5/06/10

Retalhos: De Porto Amélia a Pemba - Como foi a Expansão Portuguesa em Moçambique

Brasil - Arquivo Nacional - Uma imensa fonte de pesquisa !
Como foi a Expansão Portuguesa em Moçambique - Fabiano Villaça dos Santos

Os portugueses chegaram a Moçambique em 1498 e a administração colonial foi instalada três anos mais tarde, ficando o território dependente do Estado da Índia até 1752. Em 1569, Moçambique foi elevada à condição de capitania-geral, englobando a região de Sofala e a do Monomotapa. A ocupação de Moçambique se iniciou em 1507, contudo, segundo o historiador Luiz Felipe de Alencastro, a penetração portuguesa em Moçambique foi muito frágil, sobretudo se comparada à conquista e à ocupação de Angola, na costa ocidental da África.

Durante boa parte da colonização portuguesa, Moçambique desempenhou a função de entreposto comercial e de ponto de apoio para os navios com destino ao Oriente. Com relação ao desenvolvimento interno da colonização, de acordo com Luiz Felipe de Alencastro, os portugueses praticamente não interferiram no processo produtivo da região, além de não conseguirem reorientar em benefício próprio os circuitos de comércio local, o que corrobora a posição estratégica de Moçambique na carreira da Índia. As trocas permaneceram voltadas para o Norte da África e para o Leste, em direção ao Golfo Pérsico, onde regiões como Omã adquiriam grande quantidade de escravos.

Para Charles Boxer, a penetração portuguesa no território de Moçambique também foi dificultada, até o século XVIII, pela insalubridade verificada nas regiões costeiras da África e da Ásia. A correspondência oficial entre Lisboa e Goa, de 1650 a 1750, relata a preocupação das autoridades com o escasso contingente de portugueses reinóis no Oriente e com as altas taxas de mortalidade na região, incluindo Moçambique como parte do circuito indiano. Tal situação parece não ter se alterado depois de 1750, pois, em 1799, o vice-rei conde de Resende sugeriu o envio anual de vadios e voluntários do Rio de Janeiro para povoar diferentes regiões africanas, como Moçambique.

Outras dificuldades enfrentadas pela administração metropolitana em Moçambique, bastante comuns nos domínios coloniais portugueses, relacionavam-se à ação dos funcionários régios. Charles Boxer atentou para as constantes queixas presentes na correspondência oficial e extra-oficial, sobre o descuido na aplicação da justiça em lugares distantes, como Moçambique, Macau e Goa. Problema recorrente, levou a Rainha dona Maria I a publicar um alvará, em 14 de abril de 1785, com o objetivo de coibir abusos cometidos por governadores e ouvidores da capitania de Moçambique, tais como a cobrança indevida de donativos e a realização de transações comerciais particulares com rendimentos da Real Fazenda. O alvará previa penalidades que iam da perda do cargo ao pagamento de indenizações pelos culpados de tais abusos.

Quanto ao tráfico de escravos, a região do Congo-Angola supriu grande parte da demanda de mão-de-obra durante o período colonial. O fluxo de escravos de Moçambique, em especial para o Rio de Janeiro, foi pequeno e irregular até o início do século XIX, havendo, no entanto, referências a iniciativas de negociantes desta praça, engajados no circuito de Moçambique, Sena e Goa, para instalar uma companhia de comércio de gêneros e escravos africanos, em 1744. Algumas décadas antes, em 1719, uma ordem de d. João V enviada ao governador-geral do Estado do Brasil, d. Sancho de Faro e Sousa, determinava uma alteração emergencial na rota do tráfico de escravos do Atlântico para a baía de Lourenço Marques, no sul de Moçambique, em virtude dos ataques de navios holandeses aos portugueses na costa ocidental da África. Essas medidas demonstram que, até o final do século XVIII, o tráfico de escravos da África Oriental ainda não havia se consolidado.

A participação mais efetiva da África Ocidental no fornecimento de escravos para o Rio de Janeiro declinou entre 1795 e 1811, ano em que Manolo Florentino verificou um crescimento da oferta de cativos oriundos de Moçambique. Esse crescimento se explica, em termos mais amplos, pela Abertura dos Portos, em 1808, que favoreceu o aumento do número de expedições para Moçambique a fim de resgatar escravos. Nesse movimento, ganhou destaque o porto de Quilimane. Para o porto de Salvador, outro importante mercado de escravos da colônia, a demanda de escravos permaneceu sendo suprida pela região do Congo-Angola. O porto do Rio de Janeiro, entretanto, não monopolizava o recebimento de africanos de Moçambique. Houve reivindicações de comerciantes do Pará, envolvidos no tráfico de escravos em diferentes regiões africanas, dentre as quais Moçambique, na última década do século XVIII, para obter isenção do pagamento de direitos (impostos) por um certo período de tempo, demonstrando que outros portos coloniais eram abastecidos de cativos da África Oriental.

A regulação do tráfico de escravos, independente da região fornecedora, não escapou às diretrizes reformistas da política colonial portuguesa. Para manter o controle sobre o contingente de cativos transportados de Moçambique e outros mercados africanos, foram organizados os termos de contagem de escravos, elaborados após o recolhimento do imposto sobre os escravos na alfândega, em que se atestava o número de escravos embarcados na África e os que chegavam à América, deduzidos os mortos durante a viajem, que não eram poucos, ou logo após o desembarque no porto de destino. Em 13 de junho de 1802, um termo de contagem de escravos provenientes de Moçambique no navio Ninfa do Mar, por exemplo, acusou a chegada de 227 escravos vivos e 228 mortos, ao porto do Rio de Janeiro.

As autoridades pareciam estar atentas quanto ao cumprimento das medidas de registro dos escravos, como demonstra a referência a uma devassa realizada em 1812, no bergantim Esgueira, pela morte de numerosos africanos vindos de Moçambique, conforme indicou um ofício expedido ao juiz do crime do Rio de Janeiro. Instruções anteriores de d. Rodrigo de Sousa Coutinho ao vice-rei, conde de Resende, determinavam um rígido controle sobre as rotas dos navios negreiros. Em carta de 12 de dezembro de 1798, o secretário de Estado da Marinha e Ultramar tratou do extravio de escravos quando os navios que os transportavam precisavam fazer baldeação. Para evitar tal prática, d. Rodrigo de Sousa Coutinho recomendou que se fizesse uma lista com o dia da saída, o nome dos mestres das embarcações e o número de escravos transportados.

