6/09/10

RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulos II, III e IV

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Capítulo I
Capítulo II

Eram nove horas quando passámos as Canárias. Foi o primeiro sinal de terra depois de Lisboa: sombras longínquas emergindo na imensidão, ponteadas por silhuetas de casario, rapidamente engolidas pela fita do horizonte.

Regressámos, após o aturdimento, aos lugares de rotina, aos cigarros, aos livros, às conversas do mais-valia-estares-calado, à modorrice das cadeiras de lona, ao anedotário forçado, à cegueira do mar.

Gastam-se, nos bares, os escudos em pulseiras, isqueiros, mas, principalmente, em muita cerveja.

O Pimentel, meio careca, olhos encovados, nariz de periquito, lábios talhados a navalha, queixo caindo desajeitadamente, falar nervoso, empurrando constantemente os óculos para cima, manifesta a sua nevrose ulceróide.

- Esta comida mata-me. Trago uma tonelada de medicamentos, mas não me vão valer um corno. Só a leite não me safo.
- Admira-me como estás aqui.
- Não tive empenhos de ninguém. No hospital da Estrela disseram-me que a tropa cura tudo. Nem a uma Junta Médica me propuseram. Chegando lá, vou direitinho para o hospital. Nem que me faça de doido.

Majores e Capitães discutem, em grupo, a fazerem horas para a segunda mesa que é às dezanove e trinta. Distingo pequeninas luzes, pirilampos sobre o mar. Estamos a entrar no golfo da Guiné, o calor é sufocante. A nossa posição está afixada no átrio da primeira classe: latitude – 27 06º norte; longitude – 15 21º oeste; distância percorrida em 24 horas – 377 milhas; a navegar – 3339 milhas; velocidade – 15,7 nós.

Hoje há cinema. O écran é um pano branco preso ao mastro da ré, onde o Kirk Douglas vence leões perante o ar desolado de um deprimente Calígula.

Visito a casa das máquinas: seis cilindros trabalham incessantemente, os êmbolos sobem e descem em tão impressionante velocidade que os julgamos parados; um moço guedelhudo, com óleo a brilhar em todo o corpo, é incansável na limpeza, fazendo rodopiar o desperdício. Umas escadas abaixo, o circuito emaranhado de tubos não deixa perceber o princípio e o fim daquilo. Peço uma explicação a um homem de meia idade, responde-me seco e rápido, mal o escutando no meio daquele barulho gigantesco. Ofereço-lhe o ouvido e vira-me as costas. Não entendo como ele compreendeu a minha pergunta. A certeza de que, onde estou, já é dentro de água, sufoca-me. Fujo cá para cima. Na proa, deixo-me vergastar pelo vento e pelas gotículas de espuma que se elevam do refluxo das vagas.

Capítulo III

A vaga larga deixou-nos, regressaram as ondas pequenas como bichos carpinteiros. Aparecem, por onde passo, manchas de vómitos que dão uma imagem de náusea, de ruínas, de vida destoante, de apetites estragados. A enfermaria já tem doentes e os médicos que vão a bordo dão consultas em qualquer ponto de encontro. O calor aperta mais, abafa num cheiro de mistura de suor, restos de comida e pestilência latrinária que umas breves bátegas graúdas não desfizeram, pois o sol, escaldante, seca tudo mais depressa do que demora a dizer.

O barco está a andar menos; o mar, mais cavado, não ajuda; a ventania sopra forte de caras à proa; as ondas, arredadas para os lados, sobem mais que o normal. Quem estiver na vante, suportando o terrível balanço, e olhar para a torre de comando, vê-a desaparecer e aparecer num movimento de mandíbula gigante. Peixes voadores, em volúvel desafio, acompanham-nos durante algum tempo. O céu, sem princípio nem fim, de uma chocante amplidão, reduz-nos a um ínfimo incontrariável; a lua, de um limpo imaculado e definível, consente-nos um deslumbramento; as estrelas, débeis e humildes, ameaçam apagar-se à mais pequena aragem, embora tenham um brilho de gelo.

