8/28/10

A MISSA LUBA em Cabo Delgado e os Irmãos Meels

A Missa Luba foi executada na Catedral de São Paulo, em Porto Amélia, hoje Pemba, nos anos 60, ensaiada e regida pelo padre Guilherme Meels (Guillaume (Giel) Meels), cidadão holandês, da Missão de Nangololo (Missão do Sagrado Coração de Jesus de Nangolo, criada em 1924) e irmão do padre José Meels (Jan Jozef Meels), pároco da Diocese de São Paulo em Pemba. Sobre o padre Guilherme Meels [Guillaume (Giel) Meels], recomenda-se a leitura de "A Guerra dos Macondes", de D. José dos Santos Garcia, primeiro Bispo da Diocese de Porto Amélia.

A Missa Luba é originária do ex-Congo Belga (Congo Leopoldville, mais tarde Zaire e hoje RDC) e foi adaptada e cantada em XiMakonde. Alguns dos jovens que faziam parte do coro e do grupo de instrumentistas ainda estão vivos. Fizeram sucesso em Pemba (na época designada por Porto Amélia), de tal modo que - mas não se pode afirmar com certeza - estavam para atuar na Ilha de Moçambique e outras cidades do país, naquele tempo ainda colônia portuguesa.

O padre Guilherme Meels [Guillaume (Giel) Meels] nasceu em 24 de Maio de 1915 [era 8 anos mais novo que seu irmão o padre José Meels (Jan Jozef Meels)]. Ordenado sacerdote em 8 de Setembro de 1935, foi para Moçambique em 1946, para a Missão de Nangololo. Teve de sair de lá pouco depois do início da luta armada de libertação nacional e só regressou em 1976. Repetimos que, deste período, D. José dos Santos Garcia, Bispo de Porto Amélia, dá informações e depoimentos muito interessantes no seu livro já mencionado acima “Guerra dos Macondes”. De 1976 a 1979, esteve em Hoensbroek - Holanda. De 1979 a 1982 trabalhou em São Paulo - Brasil (os Monfortinos estão espalhados pelo Mundo). Regressou em 1982 a Hoensbroek - Holanda, onde ficou até 1986. Faleceu com 86 anos, em Houthem – Holanda em 23 de Novembro de 2001.

Seu irmão, o padre José Meels era sacerdote da Congregação de São Luís de Montfort. Esta Congregação veio para Moçambique através da Companhia do Niassa. Esteve em Moçambique desde 1933 onde permaneceu até 1979. Foi pároco da Paróquia de São Paulo - Porto Amélia (hoje Pemba). Nasceu em 27 de Agosto de 1907, em Schweijkhuizen – Holanda. Faleceu aos 85 anos, em 29 de Dezembro de 1992, em Houthem - Holanda e foi sepultado em 2 de Janeiro de 1993 em Schimmert - Holanda.

Os padres Meels eram, respectivamente, o 3º e 5º de um total de 8 filhos do casal holandês Jan Willem Meels e Maria Cornelia Petri, originários de uma família com laços na Holanda e na Bélgica.

Tivemos a felicidade de os conhecer e com eles conviver na então Porto Amélia. Este post é um tributo modesto mas devido a dois missionários (entre outros) que, únicamente imbuídos de espírito solidário e cristão, se dedicaram a ajudar o povo humilde e pobre de Cabo Delgado. E, quando jovens eramos, nos permitiram aprender a apreciar a beleza da MISSA LUBA que ainda hoje nos emociona e encanta.
- Agradeço a meu “velho” e caro Amigo J. N. Carrilho as informações que permitem este texto.

