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9/23/09

Nostalgia - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Fotografia original realizada em praia de Fortaleza-Ceará-Brasil por Gotael - Clique na imagem para ampliar)

Hoje passei na rua do avô Buanamele na zona de Kumilamba, no histórico bairro de Paquitequete. A sua cadeira de descanso e de movimento ondulante e contínuo balançava na varanda de macuti a sós e ao sabor do vento, inspirando aos transeuntes a melancolia e incredulidade no que sucedera ao fiel companheiro das sextas-feiras à tarde.

A cadeira balançava continuamente no meio da brisa do mar, do murmúrio dos habitantes e das palmeiras bailantes, do grasnar pausado e melódico dos corvos, dos vôos rasantes e atrevidos dos milhafres, do rufar persistente de batuques de tufo, da pacífica convivência do islamismo e cristianismo, da beleza singular das mulheres, do sol abrasador de Setembro, enfim, no meio da doce melodia das linguas kimuane e macua entrelaçados coniventemente ao longo dos séculos.

Na varanda onde sempre avô descansava recitando o alcorão, vestido de túnica branca de neve e cofió com bordados multicolores, simbolo do islamismo, o ambiente era lúgubre; Já não se ouvia mais salama e alihandolilahè ditos de viva voz e nem gargalhadas animadas como era hábito.

No interior da casa, que é de pau-à-pique, rebocada de matope e coberta de macuti, só o miar agudo e insistente de gatos marcava a presença preenchendo o vazio como se reivindicassem a morte do avô ou reclamassem a solidão e o silêncio incómodo que se instalara alí desde que o mar, fiel companheiro do avô, traira-lhe roubando-o a vida e escondendo o corpo nas profundezas verdes das suas águas, numa manhã prateada, de céu acinzentado, chuvoso e de tempestade repentina.

Incrédulo, parei defronte da casa e imperceptivelmente o meu olhar perdeu-se no movimento contínuo da cadeira.

Os transeuntes olhavam a cadeira com curiosidade aguçada que se confundia com medo e respeito e relembravam o avô, certamente, sentado alí com o olhar perdido no horizonte e recolhido em seus pensamentos, numa sexta-feira qualquer após a sua habitual reza na mesquita, próxima à casa do sô Ruela, e depois de uma semana intensa de labuta no mar, balançando o corpo de frente para atrás num embalo profundo, de quando em vez, acompanhado de um recital melódico do alcorão aprendido na mocidade distante numa das inúmeras madrassas do Paquite.

O vento soprou suavemente. Pestanejei vezes sem conta e caí na emoção. Dois fios grossos de lágrimas desceram dos cantos dos olhos e precipitaram-se à boca abaixo. Suspirei profundamente. Enchi os pulmões de ar e no instante seguinte libertei-o. Manti-me alí parado como estátua se tratasse e de repente, após um ligeiro redomoinho estranho, ví avô Buanamele sentado na sua cadeira e acenando-me a mão. Tinha um olhar sereno e alegre. Seus lábios cor de mulala tremiam de emoção, deixando à vista os seus únicos quatro dentes incisivos. Tinha bochechas chupadas, olhos perdidos no fundo da órbita, corpo esquelético, pele cansada e profundas rugas na testa. Balançava na cadeira de frente para atrás trajado de túnica, cofió e chinelos de banho, seus vestes habituais às sextas-feira.

Fiz movimento para caminhar. Curiosamente as pernas cederam sem relutância e de seguida caminhei ao seu encontro. Quando me encontrei junto dele, acomodei-me medroso e atentamente na borda da varanda, sem muro, e bem próximo dele.

- Estás com medo? – Inquiriu o avô olhando-me de esguelha.

- Medo? Eu? – Sorri para disfarçar o meu real estado de espírito. – Não, avô.

- Sei que estás... – Sua voz era serena. Tinha aspecto facial descontraido, olhar meio ausente e um sentimento nostálgico. – Mas fique sossegado. Sou inofensivo.

- Obrigado. – Balbuciei.

- Ainda estou de viagem. – Comunicou ele evitando olhar pra mim. – Apenas quís vir reviver os momentos alegres que passei nesta varanda.

Mantive-me calado e com os ouvidos à sua disposição.

- Momentos que ficaram para atrás e na poeira do tempo. – Acrescentou o avô após uma breve pausa. – Anos em que pescadores com caixotes transbordantes de peixes à cabeça passavam de rua-à-rua e beco-à-beco deste bairro gritando de viva voz hopa, hopa, hopa – peixe, peixe, peixe. - e em seguida as mulheres todas lindas, vestidas de blusas de mangas compridas e curtas e capulanas multicolores amarradas à cintura, muitas delas com mussiro no rosto e lábios pintados de mulala, interrompiam os gritos dos pobres pescadores comprando o peixe, polvo e mexilhão que eram medidos aos montes modestos e justos que davam para alimentar meia dúzia de bocas sem grandes sobressaltos.

O avô fez uma pausa, durante o qual pareceu ordenar as suas ideias e depois, prosseguiu:

- Eram momentos em que o mar e os homens viviam em harmonia. Momentos em que o mar obedecia aos homens e os seus recursos pertenciam a todos. – Sorriu feliz com os olhos pregados no céu. Quando baixou-os, acrescentou: - Eram tempos em que os pescadores com os remos atravessados ao ombro e cestos de peixes suspensos na ponta do remo, distribuiam sorrisos à toda gente de tanta satisfação, gabavam-se do ofício que exerciam e viviam dele exclusivamente.

- São, com certeza, momentos que jamais voltarão! – Acrescentei com um tom de voz carregado de profunda tristeza.

- Sem dúvida! – Respondeu-me também com um tom de voz triste.

- Mas acho que nem tudo se perdeu na poeira do tempo.

- Com certeza! – Animou a sua face sulcada de profundas rugas e continuou. – Há coisas que o tempo não apaga! Por exemplo: o rubro que as acácias se revestem de Novembro à Janeiro; o simpático bailar das palmeiras gigantes; o vivo grasnar dos corvos; o azul do mar; a areia branca, macia e solta da praia; o cheiro do mar; as madrugadas prateadas; o pôr do sol silencioso; o bailar espectacular das casquinhas na crista das ondas; o verde do fundo do mar; enfim.

Calou-se. Olhou-me silencioso e depois, disse:

- Tenho que partir. – Arregalou os olhos erguendo as pestanas, encolheu os lábios e de seguida, prosseguiu: - Devem estar a minha espera para a viagem sem retorno.

- Viagem sem retorno? – Inquiri curioso torcendo o pescoço para o avô.

- Sim. – Sussurou inspencionando a nossa volta com os olhos arregalados e com um incómodo sentimento de medo.

- Schh, avô! Como assim? – Incentivei-o a continuar. – Diga-me, por favor, como se faz essa viagem?

Avô manteve-se calado e cabisbaixo. No entanto, baixei os olhos procurando perceber a maldita viagem sem retorno e quando ergui-os, a cadeira do avô balançava à sós. Levantei-me boquiaberto. Revistei o local em vão e rapidamente tratei de sumir dalí com o espírito dominado pelo medo e o corpo repleto de um calafrio estranho que deixava os cabelos tesos.
- Allman Ndioko, 23/08/2009.

- Vocabulário:

Macuti – Palha muito abundante no litoral da zona norte de Moçambique e usado para a cobertura de casa e fabrico de objectos de uso doméstico e pessoal (cestos, chapéus, leques, etç).

Tufo – Dança de mulheres kimuane acompanhada de batuques executados pelos homens.

Salama – Significa como estás? Normalmente usa-se quando se quer saber o estado de saúde doutro. Esta expressão provem do kiswahil e é usada em todas linguas de Cabo Delgado.

Alihandolilahè – Significa graças à Deus. A palavra deriva do Árabe.

Mussiro ou simplesmente n’siro – Pó derivado da fricção de um pedaço de uma árvore muito abundante no norte de Moçambique e usa-se para acrescer a beleza nas mulheres.

Mulala ou n’lala – Escova natural que usado pinta os lábios de um tom alaranjado.

Hópa ou Ihópa – Peixe.

Madrassa – Escola islámica onde aprende-se o alcorão.


- O Autor:
Francisco Absalão;
Nome artístico -Allman Ndyoko;
Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
Residência actual - Maputo.

Produto da nova vaga de escritores moçambicanos dos anos 90, cursou História da Literatura Portuguesa, promovido pelo Instituto Camões em parceria com a Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane. Tem textos literários publicados em antologias, como: Histórias do Mar (2005) e Esperança e Certeza II (2008). Venceu os seguintes concursos de contos: Historias do Mar (2005), Contos e Bandas Desenhadas - promovido pelo Instituto Camôes em Maputo/Moçambique (2006). Podem-se encontrar textos literários de sua autoria publicados em várias revistas e jornais electrónicos no Brasil, com destaque para a editora online Blocos e Recanto das Letras.


Este conto e anteriores publicados neste blogue são colaboração direta de Francisco Absalão para o ForEver PEMBA. Contos anteriores de Francisco Absalão publicados no ForEver PEMBA:

  • "Muaziza" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 17 de Maio de 2009 - Aqui!
  • "Os Leões do Diabo" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 18 de Abril de 2009 - Aqui!
  • "O Navio Ensombrado" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 13 de Fevereiro de 2009 - Aqui!
  • "O Incêndio" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 23 de Janeiro de 2009 - Aqui!
  • "O Suicídio" - Um conto de de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 02 de Junho de 2008 - Aqui!
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !

5/18/09

MUAZIZA - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Clique na imagem para ampliar - Imagem do ForEver PEMBA criada a partir da composição de gravuras recolhidas na net)

Era meia noite e época de jejum dos maometanos. A noite estava muito escura e no céu, coberto de nuvens negras, os relâmpagos festejavam ao som do trovão coriscando-o e enchendo o ambiente de uma incrível e espectacular luminosidade.

