Em Portugal não se investiga, insinua-se, em Portugal nunca há factos apenas suspeitas, também nunca há inocentes, apenas quem não foi declarado culpado.
Joaquim Vieira, jornalista conceituado, que dispensa apresentações, ex-número dois do Expresso, tem publicado na Grande Reportagem uma série de textos bastante ácidos sobre Mário Soares.
Ora a Grande Reportagem, distribuída semanalmente com o JN e DN, não é exactamente um qualquer pasquim ao nível d' O Crime, do Semanário ou um qualquer jornal de vão de escada, pelo que as reflexões de Joaquim Vieira mereceriam outra atenção.
Atente-se pois no que diz Vieira, que cita profusamente um livro - real, publicado - de Rui Mateus, personagem também real, numa série de artigos sugestivamente entitulada "O Polvo"...
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Parte 1 - publicado a 3 de Setembro de 2005, na Grande Reportagem nº 243.
Parte 1 - publicado a 3 de Setembro de 2005, na Grande Reportagem nº 243.
Além da brigada do reumático que é agora a sua comissão, outra faceta distingue a candidatura de Mário Soares a Belém das anteriores: surge após a edição de Contos Proibidos - Memórias de um PS desconhecido, do seu ex-companheiro de partido Rui Mateus.
O livro, que noutra democracia europeia daria escândalo e inquérito judicial, veio a público nos últimos meses do segundo mandato presidencial de Soares e foi ignorado pelos poderes da República.
Em síntese, que diz Mateus?
Que, após ganhar as primeiras presidenciais, 1986, Soares fundou com alguns amigos políticos um grupo empresarial destinado a usar os fundos financeiros remanescentes da campanha.
Que a esse grupo competia canalizar apoios monetários antes dirigidos ao PS, tanto mais que Soares detestava quem lhe sucedeu no partido, Vítor Constâncio (um anti-soarista), e procurava uma dócil alternativa a essa liderança.
Que um dos objectivos da recolha de dinheiros era para financiar a reeleição de Soares.
Que, não podendo presidir ao grupo por razões óbvias, Soares colocou os amigos como testas-de-ferro, embora reunisse amiúde com eles para orientar a estratégia das empresas, tanto em Belém como nas suas residências particulares.
Que, no exercício do seu “magistério de influência” (palavras suas noutro contexto), convocou alguns magnatas internacinais – Rupert Murdoch, Sílvio Berlusconi, Robert Maxwell e Stanley Ho – para o visitarem na Presidência da República e se associarem ao grupo, a troco de avultadas quantias que pagariam para facilitação dos seus investimentos em Portugal.
Note-se que o “Presidente de todos os portugueses” não convidou os empresários a investir na economia nacional, mas apenas no seu grupo, apesar dos contribuintes suportarem despesas de estada.
Que moral tem um país para criticar Avelino Ferreira Torres, Isaltino Morais, Valentim Loureiro ou Fátima Felgueiras se acha normal uma candidatura presidencial manchada por estas revelações?
E que foi feito dos negócios do Presidente Soares?
Pela relevância do tema, ficará para próximo desenvolvimento.
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Parte 2 - publicado a 10 de Setembro de 2005, na Grande Reportagem nº 244.
Parte 2 - publicado a 10 de Setembro de 2005, na Grande Reportagem nº 244.
A rede de negócios que Soares dirigiu enquanto Presidente foi sedeada na empresa Emaudio, agrupando um núcleo de próximos seus, dos quais António Almeida Santos, eterna ponte entre política e vida económica, Carlos Melancia, seu ex-ministro, e o próprio filho, João.
A figura central era Rui Mateus, que detinha 60 mil acções da Fundação de Relações Internacionais (subtraída por Soares à influência do PS após abandonar a sua liderança), as quais eram do Presidente mas de que fizera o outro fiel depositário na sua permanência em Belém – relata Mateus em Contos Proibidos.
Soares controlaria assim a Emaudio pelo seu principal testa-de-ferro no grupo empresarial.
Diz Mateus que o Presidente queria investir nos média: daí o convite inicial para Sílvio Berlusconi (o grande senhor da TV italiana, mas ainda longe de conquistar o governo) visitar Belém.
Acordou-se a sua entrada com 40% numa empresa em que o grupo de Soares reteria o resto, mas tudo se gorou por divergências no investimento.
Soares tentou então a sorte com Rupert Murdoch, que chegou a Lisboa munido de um memorando interno sobre a associação a “amigos íntimos e apoiantes do Presidente Soares”, com vista a “garantir o controlo de interesses nos média favoráveis ao Presidente Soares e, assumimos, apoiar a sua reeleição”.