8/24/10

A Pousa

Quando, no lagar, as uvas chegavam ao ponto em que a prática de muitos anos o considerava cheio, antecipando cálculos de altura depois da pisa, os homens, ceados, arregaçavam as calças ou despiam-nas, substituindo-as por calções feitos de propósito, alguns ficavam mesmo em cuecas, e entravam naquele aos berros de calafrios. Em fila unida, enlaçados pelos ombros ou pela cintura, levantavam e baixavam as pernas sob o comando de uma voz «Esquerda! Direita! Um! Dois!» que, quase sempre, pertencia ao de uma das extremidades. Os esgares estampavam o esforço, mas os olhos tinham o ar triunfal de quem vence uma contrariedade. Aquelas pernas, raiadas de vermelho, que até pareciam de veias laceradas quando se erguiam (se as uvas eram brancas assemelhavam-se a troncos de pinheiros engordurados de resina), esmagavam o resultado de muitas canseiras, noites mal dormidas a espreitar o alto, farejando prenúncios, inventando aritméticas para chegarem para o sulfato, as folhas do pessoal e as bocas familiares. O dinheiro era contado, porém, farta a alegria. As horas escorriam sem pressas porque a vida se confinava à dimensão delas. As pousas espelhavam esses anos, pacientes e pormenorizados, com as fainas a fazerem-se no respeito sagrado pela terra e o seu fruto a invocar cerimoniais idólatras. Para cá e para lá, como se os pés mastigassem a lama de um brejo, os homens escreviam uma saga que a história narraria. Na época sobre a qual se escreve, não havia roladores eléctricos, nem a parafernália industrial que sintetiza funções mas não as deixa conhecer. Os bagos espalmavam-se devagar e os pedúnculos dos cachos, mesmo amolecidos, entorpeciam os pés.

Nos quinteiros, enquanto os homens espremiam as uvas, as mulheres dançavam umas com as outras e poucas cediam aos galanteios dos visitantes sem trabalho nocturno. Quando alguma se atrevia numa espreitadela ao lagar, logo uma voz rude lhe cortava a curiosidade. A pousa era macha e recatada de olhares fêmeos; tinha fins tardios que elas bem queriam aguardar. Quando os bagulhos subiam à tona, os homens despegavam-se e exigiam a concertina e os ferrinhos para se esquecerem do poço. Os mais aflitos, virando-se para a parede, aliviavam-se na lata estrategicamente colocada num canto; dividiam-se fatias de presunto com pão e canecas; um maço de Três Vintes dava para todos; cantavam-se, à desgarrada, piadas acintosas com gargalhadas de escárnio, os mais calados numa ânsia de acabar. Uma pousa durava três horas que, para uns, era uma eternidade e, para outros, um sacrifício que a necessidade pedia. Pagas à parte e a preço melhorado, os pés ganhavam o que os braços e os ombros de alguns muitas vezes não podiam ou não queriam.

Quando a rotina preguiçava os corpos e o sono era um apelo irredutível, o jogo da cabra-cega excitava os minutos finais. Lançava-se a sorte para o primeiro a ser vendado, atava-se-lhe um lenço à volta da cabeça, de nagalho bem apertado na nuca, obtinha-se a certeza de que ele nada via e, então, punha-se à roda a levar palmadas no rabo até agarrar o acertante, enquanto um, considerado excluído do jogo, se postava junto da prensa para evitar que o toutiço do supliciado não se esquinasse nela. Alguns, por desfastio, confinavam-se a leves raspões, mas outros - a maioria -, repentinamente atiçados por um sadismo encoberto, esticavam as manápulas e batiam sem dó nem piedade. Era uma algazarra que ultrapassava as portas, estilhaçando-se na quietude da noite e incitando bisbilhotices de quem passava no caminho. O homem, cego pela venda, voltava-se como um felino, agitando as mãos na procura dos agressores, descurando assim o traseiro onde saraivavam palmadas histéricas. Quando, porém, pilhava um, entregando-lhe o lenço, esfregava as mãos com quanto cuspe tinha e exercia a vingança numa ira de alienado. Por vezes, a sanha era tal que a película do vinho fazia ondas com os saltos e as fugas dos homens, possessos pelo acinte da desforra; quando algum, no meio de uma troça delirante, caía no mosto, a pousa concluía-se por entre juras de pagas na noite seguinte.