Passei no hospital, em cuja morgue o corpo de um velho tripulante – de coração gasto por tantas viagens - aguarda a chegada a Luanda para depois regressar ao chão da sua origem. Nos porões, os soldados são obrigados a dormir nus para melhor resistirem ao calor que nem uns tubos de pano enfunados conseguem amaciar.

Atravessou-se o Equador às quatro da manhã com o barco envolto no sono, sem as costumeiras festas comemorativas. Ainda bem, detesto alegrias preparadas e bebedeiras gratuitas. Não durmo. Estou recostado numa cadeira do deck-A, olhando a escuridão uivante, os salpicos do mar a caírem-me aos pés, uma desumanidade sinistra. O baloiçar lembra-me um carro numa estrada de lombas, a proa e a popa jogam o tu-cá tu-lá, ora é esta a levantar e aquela a afocinhar ou vice – versa. Aqui vou eu, neste túmulo enorme, numa submissão compressora, só mar e céu, longe de tudo, dos meus, dos afectos, das fragrâncias dos vinhedos, do suor dos cavadores, do ar suspenso no cair do dia, dos ecos dos remoques, do ladrar dos cães aos ébrios da noite.

As ondas vergastam o casco, entoam como murros de raiva, metem medo; o vento, de leste, nem deixa acender um cigarro. Recolho-me ao beliche com a preocupação de não acordar o parceiro do lado.

Capitulo IV

Informam-nos que já se passara S. Tomé e Príncipe sem avistar vivalma.

A nossa posição: latitude – 08 22º Sul; longitude – 12 40º Este; distância navegada nas últimas 23 horas (resultante do adiantamento de uma): 344 milhas; velocidade: 15 nós; a navegar (até Luanda): 46 milhas.

Na noite anterior, quando dávamos mais uma volta aos ponteiros dos relógios, vimos, a uma alegre distância, os holofotes da fragata que nos começou a escoltar. Os seus sinais de luzes foram correspondidos com uma algazarra que mais parecia um grito de libertação. A ansiedade tomou conta de todos e o resto da noite foi um prolongamento daquela.

Ao meio-dia arrearam a escada do portaló. Há um frémito de emoção. Na lonjura, uma mancha escura surge por entre uma neblina refractada. A orquestra de bordo toca. Os bares não têm descanso: pedem-se martinis e cubas libres atulhados de gelo, bebem-se as cervejas pelo gargalo, há muitas asas e muitos grãos, berros avulsos de nervosismo. Penduram-se, ao pescoço, máquinas vulgares e outras sofisticadas, lembram-se parentescos a viver em Luanda e arquitectam-se barrigadas de camarão. A fragata apita, corre paralela, deixa-se retardar, os marinheiros perfilam-se e acenam com os bonés. Um prazer de companheirismo flutua no mar. Vamo-nos aproximando de Luanda. O Niassa tem os varandins repletos, nem uma nesga por onde os atrasados possam espreitar. Dois gasolinas, um cheio de raparigas esplendorosas, outro com um careca de barriga inchada, aceleram e afastam-se. A lancha dos pilotos esfaqueia as águas. Ouve-se, distintamente, a desaceleração do navio. A escada desce, ainda mais, quase roçando as águas. O Comissário, na plataforma da ponte, de rádio na mão, transmite instruções, recebe o piloto que guiará o barco até à acostagem. Dois rebocadores, o Quitexe e o Bero, contornamnos e colocam-se a bombordo. O piloto, na torre de comando, dá àqueles, por intercomunicador, ordens de marinhagem. O Quitexe dirige-se, então, para a popalado-bombordo e encosta, suavemente, a bossa. O Bero, por sua vez, apressa os motores, lançando uma fumarada espessa, dirige-se para a frente da proa, dois negros atam o cabo à amura, e aquele afasta-se, esbaforido, como se receasse ser esmagado pelo Niassa. O Quitexe, esse, continua, na ré, a empurrar, comprimindo a bossa contra o costado.

Entre os militares, a bordo, e algumas pessoas que estão no cais, iniciam-se reconhecimentos recíprocos; é uma confusão sem domínio, parece que tudo acabou aqui. A amarração está feita. Rondas de polícias militares, garbosos, de camuflados passados a ferro e lencinhos ao pescoço, erectos e peneirentos, fazem a segurança na zona do paredão. Começa a descida, os cartões de autorização amarrotados nas mãos.