Interpôs-se porém outro magnata, Robert Maxwell, arqui-rival de Murdoch, que invocou em Belém credenciais socialistas.
Soares daria ordem para se fazer o negócio com este.
O empresário inglês passou a enviar à Emaudio 30 mil euros mensais.
Apesar de os projectos tardarem, a equipa de Soares garantira o seu “mensalão”.
Só há quatro anos foi criminalizado o tráfico de influências em Portugal, com a adesão à Convenção Penal Europeia contra a Corrupção.
Mas a ética política é um valor permanente, e as suas violações não prescrevem.
Daí a actualidade destes factos, com a recandidatura de Soares.
O então Presidente ficaria aliás nervoso com a entrada em cena das autoridades judiciais – episódio a merecer análise própria.
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Parte 3 - publicado a 17 de Setembro de 2005, na Grande Reportagem nº 245.
Parte 3 - publicado a 17 de Setembro de 2005, na Grande Reportagem nº 245.
A empresa Emaudio, dirigida na sombra pelo Presidente Soares, arrancou pouco após a sua eleição e, segundo Rui Mateus em Contos Proibidos, contava “com muitas dezenas de milhares de contos “oferecidos” por (Robert) Maxwell (…), consideráveis valores oriundos do “ex-MASP” e uma importante contribuição de uma empresa próxima de Almeida Santos.”
Ao nomear governador de Macau um homem da Emaudio, Carlos Melancia, Soares permite juntar no território administração pública e negócios privados.
Acena-se a Maxwell a entrega da estação pública de TV local, com a promessa de fabulosas receitas publicitárias.
Mas, face a dificuldades técnicas, o inglês, tido por Mateus como “um dos grandes vigaristas internacionais”, recua.
O esquema vem a público, e Soares acusa os gestores da Emaudio de lhe causarem perda de popularidade, anuncia-lhes alterações ao projecto e exige a Mateus as acções de que é depositário e permitem controlar a empresa.
O testa-de-ferro, fiel soarista, será cilindrado – tal como há semanas sucedeu noutro contexto a Manuel Alegre.
Mas antes resiste, recusando devolver as acções e esperando a reformulação do negócio.
E, quando uma empresa reclama por não ter contrapartida dos 50 mil contos (250 mil euros) pagos para obter um contrato na construção do novo aeroporto de Macau, Mateus propõe o envio do fax a Melancia exigindo a devolução da verba.
O Governador cala-se.
Almeida Santos leva a mensagem a Soares, que também se cala.
Então Mateus dá o documento a 'O Independente', daqui nascendo o “escândalo do fax de Macau”.
Em plena visita de Estado a Marrocos, ao saber que o Ministério Público está a revistar a sede da Emaudio, o Presidente envia de urgência a Lisboa Almeida Santos (membro da sua comitiva) para minimizar os estragos.
Mas o processo é inevitável.
Se Melancia acaba absolvido, Mateus e colegas são condenados como corruptores.
Uma das revelações mais curiosas do seu livro é que o suborno (sob o eufemismo de “dádiva pública”) não se destinou de facto a Melancia mas “à Emaudio ou a quem o Presidente da República decidisse”.
Quem afinal devia ser réu?
Os factos nem parecem muito difíceis de confirmar, ou desmentir, e no entanto é mais fácil - mais confortável - ignorá-los, não se confia na justiça ou porque não se acredita que funcione em tempo útil, ou por que se tem medo que funcione, em vida, e as dúvidas, os boatos, os rumores, a 'fama' persistem.
E é assim, passo a passo, que lentamente se vai destruíndo de vez a confiança dos portugueses nas instituições.
Por incúria, por medo, por desleixo, até por arrogância, porventura de fantasmas e até... da própria sombra.
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N.A. Como adenda, e perdoem-me o sarcasmo que é preciso por as coisas no seu devido lugar, talvez conviesse meditar no generoso silêncio dedicado ao conteúdo destes artigos de Vieira, e ao livro de Mateus, por parte de alguns dos e(ste)ticistas do regime quando comparado com a, também ela generosa, campanha em curso contra alguns 'antros' 'anónimos' de pensamento livre e desalinhado... Ou, será que as coisas já evoluiram tanto, tanto, que agora só existem depois de serem tratadas em blog ?
É que a Grande Reportagem tem uma tiragem superior a 100 000 exemplares, nós ainda não...Entretanto, por essas e por outras, do Brasil até gozam...Como adenda suplementar convém frisar que o problema não é novo, ou sequer isolado, antes é estrutural e crónico.Atente-se na GALP e nas maravilhas que por lá se passa(ra)m.
No mínimo, os factos - 'estranhos' - mereceriam uma investigação apurada, judicial e jornalística, no entanto...
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