O lagar sossegava lentamente, esboçando a manta; os homens lavavam-se na torneira do tanque ou no vasilhame que estivesse livre; o fartum evolava-se e a lua, de mármore polido, brilhava de honestidade.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

8/18/10

A BRUXA DE AVÕES

Vinham de todos os lados onde houvesse um sofrimento e uma última esperança por sepultar. Os do fundo do vale subiam e os dos montes em redor desciam à Corredoura. Os primeiros puxavam os carregos de desalentos, os segundos escorregavam com eles. Uns e outros juntavam-se no largo fronteiro ao casarão, esperando que as portas se abrissem para entrarem no corredor que levava a uma enorme sala, mais rectangular que quadrada, onde, no canto mais distante, num elevado de madeira, se sentava a Santa de Avões toda de branco. Dir-se-ia que as misérias do mundo, os maus destinos da condição humana, desaguavam ali, feitos detritos de um rio de desgraças.

Quando Jorge acordou, pressentiu uma inabitualidade, um bulício de segredo, uma preocupação de disfarce que lhe exagerou a atenção. Ele estava na idade em que não se analogiam os factos, mas, se repara na alteração das rotinas. As crianças são as fatais denunciadoras dos adultos e dos seus casos. Têm um conhecimento despido dos nódulos da experiência e essa virginalidade dá-lhes a percepção isolada das coisas. A Mãe bem se esforçava por o distrair, mas, numa altura em que a Alda lhe perguntou o que havia de fazer para o almoço, raspou-se para a porta a espreitar aquele borbulhar de excepção. Ficou travado de espanto: paralíticos, em cadeiras de rodas, rostos redondos, olhos esbugalhados, bocas espumadas, aconchegados por mulheres de xailes pretos; homens, com uma só perna, amparados a muletas; aleijadinhos, colados ao chão por mãozeiras de madeira seguras por fitas de solas, joelhos dobrados e pés para cima; cabeças mexendo-se incessantemente, para um e outro lado, como metrómenos; e, ao fundo, com a bengala em descanso, o seu Avô sentado ao lado de uma mulher vestida de neve. Desatou a fugir pelo corredor fora, desceu a escadaria e correu ao quintal onde os dióspiros continuavam a amadurecer. Andou por lá, indefinido, a pontapear as pedrinhas que ele revolvia na terra ainda fresca; foi ao patamar da sineta e puxou pelo arame com tanta força e duração como se quisesse interromper a continuidade do tempo ou sobressaltar comportamentos contrários às suas regras.

- Jorginho, anda tomar o leite! Que andas tu a fazer?! – admoestou-o a Mãe da janela, assim que ouviu o som do bronze.

Quando estava quase no fim da chávena e a meio do pão com manteiga, voltou-se na cadeira e perguntou:

- Mãe, o que é aquilo?
- Aquilo o quê?
- Aquela gente toda aleijadinha no salão?
- Estão a rezar para ver se se curam, mas os meninos não podem lá entrar.
- Mas eu já lá fui, vi meninos a babarem-se ao colo das Mães, a olharem para o tecto.
- Mas não devias ter ido... São doentinhos e tu não és...

Jorge pediu licença para ir ver o Mouco às Águas. Guardando as sombras, certificando-se de que ninguém o via, empurrou a porta; um clamor abafado estalou-lhe na cara. Havia quem gemesse como moribundos; se agitasse como peixes fora da água; se esforçasse por se libertar das cadeiras, presos por colas invencíveis; quem quisesse falar e as bocas entupiam-se; estremecesse como molas largadas, repentinamente, por mãos ocultas, depois de muito tempo esticadas; uivasse como lobos desesperados de fome. Pasmado, no meio daquele arquejo, procurou, por entre pernas e braços, o Avô. Lá estava ele: o rosto inundado numa convulsão patética e, pareceu-lhe, infeliz. Viu-o tentar levantar-se sem a bengala, esboçar um passo, numa máscara heróica, para logo se deixar cair, pesadamente, na cadeira. Teve um impulso de furar aquela mole miseranda, substituir-se à sua perna e traze-lo para o sol, a sombra do diospireiro, o balouço dos lilases, a sineta da sua tentação, o pomar das laranjas de umbigo, os bardos da touriga preta ou da malvasia branca, a mata das mimosas, a fonte da água que sarava os ossos. Saiu seco, cheio de raiva, incapaz como uma inutilidade, espreitando todos os cantos que lhe pudessem denunciar a mentira da sua visita ao Mouco.