O tema do tráfico de escravos aparece como o mais recorrente quando se pensa em África, ocidental ou oriental. Moçambique, como outras regiões africanas, a exemplo de Angola e Benguela, também foi local de degredo. Os inóspitos e “hostis” domínios africanos receberam réus da Inconfidência Mineira condenados ao degredo em Moçambique e Angola, como indica a correspondência do vice-rei, conde de Resende, para a Corte, de 29 de abril de 1792, em que se registra também a condenação à pena capital de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.

Segundo Charles Boxer, no século XIX Moçambique foi afetada pela conjuntura européia das invasões napoleônicas, que motivaram a transferência da Corte portuguesa para a América e a sua longa permanência no Rio de Janeiro. Entre 1805 e 1825, Portugal teria abandonado suas colônias asiáticas e africanas, contexto em que se insere a Independência do Brasil. Ainda de acordo com Charles Boxer, idéias sobre o desenvolvimento de Angola e Moçambique como forma de compensar a separação do Brasil foram cogitadas, mas não ocorreram imediatamente à Independência da colônia americana. Em razão das desordens internas de Portugal, inseridas no período que se abre como o do “vintismo, e porque o tráfico de escravos ainda “absorvia as energias” tanto de Angola como de Moçambique, novas diretrizes da Coroa portuguesa para reformular a exploração do que restou de seu Império colonial não foram produzidas instantaneamente, uma vez que Portugal só reconheceu a Independência do Brasil em 1825.

Para o estudo da África Oriental, os fundos documentais do Arquivo Nacional que apresentam indicações freqüentes sobre Moçambique, especialmente acerca de sua posição estratégica na carreira da Índia e do tráfico negreiro, são: Negócios de Portugal, Secretaria de Estado do Brasil, Relação da Bahia, Ministério do Império, Diversos Códices – SDH, Secretaria de Governo da Capitania do Pará e Polícia da Corte.
-  Texto extraído do portal "Arquivo Nacional" - Brasil.

HISTÓRIA E "ESTÓRIAS" - CHAI - 25/09/1964 - A VERDADE E A HISTÓRIA...!
Alguém escreveu - "Procurar a verdadeira história e espírito africano implica recorrer a toda a herança de conhecimentos que, ao longo dos tempos, foram transmitidos de geração em geração, do mais velho ao mais novo, do narrador ao ouvinte.
Trata-se da própria tradição oral que, através de cantos, danças, lendas, mitos, contos, provérbios, rituais e enigmas, transmite o próprio conhecimento e a escola da vida. A tradição oral constitui, por isso, todo um património que faz parte de uma cultura viva. E só conhecendo as suas raízes culturais e civilizacionais, é possível a um povo identificar-se como Povo".

Depoimento de Tó Alves em 25 de Setembro de 2003 no "Bar da Tininha da Yahoo":

"Completam-se hoje* às 21:00 de Moçambique (20:00 em Portugal) 39** anos do primeiro ataque (oficial) da Frelimo e sua guerra de libertação do país.
Foi no Chai, a norte de Macomia a escassos 10Kms do rio Messalo.
Tinha 8 anos, estava lá, assim como os meus pais, não morri... nem ninguém morreu de ambos os lados, e lembro-me de quase tudo.
Tudo se resumiu a 2 rajadas de metralhadora (uma de cada lado).
Demorou 1 ou 2 minutos e depois foi a fuga dos atacantes.
A minha mãe lembra-se que nesse dia à tarde, andou uma pessoa desconhecida ali nas lojas no Chai e com umas ligaduras na perna ou no pé. Andou umas 2 horas a "passear-se" pela localidade. Veio-se a saber mais tarde que essa pessoa desconhecida andou a fazer o reconhecimento da zona.
A data, hoje em dia, é comemorada em Moçambique como Dia das Forças Armadas."
*25 de Setembro de 2003;
**40 neste ano de 2004;
- E o que se fala na net a respeito do dia 25/09/1964: http://www.macua.org/chai25092003.htm;
- Publicado no sitio "Pemba" em 09/2004.

Retalhos da mente ou do meu pensamento...!
 ... Datas que se comemoram mundo afora, salientando a dimensão histórica de heróis ou mitos da guerra e da violência.

Salientaremos algum dia a dimensão histórica das vítimas inocentes de todas as guerras ?...

Morte, sempre morte, só morte, o silêncio da vida ou a inexplicável apologia do direito à violência que soma e resulta neste conturbado, desequilibrado globo terrestre que temos hoje!

Como ontem ou como sempre, novas, insensíveis, minoritárias, egoístas elites ressurgem "chafurdando" no deleite do poder conseguido ambiciosa, desesperada e despudoradamente num vale-tudo de mentiras, promessas e imposições que desprezam, desrespeitam o ser humano, a natureza, a vida.

Elites econômicas hipócritas ilhadas em castelos de ostentação, tal qual sanguessugas famintos de coimas e impostos que recheiam, atulham seus bolsos e cofres.

Elites burlescas acoitadas em grotescas castas pseudo-intelectuais, em cômicos feudos pseudo-democráticos de segregação social (similar ou pior que a racial) isolados atrás de grades, fossos, muros, cercas eletrificadas tentando impedir a vinda avassaladora, inevitável de povos-multidões-desesperados-sem-raça enganados, revoltados, famintos, desiludidos e destruidores !

Até quando teremos datas de violência e de luto ?

Até quando a hipocrisia do discurso fácil e o apetite do poder embebedarão mentes e suplantarão o direito de viver ou existir com dignidade em liberdade fraterna, solidária e justa?

Vivemos esperando dias melhores... dias que não deixaremos mais para trás...!
- Jaime Luis Gabão,  publicado no sitio "Pemba" em 09/2004.

(Transferência de arquivos do sitio "Pemba" que será desativado em breve)

Retalhos: De Porto Amélia a Pemba - Homens que fizeram... Adelino Coelho !

Breve apontamento sobre (nosso saudoso Amigo) Adelino Coelho, feito por seu filho António Coelho e relatando a epopeia que era, nos anos 50, o desbravar das "picadas" de Cabo Delgado:
Em 58/59, o meu pai fazia as carreiras: Porto Amélia - Montepuez - Porto Amélia (bi-semanal - desde 1954) e Porto Amélia- Mocimboa- Porto Amélia (bi-semanal, também desde 1958). Esta, via Metuge - Napuda - Mahate - Mussomer Quissanga - Tandanhangue - (de novo Quissanga e Mussomero) - Panguia-Macomia - Mucojo - Quiterajo - (passagem do batelão do rio M'Salo) - Marere, era uma via que acompanhava quase todo o litoral.

Quando em 1959 um ciclone tremendo arrazou Mocimboa da Praia e afetou todo o litoral de Cabo Delgado, a estrada ficou intransitável. Como curiosidade, nesse dia o meu pai refugiou-se do mau tempo na casa do amigo Teixeira Gomes (Popote) em Macomia.