Bacar, jovem mestiço, alto, respeitoso e muito dado à religião, seguia na mota no meio da chuva grossa que teimava cair oblíquamente sobre a cidade. Enquanto seguia a estrada asfaltada, serpenteante e quase infindável, e que divide o grande e o histórico bairro Paquitequete e Ingonane, e, conduz a zona de Kumilamba, a Honda ia expelindo do escape uma fumaça esbranquiçada que pouco-à-pouco diluia-se na escuridão da noite. No entanto, a estrada achava-se deserta de gente e do foco da luz da motorizada, via-se uma infinidade de pingo de chuva que velozmente atravessavam os raios do farol cabando por desfazer depois no asfalto, já há muito tempo cossado, donde erguia o cheiro intenso de poeira molhada que impiedosamente invadia as narinas dos transeuntes. Contudo, num movimento contínuo e barulhento a motorizada ia andando desafiando a chuva teimosa do verão, quando de súbito, um vulto fez sinal de boleia debaixo de um embondeiro à beira da estrada. O jovem abrandou a velocidade e parou assim que se aproximou. Lançou a vista para o vulto no meio da chuva e descobriu tratar-se de uma rapariga dos seus vinte anos de idade.

- Peço boleia, por favor. – Disse a rapariga na maior naturalidade.

- Para onde? – Questionou Bacar em voz alta obrigado pelo roncar ensurdecedora da mota.

- Vou a Kumissete.

- Eu vou a Kuparata, mas não faz mal. – Sossegou-a Bacar e prosseguiu. – O que um jovem como eu não pode fazer para um “foguete” de mulher como tu?

A rapariga sorriu, ergueu a capulana que trazia amarada ao corpo e apoiando-se ao ombro do Bacar, subiu para a motorizada. Ela tinha o corpo totalmente molhado. Tremia de frio e dir-se-ia tratar-se de um pássaro molhado. Ela vestia uma blusa de manga comprida, lenço à cabeça, duas capulanas multicolor e chinelos de banho. Tinha ainda um par brincos de ouro nas orelhas e um brinco no nariz. Os dois braços ostentavam meia dezena de pulseiras metálicas que soavam “tlintlim” sempre que fizesse algum movimento nos braços.

- Toma o meu casaco e veste antes que apanhes gripe. – Disse Bacar tirando um casaco preto de leda que trazia trajado.

- Não. Obrigada. – Atalhou a rapariga amavelmente. – Seria demais...

- Por quê?

- Basta a boleia que me deste.

- Não concordo. – Protestou docemente Bacar como se aquela rapariga conhecesse-a há muito tempo. – Se amanhã caires doente eu me sentirei culpado, por isso, se quiseres realmente a minha boleia, por favor, aceite a minha oferta.

- Tudo bem. - Respondeu a rapariga suspirando e depois de uma breve hesitação. – Eu aceito já que insistes...

Recebeu o casaco, passou-o nas costas e vestiu-se. Bacar virou-se para observa-la. Ela tinha um trato delicado, gesto carinhoso, olhar contagiante e apaixonante. Entratanto, a rapariga abotoou o casaco em silêncio e exibindo sua dentadura branca cor de marfim, passou os braços na cintura do seu interlocutor abraçando-o calorosamente e, no fim, vagarosamente pousou a cabeça nas costas. Bacar sentiu o contacto de seio túrgidos; Um ligeiro arrepio correu-lhe o corpo abaixo, partindo da ponta dos cabelos até aos pés. Igonorou o sinal e com uma atitude ingénua, quis saber:

- Podemos ir?

- À vontade. – Respondeu a rapariga com uma voz enrouquecida.

A mota avançou e pouco-à-pouco a chuva abrandou. O trovão já ouvia-se longe e o coriscar do relâmpago via-se entre as nuvens escuras no horizonte longínquo.

- Desculpa pelo atrevimento. – Disse Bacar em “kimuane” meio embaraçado pela beleza excepcional da rapariga. – Como te chama?

- Muaziza.

- Belo nome...

- Obrigada.

- Moras em Kumissete há muito tempo?

- Acho que sim, pois, é há sensivelmente dez anos.

- Já é muito tempo.

- Pode ser.

- Gostei muito de ti. – Confessou Bacar “despido” de qualquer jeito romântico, atordoante e “cambaleante” à que muitos “patetas” nos habituaram.

A rapariga riu comovida pelas palavras do seu interlocutor; Fechou os olhos e abraçou forte o motociclista. Bacar sorriu feliz pelo sinal e continuou a acelerar a motorizada seguindo o asfalto. Passaram a zona do velho Ruela, atravessaram Kuparata, deixaram Kumilamba e na ponte da estrada da zona do Seabra e que parte do Mercado Municipal e termina em Kumissete, a rapariga questionou:

- Tu gostas de qualquer mulher que vês e apanhas na rua?

- Não. – Riu. – Só que tu não és qualquer...

- O que te garante isso?

- Não sei... mas dentro de mim algo me diz que não és qualquer mulher.

- Em que sentido, mais ou menos?

- Falo em termos de beleza.

- Ahããã...

- Que tinhas pensado?

- Nada!

- E quanto ao que te falei?

- Acho melhor deixarmos para amanhã.

- Posso ficar sossegado que a resposta será positiva?

- Penso que sim. E mais, de momento estou só e sinto que preciso de alguém especial... e se calhar és tu.

Os dois riram-se perdidamente e no fim, Bacar disse:

- Fico muito feliz em ouvir isso.

A rapariga não respondeu e Bacar continuou a conduzir a mota. Depois, em frente à um pequeno mercado, mesmo à entrada das primeiras casas de Kumissete, a mota parou e o jovem quis saber:

- Para que lado te levo?

- Óh, por aqui. – Apontou para um beco escuro que conduzia ao coração do bairro. Em seguida, acrescentou. – Estava tão distraida e que me esqueci de tudo.

A mota fumegou, a cremalheira reclamou e numa aceleração suave, arrancou enternando-se no bairro. Já no bairro as ruas estava desertas, o silêncio era incómodo e a chuva tinha parado, ficando apenas o gotejar lento e paulatino dos telhados de “macuti”. De vez enquando, ouvia-se do alto dos coqueiros um fraco grasnido de corvos espantados pelo vento.

- Podes parar alí! – Disse repentinamente Muaziza apontando para uma casa caiada.

A mota parou em frente da casa indicada. A rapariga desceu e Bacar desligou o motor questionando:

- É aqui onde moras?

- Sim.

- Com quem?

- Meus pais e dois irmãos mais novos.

Fez-se silêncio. Mas depois, Bacar quis saber:

- E quanto ao dia de amanhã, o que deverei fazer para te chamar?

- Não é amanhã é hoje.

- Sim, tinha me esquecido que é madrugada. – Sorriu levando as mãos à testa.

- Chegas aqui aceleras a mota três vezes e toca a buzina também as mesmas vezes.

- Tu vais sair?

- Sem problema.

- Teus pais não são... como direi, “chatos”?

- Não.

- Então, vejo-te amanhã as sete da noite.

- Tudo bem. – Muaziza sorriu tentando olhar o jovem nos olhos no meio da escuridão.

Bacar pôs a funcionar a mota. Muaziza deu dois passos atrás e de braços cruzados no peito esperou que o jovem avançasse. Acelerou a mota duas vezes, virou o volante e ao engatar a primeira mudança para avançar, o motor desligou-se.

- Estava me esquecendo de entregar-te o casaco. – Disse Muaziza fezendo movimentos para despir o casaco.

- Não precisa. – Apressou-se Bacar a dizer. – Podes ficar com ele agora e quando eu vier mais logo levo-o de volta.

- Não vai te fazer falta?

- Não, minha flor!

- Se tens certeza, então eu fico com o casaco e assim aproveito sentir o seu calor e cheiro durante o tempo que resta para amanhecer.

- Posso pedir-te alguma coisa? – Quis saber Bacar visivelmente excitado.

- À vontade, meu bem.

- Peço um beijo para certificar-me que não estou a sonhar.

- Não, não, não. – Disse a rapariga passando levemente o dedo indicador pelos lábios do Bacar. – Só depois quando me falares das tuas reais intenções...

- Não tem de quê! – Bacar encolheu os ombros e disse. - Concordo plenamente contigo, penso que mais logo é o momento ideal.

Pôs a mota a funcionar novamente, fez duas acelerações suaves e, despedindo-se da rapariga com um aceno de mão, arrancou mergulhando-se no escuro.

No entanto, ao amanhecer, Bacar foi a pesca na zona de Mussanja na companhia de amigos. Enquanto pescava, o jovem manteve-se meditativo durante muito tempo e cada vez que mergulhava nas profundezas dos seus pensamentos, lembrava-se da Muaziza: seus olhos esbugalhados, lábios vermelhos de “mulala”, sua face redonda e cheia, suas ancas e pernas fartas, seu jeito carinhoso, olhar contagiante e apaixonante. E assim foi até ao entardecer daquele dia.

Ao anoitecer, Bacar parou a mota à hora combinada em frente da casa caiada. Acelerou e buzinou as três vezes combinadas e depois, manteu-se a espera da saida da rapariga. Desligou o motor, apagou o farol e os farolins. Aguardou ansiosamente durante muito tempo e ninguém saiu. Os nervos subira-lhe à cabeça e lembrou-se do casaco. Buscou a coragem para entrar na casa e perguntar, mas logo hesitou. Desceu da mota e pôs-se a observar um casal de jovens que passava a sua frente. Esperou alguns minutos para ver se alguém saia da casa, mas nada! Reparou nas duas janelas da casa e viu a luz do cadeeiro e algumas sombras de pessoas desenhadas nas cortinas. Pensou rapidamente e institivamente deu dois passos à caminho da porta do quintal da casa. Nesse momento, uma rapariga, dos seus treze anos de idade, apareceu na porta e parou. Bacar aproximou-a e quase gaguejando, quis saber:

- É aqui onde vive Muaziza?

