1/23/09

O INCÊNDIO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão).

(Clique na imagem para ampliar - Imagem original do ForEver PEMBA)

Passavam poucos dias que as aulas na escola haviam terminado e o espirito de férias já manifestava-se em nós através de inumeras brincadeiras: caça aos passarinhos, às escondidas nocturnas, o passeio desautorizado ao quartel da “Meia-Via”, o banho na praia do INOS, a visita ao navio abandonado nas imediações da base naval da marinha, a perseguição nos galhos das amendoeiras do jardim infantil, roubo de amoras e jambalão no quintal da SOGERE, entradas “roubadas” nos jogos de futebol do Estádio Municipal, entre outras.

Uma certa manhã de céu azul e de sol dourado, eu, Quino, Amur, Bacar – o filho do árbitro – e Kaidar, o filho primogénito do ché Omar, jogavamos o “bate-sai” com a bola de trapo junto à valeta que delimita os bairros de Ingonane e Natite, precisamente, atrás do belo monumento de emulação socialista, quando de súbito alguém entre nós gritou em macua apontando à zona cimento:

- Olhem pra aquilo!

Paramos o jogo; Kaidar pegou a bola, pôs debaixo do braço e pregou o olhar na direcção da zona cimento. Imitamos o gesto rapidamente e os nossos olhos viram uma nuvem enorme de fumaça preta que teimava subir ao céu acompanhada de grandes labaredas que ameaçavam engolir a zona intermédia entre o fundo do Hotel Cabo Delgado e o prédio Cunha Alegre.

- É o hotel a arder! – Disse Kaidar em voz alta.
- Não. – Atalhou Bacar e acrescentou meio excitado. - Parece o prédio Cunha Alegre...
- É inacreditável! – Gritei pasmado pelo acontecimento.
- Vamos ver de perto. – Sugeriu Quino fazendo movimento para caminhar.
- Não. Não dá, é perigoso. – Advertiu Amur visivelmente dominado pelo medo.
- Vamos, malta! – Insistiu Quino movido pela curiosidade.

Kaidar fitou a malta de esguelha por algum momento. Com uma espressão corporal que denunciava-lhe uma apetencia voraz de matar a curiosidade, cedeu a insistência do Quino iniciando a marcha decididamente com o destino ao coração da pacata e modesta cidade de Pemba, vulgarmente conhecido por “wa Texeira”, entre os nativos.

Timidamente o gesto foi imitado por todos nós e juntos precipitamo-nos a seguir um pequeno percurso da estrada, muito arenoso, que levava a zona urbana. Trajando camisas e camisetes cansados de uso, calças e calções desbotados, empoeirados, rotos nos tornozelos e nas nádegas e denunciando orgulhosa e humildemente a nossa origem, iniciamos, pouco tempo depois, a andar na estrada de terra batida, cor vermelha e poeirenta todos ofegantes e banhados de suor.

Enquanto caminhavamos curiosos, dos dois bairros vizinhos vinham gente despertada pela fumaça e pelas linguas de fogo assustadores que bailavam ao sabor do vento ameaçando à qualquer instante causar tragédia. Mais adiante, juntamo-nos a um grupo de homens, mulheres e adolescentes que também dirigia-se ao nosso destino.

- Dizem que um bandido armado ateou fogo os últimos quartos do hotel e fugiu à sete pés, sem deixar rastos. – Explicou alguém no meio da multidão.
- Ouviram?! – Questionou Amur sussurando e tomado pelo medo.
- Não é nada isso. – Tranquilizou Quino muito confiante. – Deve ser um boato.
- E se fôr verdade? – Interroguei-o contaminado pelo temor do Amur.
Quino não respondeu e limitou-se a marchar. Naquele momento ideias medrosas fizeram a minha mente sua oficina e diversas imaginações macábras passaram insistentemente na minha consciência, um tanto quanto, repletas de razão. Pois, a guerra de desistabilização estava nos seus momentos iniciais em Cabo Delgado, pese embora Pemba não se ressentisse tanto como em algumas províncias do centro e sul do país, donde vinham relatos de cenas aterrorizantes protagonizadas por bandos armados; Daí que, todo cuidado era pouco, e razão pela qual todos viviamos em constante vigilância, que na altura apelidou-se de vigilância popular. Porém, deixemos de lado esta página triste da história de Moçambique independente e voltemos ao mais primordial.

Volvido algum momento alcançamos a zona urbana. Atravessamos uma ponteca de ferros de linha férrea atravessados horizontalmente de uma extremidade da valeta principal à outra secundária muito pequena, que delimita a zona urbana e a peri-urbana e começamos a percorrer a avenida Eduardo Mondlane no seu lado asfaltado, que ficava à escassos metros do local do incêndio.