Tão intransitável e por tanto tempo ficou, que a carreira não mais se pode efetuar.

Entretanto começou a guerra e, pior ainda, não mais se reatou.

Quando foi asfaltada a estrada para Macomia, (via Silva Macua - Muguia - Moja) havia já um mínimo de segurança e recomeçou a circular por esse itinerário, mas só até Macomia, abandonando o itinerário do litoral.

O meu pai manteve-se pelo itinerário do interior e à medida que a estrada foi sendo asfaltada foi acompanhando, primeiro até ao Chai e por fim até Mocimboa da Praia.

Um abraço. E, se coisas há que gosto de partilhar, são as recordações. Mais a mais quando de amigos se trata.

Ah ! E desculpa a falta de alguns acentos agudos ( no a, i, e u ), mas este teclado é "chinamarquês" e não permite.

Um abração,
Tó Coelho
- Publicado em Junho de 2001 no sítio Pemba.
  • ADELINO COELHO - Antigo residente de Porto Amélia, hoje Pemba, que se destacou pelo pioneirismo na implantação do transporte público em autocarros em toda a província de Cabo Delgado, entre inumeras dificuldades e carências operacionais à época, já que não existiam estradas asfaltadas nem as comunicações eram fáceis. Faleceu em 28 de Março de 2003 em Portugal.
Imagens de Porto Amélia:
 (Transferência de arquivos do sitio "Pemba" que será desativado em breve)

Retalhos: De Porto Amélia a Pemba - História, o farol da Maringanhana e...

Porque pouco se tem contado a respeito, aqui deixo detalhes que nos falam da história de Porto Amélia/Pemba, do Farol da Maringanha, da origem de seu nome e do feroleiro Heliodoro José Carrilho: ... ...IV - A GENTE E A SOCIEDADE - A população de Pemba é bastante heterogénea, tendo para lá emi­grado do interior os macuas, os ngonis ou mafites e os macondes. Do litoral, os nguja do Tanganica, os sacalaves do Madagáscar e os mujojos das Comores. A civilização europeia, particularmente a trazida pelos portugueses é também notória, já que ali a colonização assimilou grande parte da população, mesmo a não mista. Nas regiões circunvizinhas à cidade de Pemba existiam já antes da ocupação pelos portugueses algumas povoações chefiadas por ré­gulos, sendo o principal o sultão Mugabo, seguido de outros como o Said Ali, Mutica, Macesse e o Mugona. O Governador de Cabo Delgado que, em em 1857 foi incumbido de ocupar a região e aí formar uma colónia, faz especial referência ao "velho" Mutica que, à excepção dos outros, falava ainda a língua portuguesa e muito contribuirá para o sucesso das negociações.

Fortemente swahilizados estes régulos que se expressavam e escre­viam geralmente em árabe, edificaram sociedades semi-feudais cuja autonomia se manteve ao longo dos tempos, até mesmo hoje, con­tinuando a exercer grande influência e poder no seio da população, cujo principal credo é o maometanismo mesclado de antigas tradições fetichistas como em quase todas as regiões da província.

A estas autoridades de relações amigáveis e até mesmo honestas com outros povos em certas alturas, também não lhes faltaram momentos de agitação e saque.

Já em 1843 o cheique Macesse, que chefiava a região actualmente conhecida por Pemba-Metuge, revolta-se contra a submissão aos portugueses, expulsando a companhia militar portuguesa estacionada num navio à entrada da baía de Pemba. Como corolário do desenrolar destes acontecimentos o cheique Macesse devolve a bandeira por­tuguesa às autoridades coloniais nas mãos do ajudante de Arimba, José F. Carrilho e recusando-se a pagar qualquer espécie de tributo.

Salientam-se também as investidas feitas pelos régulos Mugabo, Said Ali e outros contra caravanas europeias no circuito de Quissanga, obrigando-as a uma rota que levaria a mercadoria antes para Porto Amélia.

Se por um lado isto viria a abrir um caminho para o desenvolvimento de Porto Amélia a finais do século XIX, não menos verdade é que o facto veio a onerar bastante o processo de embarque e desembarque da carga já que Quissanga comunicando mais directamente com o "medo" era o principal porto exportador de então para o comércio e tráfico “ajaua-meto”.

A maior parte dos régulos antes da segunda década do nosso século se submetiam, na cintura de Pemba, ao régulo Mugabo, cujas terras confinavam com as da "coroa do medo", estas chefiadas pelo pode­roso maravi Mualia, ora submetido ora sublevado aos portugueses.

O quadro etnológico da população de Pemba remonta-se principal­mente à fusão do grupo macua com castas muani, penetrados res­pectivamente a partir de Murrébue e Quissanga.

Embora de diferentes origens as populações de Pemba se subordi­navam ao régulo Muária também de origem maravi.

O regulado Muária nasce cerca de inícios dos anos de 1880 quando famílias como Heri e Bachir pertencentes ao mesmo clã atingindo a região do medo avançam em direcção ao litoral pela rota Chiúre/ Mecufi/Murrébue.

De acordo com a "rainha" Muamba Omar Ussofo mais conhecida por Nhanicuto e descendente dos Muária, a dinastia se inicia com um tal Heri l na região de Changa (Murrébue) nas terras do régulo Nampuipui.

À morte de Heri l sucede ao trono Heri II que, para não defrontar o régulo Nampuipui que lhe fizera guerra acusando-o de ocupação ilícita das suas terras e compromisso com os portugueses, foge e refugia-se em Pemba na área da Maringanha. Parte do clã seguiu para Quissanga.

O successor de Heri II foi Remane Bachir que viajando para a África do Sul, como era seu hábito levando consigo voluntários (de acordo com a fonte ) que para lá queriam ir viver, foi chamado para assumir o cargo e é nessa altura adoptado o cognome de "Muária" para o regulado que agora começava.

Muitas vezes se fala de Muária como tendo alguma relação de parentesco, de clã ou mesmo qualquer outra com o regulo Muália, o que é negado por Muamba Ussofo, mas pode sobreviver a ideia de auto-identificação com o poderoso e conterrâneo maravi das terras do medo.

Amad Ali, avô do régulo Remane Bachir, descobre a zona de Marindima em Pemba e mobiliza a sua família e a gente de Changa para a habitar, o que veio a acontecer.

No entanto, fugitivos aos ataques dos ngonis, que lançavam as suas investidas com armas de fogo e azagaias a partir do ponto da colina que cai a pique na região de Marindima, bem como pelo facto de ali não haver água potável, a população deixa a zona e vai fixar-se junto às lagoas de Natite.