A rapariga assustou-se. Deu dois passos levando os braços ao peito e tropeçando no chão, saiu correndo para o quintal chorando aos berros. Admirado, Bacar voltou junto a motorizada. Tentou ligar o motor, mas logo a rapariga reapareceu acompanhada de um senhor que o interpelou.

- Sim. – Disse o senhor ofegante. – Em que lhe posso ser útil.

- Desejava falar com Muaziza. – Respondeu Bacar tremendo de medo.

- Estás a gozar connosco?

- Não, senhor.

O senhor suspirou, abanou a cabeça e questionou:

- Quem é o senhor?

- Um amigo da Muaziza.

Houve silêncio e dos quintais das casas vizinhas começaram a sair curiosos ávidos de inteirar-se das reais razões dos berros da rapariga. Depois de alguns instantes de silêncio tumular, o senhor prosseguiu cerimoniosamente:

- Ela morreu faz um ano e enterramos no cemitério familiar em Maringanha.

- É impossível! – Disse Bacar levando as mãos à cabeça. – Eu estive com ela ontem e lhe trouxe aqui.

- É impossível! – Repetiu o homem muito sereno. – Eu enterrei-a com estas minhas mãos. Ela adoeceu muito e morreu sete dias depois.

- Não acredito!

- Essa é que é a verdade, meu caro jovem.

Bacar girou pelos calcanhares e indagou-se:

- E o meu casaco?

- Que casaco? – Interrogou o homem que não devia ter mais do que sessenta anos de idade.

- Deixei-lhe o meu casaco porque me pareceu que estava com frio.

- Bom, talvez seja outra pessoa.

- Não pode ser outra pessoa. – Contradisse o jovem visivelmente transtornado. – Ela não tinha razões para me enganar...

- Diga-me, por favor, como era essa tal Muaziza que tanto falas. – Disse o homem pacientemente.

Rápidamente, Bacar pôs-se a descrever a rapariga e os vestes que trazia.

- É muito grave o que acabas de dizer. – Concluiu o homem. – A descrição é perfeita e os veste são os que a nossa Muaziza vestia no dia do enterro.

Houve novamente um silêncio. Depois, ouviu-se, nas varandas das casas vizinhas, o sussurar de vozes de curiosos admirando, sobretudo, o que Bacar acabara de narrar.

- Meu jovem! – Disse o homem olhando o interlocutor que se achava cabisbaixo e com ar meditativo. – Para deciparmos às dúvidas, o melhor é amanhã dirigirmo-nos à campa da nossa Muaziza...

- Concordo, plenamente.

Bacar arrancou a mota e mergulhou-se na escuridão da noite ausente de si. E já no dia seguinte, logo de manhã, os dois foram a campa da Muaziza e, curiosamente, Bacar, viu o seu casaco pousado no sepulcro e, sem mais, nem menos, caiu desmaiado.
- Allman Ndyoko (Francisco Absalão), 14/05/2009.

O Autor:

  • Francisco Absalão;
  • Nome artístico -Allman Ndyoko;
  • Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
  • Residência actual - Maputo.

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Leia também:

  • "Os Leões do Diabo" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 18 de Abril de 2009 - Aqui!
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2/13/09

O NAVIO ENSOMBRADO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Clique na imagem para ampliar - Imagem ilustrativa original do ForEver PEMBA baseada na mixagem de diversas fotos)

Não havia em toda baia de Pemba a praia mais preferida pela minha malta, para a actividade lúdica, do que a Praia da Marinha. Ela ficava por trás do Quartel da Base Naval da Marinha e era muito calma e menos frequentado por banhistas por ter características impróprias ou menos atractivas para um merecido mergulho. Tinha águas quentes e cristalinas e um chão rochoso coberto por um tapete verde de algas e outras ervas marinhas. Aqui e acolá, quando a maré fosse baixa, via-se pequenas poças de água, onde peixes minúsculos e carangueijos vermelhos aguardavam a maré cheia. Já na orla marítima, o cenário era desolador: Búzios, areia grossa, montes de algas secas, ramais, folhas de árvores e frutos silvestres trazidos pela força das águas, da outra margem da cidade, no silêncio da noite, faziam parte do cenário oferecido naquele ponto da baia.

Para além disso, era frequente avistar grupos de mulheres pintados de mussiro e com lenços na cabeça pescando cardumes minúsculos com recurso às redes finas e outras apanhando ameijoas, ostras, carangueijos e caracóis marinhos que guardavam em bacias metálicas e floreadas cobertas de peneiras. Era igualmente frequente cruzar-se com pescadores simpáticos e humildes subindo e descendo às encostas da praia descalços, de tronco nú, trajando calções rotos pela acção contínua das águas do mar, chapéus de palha e empunhando remos, fios e redes de pesca, boías e, por vezes, o pescado.

De longe, ouvia-se o marulhar das ondas, via-se barcos à motor sulcando o mar e casquinhas à vela balançando e cortando impetuosamente as águas com os remos dos pescadores servindo de leme.

Já na parte superior da orla, desenhava-se um cenário diferente e belo, um tanto quanto, esverdeado e acinzentado composto por ervas, arbustos e plantas indêmicas que davam flores fechados e inchados, cor de rosa, que precionados estoiravam produzindo um barulho ligeiro muito apreciado pelos adolescentes da baia. Uma estrada asfaltada serpenteava a orla maritima ligando Paquitequete (rocha mãe da cidade de Pemba), Ingonane, Natite, Cariacó e Wimbe. Frontalmente ao mar, a natureza oferecia uma vista espectacular em que podia-se sentir o cheiro intenso do mar e vislumbrar, na outra margem da baia, as florestas de Ulonto, Bandari e um pouco de Metuge, para além de uma cadeia de pequenos montes no horizonte longínquo que desenhava-se horizontalmente desde à entrada da baia passando por Miéze e chegando a findar no cais local.

Como dizia, a preferência pela Praia da Marinha por parte da minha "legião" não se devia simplesmente à existência de inúmeras poças de agúa por onde podia-se soltar casquinhas de brinquedo artesanal e nem ao cenário oferecido do alto da estrada, mas sim à existência na margem daquela praia de uma flotilha da marinha de guerra avariada, desactivada e com o casco quase a cair de podre.

Este navio servia de sobremesa das nossas brincadeiras e era nele que aconteciam as nossas derradeiras brincadeiras, subindo ao convés, correndo por entre os corredores dos camarotes, acenando na claraboia, descendo à casa das máquinas, correndo com a mão passando na borda do navio e saltando do barlavento para o chão de areia grossa e branca como a neve, onde depois voltavamos a entrar para a casa das máquinas através de um pequeno orifício feito pelas águas do mar no casco da flotilha bem junto à hélice bronzeada que há muito resistia às investidas nocturnas do mar.

Uma certa tarde de Dezembro, após às nossas brincadeiras no mar, uma camada espessa de nuvens escuras cobriu inesperadamente o sol quando lentamente caia no horizonte colorindo o ambiente de um tom alaranjado. O céu ficou sinistro e rugiu vezes sem conta, como se do alto lançassem inúmeros tambores vazios que rolando rapidamente precipitavam-se para o outro lado da baia num percurso quase infindável.

- Vamos ao navio! – Disse Amur visivelmente dominado pelo medo do fenómeno que ocorria.
- Não. – Atalhou Saide e continuou. – Melhor é corrermos para casa...

Mal disse estas palavras, ouviu-se um forte ribombar do trovão acompanhado de um relâmpago assustador que corriscou os céus emitindo faíscas vivas que acabaram se lançando rapidamente na imensidão do azul do mar. Molhados pelas águas do mar da ponta dos pés aos cabelos, saímos correndo atrapalhados ao encontro de um abrigo no navio amigo. Entramos pela abertura junto à hélice, alcançamos a casa das máquinas e no meio da penumbra subimos ao convés passando por dois camarotes trancados. Já no convés, a chuva despenhou-se em catadupa sobre a baia criando má visibilidade no mar e na terra firme.

- Estamos tramados! – Disse alguém entre nós.
- Não se preocupem! – Disse-lhes em jeito de encorajamento. – Isto é simplesmente uma nuvem passageira.
- Espero que realmente as tuas palavras sejam reais. – Desabafou Saide encolhido nos seus vestes molhados.

A chuva caiu todo fim da tarde acompanhado de relâmpagos e rugidos de trovão. Longe da chuva abrandar-se, a noite fez-se presente com as trevas envolvendo lentamente o ambiente. O silêncio no navio tornou-se incómodo e a escuridão pesadíssima. De quando em vez, ouvia-se o ranger das portas dos camarotes e o bater constante e suave de uma chapa na zona entre a popa e a proa.

De súbito, ouviu-se um forte sapatear no corredor dos camarotes acompanhado de vozes imperceptíveis que se confundiam com humanas e animais de tipo gato selvagem. Ficamos atentos com os ouvidos apurados e muito medrosos sem saber o que fazer. De repente, o sapatear infinito e as vozes imperceptíveis cessaram e lá fora a chuva abrandou e a trovoada começou a ouvir-se longe.

- Vamos embora, gente. – Sugeriu Nuro sussurando. – Isto não é normal.
- Mas donde sairemos? – Quis saber Saide medrica.
- Há uma pequena escada no princípio do corredor que leva aos camarotes que sobe até ao mastro. – Respondi-lhe sussurando e mais ou menos tranquilo.
- Então o que esperamos? – Amur briu as mãos reforçando as palavras e prosseguiu. – Vamos devagar e sem barulho.