Foi até o muro da ramada, diante do qual se plantava o cemitério numa solidão corpórea. Tocou-lhe com o olhar e sentiu no peito um fio a queimá-lo, igual ao da sopa muito quente julgando-a já morna. Viu-se mergulhado por veios salgados que o obrigavam a soluços compassados iguais àquele dia em que lhe desapareceu a camioneta de madeira mercada numa tenda do Socorro. Chorava, mas não fundamentava a causa. Seria uma reacção de instinto dos vivos ou a fatalidade dos mortos? Ele ainda não sabia que o que a infância nos dá no futuro se repercute, que somos sempre, mas sempre, pendências para os que nos criam.

O seu Avô, desistente da Ciência que não o recuperava, descia à cova feiticeira, confundia-se com o mais padecido desespero que é aquele que nenhum dinheiro apaga porque nasce nas chagas do corpo e espalha-se nas dores da alma. Impressionava-o aquela mistura, magoava-o a constatação de que, afinal, o seu Avô tinha a mesma condição dos que ele via, feitos eunucos locomotivos, arrastando restos de corpos. Isso queria dizer que o seu Pai Velho, viúvo de Mulher sem grinalda e duas vezes Pai - porque tinha uma filha e um neto na preocupação das horas -, enchia alguns toneis de vinho mas não comprava a saúde, que a sua perna se arrastaria até morrer e que a bengala era mais ágil do que ele.

Esperou, apesar de tudo, acordar um dia com o Avô a desafiá-lo para uma corrida à volta da taça ou adormecer sem escutar o bater do maldito bastão no corredor. O ataque que lhe dificultava os passos, tolhendo-lhe a natureza, transformara-o num quase inválido, numa memória das caminhadas pelos socalcos ou pelas estradas das carregações do vinho. Não era justo. Crescia entre a escuridão de uma orfandade e uma inquietude que lhe devorava os frutos compensadores de carinhos perdidos. Não, não era justo. Uma criança não deve nascer com estigmas de morte nem criar-se com maus presságios de vida.

Jorge crescia, assim, sem aviso de que viera a uma raridade em que há destinos que são como roletas que param onde nunca devem. Ninguém conhece onde se materializam aqueles porque o nascer não é uma negação nem um remorso; nasce-se por um amor ou um desejo que, mesmo quando passageiros, não apagam o instante em que eles se concretizam. Se ele viera ao sol e à sombra é porque tinha uma existência para cumprir e não seria a vulnerabilidade de mortes prematuras que lhe impediriam a jornada. Dessa ideia, numa transparência amniótica, nunca se livrou. Daí, talvez uma certa frieza perante os equívocos; estava vacinado, desde o seu início, contra as quezílias do mundo; conhecera a morte desconhecida, que é a pior maneira de a sentir, e far-se-ia homem com essa memória como uma armadura que lhe permitiria entristecer-se com a as lutas fúteis e dar-lhes todo o espaço e todo o tempo porque (sabê-lo-ia já?), mais breve do que demora a dize-lo, os anúncios do fim surgem e repetem-se tão rápidos que só as noites as amortalham e os dias as lembram.

Seria portador de um silêncio desesperado e despertado – uns chamavam-lhe subtileza, outros comodismo -, uma repulsa à precipitação, uma vigilância ao amor. Distante das vulgaridades de orgulho, faria da economia dos gestos e da fala não uma originalidade de casta, antes um comportamento conforme a sua índole. Mais do que uma separação dos outros, um ditame cromossomático. Não conseguiria ser de outro modo como se, impossibilitado de comparações, só tivesse um termo para uma questão. A vida lhe daria, contudo, a alternância dos cépticos, essa capacidade de inventar eflúvios como sobremesas oníricas de banquetes esbanjados mas tristes, ou como um sol de Inverno que rasga, repentino e esplendoroso, o cinzentismo das nuvens. Haveria quem o desconhecesse, julgando conhecê-lo; lhe tirasse um retrato que depois alterava conforme os momentos em que o encontravam. Não fixaria uma impressão, daria uma imagem, não se consumiria pela ofensa, perdoá-la-ia não a esquecendo, sabedor que todos os termos se cumprem e a paciência duplica o prazer quando acaba o motivo que aquela origina. Aprendeu cedo – cedo de mais - a esterilidade do confronto sem préstimo, esse sadismo humano dos maus génios que, quando levantam a voz, arranham o mundo todo, esgotam corpos e aniquilam espíritos. Soube, antes do tempo, que toda a fúria traz, a seguir, o remorso do desperdício.