É então que Remane Bachir manda limpar as áreas de Nuno e Ingonane para ser habitada colocando lá como chefes dois familiares seus, nomeadamente as rainhas Nhanicuto e Nhacoto.

Enquanto isto o régulo Remane Bachir Muária entrega o Wimbi ao chefe Namacoma e a região compreendida entre o Nanhimbe e Maringanha ao seu irmão capitão-mor Tagir Bachir.

Anra Bachir sucede a Remane no regulado Muária e tendo este morrido fica como sucessor o seu sobrinho Fadili Adi, seguindo-se - lhe o seu irmão Anli Mugola.

Durante o reinado de Anli Mugola, este entregou a zona do Cariacó ao chefe Amada Muária, já na década de 60 do nosso século, que ao ser preso pela Pide é substituído por Abdul Latifo Ncuo.

Para além das já citadas rainhas o Paquitequete teve ao longo dos tempos ate à independência de Moçambique outros chefes, no­meadamente Mussa Amad, Pira Anlaue, Said N’Ttondo, entre outros.

Das relações com as autoridades coloniais que, mesmo antes de ocupar a região mandavam anualmente um encarregado de cobrança do imposto, a velha Omar Ossofo relata que quando chegava tal enviado eram içadas três bandeiras portuguesas: uma na praia junto à ponta Romero, a outra à frente da residência do régulo Remane e a terceira no quintal deste.

A população para não pagar o imposto abandonava as suas casas e internava-se mais para o interior e o funcionário da administração colonial em acto de vingança queimava todas as residências, obri­gando a população a construir alpendres provisórios após a sua retirada.

Em língua macua “marapata” significa alpendre ou algo provisório, alcunha que a população deu ao dito funcionário.

Nessa altura a designação de Pemba limitava-se somente a uma pequena área, próximo à ponta Miranembo, onde o governador colonial Jerónimo Romero havia instalado o "Estabelecimento da Baia" e construído um fortim que a população de Muária usou como refúgio nas razias que os sacalaves levaram a cabo.

Embora fora dos parâmetros deste estudo mas para dar uma ideia mais ampla da distribuição territorial do regulado Muária podemos acrescentar que dados de 1970 indicam que o régulo Ntondo, ocupava em Porto Amélia uma área de 1.042 km2 (Paquitequete), seguido do propriamente chamado Muária em Natite com 264 km2, Namacoma no Wimbi com 504 km2, o Piripiri no Gingone chefiando uma área de 8 km2 e o Nansure do Cariacó a Changa com 230 km2. (3)

Considerando por outro lado que os portugueses recrutavam na região do medo os carregadores para as suas caravanas é óbvio que muitos deles em Pemba se foram fixando, o mesmo sucedendo à gente migrada das regiões costeiras.

Os conflitos tribais que sempre existiram entre ambas as etnias (e para um período mais curto também com os macondes) eram compensados pelas trocas comerciais, sobretudo o contrabando e tráfico de toda a espécie.

Apesar de Pemba ser zona costeira, provida de uma enorme baía, muito pouca gente se dedica hoje à pesca, absorvendo o sector pes­queiro apenas cerca de 200 pescadores (dados de 1987) que em suas casquinhas, lanchas e algumas pequenas embarcações fazem não mais que uma produção anual de 150 toneladas de pescado. É também verdade que a intensiva exploração ao longo dos tempos dentro e ao largo da baía, tornaram os recursos marinhos mais escassos.

De marinho típico é, por aquelas bandas, verem-se, nas vazantes das águas com bastante afluxo no período das marés vivas, mulheres, homens e até mesmo crianças de tenra idade ora cercando peixe muidinho com finas malhas ora apanhando conchas ou moluscos comestíveis.

Tão típico é isto quanto o prazer de encontros amigáveis na praia ao nascer e ao pôr do sol, nem que seja sob o pretexto da necessidade de defecar na praia (por tradição), ali se juntam grupos de pessoas em animadas conversas (e quem sabe não mais?) por várias horas.

Grande parte da população dedica-se no entanto à pequena indústria artesanal e a outras ocupações liberais e informais bem como ao comércio, não deixando de praticar um pouco de agricultura para subsistência, com especial incidência no milho, mapira, mandioca e mexoeira.

O comércio ambulante vem ganhando dimensões cada vez maiores e os mercados provêm essencialmente do tráfico swahili com quem qualquer negociante mantém fortes laços.

Pemba, este pequeno satélite e entreposto swahili de tempos remo­tos, conserva ainda suas antigas tradições e hábitos assimilados das gentes do Tanganica. A preferência em artigos do mercado oriental e a quase generalização da língua swahili, embora misturado com o idioma macua e a língua portuguesa, é também realidade.

O “Sungura”, dança importada da Tanzânia, diverte todos os dias e durante toda a noite a população dos bairros periféricos.

Dessa gente não há quem falte, pois aliado ao divertimento algum namorisco poderá, eventualmente, acontecer.

Os três ou quatro conjuntos musicais que actuam em simultâneo nos principais bairros de caniço expressam-se em língua swahili. Os dançarinos os acompanham.

O "mini na kissikia swahili" (eu compreendo swahili) liga uns e outros numa libertação e fruição de mais um dia passado.

As comunidades de maior influência árabe-swahili, muito dedicadas ao comércio com a Tanzânia, localizam-se em ambas as extremida­des: Maringanha ao Sul e o Paquitequete ao Norte.

Contava há poucos anos um velho auxiliar de faroleiro uma interes­sante e peculiar história sobre a origem do nome Maringanha já que a explicação nos conduz a um facto de que a gente de Maunhane jamais viria a esquecer: trata-se da construção de poços de água, um dos mitos de mau agouro ameaçador de morte a quem o construísse.

O facto deu-se após o ciclone de 1914 quando, já reconstruída a povoação de Maunhane, o faroleiro Heliodoro José Carrilho inaugura os poços (por ele próprio mandados construir) gritando o lema: “Muringana?”, que em língua local significa "estão completos?" ao que a população respondia em uníssono "Ti ringana”, que nada mais é do que a confirmação.

Será que por popularização como indicava a fonte e deturpação da expressão "mu ringana" viria a resultar Maringanha?

As cartas no entanto designam de ponta "Maunhane" à região e não é de admirar já que localmente a expressão significa "no sítio dos macacos" dado que em tempos parece ter sido ali o local por eles preferido.

Ainda hoje muitas vezes se vêem macaquitos a vaguear pela Ma­ringanha saltitando por entre o sombreiro das casuarinas e coqueiros junto ao farol como que apreciando as centenas de mulheres que na vazante avançam pelo mar em busca de marisco, o "caril" diário.