Percorro a meia lua da marginal de lindas palmeiras. À sombra destas alinham-se bancos para saborear a brisa. Gozo, ao fim de tantos dias, o caminhar sobre a terra, meio tonto, desabituado, lançando, em redor, os olhos esfomeados. Não há um táxi; continuo a pé. Observo os prédios airosos, geométricos e alinhados; carros descapotáveis no passeio domingueiro, cabelos ao vento como se quisessem despegar-se das cabeças. Não é possível! Onde está a guerra? Nos sinais: jeeps cheios de camuflados e G-3 cruzam-se no à vontade de terra vigiada, olham-nos trocistas, com aquele ar superior de velhice guerreira.

- Leve-nos à baixa – todas as cidades têm uma baixa -, peço ao condutor, finalmente conseguido, um mulato corpulento que sorri à solicitação.

Quinze angolares saldam a corrida. Entrámos, eu e os meus acompanhantes, num restaurante com nome transmontano. O empregado que nos atendeu, quando soube de onde éramos, confessou-se:

- Vim para cá em 63, estive no Norte, e, quando estava para embarcar, resolvi ficar. Gosto disto, mas já tenho – pondo a mão no peito- um aperto aqui. Talvez vá lá no Natal.

Pagamos a conta e despedimo-nos. Em novo táxi, fomos para a Ilha: barracas, numeradas a cal, ladeiam a estrada da restinga; velhos, de barbicha branca, defumam a idade; na areia, sob a chapada do sol, crianças brincam com pneus lisos; nas esplanadas, barbecus domingueiros incendeiam o ar com aromas de churrascos; trinca-se, na espera, marisco acompanhado com uísques e cervejas geladas num deguste vagaroso; vivendas luxuosas, com espampanantes carros à porta, dão um tom de capitalismo ávido, a que não falta o moleque de uniforme branco; nas ruas, alcatroadas ou de terra batida, gingam negras de filhos às costas e sorrisos de neve.

Regressei ao Centro do trânsito caótico. Fui aos Correios mandar um telegrama para casa, olhei a Fortaleza, não dava para lá ir, imaginei os caminhos do Grafanil, lugar lendário da tropa, e dirigi-me para o morro dos musseques onde havia zaragatas no ar, procuras de sexo, olhares suspeitos, correrias persecutórias, odores intensos de catinga e petróleo queimado, uma viração deletéria.

O Niassa desamarraria pelas duas da madrugada. Relanço um último olhar a Luanda, aos seus lambrequins arquitectónicos em que, diante de uma baía serena como um lago, se misturam as origens lusas e as raízes naturais numa garridice cativante.

Subi para o barco numa desilusão de fim de festa. Ainda vi meter o caixão, com o tripulante falecido, num Land-Rover com as cores e o nome da companhia de navegação a que pertence o Niassa. Fui-me deitar, não querendo, sequer, escutar o urro que o barco dá ao partir.
Continua...

- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.

6/04/10

RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulo I

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Capítulo I

Aqui estou, estranhamente sereno, no meu camuflado ainda de goma, quase plástico, com galões dourados a simularem-me o indulto da contrariedade, esperando a chegada de um velho General que se levantou tarde ou se esqueceu de mais um embarque para despachar. Aqui estou cheio de sono, com a noite anterior passada a beber cervejas e a apalpar mulheres, Lisbon by night, as meretrizes da Avenida, a pancada do Cais do Sodré, os Cafés do Chiado cheios de fumo das conspirações escancaradas para a Pide se entreter, as chagas prostituídas do Intendente, o Tejo sem os meninos do Soeiro Pereira Gomes ou os Gaibéus do Alves Redol; em S. Bento a teimosia guardada de um ditador e, sob a ponte com o seu nome, nem um barco de liberdade. Berrei, naquelas horas, a tentativa do esquecimento. Coimbra estava longe e, pressentiu-se-me, irremediavelmente perdida; as serenatas uma saudade de alma a sangrar. Coimbra parara num guarda-vestidos da velha casa onde nasci com uma capa negra à minha espera. Os livros na estante do meu quarto, vazio durante dois anos, resistiriam à humidade de dois invernos porque havia sempre dois verões para os secar. Minha Mãe frequentaria a Igreja com a devoção redobrada, de preto vestida como um luto de morta-viva, sem sorriso, os olhos de vermelho escuro. As flores, na Primavera, desabrochariam sem a satisfação do meu olhar e o jardim cresceria à medida da minha ausência. A aldeia não me veria a cara, os caminhos e as ervas dos vinhedos não sentiriam os meus passos, a luz continuaria a faltar, a água seria promessa renovada, a fome espreitaria alguns lares pobres, os meninos deles brincariam descalços e o meu Avô continuaria lá adiante, no Espírito Santo, à minha espera.

