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8/09/10

OS RAPTORES E A MAGIA NEGRA - Um conto de Allman Ndyoko

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Era uma noite de lua cheia e de céu ornado de estrelas. No povoado de Mbomela fazia frio que se sentia até as entranhas da medula e no céu iluminado, aves nocturnas e de rapina sobrevoavam o espaço cortando a aldeia de lés-a-lés num vôo sem retorno. A floresta, na sua imensidão, repousava em silêncio tumular  escutando os assobios desesperados dos grilos e o bater das asas dos mochos e morcegos que davam vida à noite.

O povoado de Mbomela estava silencioso e nos quintais de muitas palhotas, linguas de fogo bailavam no espaço crepitando, de quando em vez, ao prazer do vento, enquanto em volta corpos de homens e mulheres mal protegidos procuravam incansavelmente o calor da fogueira para extinguir o ar frígido que teimava fazer investidas aos aldeões incautos. Enquanto se aqueciam na fogueira, os aldeões iam aguardando com ansiedade e paciência as ordens dos anciãos, reunidos com muntela na chitala da povoação, conversando sobre a onda de raptos de raparigas e mulheres adultas que fustigava a aldeia Mbomela. Naquela semana, haviam circulado no povoado rumores sobre um grupo de homens de povoações distantes que raptava mulheres no caminho que conduzia a fonte e lhes encaminhavam às suas povoações, onde após diversas incisões ao longo do corpo e diversos rituais de convocação da amnésia com vista ao esquecimento total do passado e, principalmente, da sua proveniência, inseriam-as na nova comunidade, onde podiam casar-se com a finalidade de reproduzir para povoar a aldeia dos raptores. Estas mulheres adquiriam imediatamente os direitos sociais detidos pelas mulheres nativas e em casos muito raros conseguiam retornar às suas aldeias de origem, maior parte das vezes, sob a cumplicidade de alguém da nova comunidade que sentia compaixão por elas, principalmente, as que haviam deixado filhos menores na sua comunidade.

Entretanto, as mulheres de Mbomela achavam-se aterrorizadas com as notícias que circulavam, pois viam-se inevitavelmente impelidas ao perigo pela força dos papéis sociais desempenhados na comunidade, cujo alguns obrigavam-as dia-após-dia a percorrer distâncias incríveis em busca da água, elemento essencial da vida humana, em zonas veiculadas como prováveis esconderijos dos raptores. Todavia, o conselho dos anciãos da povoação havia tomado em conta a preocupação e naquela noite frígida e silenciosa encontrava-se reunido na chitala com um muntela para encontrar a solução do problema.

Volvido algum momento, a reunião chegou ao fim e o muntela trajado de retalhos de peles de animais ferozes e com amuletos pendurados ao pescoço avançou até ao limiar da povoação, onde com ajuda de um rabo peludo de leão, simbolo do poder mágico-tradicional, fez um circulo em volta da aldeia. De seguida, fez uma cruz no chão e no ar da entrada do povoado balbuciando algo imperceptível que dir-se-ia um cântico mágico e no fim, caminhou despido em plena luz lunar até ao terreiro, onde a dentada degolou um galo e deixou-o estrebuchar até a última agonia. Um grupo de quatro anciãos trouxe um pote contendo água e raizes de diferentes plantas e depositaram em frente do muntela que sacudia pausadamente no ar o rabo de leão dizendo algo imperceptível. Depois, o muntela mergulhou uma cabaça na infusão do pote, levou aos lábios, encheu a boca e borrifou o líquido com força sobre a ave já morta e disse:

- Chamem as raparigas e as mulheres adultas para o ritual.

Rapidamente, vários anciãos sairam em busca das raparigas e mulheres adultas em idade reprodutiva, enquanto o muntela retalhava a mão e a dentada o galo morto sob o olhar curioso de alguns anciãos que lhe assistiam em silêncio. No entanto, o muntela juntou os retalhos da ave na infusão e mexeu-a com ajuda de um pau, razoavelmente, comprido dizendo palavras estranhas e desprovidas de sentido. No fim, fez uma enorme fogueira e cantando no silêncio da noite com a voz nítida, deu um salto brusco sacudindo o velho corpo numa coreografia contagiante.

Dali em breve, o terreiro ficou repleto de mulheres e o muntela fez incisões na testa aplicando seguidamente um pó negro de ervas queimadas e trituradas. Depois, as mulheres beberam a infusão e o muntela advertiu:

- O que acabaram de beber chama-se infusão da velhice e qualquer pessoa que quiser raptar-vos verá em vós autênticas velhotas andando trémula e apoiando-se à bengala. Por isso, quando se encontrarem com possíveis raptores não tenham medo e procurem depositar a vossa fé neste ritual que acaba de acontecer.

Dito isto, as mulheres dispersaram-se e o terreiro ficou novamente silencioso. O muntela extinguiu a fogueira, vestiu-se calmamente e na mesma noite abandonou a aldeia acompanhado por seis anciãos.

Ao alvorecer, o dia nasceu brumoso e ruidoso. Ventos moderados lançavam-se contra a floresta acompanhados de chuva miúda e obliqua que vergastava o ambiente provocando o cheiro intenso da poeira.

Um grupo de mulheres de Mbomela saiu em busca da água na floresta. Caminhou durante muito tempo no meio da mata fechada e num atalho tortuoso ladeado de arbustos de sombras escuras e por fim, aproximou-se a fonte. Já na floresta próxima um grupo de dez homens raptores munidos de cordas e catanas ergueu-se entre as árvores. Lançou o olhar às mulheres e, curiosamente, viram um grupo de oito velhas centenárias com pequenas bilhas à cabeça andando vagorosamente com ajuda de bengalas feitas de ramos de árvores secas. As mulheres passaram disfarçadas em frente dos raptores e em seguida alcançaram a fonte, onde encheram as bilhas de água e voltaram a povoação passando novamente em frente dos raptores que lhes olhavam com desinteresse.

Entretanto, o dia passou sem que os raptores lograssem raptar alguém e os dias que se seguiram o cenário não mudou e os raptores voltaram a ver as mesmas velhas centenárias passando cansadas e com pequenas bilhas à cabeça. Nisto, os homens exaustos e sem resultado acabaram desistindo à intenção regressando definitivamente a sua povoação. 
- Allman Ndyoko, 12/03/2008.

GLOSSÁRIO
Muntela – Curandeiro;
Chitala – Local de convivio social dos homens;