Trata-se principalmente da apanha de certas conchas com carne comestível mas pouco ou nada comercializável por se tratar quase de um dever tradicional de toda a mulher e suas crianças procurar moluscos e pequenos crustáceos tanto para seu sustento como até por simples ocupação do tempo e desporto.

Para além da pesca artesanal a população da Maringanha dedica-se também à pequena agricultura bem como à fermentação alcoólica do caju. Aqui a amêndoa deste fruto é no geral consumida quer verde quer torrada depois de seca ou mesmo, em ambos os casos, também utilizados na culinária.

Na outra extremidade de Pemba encontramos o Paquitequete que apesar de desenvolver um forte comércio swahili alberga por outro lado famosos artesãos e gastrónomos ensinados no Ibo e trazidos para ali aquando da transferência da sede da administração da Com­panhia do Niassa.

Ourives trabalhando a prata das moedas portugesas antigas e o ouro das libras estrelinas que ainda vão aparecendo, arrancado às relíquias de algumas poucas “sinharas” (senhoras) ainda vivas apesar de velhinhas, que em seus quintais confeccionam para venda famosos doces, compotas, diversos bolos doces e salgados bem ainda como achares de variado tipo.

O Paquitequete está quase separado da cidade por uma lângua que seca quando a maré vaza mas repleta de água na enchente e, nessas ocasiões, não falta “negociozinho” aos miúdos das casquinhas ganhan­do algumas coroas aos que desejem encurtar o caminho caso estejam em ambas as extremidades já que a ponte se situa quase no extremo sul deste enorme bairro.

O nome de Paquitequete provém da expressão "pá hitequete” que significa por um lado "no sítio do hitequete" ou melhor uma planta que cresce toda emaranhada muito comum ali, por outro é aplicada à característica do próprio bairro com casitas todas muito juntinhas umas das outras formando um autêntico emaranhado.

Engloba ele junto ao mar as áreas de Cofungo na ponta Mepira, seguindo-se em direcção à ponta Romero as zonas conhecidas por Nazimogi, Paquitequete propriamente dito, Cumissete e Cuparata. Há a acrescentar ainda uma casta de mestiços do Ibo que se isolou um pouco mais para a costa a seguir a lângua, dando origem ao bairro da Cumilamba que galga um pouco a parte da escarpa Leste da cidade de Pemba.

Enquanto que na Maringanha a ponta é alcantilada e orlada por um recife de coral que cobre e descobre em Mepira ela è baixa e arenosa caindo a costa a pique sobre o mar.

Nas regiões centrais da península localizam-se os bairros semi-urbanizados de Ingonane, próximo à ponta Romero assim como o de Natite e Cariacó mais a sul onde vivem principalmente os novos artesãos, o pequeno operariado local e os potenciais produtores e negociantes de aguardente e outras bebidas tradicionais, tais como os fermentados de cereais ou farelos.

Estes bairros desenvolvem-se a partir da ponta Romero que é baixa e também orlada por recife de coral que cobre e descobre. Tem praias arenosas mas as ondas são no geral bastante violentas. A ponta Romero antes da ocupação pêlos portugueses era conhecida pelo nome Miranembo.

A tradição reza que ainda no tempo em que a região era floresta cerrada, albergando grandes manadas de elefantes certo dia enfurecidos avançam em direcção ao mar e o mais velho (o chefe) que seguia à frente não foi capaz de estancar na ponta o que o levou a precipitar-se por sobre as águas e dai engolido pelas ondas. De súbito os outros elefantes param e aterrorizados tomam rumo oposto fazendo uma retirada para o interior sem nunca mais por ali aparecerem.

Ora, localmente a expressão “umuiria” significa engolido e “nembo” o vocábulo elefante, ou seja o lugar onde foi engolido o elefante. Naturalmente, segundo a lenda, as duas expressões ter-se-iam fundido dando origem à palavra “umuirianembo”, posteriormente, “miranembo”.

Entre o Cariacó e a Maringanha encontram-se o Wimbe e o Nanhimbe (actual bairro Eduardo Mondlane) dedicando-se à agricultura de su­bsistência e à fermentação alcoólica do caju.

Já no cimo da colina podem-se ver, do levante ao poente, os bairros de Chuiba ou "Planalto dos Cajueiros", Gingone e Muxara, pratica­mente cobertos de cajueiros, e são os que mais comercializam a amêndoa do caju e se dedicam à fermentação alcoólica da respectiva maçã bem como à pequena agricultura.

O rochoso baixo de Nacole a 1,5 milhas para Sueste da Ponta Mepira, projecta ao longo das suas praias de Chibabuara onde, do ponto mais alto da cidade, a colina se faz cair abruptamente.

Outrora um esconderijo de larápios por possuir densa floresta, hoje a sua população é essencialmente constituída por pescadores que, apesar dos rumores de existência de um polvo gigante ali mesmo na baía, essa gente continua fazendo alguma pescaria sem qualquer receio.

No centro da península onde está instalada a cidade de Pemba, ergue-se a zona de cimento desde a Baixa ou "Cidade Velha" junto à qual foram construídas as primeiras casas de alvenaria por facilidades de acesso ao porto, estancando numa planície provida do melhor parque habitacional.

É também nesta zona onde se encontram o Governo e serviços públicos diversos, combinados com uma cadeia de estabelecimentos comerciais bem como um parque infantil onde funciona também uma creche.

O actual porto e ponte cais de Pemba na baixa estão localizados na região meridional da baía a 5 amarras para Sueste da ponta Mepira, com fundo de lodo. O fundeadouro pode alcançar-se a pouco mais de 80 metros, onde se encontra o molhe cais, dado que os fundos se aproximam bastante da terra.

Existem no porto diversas instalações para armazenamento de cargas e para serviços marítimos e aduaneiros. Está também apetrechado com um sistema para a contenção de combustíveis que, através de uma conduta de cerca de um quilómetro, são despejados para os depósitos da Petromoc próximos à povoação de Chibabuara.
- Do Livro "Pemba e sua Gente" de Luis Alvarinho. Sugestão de Armando Silva - Cascais - Portugal.

(Transferência de arquivos do sitio "Pemba" que será desativado em breve)

5/05/10

Retalhos: De Porto Amélia a Pemba - João Sabadino Portugal

João Sabadino Portugal - Mascote ilegal - Fora da lei...

Nasceu em 1962.
O dia e o mês ninguém sabe.
Nem o nome original.
Aos cinco anos roubaram-lhe o colo materno.
Dois anos depois veio para Portugal com um grupo de Fuzileiros de quem era mascote.
Anos mais tarde descobriu que estava ilegal.

