Gastam-se, nos bares, os escudos em pulseiras, isqueiros, mas, principalmente, em muita cerveja.

O Pimentel, meio careca, olhos encovados, nariz de periquito, lábios talhados a navalha, queixo caindo desajeitadamente, falar nervoso, empurrando constantemente os óculos para cima, manifesta a sua nevrose ulceróide.

- Esta comida mata-me. Trago uma tonelada de medicamentos, mas não me vão valer um corno. Só a leite não me safo.
- Admira-me como estás aqui.
- Não tive empenhos de ninguém. No hospital da Estrela disseram-me que a tropa cura tudo. Nem a uma Junta Médica me propuseram. Chegando lá, vou direitinho para o hospital. Nem que me faça de doido.

Majores e Capitães discutem, em grupo, a fazerem horas para a segunda mesa que é às dezanove e trinta. Distingo pequeninas luzes, pirilampos sobre o mar. Estamos a entrar no golfo da Guiné, o calor é sufocante. A nossa posição está afixada no átrio da primeira classe: latitude – 27 06º norte; longitude – 15 21º oeste; distância percorrida em 24 horas – 377 milhas; a navegar – 3339 milhas; velocidade – 15,7 nós.

Hoje há cinema. O écran é um pano branco preso ao mastro da ré, onde o Kirk Douglas vence leões perante o ar desolado de um deprimente Calígula.

Visito a casa das máquinas: seis cilindros trabalham incessantemente, os êmbolos sobem e descem em tão impressionante velocidade que os julgamos parados; um moço guedelhudo, com óleo a brilhar em todo o corpo, é incansável na limpeza, fazendo rodopiar o desperdício. Umas escadas abaixo, o circuito emaranhado de tubos não deixa perceber o princípio e o fim daquilo. Peço uma explicação a um homem de meia idade, responde-me seco e rápido, mal o escutando no meio daquele barulho gigantesco. Ofereço-lhe o ouvido e vira-me as costas. Não entendo como ele compreendeu a minha pergunta. A certeza de que, onde estou, já é dentro de água, sufoca-me. Fujo cá para cima. Na proa, deixo-me vergastar pelo vento e pelas gotículas de espuma que se elevam do refluxo das vagas.

Capítulo III

A vaga larga deixou-nos, regressaram as ondas pequenas como bichos carpinteiros. Aparecem, por onde passo, manchas de vómitos que dão uma imagem de náusea, de ruínas, de vida destoante, de apetites estragados. A enfermaria já tem doentes e os médicos que vão a bordo dão consultas em qualquer ponto de encontro. O calor aperta mais, abafa num cheiro de mistura de suor, restos de comida e pestilência latrinária que umas breves bátegas graúdas não desfizeram, pois o sol, escaldante, seca tudo mais depressa do que demora a dizer.

O barco está a andar menos; o mar, mais cavado, não ajuda; a ventania sopra forte de caras à proa; as ondas, arredadas para os lados, sobem mais que o normal. Quem estiver na vante, suportando o terrível balanço, e olhar para a torre de comando, vê-a desaparecer e aparecer num movimento de mandíbula gigante. Peixes voadores, em volúvel desafio, acompanham-nos durante algum tempo. O céu, sem princípio nem fim, de uma chocante amplidão, reduz-nos a um ínfimo incontrariável; a lua, de um limpo imaculado e definível, consente-nos um deslumbramento; as estrelas, débeis e humildes, ameaçam apagar-se à mais pequena aragem, embora tenham um brilho de gelo.

Passei no hospital, em cuja morgue o corpo de um velho tripulante – de coração gasto por tantas viagens - aguarda a chegada a Luanda para depois regressar ao chão da sua origem. Nos porões, os soldados são obrigados a dormir nus para melhor resistirem ao calor que nem uns tubos de pano enfunados conseguem amaciar.

Atravessou-se o Equador às quatro da manhã com o barco envolto no sono, sem as costumeiras festas comemorativas. Ainda bem, detesto alegrias preparadas e bebedeiras gratuitas. Não durmo. Estou recostado numa cadeira do deck-A, olhando a escuridão uivante, os salpicos do mar a caírem-me aos pés, uma desumanidade sinistra. O baloiçar lembra-me um carro numa estrada de lombas, a proa e a popa jogam o tu-cá tu-lá, ora é esta a levantar e aquela a afocinhar ou vice – versa. Aqui vou eu, neste túmulo enorme, numa submissão compressora, só mar e céu, longe de tudo, dos meus, dos afectos, das fragrâncias dos vinhedos, do suor dos cavadores, do ar suspenso no cair do dia, dos ecos dos remoques, do ladrar dos cães aos ébrios da noite.

As ondas vergastam o casco, entoam como murros de raiva, metem medo; o vento, de leste, nem deixa acender um cigarro. Recolho-me ao beliche com a preocupação de não acordar o parceiro do lado.

Capitulo IV

Informam-nos que já se passara S. Tomé e Príncipe sem avistar vivalma.

A nossa posição: latitude – 08 22º Sul; longitude – 12 40º Este; distância navegada nas últimas 23 horas (resultante do adiantamento de uma): 344 milhas; velocidade: 15 nós; a navegar (até Luanda): 46 milhas.

Na noite anterior, quando dávamos mais uma volta aos ponteiros dos relógios, vimos, a uma alegre distância, os holofotes da fragata que nos começou a escoltar. Os seus sinais de luzes foram correspondidos com uma algazarra que mais parecia um grito de libertação. A ansiedade tomou conta de todos e o resto da noite foi um prolongamento daquela.