Iniciamos a marcha pé-ante-pé e instantes depois ouviu-se o som de arrasto de correntes metálicas no corredor acompanhado de uivos e gritos humanos de desespero. Paramos e dirigimo-nos à claraboia. Os sons metálicos, os uivos e os gritos prosseguiram já com muita intensidade seguido de um outro som de abrir e fechar a porta com impetuosidade. Ficamos com os corpos e cabelos arrepiados e no meio do escuro vimos vultos altos vestidos de branco movendo-se vagarosamente em nossa direcção. Num impulso imperceptível, Nuro forçou uma das vidraças da claraboia e caiu quebrada no chão do lado frontal do navio. Pendurou-se na abertura e com pouco esforço, devido ao seu tamanho, lançou-se à borda lateral esquerdo do navio, onde caiu e sentou-se contorcendo-se de dor. Rapidamente, todos emitamos desesperadamente a proeza do Nuro e já fora do convés saltamos em conjunto para o chão profundo e arenoso, onde em seguida saimos correndo em debandada subindo a encosta da praia e mergulhando no escuro através de um pequeno e cansativo atalho tortuoso que conduzia à estrada que serpenteava o litoral. Assim que alcançamos o asfalto todos ofegantes, imediatamente, atravessamos a estrada e sem olhar para atrás, corremos desesperados debaixo da chuva que não parava de pancadear-nos com os seus pingos doces que, atingindo-nos à cabeça, escorriam involuntariamente até a boca, onde eram imperceptivelmente sorvidos com gosto no meio daquela corrida involuntária. Entretanto, atravessamos o Quartel da Marinha correndo em diagonal e, com a velocidade quase de uma estrela candente, deixamos para atrás espaços baldios e arborizados e, sem dar em conta, derrubamos arbustos e capim alto. Contudo, transcorrido algum momento desembocamos, sãos e salvos, na estrada que separa os bairros de Ingonane e Paquitequete, onde paramos no meio da luz de um poste de iluminação pública e deitamos em conjunto os olhares para atrás todos exaustos e com a respiração arquejante.
- Allman Ndyoko, 05/02/2009.
- Extrato do livro: Contos de Infância Distante.

O Autor:

  • -Francisco Absalão;
  • -Nome artístico -Allman Ndyoko;
  • -Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
  • -Residência actual - Maputo;
  • Breve biografia - Nasceu em Pemba no não muito longinquo ano de 1977. De pais originários do sul de Moçambique, residiu em Pemba de 1977 a 1990 quando foi residir para Maputo onde trabalha e tenta prosseguir os estudos (ciências sociais).

Leia também:

  • "O Incêndio" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 23 de Janeiro de 2009 - Aqui!
  • "O Suicídio" - Um conto de de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 02 de Junho de 2008 - Aqui!
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !

6/03/10

O Retorno - Um conto de Allman Ndyoko

(Clique na imagem para ampliar)
Um vento forte fustigou levantando uma nuvem de poeira e os vestes de Mbalale, que imediatamente esvoaçaram na direcção do vento. Volvido algum momento, o vento parou. Uma neblina cobriu o ambiente e uma escada longa, dourada e sem corrimão surgiu na sua frente elevando-se até ao céu coberto de nuvens brancas e espessas. Um impulso inexplicável impeliu Mbalale a subir os degraus. Vagarosamente e ausente de si, foi subindo a escada que parecia sem fim e à medida que galgava ia sentindo o corpo gélido, equilibrado e quase sem anomalias. Uma paz interior invadiu o coração e a memória de acontecimentos recentes se esvaiu como um relâmpago. Em sua volta, à escassos metros donde se encontrava caminhando, sem saber para onde, seres humanos voadores trajados de branco e com as costas pregadas de asas lhe vigiavam cautelosamente acompanhando o seu percurso.

Entretanto, chegou a um ponto onde as nuvens viam-se em baixo a uma distância consideravelmente longa. Contudo, prosseguiu a marcha mesmo sem saber o destino e mais adiante, encontrou um homem alto, robusto e de capuz empunhando um cajado. Ele achava-se parado no meio do percurso, onde a escada se dividia em duas partes tomando direcções opostas. Nesse ponto, iniciavam dois caminhos de terra cor branca como as areias da praia. Nas extremidades desses caminhos achava-se uma infinidade de flores que se estendiam na terra formando um tapete colorido de beleza incomparável. Ao aproximar-se do sujeito, Mabalale parou e logo foi-lhe ordenado a seguir o caminho que conduzia à direita. Enquanto marchava no novo caminho coberto de céu azul, Mbalale ouviu vozes de gente cantando em uníssono cânticos desconhecidos, mas belos e contagiantes. Doutro caminho que ia à esquerda chegavam-lhe aos ouvidos gemidos de gente, gritos de socorro, estalidos de chicote e sons de correntes metálicas arrastadas no chão pavimentado e pedregoso. Porém, prosseguiu a marcha até a uma cancela guardada por homens robustos e valentes, onde parou aguardando ordem. Nesse instante, deitou a vista do lado oposto à cancela e viu uma multidão de gente sentado no chão aguardando a chamada para o ponto donde vinham as vozes dos cânticos belos e confortantes. Nessa multidão, Mbalale viu seus parentes mortos há muitos anos também sentados junto à multidão. Ficou perplexo e de queixo caido. Esbugalhou os olhos e nesse instante ouviu deles:

- Ninguém te chamou. A tua hora ainda está por vir...

Enquanto diziam isto em coro, repetidas vezes e de cabeça cabisbaixa, um guarda da cancela tocou as costas do Mbalale com um cajado e ordenou-o a retornar. Sem resistência e muito indiferente, Mbalale voltou a percorrer o caminho que havia andado e mais adiante encontrou um homem com um capuz parado na berma. O homem interrompeu o marchante e logo disse-lhe:

- Siga este caminho. – Apontou para um ponto que descia e no fim via-se uma floresta densa e escura. – Mais adiante encontrarás alguém perto de um lago e essa pessoa te servirá água numa cabaça. Não bebas e prossiga a marcha. Mais em frente, voltarás a encontrar outra pessoa que também encontra-se ao lado de um lago de água limpa, fresca e reluzente e quando servir-te aceita-a, beba e prossiga. Entendeu?

- Entendi! – Respondeu Mbalale uma vez mais ausente de si.

Na verdade, mais em frente encontrou o primeiro homem de capuz preto que imediatamente lhe serviu água de forma astuta, mas Mbalale recusou a oferta conforme havia lhe instruido o guarda da cancela. Já adiante, encontrou o outro homem de capuz branco que lhe serviu água numa cabaça. Mbalale aceitou a oferta e antes de levar a cabaça aos lábios, tratou de olhar para o lago e viu que tinha águas limpas e reluzentes. Então, bebeu o líquido seguramente e quando engoliu a última gota da cabaça viu-se no cemitério, no meio de uma clareira, onde gente da sua povoação lhe rodeava chorando e preparados para o sepultar. Desfez-se dos panos que lhe envolviam e alguns aldeões fugiram a sete pés medrosos pelo retorno misterioso do ex-finado ao mundo dos vivos, naquela tarde de Junho de sol avermelhado... 
- Allman Ndyoko, Pemba 09/04/2008.

4/18/09

OS LEÕES DO DIABO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão).

(Clique na imagem para ampliar - Imagem original do ForEver PEMBA)

Era madrugada. Uma chuva miúda caía obliqua e desinteressada sobre a vasta e densa floresta de Ninga. O vento soprava levemente enquanto os pássaros encolhidos nos ninhos, construídos nos galhos de árvores frondosas e seculares, chilreavam anunciando o alvorecer. As sombras da noite desapareciam lenta e pausadamente como se despedissem do ambiente, rumo ao outro lado do mundo.

Algum tempo depois, os aldeões de Ninga acordaram, pausadamente e um de cada vez, como é lógico, todos ressacados pelo terror de um casal de leões que decidira, há sensivelmente um mês, atormentar a pacata aldeia em protesto a actos pouco toleráveis para os felinos, uma vez que, vezes sem conta estes viam seus rastos seguidos pelos aldeões sempre que abatessem uma presa, e, como consequência era-lhes roubada a carne comprometendo assim a sua subsistência. Sem alternativa, os felinos viam-se atentados a atacar os seres humanos, principalmente, as mulheres que passavam a maior parte do dia no campo cultivando com os filhos às costas. Já viciados pela carne humana, os felinos viam o retrocesso dificultado, uma vez que, consideravam o Homem uma presa fácil. Daí que, dia-após-dia, vários casos mortais causados por ataques de leões eram reportados na aldeia semeando o terror entre os aldeões.

No entanto, naquela manhã de chuva miúda Cosme acordou sobressaltado. O coração batia-lhe forte e a respiração tornava-se cada vez mais arquejante. Sentou-se a beira da cama ainda perplexo e incrédulo correu os olhos à volta do aposento, como se procurasse algo misterioso que vira há escassos momentos, e no fim, passou a palma da mão esquerda na face limpando o suor que lhe escorria pela face abaixo. Suspirou profundamente como se com o suspiro quisesse manifestar o alívio de se ver salvo de um perigo real; Acordou a mulher que dormia profundamente abraçada ao bebé e quando sentou-se no meio da cama abraçou-a expansivamente. Admirada, a mulher limitou-se a olha-lo como se este estivesse em exposição. Cosme olhou a mulher nos olhos no meio da penumbra e no final, com a voz enrouquecida, disse:

- Tive um mau sonho. - Calou-se. Pareceu ordenar as ideias e depois prosseguiu. - Vi um homem correndo na floresta apavorado. Passou por mim dizendo algo imperceptível e mais adiante, próximo a uma clareira foi subitamente atacado por dois leopardos e caiu no chão inerte. De seguida, arrastaram-no para o coração da floresta olhando-me nos olhos como se quisesse me dizer algo. Dali, um estranho redemoinho fez-se presente no meio da clareira levantando para o céu tudo quanto havia solto no chão e do nada ouviu-se o pranto de um bebé e acordei assustado.