- MOÇAMBIQUE, JUNHO DE 1967
Um Destacamento de Fuzileiros Especiais portugueses veste o camuflado e arranca para a primeira operação na zona de Mocimboa da Praia, Cabo Delgado. Devidamente artilhados, os soldados entranham-se mato adentro à procura de presença inimiga.

Alguns passos adiante deparam-se com um grupo de mulheres indígenas. Seguem-lhes o rasto, discretamente, até à aldeia mais próxima. Logo que se apercebem da chegada de militares, os locais começam a fugir, apavorados. Procuram por um abrigo, arranjam uma forma de escapar à chacina.

Enquanto isso, um dos fuzileiros tenta impedir a sua fuga com disparos contínuos e ensurdecedores de metralhadora. Findo o carregador faz-se silêncio, e um manto de capim ruma ao céu, deixando a descoberto uma aldeia sem vivalma. Deserta. Por instantes, pensou-se que todos estivessem mortos. Puro engano. Um buraco estrategicamente cavado na terra serviu-lhes de escudo.

Escapam à morte, mas não de serem capturados e, posteriormente, entregues ao cuidado dos serviços competentes, em Porto Amélia (Pemba). Durante o regresso, os militares aproveitam uma curta paragem para se refrescarem no mar. Os indígenas, que nunca tinham vislumbrado tamanha imensidão de água ficam perplexos. Eufóricos. Durante breves momentos a aflição cede lugar à descompressão. A uma felicidade que parece não ter fim. O brilho espelhado no olhar de uma das crianças, que corre despreocupadamente pelo areal, desperta a atenção do grupo de fuzileiros. E como naquela época era comum os Destacamentos terem uma mascote, um dos militares , por impulso, coloca a hipótese de o adoptar. Assim foi.

João Sabadino Portugal. Foi desta forma que se passou a chamar o petiz. João, porque era dia 24, o mesmo em que se comemora o S. João – passando a ser também esse o dia em que comemora o seu aniversário. Sabadino, porque era sábado. Portugal, porque, afinal, tratava-se de um Destacamento de Fuzileiros Especiais portugueses. Com a autorização da mãe, o rapaz foi viver para o quartel dos soldados.

O petiz tinha a própria camarata, o próprio armário e uma farda igual à dos seus novos compinchas. Durante dois anos foi a coqueluche dos militares. Em 1969, quando a Comissão chegou ao fim, aos 70 oficiais que se preparavam para regressar a Portugal, juntou-se o pequeno João, à responsabilidade de um Oficial Imediato. Tinha sete anos. E uma vida pela frente. Agora, em Portugal.

João guarda poucas recordações desses tempos. "Lembro-me do quartel, de um macaco, de quem tinha muito medo, mas que estava sempre a atiçar, recordo-me de andar vestido com uma farda que me fazia sentir muito importante, e de ser bem tratado por todos eles", confidencia. "Os maus tratos vieram depois ", deixa escapar acompanhando as palavras com um ligeiro abanar de cabeça. Prenúncio de um sentimento mal resolvido.

CASCAIS, JUNHO DE 1969
Meia dúzia de dias após a chegada a Portugal, João foi entregue aos cuidados da mãe do Oficial Imediato que o adoptou: "Foi ela que me criou e educou, a ele só via ao fim-de-semana", começa por contar. "Mas ela era muito mazinha comigo", acrescenta, sem disfarçar um nervoso miudinho, que se acentua quando recorda a dura vida que levou ainda muito novo. "Sabem o que é ter que aspirar, lavar loiça, coisas que não me competiam Era como se eu lhes tivesse que dar algo em troca da educação, da comida Era um escravo", conclui, inconformado.

A gota de água foi quando, já após a morte da senhora, João levou uma violenta tareia de mangueira do pai adoptivo que lhe deixou marcas que ficarão para sempre gravadas na cabeça. E no corpo. Sempre que se vê ao espelho, a antiga mascote tem de enfrentar duas enormes cicatrizes nas costas que lhe trazem à memória lembranças que luta para esquecer. "É verdade que fiz uma coisa estúpida na escola, algo que agora não posso estar aqui a dizer, mas ", começa por revelar. " Só sei que foi a primeira e a última vez que me bateram assim".

Revoltado, João fugiu de casa. Mas logo que o encontrou, e para que o episódio não se repetisse, o Oficial decidiu mandá-lo para casa de familiares, nos Açores. "Fui para lá estudar e trabalhar na pesca. Mas se nós saíamos para o trabalho à noite, como é que eu ia conseguir acordar de manhã para ir para a escola!?", interroga.

Com a ajuda dos companheiros de pesca conseguiu arranjar dinheiro para comprar um bilhete de regresso ao Continente. Apanhou o primeiro avião e mal desembarcou em Lisboa foi bater a casa do pai adoptivo. Este, sem dó nem piedade, virou-lhe as costas.

João fez-se à estrada, sozinho, com vinte escudos no bolso. "Estava com uma raiva tão grande dele que comecei a andar, a andar. Fui de Carcavelos até Lisboa, precisava de gastar toda a energia que tinha no corpo. Cheguei à Rua das Flores e parei porque estava cansado. Depois, passei a viver ali. Batia à porta de casa das pessoas para pedir comida. Dormia perto dos bombeiros, no jardim ou em carros abandonados", recorda sobre os sete anos como sem-abrigo.

LISBOA, DE 1979 EM DIANTE
Durante esses tempos, João Sabadino Portugal fez amizades de ocasião, outras que, apesar das curvas e contracurvas da vida, mantém. Tentou o amor. "Éramos amigos, depois apaixonámo-nos, mas aquilo deu azar." Arranjou biscates em troca de comida. E, como a vida não lhe corria de feição, deixou-se enveredar por caminhos mais sinuosos. Meteu-se na droga. "Fumei uns charros, mais nada." Esteve preso. "Eu não sabia para o que é que ia, fui com eles, e olha, assaltámos um café." Conseguiu sobreviver a tudo.

No meio do turbilhão de emoções, certo dia, para piorar as coisas, João perdeu o Bilhete de Identidade. Naturalmente, tratou rapidamente de obter a segunda via. "Fui a Alvaiázere, onde estava registado, buscar a minha certidão de nascimento, preenchi a papelada, meti lá o dedo para impressão digital e disseram-me para ir levantá-lo dali a uma semana."

Quando lá voltou disseram-lhe que tinha de se dirigir aos registos centrais. Foi o que fez. Preencheu mais uma série de papéis, sem perceber muito bem para o que é que rabiscava, e ficou a saber que para receber o novo B.I. tinha que arranjar comprovativos dos locais onde tinha vivido e trabalhado nos últimos anos. Uma missão quase impossível para alguém com uma vida desregrada. "Tentei explicar-lhes, mas parece que ninguém me ouviu".