Ao meio-dia arrearam a escada do portaló. Há um frémito de emoção. Na lonjura, uma mancha escura surge por entre uma neblina refractada. A orquestra de bordo toca. Os bares não têm descanso: pedem-se martinis e cubas libres atulhados de gelo, bebem-se as cervejas pelo gargalo, há muitas asas e muitos grãos, berros avulsos de nervosismo. Penduram-se, ao pescoço, máquinas vulgares e outras sofisticadas, lembram-se parentescos a viver em Luanda e arquitectam-se barrigadas de camarão. A fragata apita, corre paralela, deixa-se retardar, os marinheiros perfilam-se e acenam com os bonés. Um prazer de companheirismo flutua no mar. Vamo-nos aproximando de Luanda. O Niassa tem os varandins repletos, nem uma nesga por onde os atrasados possam espreitar. Dois gasolinas, um cheio de raparigas esplendorosas, outro com um careca de barriga inchada, aceleram e afastam-se. A lancha dos pilotos esfaqueia as águas. Ouve-se, distintamente, a desaceleração do navio. A escada desce, ainda mais, quase roçando as águas. O Comissário, na plataforma da ponte, de rádio na mão, transmite instruções, recebe o piloto que guiará o barco até à acostagem. Dois rebocadores, o Quitexe e o Bero, contornamnos e colocam-se a bombordo. O piloto, na torre de comando, dá àqueles, por intercomunicador, ordens de marinhagem. O Quitexe dirige-se, então, para a popalado-bombordo e encosta, suavemente, a bossa. O Bero, por sua vez, apressa os motores, lançando uma fumarada espessa, dirige-se para a frente da proa, dois negros atam o cabo à amura, e aquele afasta-se, esbaforido, como se receasse ser esmagado pelo Niassa. O Quitexe, esse, continua, na ré, a empurrar, comprimindo a bossa contra o costado.

Entre os militares, a bordo, e algumas pessoas que estão no cais, iniciam-se reconhecimentos recíprocos; é uma confusão sem domínio, parece que tudo acabou aqui. A amarração está feita. Rondas de polícias militares, garbosos, de camuflados passados a ferro e lencinhos ao pescoço, erectos e peneirentos, fazem a segurança na zona do paredão. Começa a descida, os cartões de autorização amarrotados nas mãos.

Percorro a meia lua da marginal de lindas palmeiras. À sombra destas alinham-se bancos para saborear a brisa. Gozo, ao fim de tantos dias, o caminhar sobre a terra, meio tonto, desabituado, lançando, em redor, os olhos esfomeados. Não há um táxi; continuo a pé. Observo os prédios airosos, geométricos e alinhados; carros descapotáveis no passeio domingueiro, cabelos ao vento como se quisessem despegar-se das cabeças. Não é possível! Onde está a guerra? Nos sinais: jeeps cheios de camuflados e G-3 cruzam-se no à vontade de terra vigiada, olham-nos trocistas, com aquele ar superior de velhice guerreira.

- Leve-nos à baixa – todas as cidades têm uma baixa -, peço ao condutor, finalmente conseguido, um mulato corpulento que sorri à solicitação.

Quinze angolares saldam a corrida. Entrámos, eu e os meus acompanhantes, num restaurante com nome transmontano. O empregado que nos atendeu, quando soube de onde éramos, confessou-se:

- Vim para cá em 63, estive no Norte, e, quando estava para embarcar, resolvi ficar. Gosto disto, mas já tenho – pondo a mão no peito- um aperto aqui. Talvez vá lá no Natal.

Pagamos a conta e despedimo-nos. Em novo táxi, fomos para a Ilha: barracas, numeradas a cal, ladeiam a estrada da restinga; velhos, de barbicha branca, defumam a idade; na areia, sob a chapada do sol, crianças brincam com pneus lisos; nas esplanadas, barbecus domingueiros incendeiam o ar com aromas de churrascos; trinca-se, na espera, marisco acompanhado com uísques e cervejas geladas num deguste vagaroso; vivendas luxuosas, com espampanantes carros à porta, dão um tom de capitalismo ávido, a que não falta o moleque de uniforme branco; nas ruas, alcatroadas ou de terra batida, gingam negras de filhos às costas e sorrisos de neve.

Regressei ao Centro do trânsito caótico. Fui aos Correios mandar um telegrama para casa, olhei a Fortaleza, não dava para lá ir, imaginei os caminhos do Grafanil, lugar lendário da tropa, e dirigi-me para o morro dos musseques onde havia zaragatas no ar, procuras de sexo, olhares suspeitos, correrias persecutórias, odores intensos de catinga e petróleo queimado, uma viração deletéria.

O Niassa desamarraria pelas duas da madrugada. Relanço um último olhar a Luanda, aos seus lambrequins arquitectónicos em que, diante de uma baía serena como um lago, se misturam as origens lusas e as raízes naturais numa garridice cativante.

Subi para o barco numa desilusão de fim de festa. Ainda vi meter o caixão, com o tripulante falecido, num Land-Rover com as cores e o nome da companhia de navegação a que pertence o Niassa. Fui-me deitar, não querendo, sequer, escutar o urro que o barco dá ao partir.
Continua...

- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.