Saí cedo do quartel, os Unimogues e as Berlietes a esmurrarem os olhos da noite, repletas de caixotes, sacos e homens-crianças de estômagos enfartados de pão e leite misturado com mentol. A cidade, uma sombra enorme: grupos de operários, de marmitas nas mãos, a dirigirem-se para a cintura das chaminés gigantes que nunca paravam de vomitar labaredas como vulcões em ressaca; Vila Franca lá atrás, tapada pela Siderurgia e perdida na lezíria; na auto-estrada da Encarnação os primeiros carros corriam, ainda à vontade, de faróis acesos.

Gostava que alguém trouxesse o General para acabar com esta palhaçada e os soldados terminarem os abraços e secarem os olhos. Eu não choro. Já me chegou a despedida no fim daqueles amargurados doze dias que me deram de licença como se fosse a última vontade de um condenado. Por muitos anos que viva, jamais esquecerei aquele aperto de minha Mãe: tinha o sangue do cordão umbilical, o despedaçar de um coração único. Julguei morrer ali, envolto naqueles braços, amortalhado por aquelas lágrimas, aquele pranto do fim do mundo, enfiados num quarto feito dispensa da casa secular em que nasci. Disse para comigo: «NÃO VOU!». Os gajos que me viessem prender, que me arrastassem para onde quisessem. Afinal, por que me separavam da minha Mãe? Com que direito? Ao mando de que razão? Plantassem as cruzes noutro cemitério, medalhassem peitos nas praças imperiais, o meu só queria a liberdade e o amor. Mas estou aqui, sem fugir para Genebra, sem inventar úlceras, miopias ou pés chatos, sem cunhas para me livrarem da tropa; estou aqui, cobarde da minha revolta, mas, certo de que ninguém me chamará desertor, com este magote que enerva, à espera - repito - de um velho General desocupado que finja que passou revista ao atavio do batalhão, devidamente filmado por uma câmara para à noite abrir o telejornal e mostrar à Nação mais um contingente a marchar rumo a África «no cumprimento do dever». O barulho é uma inércia auditiva. Olho as estátuas, sem heráldica, da Polícia Militar, e dão-me pena, pena não, desalento, é isso, um imenso desalento como quem é obrigado a conviver com a inutilidade. Apetecia-me ir embora, mandar bugiar isto tudo, voltar a Coimbra, ao bar das Letras, tomar um café para ver aqueles borrachos a mostrarem as coxas, os mamilos a esticarem as blusas, e, eu, tímido, fingindo descontracção, pagaria a conta, desceria à Baixa, ali pelo Quebra-Costas, daria meia volta até à Sofia e subiria Sá da Bandeira. Na Praça da República, num banco virado para o Mandarim, faria horas para o almoço na Associação, passando os olhos pela Vértice ou pelo Via Latina. Mas não, estou aqui, ensonado, farto de esperar, ansioso que estas cenas acabem, com o olfacto saudoso dos cheiros das vinhas e da cozinha da minha casa. Ao lado, o Niassa com a escada do portaló descida e alguns tripulantes debruçados na amurada, curiosos por coisas diferentes de outros embarques.

- Meu Alferes, o nosso Capitão está a chamá-lo – diz-me o Cabo Álvaro sem expressão na voz.
- O meu Capitão chamou-me? – apresento-me, erecto e militarão, como me ensinaram em Mafra.
- Silvestre, arranje-me uns homens do seu pelotão para levarem uns caixotes para bordo. Estão junto daquele – apontando com o indicador direito - jeep da PM – ordenou-me o capitão Silveira.