Esse desperdício o marcou na infância e prolongou-se-lhe vida fora. Mais do que uma parcimónia, era o sentido de perda irreparável de uma pessoa que se pode amar, de um gasto que se pode evitar, o luto de uma necessidade que é sempre uma falta futura, o desbaratar de frivolidades que nunca se emendam. Não era um capricho, sim um cunho que não conseguia alterar. Gostaria de ser misturável com todos, mas, dava-se mais com os menores que sempre percebeu seus iguais. Era um filho da memória sem nunca ter professado o sacrifício de qualquer amor de substituição. Por vezes, enredava-se num labirinto sem atinar com a saída, rodeado de vozes que o chamavam de longe num jogo de escondidas. Absorto, deixava-se ir até parar, como quem (re)encontra uma convicção, espera a oportunidade.

Naquele dia, Jorge esteve quase para perguntar ao Pai da sua Mãe por que escancarara a casa àqueles defeituosos todos. Foi quando, empoleirando-se no portão dos fundos, os viu sair como restos varridos por uma vassoura gigante de giestas, enxotados pelo engano, mais desistentes do que entraram. Foi dar com ele, pensativo, a passar a língua por uma mortalha com tabaco de onça, sentado num cesto vindimo à entrada do casarão.

- Pai, vamos aos ninhos?...
- Logo, meu menino, estou muito cansado – respondeu-lhe por responder, dando uma baforada. – Soergueu-se, custosamente, fincando-se na bengala, acariciou-lhe os caracóis e deu-lhe a mão.

– Vamos lá ...– sorrindo, cúmplice, a satisfazer-lhe o pedido. - Queres ver o do melro, é?...

Mas tinha uma cara de malogro, os olhos retocados de tristeza, a pele, quiçá, mais frouxa. Observava-lhe a perna para ver se ela já não se arrastava tanto. Reganhou a esperança - aquela esperança de que se conta pouco, mas, com que sempre se sonha - de que, uma dia, ao acordar, numa qualquer manhã, Deus Nosso Senhor lhe concedesse a Graça de o deixar brincar com o Pai-Avô.

Nascido num berço sem precisão mas de essencialidade contada, herdaria dele o horror à ostentação; ao ter sem poder, ou fingindo que se tem e que se pode; ao só arriscar até onde ia a sua sombra, preferindo a decência permanente aos solavancos aflitos entre o muito e o nada. Mais do que um equilíbrio de borrão, era a intolerância pelo gasto sem uso e de consumo esquecido num canto qualquer, aquilo a que alguns chamam a ganância dos olhos. Havia quem associasse isso a uma contradição inibitória que o enformava no relacionamento e, em muitas ocasiões, fora dele, se soltava numa defesa para esconder aquela.

Nem quando visitava os seus Avós paternos se lhe dispersavam os conceitos.

Viviam no Côto, entre vinhas, a que se acedia por umas escadinhas íngremes que ligavam os socalcos. Era um ermo alto para onde se exilaram, abandonando um comércio próspero, destroçados pelas mortes fulminantes, intervaladas de meses, de dois filhos em quem sonharam depositar o futuro. A casa sem enfeites, a condizer com o desterro dos donos: soalho lavado com sabão amarelo, limpa como os puritanos o são, mobília franciscana, a sobreloja ocupada por um lagar e três toneis sem uso porque as uvas iam directamente para a Adega em cada vindima triste e apressada. As tardes domingueiras de Verão gastavam-se sob uma ramada, junto do poço, com as cadeiras de lona a amortecerem sonolências despertadas pela vontade de acertar conversas e os altofalantes cruzando modas pelos desfiladeiros e serros. A grande riqueza daquele sítio estava nas delícias do olhar: ao fundo, o vale de Abraão espraiava o romantismo na margem esquerda do rio que, na direita, corria a recta do Salgueiral e, em paralelo, o comboio do Porto; ao longe, o declive de Loureiro, vestindo um organdi de virgem, sonhava com noivados reguenses; mais arriba, ainda, nas curvas da estrada de Santa Marta, Lobrigos e São Gonçalo um conforto de espera na casa onde nascera.