6/04/10

RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulo I

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Capítulo I

Aqui estou, estranhamente sereno, no meu camuflado ainda de goma, quase plástico, com galões dourados a simularem-me o indulto da contrariedade, esperando a chegada de um velho General que se levantou tarde ou se esqueceu de mais um embarque para despachar. Aqui estou cheio de sono, com a noite anterior passada a beber cervejas e a apalpar mulheres, Lisbon by night, as meretrizes da Avenida, a pancada do Cais do Sodré, os Cafés do Chiado cheios de fumo das conspirações escancaradas para a Pide se entreter, as chagas prostituídas do Intendente, o Tejo sem os meninos do Soeiro Pereira Gomes ou os Gaibéus do Alves Redol; em S. Bento a teimosia guardada de um ditador e, sob a ponte com o seu nome, nem um barco de liberdade. Berrei, naquelas horas, a tentativa do esquecimento. Coimbra estava longe e, pressentiu-se-me, irremediavelmente perdida; as serenatas uma saudade de alma a sangrar. Coimbra parara num guarda-vestidos da velha casa onde nasci com uma capa negra à minha espera. Os livros na estante do meu quarto, vazio durante dois anos, resistiriam à humidade de dois invernos porque havia sempre dois verões para os secar. Minha Mãe frequentaria a Igreja com a devoção redobrada, de preto vestida como um luto de morta-viva, sem sorriso, os olhos de vermelho escuro. As flores, na Primavera, desabrochariam sem a satisfação do meu olhar e o jardim cresceria à medida da minha ausência. A aldeia não me veria a cara, os caminhos e as ervas dos vinhedos não sentiriam os meus passos, a luz continuaria a faltar, a água seria promessa renovada, a fome espreitaria alguns lares pobres, os meninos deles brincariam descalços e o meu Avô continuaria lá adiante, no Espírito Santo, à minha espera.

Saí cedo do quartel, os Unimogues e as Berlietes a esmurrarem os olhos da noite, repletas de caixotes, sacos e homens-crianças de estômagos enfartados de pão e leite misturado com mentol. A cidade, uma sombra enorme: grupos de operários, de marmitas nas mãos, a dirigirem-se para a cintura das chaminés gigantes que nunca paravam de vomitar labaredas como vulcões em ressaca; Vila Franca lá atrás, tapada pela Siderurgia e perdida na lezíria; na auto-estrada da Encarnação os primeiros carros corriam, ainda à vontade, de faróis acesos.

Gostava que alguém trouxesse o General para acabar com esta palhaçada e os soldados terminarem os abraços e secarem os olhos. Eu não choro. Já me chegou a despedida no fim daqueles amargurados doze dias que me deram de licença como se fosse a última vontade de um condenado. Por muitos anos que viva, jamais esquecerei aquele aperto de minha Mãe: tinha o sangue do cordão umbilical, o despedaçar de um coração único. Julguei morrer ali, envolto naqueles braços, amortalhado por aquelas lágrimas, aquele pranto do fim do mundo, enfiados num quarto feito dispensa da casa secular em que nasci. Disse para comigo: «NÃO VOU!». Os gajos que me viessem prender, que me arrastassem para onde quisessem. Afinal, por que me separavam da minha Mãe? Com que direito? Ao mando de que razão? Plantassem as cruzes noutro cemitério, medalhassem peitos nas praças imperiais, o meu só queria a liberdade e o amor. Mas estou aqui, sem fugir para Genebra, sem inventar úlceras, miopias ou pés chatos, sem cunhas para me livrarem da tropa; estou aqui, cobarde da minha revolta, mas, certo de que ninguém me chamará desertor, com este magote que enerva, à espera - repito - de um velho General desocupado que finja que passou revista ao atavio do batalhão, devidamente filmado por uma câmara para à noite abrir o telejornal e mostrar à Nação mais um contingente a marchar rumo a África «no cumprimento do dever». O barulho é uma inércia auditiva. Olho as estátuas, sem heráldica, da Polícia Militar, e dão-me pena, pena não, desalento, é isso, um imenso desalento como quem é obrigado a conviver com a inutilidade. Apetecia-me ir embora, mandar bugiar isto tudo, voltar a Coimbra, ao bar das Letras, tomar um café para ver aqueles borrachos a mostrarem as coxas, os mamilos a esticarem as blusas, e, eu, tímido, fingindo descontracção, pagaria a conta, desceria à Baixa, ali pelo Quebra-Costas, daria meia volta até à Sofia e subiria Sá da Bandeira. Na Praça da República, num banco virado para o Mandarim, faria horas para o almoço na Associação, passando os olhos pela Vértice ou pelo Via Latina. Mas não, estou aqui, ensonado, farto de esperar, ansioso que estas cenas acabem, com o olfacto saudoso dos cheiros das vinhas e da cozinha da minha casa. Ao lado, o Niassa com a escada do portaló descida e alguns tripulantes debruçados na amurada, curiosos por coisas diferentes de outros embarques.

- Meu Alferes, o nosso Capitão está a chamá-lo – diz-me o Cabo Álvaro sem expressão na voz.
- O meu Capitão chamou-me? – apresento-me, erecto e militarão, como me ensinaram em Mafra.
- Silvestre, arranje-me uns homens do seu pelotão para levarem uns caixotes para bordo. Estão junto daquele – apontando com o indicador direito - jeep da PM – ordenou-me o capitão Silveira.

Chamei o Furriel Manso para escolher seis homens e disse-lhe o que deviam fazer. Vi-o chamar o Cabo Álvaro e constatei a eficiência da hierarquia militar.

De repente, um tremor a despertar modorras, toda a gente começa a correr. Ouvem-se vozes de comando meio baralhadas, repetem-se despedidas, os comandantes das Companhias mandam formar. Acho que é, agora, finalmente, que o General vem. Os tipos da televisão erguem as máquinas de filmar. O meu pelotão está pronto. Os familiares dos militares acotovelam-se e o varandim da Rocha de Conde de Óbidos está à cunha. Há toques de clarim e ruídos de portas de carros a bater, continências a torto e a direito, risos nervosos e apertos de mãos para a chapa. Em posição de à vontade, tenho atrás. O pelotão com o Silva a fungar, o Dias a insultar o Cubano e este a responder-lhe à letra, o Luís a ajoelhar o traseiro do Dionísio que esperneia caneladas, o Álvaro a assoar-se. Viro-me para amainar o temporal.