Cosme calou-se. Baixou os olhos, manteu-se pensativo e visivelmente dominado pelo sonho.

- Penso que é normal. - Sossegou a esposa. - Deve ser o reflexo da situação que vivemos na aldeia nos dias que correm.

- Não. - Atalhou meneando a cabeça. - Isto não vem atoa... deve ser algum aviso dos antepassados.

- Como?

- Algo estranho vai acontecer nos próximos dias com alguém da nossa família.

- Deus me livre! - Disse a mulher amarrando a capulana à parte superior dos seios. - Bate a boca... Isso é besteira e nada disso vai acontecer, salvo se fôr obra de feiticeiro.

- Está bem! - Cosme ergueu-se da cama. Vestiu-se rapidamente e fez movimento para caminhar em direcção ao quintal. - Façamos de conta que é definitivamente uma bobagem; Mas cá por mim, o caso é sério...

A mulher abanou a cabeça, abandonou a cama e começou a preparar-se para a nova jornada do dia na machamba.

Já no quintal, Cosme alimentou os porcos, patos e as galinhas. Afiou a catana, juntou os instrumentos da machamba e sentou-se num tronco acendendo o tabaco com um pedaço de lenha acesa, que ao longo da noite resistira à intempérie no meio da cinza da fogueira, feita na varanda da palhota.

Pouco depois, Cosme vociferou:

- Óh, mulher vamos embora. Está ficando tarde...

- Já vou, pai de Nené. - Respondeu a mulher na palhota e continuou. - Estou a separar o milho para a sementeira...

- Seja rápida. O tempo não espera à ninguém.

Dito isto, Cosme continuou a fumar o tabaco enrolado no papel caquí. De quando em vez, aspirava voluptuosamente o fumo envadindo temporariamente o espaço em que se achava acomodado e, noutras vezes, tirava a fumaça pelas narinas e, imprimindo uma dose de pressão, a fumaça esbranquiçada formava duas linhas grossas que se diluiam lentamente no espaço.

No entanto, tossiu duas vezes e, finalmente, a mulher apareceu na porta com o bebé às costas e uma enorme peneira sobre a cabeça. Atravessou a porta fechando-a nas costas; Já no meio do quintal tomou a enxada e caminhou colocando-a no ombro. Em silêncio, Cosme ergueu-se, apagou o tabaco na areia e emitando o gesto da mulher, levou uma catana na mão e armou-se de arco e flecha.

No limiar da aldeia, o casal parou para saudar uma família amiga que se dirigia à machamba que ficava no lado sul da aldeia.

- Óh, Cosme! Como vai a família? - Quis saber um idoso de barbas desleixadas que vinha também na companhia da família.

- De saúde estamos bem. Os porcos, as galinhas, os patos e outros animais lá de casa estão de saúde graças aquele - Apontou no céu num ponto impreciso e acrescentou - que nos fez e criou...

- Isso alegra-nos ouvir. - Disse uma mulher que parecia esposa do velhote de barbas desleixadas.

- A porca pariu quatro crias e a família alargou. - Informou Cosme visivelmente emocionado.

- A notícia é confortante... - Retorquiu o velhote pousando uma trouxa no chão.

- Acompanhou a notícia de ontem à tarde? - Inquiriu a mulher que vinha com o velhote.

- Não. - Atalhou Cosme aguçado pela curiosidade. - O que sucedeu desta vez nesta nossa linda aldeia?

- Ontem às seis da noite, nas casas próximas ao terreiro, uma mulher de meia idade foi atacada por um casal de leões ao afastar-se da palhota para fazer necessidade menor. O marido, que se encontrava sentado na varanda da palhota, apenas ouviu um grito de aflição e quando acudiu era tarde! O homem apenas apanhou um pedaço de lenço que a mulher trazia na cabeça e todo estava ensanguentado!

- E os vizinhos? Que fizeram nesse momento?

- Quando os vizinhos acudiram puseram-se imediatamente ao encalço do rasto no meio da escuridão já pesada e no bosque próximo ao velho cemitério, no meio do capim, acharam a cabeça e o braço da mulher e logo presumiram que os leões haviam arrastado o resto do corpo. De manhã só apanharam algumas peças insignificantes do corpo.

- Isso é triste e incrível se tivermos em conta que a zona há um tempo atrás era aparentemente despida de situações similares e de um momento para o outro, como vindo do nada, aparece-nos situações de leões...

- Este cenário não é normal, caro Cosme! - Concluiu o ancião consternado. - Creio que estes leões são movidos por um feiticeiro que tem problema com um familiar ou alguém qualquer. Esse feiticeiro transforma-se em leão juntamente com outra pessoa de sexo feminino, que pode até ser esposa, afim de atacar seus inimigos.

- Até que isso pode ser verdade! - Observou Cosme. - Pois, os leões de Deus não atacam pessoas.

- Mas que fazer?! - Inquiriu o ancião erguendo sua trouxa e fazendo movimento para caminhar.

- Os aldeões devem reunir-se para estudar esta situação... - Respondeu Cosme.

- Adeus, Cosme.

- Adeus, meu velho.

O ancião iniciou a caminhada juntamente com a família que lhe aguardava pacientemente a beira do caminho, entre capim verde e seco.

- Tenha um bom dia de trabalho e veja se regressas cedo a casa!

- Não se preocupe, meu velho. Eu estou já preparado para o que vier. Eu é que surpreenderei os leões antes deles pensarem em fazer o que fôr comigo ou com a minha família.

- Deus te ouça. - Gritou o velhote de costas viradas para o seu interlocutor.

As famílias separaram-se e o casal mergulhou-se na floresta com destino a machamba que distava há cinco centenas de metros da povoação. Enquanto caminhava no meio da floresta densa seguindo um caminho serpenteante que se perdia pela mata adentro e que se cruzava com outras tantas que conduziam à diversos destinos dentro da floresta, Cosme e sua companheira iam ouvindo o chilreio dos pássaros, o trautear incessante das cigarras, o barulho de macacos empoleirados nos galhos das árvores e as vozes entrecortadas dos aldeões que se entregavam ao labor nos campos distantes e verdejantes.

Volvidos alguns momentos, chegaram a machamba. A mulher pousou no centro do campo a peneira que trazia à cabeça. Enclinou o corpo para afrente, desamarrou o bebé no colo e voltou a amarra-lo com tenacidade. De seguida, começou a trabalhar a terra cantarolando feliz com a vida. Em silêncio, Cosme afastou-se da machamba enternando-se na floresta afim de arranjar algumas estaca para concertar o curral de porcos na sua casa.

Passado algum momento, Cosme ouviu um forte grito de aflição e saiu da floresta correndo a sete pés para acudir. Ao chegar na machamba deparou-se somente com a capulana ensanguentada e o bebé a chorar no chão, todo coberto de lama. Tomou o bebé e com a catana no punho precipitou-se a seguir os rastos com vingança na alma.

- Floraaaaa! - Cosme soltou um grito rouco de raiva e continuou. - Floraaaa! Cadê você!...

Vinte metros da machamba e próximo a um arbusto, parou repentinamente: um casal de leões disputava o pescoço da Flora abocanhando-a vezes sem conta e sem vida. Ao aperceber a presença do homem, o macho parou e rosnando fez frente ao estranho exibindo seus dentes afiados e olhos amarelos.

- Daqui não saio sem a minha Flora. - Disse Cosme em voz alta e segurando firmemente a catana com a mão direita. - Sei que vocês não são leões de Deus e por isso, daqui não saio sem o que é meu...

O leão continuou a rosnar procurando amedrontar o homem e reduzindo paulatinamente a distância que lhes separava. Com um movimento lento e atento, Cosme recuou alguns passos procurando controlar os ânimos do felino. De repente, a fêmea desapareceu pelo mato arrastando o corpo morto da mulher, e, vendo esta atitude, o macho seguiu-a desaparecendo ambos pela mata densa. Inconformado, Cosme seguiu-os novamente, como um búfalo ferido, varrendo com a catana tudo quanto era obstâculo à sua frente e próximo a um riacho viu os felinos galgando uma pequena elevação sem a presa. Apercebendo-se disso, Cosme procurou avistar o corpo e de súbito viu-o preso nos espinhos de duas árvores tombadas à beira do rio e do lado onde se achava. Correu desesperado até junto ao corpo, onde desamarrou uma das capulanas que ainda restava e, ensanguentada, serviu-se para amarrar nas costas o bebé que não parava de chorar. Atento a tudo, ergueu o corpo tombado; Calmamente, rodou pelos calcanhares e procurou voltar a aldeia com o cadáver nos braços.

Caminhou durante muito tempo olhando para atrás e às vezes parando desconfiando ser seguido. Já próximo ao limiar da aldeia parou para descansar. Nesse momento, deitou a vista em redor e há uma centena de metros viu o casal de leões atravessando o caminho em diagonal, dirigindo-se lentamente ao lado sul da povoação muito atento ao homem e a presa. Desconfiado, Cosme retomou a marcha e nas primeiras casas da povoação foi recebido por homens e mulheres no meio de gritos de espanto e pavor.
- Allman Ndyoko (Francisco Absalão), Abril 2009 - Extrato do livro Contos de Infância Distante.

O Autor:

  • Francisco Absalão;
  • Nome artístico -Allman Ndyoko;
  • Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
  • Residência actual - Maputo;

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Leia também:

  • "O Navio Ensombrado" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 13 de Fevereiro de 2009 - Aqui!
  • "O Incêndio" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 23 de Janeiro de 2009 - Aqui!
  • "O Suicídio" - Um conto de de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 02 de Junho de 2008 - Aqui!
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !

1/23/09

O INCÊNDIO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão).