Os Avós envelheciam mais depressa do que a idade. Tinham os ombros caídos de quem há muito esperava que, do chão, regressassem os filhos roubados. Rezavam e meditavam porque era esse o seu último arrimo. Quando o Avô lhe abria as dúvidas da Fé, acicatadas pela amargura, logo a Avó, numa voz de lâmina, as decepava num ríspido: «O teu Avô enlouqueceu! Cala-te, homem, não se diz isso a um neto! Pede perdão pelos filhos!» Revoltado, perguntava para dentro – que nesse tempo havia o respeito de não contrariar os que nos ascendiam – por que motivo haveria perdão para os que tinham sido sugados à vida, quando, a bem dizer, a barba mal crescera e os filhos que não conheceram esperavam que as águas rebentassem. A Avó fazia-lhe chá namuli e torradas com manteiga, ou uma omolete direitinha como se desenhada num molde rectangular, tudo saboreado lentamente para demorar o gosto. Tinha uns olhos negros de choros repetidos, húmidos e vermelhos à menor afloração recordativa; dava uns suspiros longos que pareciam alívios de carregos insuportáveis, e se, raramente, sorria, era breve como uma lâmpada que se acende por engano e logo se apaga. Já o Avô fixava-se num ponto indeterminado, olhando sem ver, dizendo que a sobrevivência estava na capacidade de esquecermos os desgostos. Junto daqueles velhos - ele chamava-lhes velhinhos – Jorge interiorizou a existência da alma, pois só ela podia dar força a um ser humano para aguentar as dores mais inacreditáveis. Exemplificaram-lhe a resignação como um dique à loucura, a certeza de que o sossego não contradiz a evolução.

Andado por muitos lugares e conviva de raças diferentes, nunca conseguiu separar-se das imagens da infância cheias do silêncio dos montes separados por carreiros e várzeas, bóias salvadoras diante dos que lhe infernizavam a quietude. Vira já que as zangas apressadas não dão felicidade, que o prazer é uma molécula numa célula de sofrimento e que a diversão não altera as desconfianças.

Envolvia-se, quando passava naqueles lugares que lhe calcularam o futuro, num conflito sem saber de que lado se havia de pôr, invólucro de um espírito (in)conformado, envelhecendo como se o presente fosse sempre passado, desconhecendo o futuro que nunca resiste à linearidade que se desfaz na volúpia dos contratos sociais. Se era o ódio que fadava os humanos – custou-lhe a acreditar que o ódio existisse – e o amor um colorido de ilusões, então a honra dispensaria a paixão e a disputa humana não passava, assim, de uma feroz luta de ciúmes amantizada de invejas. Do cimo do seu refúgio resistia às podridões e aos desatinos, amargando o desalento de fazer um mundo à sua semelhança. Renunciava não por cobardia - que só o é quando o desafio é vencível e dele se desiste -, mas por uma definitiva certeza de que a existência é um faz-de-conta. Devia esforçar-se por ser como os outros, cultivar a ambição, esmagar os princípios, fingir o riso e a alegria, não se demitir da animalidade, pregar a teimosia e a vingança até cair para o lado e ter uma caixão coberto de flores e lágrimas de ocasião? Talvez a bruxa de Avões lhe alterasse o caminho e o carácter? Mas ela já morrera amortalhada com os panos da mentira. Se não fizera o seu Avô materno dispensar a bengala e os seus Avós paternos desforrarem os filhos perdidos, ele acabaria manco e órfão do mundo, desprezando todos os fabuladores.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

8/13/10

ESQUINA DO TEMPO

(Clique na imagem para ampliar)

Quando, vindo dos lados do mar, o sol rompe o nevoeiro de fumo da cidade e aquece a frontaria da Empresa em que trabalho, o cego do acordeão arma a sua cadeirinha diante da Casa das Lotarias e senta-se. Chega, pesado de solidão, do bairro da Bainharia, morador de um casebre a desfazer-se sob o olhar de Vímara Peres.