- Nosso Alferes! - gritou-me o Capitão Silveira. – O seu pelotão está pronto?
- Sim, meu Capitão! Terceiro pelotão pronto! – disparei, lembrando instruções de ordem unida.

Pousou um silêncio de começo de Missa. Com todo o corpo militar em sentido, surge, ao fundo, o General de estrelas brilhantes, novinhas como se tivesse sido promovido no dia anterior. A banda toca a marcha Angola é Nossa. O velho Oficial inicia a inspecção às tropas no ritmo apressado de quem se quer desembaraçar de uma chatice. Olho o céu e ninguém me traz a alegria e a paz, sou prisioneiro dentro deste espaço, com fé, mas sem profetas; o sol não anuncia que a guerra vai acabar e os anjos não nascem na ilusão de quem não lhe apetece partir. Acabada a revista, a Alta Patente calhou postar-se diante de mim, esperando o desfile em continência. Tem uma cara de rugas em cortinas e um nariz absurdamente elegante no meio de uns olhitos inócuos que observam encobertos por umas grossas lentes de miopia anciã.

Os militares, à medida que o desfile se desenrolava, subiam para o barco. Apressei-me quando chegou a minha vez. Não tinha ninguém a quem acenar; pedira para que me poupassem a repetição do afastamento. Ainda não alcançara o tombadilho, ouço uma voz a chamar-me. Volto-me. Vejo o Jorge, grande amigo feito em Mafra, no empedrado, a gesticular e a gritar: «Vou amanhã para a Guiné!» Sorrio e desejo-lhe boa sorte. Debrucei-me na balaustrada, enquanto ainda desfilava um resto, mas a PM, imperial nos seus lenços amarelos, afastou-o sem parar de acenar.

Era uma coisa indescritível: gritos, berros, choros, gemidos, apelos, recomendações, lenços agitados, crianças apavoradas, Mães desfalecidas e, também, carpideiras avençadas. Parecia o desespero de um Povo a clamar uma orfandade colectiva. Então, invadiu-me uma tristeza tão grande e tão forte que não segurei o choro, qual um rio a romper o dique da minha impotência de não conseguir dizer NÃO, de estoirar com a chantagem da deserção, da coacção do anti-patriotismo.

O barco apitou. Muito devagarinho, como se quisesse desamarrar sem se notar, o Niassa separou-se do cais. Da banda militar, irromperam, inesperadamente, os acordes do Hino Nacional. Estremeci, o sangue a ferver, os pêlos a roçarem a farda, as lágrimas em cascata. Meu Deus!, aquilo soube-me a traição sem dicionário, exploração sentimental, alibi de uma infracção, um recurso cruel para o inabdicável. A terra ia ficando longe. Junto a mim, um soldado, de cerveja na mão, perdido de bêbedo, espumando palavras sem nexo, «Haja alegria! Haja alegria!», ria, ria alarvemente.

Lisboa manchava-se no horizonte. Lisboa capital de uma Pátria que espalhava a sua juventude pelos matos da guerra, sem um esboço de paz, sem uma esperança de que o sofrimento valesse para alguma coisa.

O terraço de Alcântara era um lenço gigante ondulando às tágides, soprando velas e espargindo lutos. O soldado bêbedo, enrodilhado no chão, como uma criança a quem arrancaram um presente, gemia: «Eu quero a minha Mãe! Eu quero a minha Mãe!» Levantei-o, nem sei se com piedade ou raiva, e chorámos os dois como choram dois irmãos verdadeiros: agarrados um ao outro.

Os alto-falantes anunciam: «O almoço começou a ser servido. Oferecemos, entretanto, um programa de música seleccionada.» Os sons tristes de La poupée qui fait non acompanham-me até à sala de jantar. Como só fruta. A cabeça entontece-me. Os soldados, de pratos nas mãos, não sabem para onde ir. É um ambiente desorganizado, de começo. A diferença das águas do Mar da Palha para as do Atlântico acentua-se: mais azuis e movimentadas. Lisboa é, agora, uma pincelada de névoa sebastiânica. Uma lancha junta-se ao barco para recolher o piloto que vai descendo pelos degraus do portaló. Aquela apita forte, trocam-se votos de boa viagem, e, acelerando os motores, afasta-se. À distância regulamentar, uma fragata escolta-nos. Gaivotas elevam-se sobre os mastros para depois picarem em voos razantes. Um ar pesado de enjoo envolve o quartel flutuante. Debruçados nas amuradas, homens vomitam o almoço e olham para o sítio de onde partimos. Dói-me a cabeça, pareço andar à roda. Deambulo pelos decks, vejo gente que não conheço, absorta, de olhos inchados, caras perdidas.

Navega-se, moderadamente, por entre babas de espuma, sem nada já ao longe, uma solidão infinita, um desamparo que atordoa, um abandono irremediável. Chegam os primeiros radiogramas. Antes não viessem: «Todos estão contigo. Felicidades e um regresso rápido.» Está bem, um regresso rápido para quem acaba de partir. Procuro conhecidos para mastigar palavras, mas eles e elas enclausuraram-se. Os relógios são atrasados uma hora e à meia-noite terão igual recuo. Não suporto a dor de cabeça, sinto uma estranha sonolência de delíquio. Vou para o camarote e deixo-me embalar por este berço gigante.
Continua...

- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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5/28/10

OS IGNORADOS

 
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Falo-vos da África dos matos sem fim,
Dos ecos perdidos no capim,
Das picadas vermelhas mas livres,
Tão livres como a liberdade.
Em cada curva uma palmeira,
Em cada lugar uma saudade,
Em cada sorriso uma clareira
De brancura e de amizade.