(Clique na imagem para ampliar - Imagem original do ForEver PEMBA)

Passavam poucos dias que as aulas na escola haviam terminado e o espirito de férias já manifestava-se em nós através de inumeras brincadeiras: caça aos passarinhos, às escondidas nocturnas, o passeio desautorizado ao quartel da “Meia-Via”, o banho na praia do INOS, a visita ao navio abandonado nas imediações da base naval da marinha, a perseguição nos galhos das amendoeiras do jardim infantil, roubo de amoras e jambalão no quintal da SOGERE, entradas “roubadas” nos jogos de futebol do Estádio Municipal, entre outras.

Uma certa manhã de céu azul e de sol dourado, eu, Quino, Amur, Bacar – o filho do árbitro – e Kaidar, o filho primogénito do ché Omar, jogavamos o “bate-sai” com a bola de trapo junto à valeta que delimita os bairros de Ingonane e Natite, precisamente, atrás do belo monumento de emulação socialista, quando de súbito alguém entre nós gritou em macua apontando à zona cimento:

- Olhem pra aquilo!

Paramos o jogo; Kaidar pegou a bola, pôs debaixo do braço e pregou o olhar na direcção da zona cimento. Imitamos o gesto rapidamente e os nossos olhos viram uma nuvem enorme de fumaça preta que teimava subir ao céu acompanhada de grandes labaredas que ameaçavam engolir a zona intermédia entre o fundo do Hotel Cabo Delgado e o prédio Cunha Alegre.

- É o hotel a arder! – Disse Kaidar em voz alta.
- Não. – Atalhou Bacar e acrescentou meio excitado. - Parece o prédio Cunha Alegre...
- É inacreditável! – Gritei pasmado pelo acontecimento.
- Vamos ver de perto. – Sugeriu Quino fazendo movimento para caminhar.
- Não. Não dá, é perigoso. – Advertiu Amur visivelmente dominado pelo medo.
- Vamos, malta! – Insistiu Quino movido pela curiosidade.

Kaidar fitou a malta de esguelha por algum momento. Com uma espressão corporal que denunciava-lhe uma apetencia voraz de matar a curiosidade, cedeu a insistência do Quino iniciando a marcha decididamente com o destino ao coração da pacata e modesta cidade de Pemba, vulgarmente conhecido por “wa Texeira”, entre os nativos.

Timidamente o gesto foi imitado por todos nós e juntos precipitamo-nos a seguir um pequeno percurso da estrada, muito arenoso, que levava a zona urbana. Trajando camisas e camisetes cansados de uso, calças e calções desbotados, empoeirados, rotos nos tornozelos e nas nádegas e denunciando orgulhosa e humildemente a nossa origem, iniciamos, pouco tempo depois, a andar na estrada de terra batida, cor vermelha e poeirenta todos ofegantes e banhados de suor.

Enquanto caminhavamos curiosos, dos dois bairros vizinhos vinham gente despertada pela fumaça e pelas linguas de fogo assustadores que bailavam ao sabor do vento ameaçando à qualquer instante causar tragédia. Mais adiante, juntamo-nos a um grupo de homens, mulheres e adolescentes que também dirigia-se ao nosso destino.

- Dizem que um bandido armado ateou fogo os últimos quartos do hotel e fugiu à sete pés, sem deixar rastos. – Explicou alguém no meio da multidão.
- Ouviram?! – Questionou Amur sussurando e tomado pelo medo.
- Não é nada isso. – Tranquilizou Quino muito confiante. – Deve ser um boato.
- E se fôr verdade? – Interroguei-o contaminado pelo temor do Amur.
Quino não respondeu e limitou-se a marchar. Naquele momento ideias medrosas fizeram a minha mente sua oficina e diversas imaginações macábras passaram insistentemente na minha consciência, um tanto quanto, repletas de razão. Pois, a guerra de desistabilização estava nos seus momentos iniciais em Cabo Delgado, pese embora Pemba não se ressentisse tanto como em algumas províncias do centro e sul do país, donde vinham relatos de cenas aterrorizantes protagonizadas por bandos armados; Daí que, todo cuidado era pouco, e razão pela qual todos viviamos em constante vigilância, que na altura apelidou-se de vigilância popular. Porém, deixemos de lado esta página triste da história de Moçambique independente e voltemos ao mais primordial.

Volvido algum momento alcançamos a zona urbana. Atravessamos uma ponteca de ferros de linha férrea atravessados horizontalmente de uma extremidade da valeta principal à outra secundária muito pequena, que delimita a zona urbana e a peri-urbana e começamos a percorrer a avenida Eduardo Mondlane no seu lado asfaltado, que ficava à escassos metros do local do incêndio.

A cidade estava agitada, barulhenta e abarrotada de gente apavorada que aproximava e saia do local do incêndio provocando um murmúrio ensurdecedor. Tanto no hotel, assim como, nos estabelecimentos comerciais e nas residências das redondezas eram visíveis rostos espantados pelo acontecimento e indignados pela ausência de corpo de bombeiros na cidade. Já próximo do sinistro, homens e mulheres civis e alguns militares corajosos tentavam em vão extinguir as chamas com areia e água trazidas da vizinhança em pequenos baldes. Enquanto isso sucedia, na carroçaria do camião ressaltavam faúlhas muito reluzentes acompanhadas de um estalar constante de madeira e as chamas, por sua vez, elevavam-se cada vez mais ao céu ameaçando queimar os fios de transporte de energia eléctrica da rua 12.

No entanto, houve uma explosão repentina acompanhada de uma bola enorme de chamas vermelhas. Abrigamo-nos todos medrosos debaixo de uma das palmeiras que erguia no centro das duas faixas de rodagem da avenida Eduardo Mondlane.

- O que vem a ser isso? – Questionou Amur.
- Deve ser o tanque do camião. – Disse uma idosa que também abrigara-se numa das palmeiras próxima.
- Camião? – Inquiriram todos em coro e incrédulos.
- Sim. – Gritou a idosa arranjando-se uma das capulanas que lhe desprendera do corpo no momento da explosão. – É um camião militar que, sem mais, nem menos, entendeu pegar fogo no meio da estrada quando vinha roncando no sentido descendente da rua 12.

Quando a velha acabou de proferir estas palavras, deflagraram tiros de armas ligeiras no meio do incêndio, fazendo os curiosos correrem em debandada em todas as direcções. Nesse instante, um bando de corvos que grasnava nas palmeiras douradas do centro da cidade bateram as asas em vôo espectacular e desapareceram nas frondosas amendoeiras e incontáveis amoreiras do parque infantil do ring desportivo.

- Vamos pra casa, malta. – Anuiu Amur tremendo de medo.
- Nem pensar! – Contrariou Kaidar. – Agora que estamos aqui vamos procurar saber o que realmente está a passar-se.
- Concordo contigo! – Observou Bacar olhando para a fumaça cinzenta e escura que já abrandava de intensidade deixando mais nítido o camião militar em chama.
- Let´s go, malta. – Decidiu Quino iniciando a caminhada.

Retomamos a marcha já rapidamente por entre as palmeiras douradas da faixa central da grande avenida e pouco depois, alcançamos a rotunda das avenidas 25 de Setembro e Eduardo Mondlane que fica em frente do Hotel Cabo Delgado. Embrenhamo-nos corajosamente no meio da multidão e com muita agilidade como formigas encontramo-nos, finalmente, a escassos metros do camião em chama. Era um Ziro Russo, cor verde e de caroçaria de madeira. Tinha o vidro frontal caido e estilhaçado no capón, seis rodas grandes vazadas e em chama.

- Deus do céu! – Exclamei visivelmente excitado e continuei inquirindo. – Como foi possível isto?!
- Houve um curto circuito... – Respondeu-me alguém dentre os espectadores vizinhos.
- Ninguém morreu? – Quís saber Quino.
- Felizmente, não! – Disse uma senhora que se achava à nossa frente vestida ao rigor a moda macua: lenço na cabeça, blusa de manga comprida, brincos nas orelhas e no nariz, capulanas multicolores, pulseiras nos braços e chinelos nos pés.
- Mas porquê não criam um comando de bombeiros nesta cidade? – Questionou em voz alta um velhote visivelmente irritado com o que sucedia.
- Estão a espera que aconteça o pior! – Alguém respondeu no meio da multidão em tom de voz cómica.

Porém, as chamas consumiram o camião, por completo, no meio de olhares impotentes dos mirones e no fim, o fogo abrandou deixando o local poluido de fumaça esbranquiçada e espessa, acompanhada de um forte cheiro de borracha queimada.

Passado algum momento, a multidão foi esvairando-se até que não tendo mais graça a permanência no local, saimos dalí correndo e brincando animadamente o pega-pega com destino ao jardim infantil, próximo ao campo municiapal.
- Allman Ndyoko, 20/01/2009, para o ForEver PEMBA.
- Extrato do livro: Contos de Infância Distante.

O Autor:
-Francisco Absalão;-Nome artístico -Allman Ndyoko;
-Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
-Residência actual - Maputo;
-e.mail's:

Leia:

  • "O Suicídio" - Um conto de de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 02 de Junho de 2008 - Aqui!
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !

8/09/10

OS RAPTORES E A MAGIA NEGRA - Um conto de Allman Ndyoko

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Era uma noite de lua cheia e de céu ornado de estrelas. No povoado de Mbomela fazia frio que se sentia até as entranhas da medula e no céu iluminado, aves nocturnas e de rapina sobrevoavam o espaço cortando a aldeia de lés-a-lés num vôo sem retorno. A floresta, na sua imensidão, repousava em silêncio tumular  escutando os assobios desesperados dos grilos e o bater das asas dos mochos e morcegos que davam vida à noite.