Os acordes de um vira, que se canta e dança para os lados de Viana, furam o barulho dos autocarros e das motorizadas, os claxons apressados dos automóveis e as asneiradas dos transeuntes. Toca bem o ceguinho, tem a sensibilidade no dobro do que lhe falta. É um artista que me suaviza o aborrecimento da rotina, a angústia das lembranças dos que, longe, vão gastando os dias na saudade dos ausentes. Forma-se uma roda para o ver tocar e há sempre quem, esquecendo o pudor, baile ao som da sua música. Os gestos ondulados com o bater ritmado do pé esquerdo a acompanhar os movimentos do fole, o balançar da cabeça de olhos virados para o céu e o trincar da língua a ajudar na execução da melodia, apegam-me à vida. Do alto do meu quinto andar falo com ele e digo-lhe: «Toca ceguinho das minhas tardes de chatice, faz-me esquecer as tristezas e dá-me a mão para continuar a amar e a perdoar. Anda!, refina-me essa chula que me leva aos tempos dos bagos dourados, aos lanches de malvasia com broa, aos Contos Bárbaros de João de Araújo Correia lidos à sombra de uma figueira no quintal da casa onde nasci, ao monte de S. Leonardo com os ecos dos meus berros a esmagarem-se nas fragas que tutelam o Douro e o Torga sem os ouvir. Toca ceguinho, és um irmão nas minhas horas de contas, papeis e telefonemas de aflitos, ar condicionado avariado, as mãos e os óculos e a camisa e o corpo suados e o olhar cansado em cima da secretária. Sou teu (ou és meu?) cúmplice da necessidade de lutar para que o sol não se vá embora sem um sorriso de agradecimento, para que o marketing empresarial continue a falar de produto acrescentado, de lucros, de cash flow, de investimento produtivo para que as setas dos gráficos demonstrativos de resultados subam sempre todos os meses, todos os trimestres, todos os semestres, todos os anos até que a morte apareça e tudo desça para a terra. Não conheces as cores dos carros, nem os contornos das esquinas, nem quem te deita as esmolas no chapéu virado no chão, nem quem te ouve calado O mar enrola na areia que a minha voz de criança tantas vezes entoou, nem quem te espera sempre que o sol vem dos lados do mar. Tu não me vês, mas os meus ouvido estão sempre à espera do bater da tua bengala metalizada no empedrado da rua e da tua música que me lembra o Socorro, os Remédios, a solidão colegial. Quem és tu, afinal? Que condição te fez assim, tocador das tardes de sol de Inverno, entretainer da barafunda do quarteirão citadino com dólares nas montras do câmbio, pasteis requentados nos balcões das confeitarias, o cheiro a óleo queimado, escritórios de paciência, igrejas de preces vespertinas e lágrimas a deslizarem em rugas de sofrimento ou de remorsos, comboios partindo com cansaços sentados em carruagens de segunda. Quem és tu, meu amigo, que tenho (provavelmente) uma cama melhor que a tua, uns olhos para verem coisas lindas e feias (meu Deus!, quantas!), um ordenado que, mesmo esticado, dá para te agradecer, no chapéu cinzento, o prazer de ouvir o teu acordeão do folclore da minha Pátria? Quem és tu, se não um igual, feito de carne e de sangue, cérebro que idealiza futuros, alma que pranteia o passado, mãos que agarram a esperança? Espera por mim. Hoje, quando chegar a hora da minha saída, vamos os dois à beira mar, de braço dado, sentir o sol que aquece a esquina do nosso tempo. Tu tocarás e eu cantarei até que ele vá dormir para o outro lado da terra.»
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!