Falo-vos das noites de encantamento,
Das queimadas para lá do pensamento,
Da lua a beijar a baía de Pemba,
Do batuque e das esteiras na temba
Onde o meu corpo se satisfazia
Em outro corpo que, depois, dizia:
« São cinco quinhentas, patrão! »
E eu, cá dentro, aqui onde bate o coração,
Nem sei o que sentia.
Só sei que, depois, voltava
Com mais quinhentas na mão,
Roído pelo tédio e a solidão.

Falo-vos dos poemas proibidos,
Alguns esquecidos,
Outros lembrados
E agora publicados.

Falo-vos dos loucos a berrarem no entardecer,
Das sentinelas a dispararem para a escuridão
Com o medo aos saltos, na indecisão
Da manhã que não se sabe se vai nascer.

Falo-vos dos rios em que lavei o rosto,
Matei a sede ao sol- posto,
Gritei que não queria a guerra,
Mas não desertaria da minha terra.

Falo-vos da África onde não voltarei
Para matar a fome das minhas recordações,
Abraçar os irmãos que deixei
E lamber as feridas de todas as desilusões.

Falo-vos da África dos nossos soldados,
Dos seus sorrisos e dos seus abraços,
Uns, já mortos, outros, vivos-despedaçados,
Mas, todos eles, ignorados.

- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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4/27/10

O VIÚVO

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É tudo sempre igual.  Às sete acorda, sem coragem de se virar para o lado que era o da Mulher. Estica o braço, num gesto instintivo, a ver se ela ainda lá está, e um vazio magoado repete-lhe a ausência. Limpa as lágrimas à aba do lençol, liga o rádio-despertador para o barulho lhe atenuar o abandono, mas apaga-o logo, que lhe enojam as notícias do mundo. Quando sente, na rua, o trânsito a amainar, levanta-se e atavia-se por hábito. O espelho só lhe serve para não se cortar ao fazer a barba; todos os dias os cabelos embranquecem, os ombros descaem, os olhos encovam-se e as faces enrugam-se para lá do que justificaria a natureza. Aquece, no micro-ondas, o leite com um pingo de café de véspera, torra uma fatia de pão que barra com geleia (o Médico proibiu-lhe a manteiga por causa do colesterol ) e veste-se.

Mal sai do elevador, acende o cigarro que melhor lhe sabe no dia todo. Desce a Avenida calado, olhos espetados no chão, as pessoas incomodam-no, o rebuliço enerva-o, a vida fá-lo triste. Compra uma rosa vermelha na Florista, entra no cemitério, pede a cadeirinha de abrir e fechar na guarita do segurança, a quem dá uma gorjeta mensal, desce as escadas para o 2º. talhão e senta-se junto da campa da Mulher. As pessoas cumprimentam-no, já o conhecem, assim como a morte que o enlutou. Segura a cara entre as mãos, no modo de quem se concentra numa oração, e debruça-se para a fotografia debaixo da qual está escrito: Eterna saudade do teu marido. N. 12/10/40 – F. 07/01/02. Os lábios dizem o que ninguém ouve, os olhos choram o que todos entendem. Ali fica a manhã, qual obelisco de cré, alheado de tudo, mesmo da confusão cigana nos gavetões do fundo. Quando a sineta toca, ergue-se, devolve a cadeira e diz «até logo» num esforço falado.

Se ganha coragem, vai a casa fazer um arroz branco e grelhar um bife daqueles já embalados no supermercado. Aprendeu a cozinhar quando a Clotilde, magra e branca como a caliça, caiu na cama. Fez quilómetros entre a cozinha e o quarto em que, lentamente, definhava, a pedir-lhe instruções para o refogado, o estufado da carne ou do peixe, a quantidade de sal, o tempo de cozedura, levar-lhe a colher com uma amostra para «vê lá se está bom assim», teimar com ela para comer «nem que seja um bocadinho», esmagar a sopa para não lhe custar a engolir.

Aflige-o a casa vazia, chega a ter mesmo saudades daqueles dias sofridos em que a ajudava a levantar-se para a levar aos tratamentos. Corre, por vezes, ao quarto; parece-lhe ouvir a Clotilde naquele gemido que foi a maneira de o chamar nos três últimos anos de vida que o cancro demorou para a vencer. Chora, mas, já nem repara, tantas e repetidas são as lágrimas que só quando não as tem é que se espanta. Senta-se no sofá, tira o som da televisão e adormece por uns minutos. Desce à pastelaria do rés-do-chão, toma um café e repete o caminho e as rotinas da manhã. Alguns, perante os seus olhos vermelhos, acercam-se dele, tentam permutar consolos, estimulam-no a passear, distrair-se; esboça um trejeito de agradecimento que lhe sai como um suspiro refreado. Com a chegada da noite, os círios, nas lajes, sobressaem entre margaridas, cravos e flores do campo. Custódio, do cimo das escadas, vira-se, uma última vez, para o lugar onde a Mulher eterniza, acena-lhe, manda-lhe um beijo, curva-se para a sua solidão, devolve a cadeirinha ao segurança e passa o portão com a sineta a dar o último toque de aviso.