A cidade estava agitada, barulhenta e abarrotada de gente apavorada que aproximava e saia do local do incêndio provocando um murmúrio ensurdecedor. Tanto no hotel, assim como, nos estabelecimentos comerciais e nas residências das redondezas eram visíveis rostos espantados pelo acontecimento e indignados pela ausência de corpo de bombeiros na cidade. Já próximo do sinistro, homens e mulheres civis e alguns militares corajosos tentavam em vão extinguir as chamas com areia e água trazidas da vizinhança em pequenos baldes. Enquanto isso sucedia, na carroçaria do camião ressaltavam faúlhas muito reluzentes acompanhadas de um estalar constante de madeira e as chamas, por sua vez, elevavam-se cada vez mais ao céu ameaçando queimar os fios de transporte de energia eléctrica da rua 12.

No entanto, houve uma explosão repentina acompanhada de uma bola enorme de chamas vermelhas. Abrigamo-nos todos medrosos debaixo de uma das palmeiras que erguia no centro das duas faixas de rodagem da avenida Eduardo Mondlane.

- O que vem a ser isso? – Questionou Amur.
- Deve ser o tanque do camião. – Disse uma idosa que também abrigara-se numa das palmeiras próxima.
- Camião? – Inquiriram todos em coro e incrédulos.
- Sim. – Gritou a idosa arranjando-se uma das capulanas que lhe desprendera do corpo no momento da explosão. – É um camião militar que, sem mais, nem menos, entendeu pegar fogo no meio da estrada quando vinha roncando no sentido descendente da rua 12.

Quando a velha acabou de proferir estas palavras, deflagraram tiros de armas ligeiras no meio do incêndio, fazendo os curiosos correrem em debandada em todas as direcções. Nesse instante, um bando de corvos que grasnava nas palmeiras douradas do centro da cidade bateram as asas em vôo espectacular e desapareceram nas frondosas amendoeiras e incontáveis amoreiras do parque infantil do ring desportivo.

- Vamos pra casa, malta. – Anuiu Amur tremendo de medo.
- Nem pensar! – Contrariou Kaidar. – Agora que estamos aqui vamos procurar saber o que realmente está a passar-se.
- Concordo contigo! – Observou Bacar olhando para a fumaça cinzenta e escura que já abrandava de intensidade deixando mais nítido o camião militar em chama.
- Let´s go, malta. – Decidiu Quino iniciando a caminhada.

Retomamos a marcha já rapidamente por entre as palmeiras douradas da faixa central da grande avenida e pouco depois, alcançamos a rotunda das avenidas 25 de Setembro e Eduardo Mondlane que fica em frente do Hotel Cabo Delgado. Embrenhamo-nos corajosamente no meio da multidão e com muita agilidade como formigas encontramo-nos, finalmente, a escassos metros do camião em chama. Era um Ziro Russo, cor verde e de caroçaria de madeira. Tinha o vidro frontal caido e estilhaçado no capón, seis rodas grandes vazadas e em chama.

- Deus do céu! – Exclamei visivelmente excitado e continuei inquirindo. – Como foi possível isto?!
- Houve um curto circuito... – Respondeu-me alguém dentre os espectadores vizinhos.
- Ninguém morreu? – Quís saber Quino.
- Felizmente, não! – Disse uma senhora que se achava à nossa frente vestida ao rigor a moda macua: lenço na cabeça, blusa de manga comprida, brincos nas orelhas e no nariz, capulanas multicolores, pulseiras nos braços e chinelos nos pés.
- Mas porquê não criam um comando de bombeiros nesta cidade? – Questionou em voz alta um velhote visivelmente irritado com o que sucedia.
- Estão a espera que aconteça o pior! – Alguém respondeu no meio da multidão em tom de voz cómica.

Porém, as chamas consumiram o camião, por completo, no meio de olhares impotentes dos mirones e no fim, o fogo abrandou deixando o local poluido de fumaça esbranquiçada e espessa, acompanhada de um forte cheiro de borracha queimada.

Passado algum momento, a multidão foi esvairando-se até que não tendo mais graça a permanência no local, saimos dalí correndo e brincando animadamente o pega-pega com destino ao jardim infantil, próximo ao campo municiapal.
- Allman Ndyoko, 20/01/2009, para o ForEver PEMBA.
- Extrato do livro: Contos de Infância Distante.

O Autor:
-Francisco Absalão;-Nome artístico -Allman Ndyoko;
-Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
-Residência actual - Maputo;
-e.mail's:

Leia:

  • "O Suicídio" - Um conto de de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 02 de Junho de 2008 - Aqui!
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !

3 comentários:

  1. Francisco, vivi contigo este momento. Gostei muito.
    Dois abraços felizes,um para ti e outro para o Jaime,
    Inez

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  2. Era uma pena ver o meu prédio arder, aliás, o prédio do meu avô.

    Trata-se de património do qual fomos expoliados com a instauração da independência e do regime comunista em Moçambique.

    Bem haja o povo moçambicano com quem convivi, conjuntamente com a minha Família.

    Paulo da Cunha Alegre

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