Entretanto, passaram-se vinte e sete anos. João Sabadino Portugal continua fora da lei.

Todos estes anos, trabalhou esporadicamente através de empresas de cedência de pessoal, fez os devidos descontos para a Segurança Social, uma vez que tem cartão de contribuinte. No que respeita a saúde, nunca necessitou de cuidados médicos que justificassem a apresentação de um cartão de identificação. E a polícia nunca o abordou. É caso para dizer que, no meio de tanto azar, tem tido alguma sorte.

Mas esta não é uma situação confortável. "Preocupa-me muito, se um dia quero ir a algum lado, dar uma volta maior, não posso. Se eu tenho registo, para quê tudo isto!? Estou baralhado, estou baralhado", diz repetidamente, em alto e bom som, como quem se esforça por se fazer ouvir. Mas a burocracia tem orelhas moucas.

No seu caso, a dificuldade na obtenção de um novo B.I. prende-se com o Decreto Lei 308-A/75 de 24 o Junho, que regulamenta a legalização dos oriundos das ex-colónias. Ou seja: se o João Sabadino tivesse chegado a Lisboa antes de 25 de Abril de 1969 não haveria problema, mas como só chegou em Junho não pode ser considerado português, sendo que também não é moçambicano. O problema só foi detectado porque, entretanto, perdeu o Bilhete de Identidade. “Parece que antes de sair a dita lei davam B.I. a todos, mas depois, para se nacionalizarem, teriam que preencher determinados requisitos, como casar com um portuguêsa, estar cá há mais de cinco anos...”, explica.

SEIXAL, JULHO DE 2005
Quis o destino que em Maio deste ano João Sabadino Portugal se cruzasse com um dos fuzileiros que o trouxeram para a então Metrópole. Há trinta anos que João Serra o procurava. "Após o regresso de Moçambique, ainda mantivemos o contacto. Tinha uma banda de música, os 'The Tigers', e costumava ir buscá-lo aos fins-de-semana para participar nos espectáculos."

Mas a determinada altura, a coisa mudou de figura. "Um dia liguei para casa da senhora que tomava conta dele e ela disse que eu só estava a prejudicá-lo, a desencaminhá-lo. Então deixei de o fazer", revela João Serra, que, a partir daí, perdeu o rasto ao pequeno João. Nunca o esqueceu.

Anos depois, o ex-fuzileiro iniciou uma busca incansável pelo menino traquina que fez as delícias do Destacamento de Fuzileiros. "É incrível ter sido tão difícil dar com ele. Afinal, andou todo este tempo por Lisboa", reflecte João Serra que não descansou enquanto não soube do paradeiro da 'pequena mascote'. "Abordei pessoas na rua, procurei em circos, andei por conservatórias. Ele era como se fosse um filho para mim. Nunca perdi a esperança."

Esperança é a palavra que melhor descreve aquilo que João Sabadino Portugal voltou a sentir depois de reencontrar João Serra. Já não se recordava dele, mas assim que soube de quem se tratava foi incapaz de conter as lágrimas. "Era como se estivesse em frente a alguém da minha família", explica. Após o encontro com o velho militar, a vida de João Sabadino Portugal deu uma volta de 180 graus. Foi viver para a outra margem do rio Tejo, arranjou um novo trabalho e até fez novas amizades. "Estava cansado. Queria um futuro melhor. Tinha lá pessoas de quem gostava, mas nem sequer pensei duas vezes quando ele me fez o convite. Precisava de sair dali, tinha que fazer alguma coisa para fugir daquele ambiente", explica a antiga mascote.

Agora, a prioridade máxima de João Serra é ver a situação deste homem legalizada – a última tentativa para resolver esta “novela de difícil solução”, como lhe chama, foi redigir uma carta ao cuidado do Ministério da Administração Interna – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Até à data, ainda não obteve qualquer resposta.

Por seu lado, João Sabadino Portugal vive a aguardar por dias mais felizes. Para contrariar os ponteiros do relógio, quando não está a trabalhar – e para não pensar muito –, este homem, pouco sociável, fechado, aproveita o difícil passar das horas para ler e ver televisão. "Leio tudo o que me passam para a mão. Na televisão, gosto de ver documentários, filmes e futebol, pelo menos quando é o meu Benfica", conta, folheando nervosamente o 'Baudolino' de Umberto Eco. "Já o li duas vezes, foi o meu afilhado – filho da mulher com quem vivi – que me ofereceu", diz, cabisbaixo.

Para João Sabadino Portugal – assim como para muitos de nós, a ficção é a melhor forma de fugir a uma triste realidade.

HÁ VIDA DEPOIS DO SOFRIMENTO
João Sabadino Portugal está a viver uma segunda vida. Passado o pesadelo reaprende a sorrir. E o culpado por esta metamorfose é João Serra. O antigo soldado do Destacamento de Fuzileiros Especiais portugueses em Mocimboa da Praia deu-lhe a mão que precisava para tentar dar um novo rumo à sua vida. É um esforço desmedido, uma luta de todos os dias. Mas ele não desiste, apesar de saber que a caminhada não será fácil.

João Serra tem feito tudo o que está ao seu alcance para que este homem consiga reencontrar a felicidade. Desde casa, a trabalho, o ex-fuzileiro tem-lhe proporcionado momentos únicos em família. Momentos que nunca teve, uma família que nunca teve. Aos fins-de-semana, João Serra leva a antiga mascote para sua casa, junto da mulher, filhos e amigos. Juntos passam agradáveis momentos de convívio. “Acho que lhe devemos isso, quando o trouxemos de Moçambique, ele era como um filho para todos nós”,sublinha. Dito isto conclui:  ”Ao longo de todos estes anos, nunca o esqueci, apesar do afastamento. Agora, sinto que tenho que fazer algo por ele, e faço-o de boa vontade.”

EM BUSCA DA FAMÍLIA PERDIDA
O reencontro com João Serra trouxe a João Sabadino Portugal nova luz. A antiga mascote descobriu que, ao contrário do que sempre lhe foi dito, afinal a mãe pode estar viva. "Achei que era impossível. Sempre me disseram que a minha família tinha morrido", conta,emocionado. E confidencia que apesar de ter acreditado nessa realidade, nem sempre a aceitou. “Houve alturas em que chorava pelos cantos, sentia-me sozinho, sentia a falta de uma mãe", acrescenta.

Encontrá-la é agora a sua prioridade.