Deambula pelas redondezas a fazer horas de jantar. Vai, frequentemente, a um restaurante barato, na cave de um prédio subaproveitado, a que se chega descendo umas escadas gastas, e lhe lembra o Aeminium dos tempos de Coimbra. Aí fica, após o café, a fumar e a fazer que vê televisão. Quando as mesas se esvaziam e os empregados começam a abrir a boca, levanta-se para percorrer os escassos metros que o levam a casa. Aqui chegado, dá uma dose de friskies à gata que mia a queixar-se do isolamento e da falta dos pés da Clotilde na cama, nem repara se a mulher-a-dias lhe deixou o chão limpo e a roupa passada, mastiga, para lhe dar o sono, mais umas folhas do livro de cabeceira (anda a ler o Diário de Um Mago do Paulo Coelho) e quando pressente a mornice a inebriá-lo sintoniza, baixinho, o despertador na Antena 2, carrega na tecla de sleep e fecha a luz. Mas, ao contacto com os lençóis, entra numa espertina suada, um vazio que o magoa, um medo, até, de estar só. Imagina a Clotilde junto de si, lembra-se quando a afagava, a amava com uma ternura duplicada, como se sentisse o seu corpo a fugir-lhe, a repetir-lhe, vezes sem conto, que a queria por amor, pela emoção e o prazer de a ter nos seus braços. Pensa no filho que não tiveram. Sempre o desejaram e tentaram, mas, quando, esgotados todos os meios, a Medicina lhes sentenciou a impossibilidade natural de o terem, recusaram qualquer outro processo, incluindo a adopção. A Clotilde ainda viveu algum tempo de dúvida, ele é que não: filho tinha que ser mesmo do sangue e consoante «Deus mandava». Bem escutava os colegas no emprego, amigos e conhecidos a queixarem-se das exigências filiais, as extravagâncias e irresponsabilidades, as noitadas e vícios, o desapego familiar e a frieza perante os princípios em que foram criados, a obsessão de quererem tudo num facilitismo que arrepiava os que abdicavam de si por eles, a cultura do depósito-de-asilo, transferindo para Lares os velhos e as suas reformas de anos e anos de canseiras como quem faz um trespasse familiar. E “se Deus assim o quiz Ele lá sabe porquê. Talvez achasse que para sofrimento já bastava o que viria”.

Custódio, quando se reformou da Companhia de Seguros, sem descendência que lhe condicionasse as horas ou aumentasse as preocupações, convencera a Mulher a acompanhá-lo numa viagem de revisitação do passado. Sempre sonhara voltar à África da sua comissão militar. Finalmente, o Cardoso, amigo dos tempos da Faculdade, gerente de uma delegação bancária em Lourenço Marques (nunca se habituara a Maputo), que lhe escrevia várias vezes a convidá-los para irem até Moçambique, recebeu-os com alegria e demora. Foram por um mês, ficaram três.

Mal desceu as escadas do avião inebriou-se com aquele cheiro inconfundível de África, um odor agrográfico que lhe encheu as narinas e a alma. Voltou a saborear as praias com palmeiras a marcarem riscos de sombras nas areias, os mariscos como aperitivos da cerveja gelada, o calor abrasador, a nudez das sestas, a angústia dos entardeceres, o agro-doce da catinga e da terra queimada, o perfume das acácias, mangueiras e embondeiros dispersas pelo mato e pelos bairros do caniço. Mas, já não era como no seu tempo. Desiludiu-se com o desleixo, a sujidade, a carência e a impressão de quem espera qualquer coisa ou alguém para um recomeço. Foi a Nacala onde desembarcara no Niassa; a Quelimane onde apanhara paludismo; nadou na baía de Porto Amélia e misturou as lágrimas da emoção com a doçura dos corais que nenhuma independência roubara; no Alto do Molocué, o alpendre do Chefe de Posto, em que dormira em algumas noites de cansaço, já não existia; o cantineiro apanhado que conhecera em Mocuba tinha ido «pró puto» e, na sua cantina, sem telhas e sem portas, definhavam as cinzas das fogueiras que tinham mitigado o cacimbo da noite anterior; em Mueda ainda escutou o eco do rebentar da armadilha que cegou o Adérito e decepou o Toni. Andou de um lado para o outro, como uma borboleta tonta, de avião e avioneta, de Land Rover e almadia, encheu-se de poeira, bebeu litros e litros de água e bazukas de Laurentina, gastou, sem os contar, montes de meticais, praticamente o que recebera no reajuste da assinatura da reforma, e sentia-se tão feliz que se imaginou, novamente, com vinte e quatro anos, agora livre de armas e camuflados e do medo de um tiro, vindo do capim, lhe ceifar a vida. Na picada que levava a Montepuez sentiu-se confuso, uma pressão no peito que até parecia que ia estoirar; ver-se ali, de novo, foi como se recuperasse os temores antigos, sabendo, ao mesmo tempo, que eles já não se repetiriam; esse conflito de emoções deu-lhe um sossego tão generoso que chorou de olhos ao céu.

A Clotilde estava espantada com ele. Aquela azáfama, aquela fome e aquela sede, como se o mundo fosse acabar no minuto seguinte, os seus gritos e os seus silêncios, o borbulhar das lágrimas e os berros de alegria quando reencontrava os lugares onde estivera. Uma noite, ele que era tão reservado, quase pudico, na intimidade, levara-a para as areias de Wimbe e, com a espuma das ondas a coçegar-lhes os pés, reinventaram uma segunda noite de núpcias com um batuque, para os lados do Farol, a celebrar rituais. Ao deixaram a terra morena foi como se acordassem, mais ele do que ela, dum sonho no paraíso.

Pouco depois de chegarem, num daqueles exames de rotina anuais, um pesadelo de chumbo derrotou-lhes a felicidade. Nunca mais a vida lhes sorriu. Rezaram para que a mastectomia fosse a tempo, mas, ele, chamado à parte pelo Cirurgião, ficou incumbido de disfarçar a esperança diante dela. A morte anunciada da Clotilde acabou com a razão da sua existência.