O povoado de Mbomela estava silencioso e nos quintais de muitas palhotas, linguas de fogo bailavam no espaço crepitando, de quando em vez, ao prazer do vento, enquanto em volta corpos de homens e mulheres mal protegidos procuravam incansavelmente o calor da fogueira para extinguir o ar frígido que teimava fazer investidas aos aldeões incautos. Enquanto se aqueciam na fogueira, os aldeões iam aguardando com ansiedade e paciência as ordens dos anciãos, reunidos com muntela na chitala da povoação, conversando sobre a onda de raptos de raparigas e mulheres adultas que fustigava a aldeia Mbomela. Naquela semana, haviam circulado no povoado rumores sobre um grupo de homens de povoações distantes que raptava mulheres no caminho que conduzia a fonte e lhes encaminhavam às suas povoações, onde após diversas incisões ao longo do corpo e diversos rituais de convocação da amnésia com vista ao esquecimento total do passado e, principalmente, da sua proveniência, inseriam-as na nova comunidade, onde podiam casar-se com a finalidade de reproduzir para povoar a aldeia dos raptores. Estas mulheres adquiriam imediatamente os direitos sociais detidos pelas mulheres nativas e em casos muito raros conseguiam retornar às suas aldeias de origem, maior parte das vezes, sob a cumplicidade de alguém da nova comunidade que sentia compaixão por elas, principalmente, as que haviam deixado filhos menores na sua comunidade.

Entretanto, as mulheres de Mbomela achavam-se aterrorizadas com as notícias que circulavam, pois viam-se inevitavelmente impelidas ao perigo pela força dos papéis sociais desempenhados na comunidade, cujo alguns obrigavam-as dia-após-dia a percorrer distâncias incríveis em busca da água, elemento essencial da vida humana, em zonas veiculadas como prováveis esconderijos dos raptores. Todavia, o conselho dos anciãos da povoação havia tomado em conta a preocupação e naquela noite frígida e silenciosa encontrava-se reunido na chitala com um muntela para encontrar a solução do problema.

Volvido algum momento, a reunião chegou ao fim e o muntela trajado de retalhos de peles de animais ferozes e com amuletos pendurados ao pescoço avançou até ao limiar da povoação, onde com ajuda de um rabo peludo de leão, simbolo do poder mágico-tradicional, fez um circulo em volta da aldeia. De seguida, fez uma cruz no chão e no ar da entrada do povoado balbuciando algo imperceptível que dir-se-ia um cântico mágico e no fim, caminhou despido em plena luz lunar até ao terreiro, onde a dentada degolou um galo e deixou-o estrebuchar até a última agonia. Um grupo de quatro anciãos trouxe um pote contendo água e raizes de diferentes plantas e depositaram em frente do muntela que sacudia pausadamente no ar o rabo de leão dizendo algo imperceptível. Depois, o muntela mergulhou uma cabaça na infusão do pote, levou aos lábios, encheu a boca e borrifou o líquido com força sobre a ave já morta e disse:

- Chamem as raparigas e as mulheres adultas para o ritual.

Rapidamente, vários anciãos sairam em busca das raparigas e mulheres adultas em idade reprodutiva, enquanto o muntela retalhava a mão e a dentada o galo morto sob o olhar curioso de alguns anciãos que lhe assistiam em silêncio. No entanto, o muntela juntou os retalhos da ave na infusão e mexeu-a com ajuda de um pau, razoavelmente, comprido dizendo palavras estranhas e desprovidas de sentido. No fim, fez uma enorme fogueira e cantando no silêncio da noite com a voz nítida, deu um salto brusco sacudindo o velho corpo numa coreografia contagiante.

Dali em breve, o terreiro ficou repleto de mulheres e o muntela fez incisões na testa aplicando seguidamente um pó negro de ervas queimadas e trituradas. Depois, as mulheres beberam a infusão e o muntela advertiu:

- O que acabaram de beber chama-se infusão da velhice e qualquer pessoa que quiser raptar-vos verá em vós autênticas velhotas andando trémula e apoiando-se à bengala. Por isso, quando se encontrarem com possíveis raptores não tenham medo e procurem depositar a vossa fé neste ritual que acaba de acontecer.

Dito isto, as mulheres dispersaram-se e o terreiro ficou novamente silencioso. O muntela extinguiu a fogueira, vestiu-se calmamente e na mesma noite abandonou a aldeia acompanhado por seis anciãos.

Ao alvorecer, o dia nasceu brumoso e ruidoso. Ventos moderados lançavam-se contra a floresta acompanhados de chuva miúda e obliqua que vergastava o ambiente provocando o cheiro intenso da poeira.

Um grupo de mulheres de Mbomela saiu em busca da água na floresta. Caminhou durante muito tempo no meio da mata fechada e num atalho tortuoso ladeado de arbustos de sombras escuras e por fim, aproximou-se a fonte. Já na floresta próxima um grupo de dez homens raptores munidos de cordas e catanas ergueu-se entre as árvores. Lançou o olhar às mulheres e, curiosamente, viram um grupo de oito velhas centenárias com pequenas bilhas à cabeça andando vagorosamente com ajuda de bengalas feitas de ramos de árvores secas. As mulheres passaram disfarçadas em frente dos raptores e em seguida alcançaram a fonte, onde encheram as bilhas de água e voltaram a povoação passando novamente em frente dos raptores que lhes olhavam com desinteresse.

Entretanto, o dia passou sem que os raptores lograssem raptar alguém e os dias que se seguiram o cenário não mudou e os raptores voltaram a ver as mesmas velhas centenárias passando cansadas e com pequenas bilhas à cabeça. Nisto, os homens exaustos e sem resultado acabaram desistindo à intenção regressando definitivamente a sua povoação. 
- Allman Ndyoko, 12/03/2008.

GLOSSÁRIO
Muntela – Curandeiro;
Chitala – Local de convivio social dos homens; 

10/02/09

As Moças - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

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:: Allman Ndyoko pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico"::

Nunes devorou com gosto o peitoral e a asa do frango e batatas fritas, à moda KFC, e com o pão integral limpou no prato uma pobre nódoa de molho de tomate e maionese e saiu do Take away rotando e transpirando. Limpou a boca com as costas da mão direita e precipitou-se a apanhar o “chapa” que lhe levaria lá para as bandas do Xiquelene, bairro periférico de Maputo. Ao acomodar-se, ao lado de uma janela, como era hábito, abriu-a até a metade para arejar.

Era fim da tarde. Tarde muito quente, de calor húmido e incómodo. Lá fora do “chapa” o barulho dos motores misturados ao murmúrio dos populares que faziam da paragem de Benfica o seu ponto de trânsito com destino aos diversos bairros suburbanos, como são os casos de: Matendene, Zimpeto, Malhazine, Magoanine, Hulene e outros, era ensurdecedor. Entretanto, o motorista fez duas acelerações absurdas para chamar atenção dos passageiros e arrancou bruscamente para que um outro “chapa” não o vedasse a passagem e parou na única e estreita saída condicionando o trânsito e provocando um mar de protestos que se manifestou por meio de de buzinadelas de outros automobilistas como se quisessem chamar à quem de direito a restaurar a ordem e paz através de repreensão daquele acto deliberado que é característica, já de barba branca, de muitos chapeiros da praça.

- Xiquelene, Xiquelene sentado! – Gritou o cobrador totalmente indiferente aos actos de protesto dos demais automobilistas que ansiavam retirar-se daquele ponto infernal de trânsito.

Despreocupados também, os passageiros iam subindo ao carro sem pressa e pouco-a-pouco os acentos lotaram e finalmente a saída ficou transitável e o cheiro da fumaça resultante da queima do diesel nos motores dos “chapas” e os protestos ensurdecedores desvaneceram. Já em anadamento, o cobrador, um jovem de uns vinte e poucos anos de idade e com aparência de um drogado, fechou a porta do Toyota Hiace arastando-a e provocando um chiado de arrepiar os dentes.

O carro deslizou veloz no asfalto e na rotunda da Missão Roque descreveu à direita obrigando os passageiros a inclinar-se para o lado direito e no fim, tomou a direcção de Magoanine.

- Estamos a pedir reduzires a velocidade, senhor motorista. - Gritou uma rapariga dos seus desaseis anos de idade sentada no último banco traseiro do “chapa” na companhia de três amigas que falavam em voz excessivamente audível. Riu animada pelo seu grito e acrescentou. - Nós outros, senhor motorista, temos ainda filhos menores por criar... veja se não incurta a nossa vida.

As raparigas riram todas satisfeitas com a advertência feita ao motorista e continuaram falando em voz excessivamente audível. Já próximo à paragem de Malhazine, uma das raparigas vociferou:

- “Quebrador”!

O jovem cobrador torceu o pescoço e inquiriu com a cabeça.

- Diz-me quantos passageiros estão neste “chapa” e quanto vão pagar.

- O que tu queres fazer com essa informação? - Quís saber o cobrador esboçando uma expressão facial de poucos amigos.

- Quero pagar-lhes o “chapa”, porque vejo que muitos deles têm cara de pobreza.

As quatro raparigas desataram a rir animadas, sabe-se lá com que raio de droga.

- Não é muito dinheiro, passageira. – Respondeu depois o cobrador brincalhão. – São apenas cem meticais... só.

- Tá bem. – Respondeu uma delas com uma voz rouca.

Uma das raparigas que parecia a mais nova, ligou um dos toques do seu Nokia 1200 e pôs-se a cantarolar algo despido de nexo. E, como combinação se tratasse, os restantes passageiros, todos mais velhos que as raparigas sem educação, voltaram-se para elas e de forma desordenada, pediram:

- Deixem-nos viajar em paz, por favor!

- Não estamos neste carro a viajar de favor. - Acrescentou um deles que ostentava uma calva tímida e uns cabelos grisalhos.

-Senhor motorista! - Gritou umas das raparigas que parecia ter uns quinze anos. – Pára o “chapa” para descer quem não aguenta viajar connosco.

Desataram novamente a rir e a assobiar cantarolando uma música do Zico.

- Esta geração, esta geração! – Lamentou o homem de calva tímida abanando a cabeça. – Muito novas e com muita vida pela frente, mas estão entregues às bebidas alcóolicas.