O seu grande sonho. "Tirava-me este peso todo que tenho cá dentro, esta mágoa. Seria uma alegria." Com o auxílio de João Serra, até já enviou um email para a televisão de Nampula a expor a situação. Enquanto não há novidades, contempla a mãe, com saudade, através da fotografia que registou o momento da despedida em Moçambique. A imagem foi-lhe oferecida por João Serra e agora vive numa moldura pregada na parede do seu novo quarto.

E-MAIL PARA A TV DE NAMPULA
Data: Quinta-feira, 30 de Junho de 2005
Assunto: PROCURA-SE FAMILIARES
Ex.mos Senhores,

Peço a vossa ajuda com o objectivo de João Sabadino Portugal, hoje com 43 anos, saber se tem família em Moçambique. Em 1968, foi adoptado por uma unidade militar portuguesa, que o trouxe para Portugal em Junho de 1969. Até ao momento, desconhecia a possibilidade de existência de familiares, devido a informações deturpadas que lhe foram transmitidas. Agora, foi confrontado com fotografias que lhe foram mostradas por um antigo militar da unidade. A sua família vivia na zona de Mocimboa da Praia e pensa-se que mais tarde se deslocaram para Porto Amélia.
Agradecendo a atenção dispensada para esta acção humanitária, apresento os meus melhores cumprimentos,

João Serra.

MOÇAMBIQUE - DATAS COM HISTÓRIA
- 25 de Setembro de 64 Início, em Mueda, da luta de libertação nacional.
- 25 de Abril de 74 golpe militar em Portugal abre caminho para a independência do território.
- 25 de Junho de 75 é proclamada a independência. Samora Machel torna-se no primeiro presidente do país.
Se tiver informações que possam ajudar este cidadão contacte:

João Serra, antigo fuzileiro
Telemóvel: 93 51 00 952
- Sugestão de Tó Coelho.

Provérbios Macuas
- Colaboração de Elsa Anjos baseada na pesquisa e trabalho do Padre Alexandre Valente de Matos, Missionário durante 30 anos no norte de Moçambique.

AJUDA MÚTUA
1 - OHIYA MVITHE, WIWANANA - DEIXAR RESTOS DE COMIDA NO PRATO É FRUTO DE MÚTUO ACORDO DOS COMENSAIS.
(QUANDO NUMA FAMILIA AS VONTADES SÃO CONCORDES E UNIDAS HÁ HARMONIA, PAZ E FELICIDADE. PORTANTO TUDO ISTO PARA SE CHEGAR À CONCLUSÃO DE QUE A UNIÃO FAZ A FORÇA).

2 - ASINÀMUKUTTU KHANIMANANA MAKUKHU - AS MULHERES QUE TÊM FILHOS PEQUENINOS NÃO SE RECUSAM ENTRE SI AS FOLHAS DE PLANTAS COM QUE LIMPAM O CÓCÓ AOS MESMOS.
(NAS OCASIÕES É QUE SE CONHECEM OS AMIGOS. AMIGO QUE NÃO PRESTA E FACA QUE NÃO CORTA, QUE SE PERCAM POUCO IMPORTA).

3 - OPHWANYA ONOPHWANYIHANIWA - O POSSUIR BENS DE FORTUNA É FRUTO DO CONTRIBUTO DOS OUTROS.
(UMA MÃO LAVA A OUTRA E AMBAS O ROSTO).

4 - OKHALA ONOKHALIKANIWA - VIVER É AJUDARMO-NOS UNS AOS OUTROS A VIVER.
(NOS TRABALHOS SE RECONHECEM OS AMIGOS, OU QUEM TEM AMIGOS NÃO MORRE NA CADEIA).

5 - KÀKUVELE ,MYUPA SIMMALENE - SE ALGEM GRITA "VINDE DEPRESSA EM MEU AUXÍLIO" É PORQUE SE ACABARAM AS FLECHAS OU AZAGAIAS.
(AMIGOS, RETESEMOS OS BRAÇOS NUM MAIOR ESFORÇO, PORQUANTO SE O DONO DA MACHAMBA NOS CONVIDOU, É PORQUE TEM VERDADEIRA PRECISÃO DO CONTRIBUTO DAS NOSSAS ENXADAS).

6 - MÒNO MMOSÁ KHULIPALE - UM BRAÇO SÓ NÃO TEM FORÇA.
(EU NÃO TENHO RAZÃO NO QUE DIGO, PORQUE ESTOU SOZINHO. SE EU TIVESSE TESTEMUNHAS, SEM DUVIDA OUTRO DEVERIA SER O DESFECHO DO MILANDO...)

7 - MUNAKÉRELA OWELÉLELIWA, KIHIKHANLAKA NI MUTTHÚ OKÀKIHA - FAZEIS-ME ISTO PORQUE ME ENCONTRO COMO O PEIXE FORA DE AGUA, JÁ QUE NÃO TENHO NINGUEM PARA ME DEFENDER.
(QUEM NÃO TEM PADRINHOS MORRE MOURO. COMO, PORÉM, NÃO DISPÕE DE MEIOS, NEM TÃO-POUCO TEM TIOS OU OUTROS FAMILIARES QUE A AJUDEM A SALDAR O MILANDO RESULTANTE DO DIVORCIO, RESIGNA-SE A CARPIR A SUA POUCA SORTE ATÉ AO FIM DA VIDA).

8 - MUTHHÚ KHANÍVA EKULUWE,AREVÁ MUNÈNE - NINGUÉM MATA O PORCO SELVAGEM E SE PÕE A CHAMUSCÁ-LO.
(NEM SEMPRE AQUELE QUE DANÇA PAGA A MUSICA. UNS BATEM O MATO; OUTROS APANHAM AS LEBRES).

9 - WÈTTA ÈLI, MURETTE - ANDAREM DUAS PESSOAS EM COMPANHIA UMA DA OUTRA É REMÉDIO.
(AI DO HOMEM QUE VIVE SÓ. COMPANHIA DE DOIS, COMPANHIA DE BONS. VIDA DE SÓ, VIDA DE JOB. SÓ ME ACONSELHEI, SÓ ME CHOREI).

10 - NIHIKU NIMOSÁ KHANNÙTTA TTHORÓ - O RATO DO CAMPO "TTHORÓ" NÃO APODRECE NUM SÓ DIA.
(UMA VEZ NÃO SÃO VEZES . O QUE SE NÃO FAZ NO DIA DE SANTA MARIA, FAZ-SE AO OUTRO DIA. O QUE SE NÃO FAZ NUMA VEZ FAZ-SE EM DUAS OU TRES).

(Transferência de arquivos dos sitios "Peso da Régua/Pemba" que serão desativados em breve.)