Chamei o Furriel Manso para escolher seis homens e disse-lhe o que deviam fazer. Vi-o chamar o Cabo Álvaro e constatei a eficiência da hierarquia militar.

De repente, um tremor a despertar modorras, toda a gente começa a correr. Ouvem-se vozes de comando meio baralhadas, repetem-se despedidas, os comandantes das Companhias mandam formar. Acho que é, agora, finalmente, que o General vem. Os tipos da televisão erguem as máquinas de filmar. O meu pelotão está pronto. Os familiares dos militares acotovelam-se e o varandim da Rocha de Conde de Óbidos está à cunha. Há toques de clarim e ruídos de portas de carros a bater, continências a torto e a direito, risos nervosos e apertos de mãos para a chapa. Em posição de à vontade, tenho atrás. O pelotão com o Silva a fungar, o Dias a insultar o Cubano e este a responder-lhe à letra, o Luís a ajoelhar o traseiro do Dionísio que esperneia caneladas, o Álvaro a assoar-se. Viro-me para amainar o temporal.

- Nosso Alferes! - gritou-me o Capitão Silveira. – O seu pelotão está pronto?
- Sim, meu Capitão! Terceiro pelotão pronto! – disparei, lembrando instruções de ordem unida.

Pousou um silêncio de começo de Missa. Com todo o corpo militar em sentido, surge, ao fundo, o General de estrelas brilhantes, novinhas como se tivesse sido promovido no dia anterior. A banda toca a marcha Angola é Nossa. O velho Oficial inicia a inspecção às tropas no ritmo apressado de quem se quer desembaraçar de uma chatice. Olho o céu e ninguém me traz a alegria e a paz, sou prisioneiro dentro deste espaço, com fé, mas sem profetas; o sol não anuncia que a guerra vai acabar e os anjos não nascem na ilusão de quem não lhe apetece partir. Acabada a revista, a Alta Patente calhou postar-se diante de mim, esperando o desfile em continência. Tem uma cara de rugas em cortinas e um nariz absurdamente elegante no meio de uns olhitos inócuos que observam encobertos por umas grossas lentes de miopia anciã.

Os militares, à medida que o desfile se desenrolava, subiam para o barco. Apressei-me quando chegou a minha vez. Não tinha ninguém a quem acenar; pedira para que me poupassem a repetição do afastamento. Ainda não alcançara o tombadilho, ouço uma voz a chamar-me. Volto-me. Vejo o Jorge, grande amigo feito em Mafra, no empedrado, a gesticular e a gritar: «Vou amanhã para a Guiné!» Sorrio e desejo-lhe boa sorte. Debrucei-me na balaustrada, enquanto ainda desfilava um resto, mas a PM, imperial nos seus lenços amarelos, afastou-o sem parar de acenar.

Era uma coisa indescritível: gritos, berros, choros, gemidos, apelos, recomendações, lenços agitados, crianças apavoradas, Mães desfalecidas e, também, carpideiras avençadas. Parecia o desespero de um Povo a clamar uma orfandade colectiva. Então, invadiu-me uma tristeza tão grande e tão forte que não segurei o choro, qual um rio a romper o dique da minha impotência de não conseguir dizer NÃO, de estoirar com a chantagem da deserção, da coacção do anti-patriotismo.

O barco apitou. Muito devagarinho, como se quisesse desamarrar sem se notar, o Niassa separou-se do cais. Da banda militar, irromperam, inesperadamente, os acordes do Hino Nacional. Estremeci, o sangue a ferver, os pêlos a roçarem a farda, as lágrimas em cascata. Meu Deus!, aquilo soube-me a traição sem dicionário, exploração sentimental, alibi de uma infracção, um recurso cruel para o inabdicável. A terra ia ficando longe. Junto a mim, um soldado, de cerveja na mão, perdido de bêbedo, espumando palavras sem nexo, «Haja alegria! Haja alegria!», ria, ria alarvemente.

Lisboa manchava-se no horizonte. Lisboa capital de uma Pátria que espalhava a sua juventude pelos matos da guerra, sem um esboço de paz, sem uma esperança de que o sofrimento valesse para alguma coisa.