-É uma geração perdida. - Concluiu Nunes intimidando as meninas com um esboço facial feio.

O truque de um esboço facial feio pareceu ter dado certo, pois, temporariamente o barulho das meninas cessou. Mas, momentos depois, voltou a eclodir o barulho já com intensidade aborrecedora.

- Porra pá, Zaida, fizemos mal termos fugido aquele “kôta”. – Disse uma das raparigas denotando cansaço e ar de quem passou o dia se enchendo a cara. – Até este momento, se tivessemos ficado a “matrecar” o gajo, estariamos a beber “maningue” ampolas de cerveja.

- Viram aquela carne assada que esquecemos de levar? – Inquiriu uma das moças com lábios molhados e aparentando ter ficado com água na boca.

- A Tininha é que é culpada, porque logo que aquele senhor começou a querer as partes íntimas e a pegar-lhe torta e direita veio com a estória de fugirmos dalí.

-Não se preocupem minhas amigas. – Sossegou Tininha, pelo visto, a mais fala barato de todas. – O “kôta” pensava que ia pegar-me e molhar-me de prazer de borla, mas eu, Tininha, lhe mostrei que sou mais esperta que ele.

-Hemmmm? – Inquiriram as amigas visivelmente felizes,

-“Bati-lhe” quinhentos “paus”, minhas “sister’s” e temos “taco” para chupar tantas cervejas que quisermos.

- Por falar nisso, agora tou a lembrar-me que na minha bolsa – Zaida ergueu uma bolsa preta e agitou-a. – ainda temos meia garrafa de whisky.

O “chapa” parou na paragem da primeira rua. Nunes desceu e o carro arrancou enquanto as raparigas continuavam em alvoroço provocando com palavrões qualquer automobilista que, naquele momento, ousasse ultrapassar o “chapa” que transportava as raparigas mal-educadas. Parou na margem direita do asfalto e esperou que uma fila enorme de carros interrompesse a marcha, e quando assim aconteceu, atravessou o asfalto com prudência e mergulhou-se no meio das primeiras casas de Hulene “B” pensando na situação de vulnerabilidade ao alcóol e a infecção por doenças sexualmente transmissíveis em que aquelas adolescentes se expunham, achando que tudo o que faziam era o melhor pra as suas jovens vidas, ignorando visivelmente todos perigos que aquele estilo de vida podia transportar.
- Allman Ndyoko, 21/09/2009.

- Vocabulário:
Kota - Pessoa mais velha, que pode ser pai, mãe, tia, etc.
Chapa - Autocarro de transporte semi-colectivo de passageiros.
KFC - Loja de origem estadunidense com filiais na África do Sul, especializada em venda de frangos confeccionados.
Matrecar - Enganar, aldrabar...
Maningue - É um termo moçambicano que quer dizer muito.
Bater - Levar algo sem o consentimento do proprietário, roubar...
Sister’s - Irmãs ou amigas, isto no contexto moçambicano.
Take away - Local onde se confeccionam comidas rápidas.
Quebrador - É a forma pejorativa de denominar o cobrador dos transportes semi-colectivos.
Paus – É um calão usado com frequência pelos jovens moçambicanos para quantificar o dinheiro (metical) ao invés de chamá-lo pelo nome.
Taco – Dinheiro. É também um calão usado pela juventude moçambicana.

- O Autor Francisco Absalão:
Nome artístico -Allman Ndyoko;
Nasceu - Em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
Residência actual - Maputo.
- Produto da nova vaga de escritores moçambicanos dos anos 90, cursou História da Literatura Portuguesa, promovido pelo Instituto Camões em parceria com a Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane. Tem textos literários publicados em antologias, como: Histórias do Mar (2005) e Esperança e Certeza II (2008). Venceu os seguintes concursos de contos: Historias do Mar (2005), Contos e Bandas Desenhadas - promovido pelo Instituto Camôes em Maputo/Moçambique (2006). Podem encontrar textos literários de sua autoria em seu blogue particular "Contos e Poesias do Índico" e publicados em várias revistas e jornais electrónicos no Brasil, com destaque para a editora online Blocos e Recanto das Letras.

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6/02/08

O Suicídio - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

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O SUICÍDIO
E
m pouco tempo, correra em toda aldeia Kunakavanga de boca em boca e de familia em familia o boato segundo o qual, o jovem Kanhembe havia sido visto na calada da noite envolvido em acto de adultério com Malonda, terceira mulher do nkulungwa Kavanga, régulo da aldeia Kunakavanga. Segundo as más linguas, Kanhembe mantinha o seu romance secreto com Malonda, uma jovem esbelta, clara, tatuada e com dentes afiados como mandavam as regras na sua comunidade, desde os tempos recuados, época em que os dois eram adolescentes. O seu romance veio a conhecer o fim quando, sem consentimento da jovem, os pais decidiram aceitar o pedido de casamento formulado pelo Kavanga sem que este tenha dialogado com a Malonda. Temendo represálias pesadas por parte da família, Malonda não viu outra saída se não seguir o destino que lhe era traçado pela circunstância, pese embora o seu coração estivesse entregue espontaneamente ao Kanhembe. Esta situação trouxe um grande sofrimento ao Kanhembe que assistiu, sem nada fazer, à cerimónia da entrega do seu amor ao velho Kavanga que, orgulhosamente, fez questão de paralisar a vida da aldeia do nkulungwa Nkwemba para os aldeões testemunharem o seu célebre enlace.
O tempo passou e consigo foram as lembrança do célebre casamento do velho Kavanga e, por ironia do destino, passado muitos anos, Kanhembe veio a casar na aldeia Kunakavanga, onde vivia Malonda, seu amor roubado. Como a tradição makonde daquele tempo mandava o homem viver os primeiros dois anos na aldeia e na familia da mulher, Kanhembe veio morar na povoação de Kunakavanga em cumprimento da tradição. Foi nessa altura que gente de má fé espalhou em toda aldeia inúmeros boatos dando conta que Kanhembe andava de cavaqueira com Malonda, esposa do afamado nkulungwa Kavanga. Como não houvesse evidências, Kanhembe foi poupado aos interrogatórios dos velhos conservadores do conselho dos ancião da aldeia Kunakavanga.
Porém, uma certa noite de céu decorado de estrelas e de terra banhada de luar, foi visto alguém, no silêncio da noite, saindo dissimuladamente da cubata de Malonda e se precipitando para o terreiro da aldeia, na direcção em que morava o jovem Kanhembe, num dia em que Kavanga dormia descansadamente na casa da quarta esposa, localizada na entrada da aldeia. Este acontecimento espalhou-se no dia seguinte em toda aldeia, tendo sido, uma vez mais, posto em causa o bom nome do jovem Kanhembe, que na altura do acontecimento se encontrava na aldeia vizinha participando na cerimónia fúnebre de um dos parentes do terceiro grau morto há dias por um leão quando voltava da machamba.
Quando voltou a aldeia, o jovem foi colhido de surpresa pela noticia que não parava de espalhar-se. Sentindo-se ultrajado e sendo tratado pelos aldeões com atitude de real culpado, saiu de casa à tarde sem se despedir e com lipeta nas costas contendo uma longa corda de ntope que servira para empilhar capim que tinha sido usado dias anteriores para cobrir a palhota dos sogros. Kanhembe atravessou o terreiro em diagonal, passou pela rua da Malonda como se quisesse dizer algo e mais tarde seguiu o caminho que levava a floresta conservando um silêncio tumular. Pensativo, passou em frente de uma casa que cheirava a gordura e em que se achava uma infinidade de gente bebendo nkalogwè e de súbito ouviu o seu nome pronunciado com intusiasmo. Não parou e nem se dignou olhar. Continuou a marcha em direcção a floresta. Próximo ao limiar da aldeia, três homens trajando roupas usadas até o remendo olharam-no com espanto e passaram-lhe duvidando a sua sanidade mental. Kanhembe não se atrapalhou e continuou a sua marcha como se a morte na sua grandiosa força lhe chamasse com excessiva urgência.
Entretanto, após ter deixado a aldeia andou alguns minutos num caminho tortuoso que levava às machambas dos aldeões e, mais adiante, bem perto do caminho embrenhou-se pela mata onde, próximo a uma mangueira frondosa parou. Defecou nas imediações e trepou na árvore até aos primeiros ramos, onde tirou a corda, amarrou num dos ramos que se mostrava consistente, fez um nó e pôs-se ao pescoço. Meditou durante alguns instantes e de repente deixou-se cair. Os olhos arregalaram-se, o pescoço estreitou-se e a corda penetrou-lhe às entranhas, obrigando-o a soltar a lingua para fora como se de um búfalo morto se tratasse. Estrebuchou violentamente e, por fim, mantve-se sereno com o mijo a escorrer pelas pernas abaixo. Oscilando ao prazer do vento, o corpo de Kanhembe manteve-se na floresta durante quatro dias e na tarde do último dia, foi descoberto por um caçador que passava por ali a caminho das suas armadilhas e que logo, tratou de comunicar os aldeões. Quando estes chegaram, soltaram o malogrado em estado de putrefacção e trataram de o enterrar sem que o levassem à aldeia.
Dias depois, Kavanga surpreendeu Malonda em acto de adultério na sua cubata com um dos anciãos da sua aldeia. O sucedido chocou aos populares e, rapidamente, o conselho dos anciãos tratou de ocultar o sucedido para que não criasse rebilião.
Francisco Absalão
21/04/2008
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GLOSSÁRIO:
Nkulungwa – Chefe da povoação;
Ntope – Acta selvagem;
Lipeta – Muchila feita de pele de animais selvagens;
Nkalogwè – Oteka ou, por outra, bebida tradicional feita de mipira.
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O Autor:
-Francisco Absalão;
-Nome artístico -Allman Ndyoko;
-Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
-Residência actual - Maputo;
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Leia:
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