Custódio tem sessenta e cinco anos mas corpo de cem. Quem o viu e quem o vê espanta-se com as metamorfoses da vida, os alcatruzes desta nora em que uns gemem sob a canga do destino e outros, indiferentes aos dramas alheios como se eles nunca lhes acontecessem, levitam na ignorância. Só, sem ninguém a quem se entregar, vive, desde então, um dilema: há-de, ou não, recolher-se a um desses malditos Lares, num baixar de orelhas ao que tanto abomina, para que lhe sirvam uma sopa, lhe façam uma cama, o tratem quando a doença um dia o espreitar numa esquina, vistam-lhe o cadáver e o enterrem no talhão que, deixará escrito, será o da Clotilde. «Por um lado, é mau, que detesto compartilhar solidões desconhecidas; por outro, será bom, morrerei mais cedo. Não quero andar aqui muito tempo sem Ela.», disse ao Manuel, seu amigo do peito, num encontro casual, com um sarcasmo de revolta. O seu velho companheiro de estudos e de emprego, imaginando-se no seu lugar, sentiu um calafrio gelado.

Um dia, ao vê-lo, aligeirou a passada, apanhou-o, pôs-lhe um braço no ombro e gracejou: «Custo – era assim que o chamavam - ergue-me essa espinhela e ANDA VER O SOL! Lembras-te da canção do José Afonso que tu cantavas?...» Olhou-o com aqueles olhos sem estímulo, parados, esboçou um sorriso e apertou-o numa convulsão que, rapidamente, foi mútua. Manuel acompanhou-o ao portão do cemitério e percebeu-lhe, ainda, quando ele se virou para o abraçar, um sorriso de franqueza, quase, quase igual ao riso dos anos felizes, mas era um sorriso remoto numa cara desiludida.
- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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4/20/10

PREÂMBULO

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Reformou-se com um misto de prazer e desconforto; não sabia definir bem: um aperto onde a vida se enuncia ou o prenúncio de uma saudade em que a mesma se atormenta, uma incoerência entre o que se diz e o que se faz ou o vazio de um fim que tem de acontecer e de que se ignora o depois, um alívio de incumbência ou a certeza irremovível do tempo.

Lembrou-se de quando fez o espólio, completado o serviço militar obrigatório, no regresso de África. Depois de ter sonhado, a todas as horas, com esse dia, perguntara: «E agora?» Agora tinha sessenta e cinco e não vinte e quatro anos, o futuro encolhera, mas ainda teria tempo de saber se é mais fácil ou mais difícil polir uma identidade quando se dobra a esquina do meio século. Sentia-se dono de uma serenidade sem desalento porque o passado não lhe remoía o presente e nunca se sentaria à espera das tábuas necrológicas. Uma vaga nostalgia de fim de ciclo e o afastamento dos rostos e das camaradagens ensombravam-lhe a decisão. Recuperaria os agrados antigos quando os livros o faziam viajar pelos caminhos da fantasia ou lhe levantavam dúvidas desconhecidas; ouviria as vozes que lhe ecoavam dentro enquanto o sono demorava; sentiria a revolta pelas mediocridades que excluímos de nós, num auto-convencimento de suficiência que, egocentricamente, nos compraz; observaria as pessoas e catalogálas-ia pela testa, os olhos, o nariz, o sorriso, o falar, a pose, o andar, os gestos, fotografálas com a distância do desprendimento que não concentra a obrigação, aquela voluptuosidade de adivinhar nos outros a (dis)concordância entre o parecer e o ser. Não seria um tíbio praticante nem um pequeno burguês preocupado com o estatuto, mas o que o tempo desse que é sempre o contrário do que se deseja. A vida ensinara-lhe que não há prudências nem regozijos programados, pois ninguém controla os desígnios. Convencia-se, por vezes, de um fatalismo insuperável e nele justificava os desaires, ausentando-se de um tempo que lhe cheirava mal, de um mau gosto intragável, e pouco lhe dizia a vida sem princípios com os deuses todos a morrer como se as gentes os inutilizassem. Vivia-se uma idade de ausência de modos, sem regras; matava-se como quem não reprimisse um instinto; insultava-se como quem praticava um costume; cortava-se com a amizade, sem um arrependimento, como se só a implicação creditasse o carácter; apunhalava-se uma gratidão como quem risca um erro ortográfico. Aprendera que noventa por cento do que se faz é inaproveitável e os dez restantes é que salvam qualquer mortal. Amava a vida, mas não esquecia a morte. Era um conflito entrea luz e a escuridão. A morte era-lhe essa marca da infância, semelhada pela vida fora, do tamanho de uma sombra poligonal, conjecturada e não vivida. O pai morrera cedo quando ainda era um nascituro. Partira sem lhe dizer adeus, um adeus sentido, com lágrimas e com dor. Não conhecera o Pai nem sofrera a sua morte, e morte que não é sofrida nunca se aceita. Fora sempre a sua vulnerabilidade, a sua angústia, uma ferida que se disfarça, mas não sara. Finar-se-ia com essa orfandade incessante, nunca permutada. A morte, era-lhe, assim, uma injustiça divina e uma ingratidão do destino porque, crente, nunca a compreenderia na sua ocasião, suportando-a em silêncio, contra os risos e as incompreensões, os desprezos e as raivas, um castigo sem culpa, impossibilitado de apresentar provas e testemunhas da sua inocência. Transportou essa memória negra dos mortos falados nos caminhos da aldeia, as pessoas a fazerem-lhe festas como a um gato de luxo triste, e as vozes cochichadas dentro de casa a encobrirem segredos para evitar agoiros.