O terraço de Alcântara era um lenço gigante ondulando às tágides, soprando velas e espargindo lutos. O soldado bêbedo, enrodilhado no chão, como uma criança a quem arrancaram um presente, gemia: «Eu quero a minha Mãe! Eu quero a minha Mãe!» Levantei-o, nem sei se com piedade ou raiva, e chorámos os dois como choram dois irmãos verdadeiros: agarrados um ao outro.

Os alto-falantes anunciam: «O almoço começou a ser servido. Oferecemos, entretanto, um programa de música seleccionada.» Os sons tristes de La poupée qui fait non acompanham-me até à sala de jantar. Como só fruta. A cabeça entontece-me. Os soldados, de pratos nas mãos, não sabem para onde ir. É um ambiente desorganizado, de começo. A diferença das águas do Mar da Palha para as do Atlântico acentua-se: mais azuis e movimentadas. Lisboa é, agora, uma pincelada de névoa sebastiânica. Uma lancha junta-se ao barco para recolher o piloto que vai descendo pelos degraus do portaló. Aquela apita forte, trocam-se votos de boa viagem, e, acelerando os motores, afasta-se. À distância regulamentar, uma fragata escolta-nos. Gaivotas elevam-se sobre os mastros para depois picarem em voos razantes. Um ar pesado de enjoo envolve o quartel flutuante. Debruçados nas amuradas, homens vomitam o almoço e olham para o sítio de onde partimos. Dói-me a cabeça, pareço andar à roda. Deambulo pelos decks, vejo gente que não conheço, absorta, de olhos inchados, caras perdidas.

Navega-se, moderadamente, por entre babas de espuma, sem nada já ao longe, uma solidão infinita, um desamparo que atordoa, um abandono irremediável. Chegam os primeiros radiogramas. Antes não viessem: «Todos estão contigo. Felicidades e um regresso rápido.» Está bem, um regresso rápido para quem acaba de partir. Procuro conhecidos para mastigar palavras, mas eles e elas enclausuraram-se. Os relógios são atrasados uma hora e à meia-noite terão igual recuo. Não suporto a dor de cabeça, sinto uma estranha sonolência de delíquio. Vou para o camarote e deixo-me embalar por este berço gigante.
Continua...

- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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6/03/10

O Retorno - Um conto de Allman Ndyoko

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Um vento forte fustigou levantando uma nuvem de poeira e os vestes de Mbalale, que imediatamente esvoaçaram na direcção do vento. Volvido algum momento, o vento parou. Uma neblina cobriu o ambiente e uma escada longa, dourada e sem corrimão surgiu na sua frente elevando-se até ao céu coberto de nuvens brancas e espessas. Um impulso inexplicável impeliu Mbalale a subir os degraus. Vagarosamente e ausente de si, foi subindo a escada que parecia sem fim e à medida que galgava ia sentindo o corpo gélido, equilibrado e quase sem anomalias. Uma paz interior invadiu o coração e a memória de acontecimentos recentes se esvaiu como um relâmpago. Em sua volta, à escassos metros donde se encontrava caminhando, sem saber para onde, seres humanos voadores trajados de branco e com as costas pregadas de asas lhe vigiavam cautelosamente acompanhando o seu percurso.

Entretanto, chegou a um ponto onde as nuvens viam-se em baixo a uma distância consideravelmente longa. Contudo, prosseguiu a marcha mesmo sem saber o destino e mais adiante, encontrou um homem alto, robusto e de capuz empunhando um cajado. Ele achava-se parado no meio do percurso, onde a escada se dividia em duas partes tomando direcções opostas. Nesse ponto, iniciavam dois caminhos de terra cor branca como as areias da praia. Nas extremidades desses caminhos achava-se uma infinidade de flores que se estendiam na terra formando um tapete colorido de beleza incomparável. Ao aproximar-se do sujeito, Mabalale parou e logo foi-lhe ordenado a seguir o caminho que conduzia à direita. Enquanto marchava no novo caminho coberto de céu azul, Mbalale ouviu vozes de gente cantando em uníssono cânticos desconhecidos, mas belos e contagiantes. Doutro caminho que ia à esquerda chegavam-lhe aos ouvidos gemidos de gente, gritos de socorro, estalidos de chicote e sons de correntes metálicas arrastadas no chão pavimentado e pedregoso. Porém, prosseguiu a marcha até a uma cancela guardada por homens robustos e valentes, onde parou aguardando ordem. Nesse instante, deitou a vista do lado oposto à cancela e viu uma multidão de gente sentado no chão aguardando a chamada para o ponto donde vinham as vozes dos cânticos belos e confortantes. Nessa multidão, Mbalale viu seus parentes mortos há muitos anos também sentados junto à multidão. Ficou perplexo e de queixo caido. Esbugalhou os olhos e nesse instante ouviu deles:

- Ninguém te chamou. A tua hora ainda está por vir...

Enquanto diziam isto em coro, repetidas vezes e de cabeça cabisbaixa, um guarda da cancela tocou as costas do Mbalale com um cajado e ordenou-o a retornar. Sem resistência e muito indiferente, Mbalale voltou a percorrer o caminho que havia andado e mais adiante encontrou um homem com um capuz parado na berma. O homem interrompeu o marchante e logo disse-lhe:

- Siga este caminho. – Apontou para um ponto que descia e no fim via-se uma floresta densa e escura. – Mais adiante encontrarás alguém perto de um lago e essa pessoa te servirá água numa cabaça. Não bebas e prossiga a marcha. Mais em frente, voltarás a encontrar outra pessoa que também encontra-se ao lado de um lago de água limpa, fresca e reluzente e quando servir-te aceita-a, beba e prossiga. Entendeu?

- Entendi! – Respondeu Mbalale uma vez mais ausente de si.

Na verdade, mais em frente encontrou o primeiro homem de capuz preto que imediatamente lhe serviu água de forma astuta, mas Mbalale recusou a oferta conforme havia lhe instruido o guarda da cancela. Já adiante, encontrou o outro homem de capuz branco que lhe serviu água numa cabaça. Mbalale aceitou a oferta e antes de levar a cabaça aos lábios, tratou de olhar para o lago e viu que tinha águas limpas e reluzentes. Então, bebeu o líquido seguramente e quando engoliu a última gota da cabaça viu-se no cemitério, no meio de uma clareira, onde gente da sua povoação lhe rodeava chorando e preparados para o sepultar. Desfez-se dos panos que lhe envolviam e alguns aldeões fugiram a sete pés medrosos pelo retorno misterioso do ex-finado ao mundo dos vivos, naquela tarde de Junho de sol avermelhado... 
- Allman Ndyoko, Pemba 09/04/2008.

5/28/10

OS IGNORADOS

 
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Falo-vos da África dos matos sem fim,
Dos ecos perdidos no capim,
Das picadas vermelhas mas livres,
Tão livres como a liberdade.
Em cada curva uma palmeira,
Em cada lugar uma saudade,
Em cada sorriso uma clareira
De brancura e de amizade.

Falo-vos das noites de encantamento,
Das queimadas para lá do pensamento,
Da lua a beijar a baía de Pemba,
Do batuque e das esteiras na temba
Onde o meu corpo se satisfazia
Em outro corpo que, depois, dizia:
« São cinco quinhentas, patrão! »
E eu, cá dentro, aqui onde bate o coração,
Nem sei o que sentia.
Só sei que, depois, voltava
Com mais quinhentas na mão,
Roído pelo tédio e a solidão.

Falo-vos dos poemas proibidos,
Alguns esquecidos,
Outros lembrados
E agora publicados.

Falo-vos dos loucos a berrarem no entardecer,
Das sentinelas a dispararem para a escuridão
Com o medo aos saltos, na indecisão
Da manhã que não se sabe se vai nascer.

Falo-vos dos rios em que lavei o rosto,
Matei a sede ao sol- posto,
Gritei que não queria a guerra,
Mas não desertaria da minha terra.

Falo-vos da África onde não voltarei
Para matar a fome das minhas recordações,
Abraçar os irmãos que deixei
E lamber as feridas de todas as desilusões.

Falo-vos da África dos nossos soldados,
Dos seus sorrisos e dos seus abraços,
Uns, já mortos, outros, vivos-despedaçados,
Mas, todos eles, ignorados.

- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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