Da janela do seu quarto, olhava a rua cheia de carros, aflitivamente parados, os transportes públicos, biombos laranjas, engolindo pessoas de cheiros disfarçados com lavanda ou almíscar, calças justas a amparar as carnes e a atiçar as varizes, olhos esfiapados de sono, ostentação de roupas e anéis, cabelos de gel e olhares de cima, misturados, a contragosto, na selva dos dormitórios.

Chovia desalmadamente, uma chuva oblíqua ao sabor de um vento de pedras que vergastava tudo, um frio tão forte que nem o roupão lhe impedia o sentir. Respirava-se um ar de malícia, degradação e restos de capricho; dir-se-ia a insurreição do céu que derrubava árvores, casas, pontes e vidas. As televisões, os rádios e os jornais não paravam na descrição das tragédias que enlameavam terras e enodoavam almas. Era um retrato incorrigível que não se pode alterar o vazio dos rostos na falência dos sorrisos. Parecia tudo estilhaçado num ruído de vidro antigo. Os velhos diziam que era uma maldição da natureza por tantos e tantos anos a escarnecê-la, os novos calavam-se, incapazes de entenderem as profundezas do mundo.

A sua rua era um beco de rupturas, ardil de invejas e, até, o engana–vistas do ódio. Todos queriam andar, afirmar a sua atitude, e só não passavam por cima uns dos outros porque isso corresponderia a uma destruição mútua. Olhava-os com aquele deleite de quem já tendo vivido um mal e a ele escapado, se via, agora, livre de voltar a suportá-lo. Acabavam-se os acordares com o rádio a dar as desgraças das sete, a noite ainda pesada, a chuva a zunir na floresta cimenteira.O emprego transformara-se num trabalho à tarefa, vigiado por computadores e  olhos medrosos de não agradarem aos contabilistas dos cifrões; serviços quantificados em minutos de qualidade inútil para a engenharia dos milhões. Longe iam as datas em que o dinheiro tinha a normalidade do sustento e não a exclusiva ganância de um lucro, em que se solidarizavam valores e o companheirismo defendido como arma de classe. Agora, era tudo de uma dolorosa deselegância e indiferente comodismo; ontem, havia pobres e ricos, hoje, desgraçados e milionários; ontem, lutava-se por reciprocidades, hoje, por imitabilidades. A revolução, nascida de um grito refreado durante décadas, nacionalizara, de afogadilho, os grandes grupos para depois os revender aos antigos ou novos donos. Era a quitação das facturas, o ajuste de contas, a adaptação ao novo liberalismo de tiques nunca esquecidos, mesmo que alguns falsos estalinistas, praticando astuciosa duplicidade, fingissem amargura com os bolsos já cheios na amálgama revolucionária.

Quando a tecnologia começou a dispensar o raciocínio e a apelar ao titerismo, a ginástica mental sorrateiramente despedida pela eficácia cibernética, os sentimentos anestesiados pelo clorofórmio dos indicadores de rentabilidade e os corações endurecidos pelas cantilenas tecnocráticas, poucas dúvidas lhe restavam de que o seu prazo de validade estava a chegar ao fim. Concebia a reforma à moda antiga quando da função se saltava para um púlpito de onde se viam as pessoas e as coisas com a calma da experiência, mesmo de azimute encurtado. A viagem para o esquecimento tinha novos entendimentos e as prateleiras empresariais estavam cheias de inocentes ultrapassados pelas modernas gestões de recursos humanos para quem um SER é uma atrapalhação. Juntaria os seus anos de militar à força, descontados a preço rapace como se o tempo dado às fardas fosse um interlúdio turístico, e voltar-se-ia para a nascente da sua esperança para com ela percorrer as últimas milhas do seu termo.

A vida era de uma brevidade assassina e os afectos não a comandavam. A sobrevivência fazia-se pelo assentimento do silêncio. Quando afrontava a pestilência, perdia sempre; não sabia mover-se no charco da intolerância. No meio, até ao estoiro, ficavam os espasmos da alma. Pensava, pensava muito, e entusiasmava-se tantas vezes calado que, quem o visse, julgá-lo-ia um asténico de sorriso exegético ou dúplice, com as lágrimas sobressaltadas tanto na inquietação quanto na placidez. Pertencia àquele modelo a quem se pergunta se algum problema o incomoda e a explicação nunca se dá porque é impossível entender como resposta: « É o mundo que me aborrece, tão injusto ele é. » Dizer isto é um estorvo, uma idiotia, uma excentricidade que coloca qualquer um no lixo esquizofrénico. Mas era a sua resposta, não tinha outra, e, quando o Inverno  lhe castigava os ossos, só a ironia o ajudava a suportar as horas. Era um ironia metálica, mistura de palavra laminada e olhar cortante - tamanho o sarcasmo - que condescendia com a perturbação e o insulto alheios como se eles lhe justificassem, ainda mais, a desafectação com que os encarava.

Iria, então, encher as folhas virgens dos seus cadernos, ditar-lhes memórias e hojes, mesmo que não achasse o termo correcto para o que se sente e se quer dizer; escrever até ao cansaço, até doer, correndo os perigos de não o perceberem, na desilusão das suas esperas e na acusação dos seus conceitos; escrever para espantar demónios, destruir fantasmas, repelir sofomaníacos, aplacar despeitos, desfiar paixões e dedilhar desejos. Ele sabia que quem escreve não é eunuco, e dar luta à frieza humana contraria o fim civilizacional. Por isso, escreveria, mesmo que as gavetas engolissem as suas palavras, mesmo que um dia as rasgassem, mesmo que um dia as queimassem. Floresceriam com ele numa fraternidade impaciente e perturbadora, num sonho de sede insaciável.

Chegara o seu tempo de recordar, que, com amar, é dos verbos mais sérios da vida.
- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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