3/25/11

CARTA (IM)PROVÁVEL

Para uma MÃE... para uma Esposa, para um Irmão(a), para um Familiar... para um Amigo(a):

   Não sei o que queres de mim, diga ou faça. Olho-te para lá dos teus olhos, como se quisesse entrar na tua alma, lembro a tua cara de criança, quando te conheci, sorriso aberto e feliz, e é como se regressasse ao tempo da inocência, ao pensamento limpo, sem nódoas. Tanto quis que a nossa vida se desenrolasse em harmonia, com tudo lindo como o teu rosto! Agora, quando te fixo de lado, para, julgo eu, não te distrair, e te vejo de olhar vazio cravado não sei em quê; essas olheiras fundas que não te desaparecem nem que durmas um dia inteiro; essas rugas, antes da idade delas, que vão da testa à junção dos lábios, outrora vermelhos e sensuais, cujos beijos eram o onírico despertar do desejo; esses teus seios caídos e mirrados, antes redondos e firmes, onde aplaquei os arrebatamentos das noites de excessos; esse teu corpo vibrátil mas sempre pudico, abandonado ao cansaço da satisfação – quando recordo tudo isso não consigo encolher as lágrimas.

   Não sei o que queres de mim, diga ou faça. Ficas calada e quieta, como se eu não te pertencesse, como se tu não me pertencesses, mas eu pertenço-te, pertencemo-nos, não sou do teu sangue, mas sou de ti e teu porque fui de ti e teu na luxúria dos corpos, na franqueza da convivência, que é sempre o desnudar recíproco de tudo o que é, no mais íntimo, nosso. Sessenta e cinco anos dão para criar filhos e netos, para se ser feliz com eles novos e não adormecer a pensar neles, mais velhos, enquanto não chegam a casa. Em quarenta anos de comunhão já não há segredos nem originalidades, tudo se conhece de nós e muito dos outros, tudo foi dito. Monossílabas sons, alguns entendo-os porque uma vida inteira dá para perceber até o imperceptível; mas eu queria que te explicasses, porque era importante conhecer essa tua nova vida, o que se passa dentro de ti, o que sentes, se ainda tens consciência e desejo, se ainda eras capaz de recordar a brasa da nossa paixão, quando lá fora nada interessava, e só na nossa solidão preenchida, no nosso egoísmo compartilhado, nascia o amor, a insaciabilidade, o esquecimento.  Era indispensável que me demonstrasses o que aconteceu ao teu cérebro, à tua alma, aos teus nervos, à tua genica que, de tão grande, me confundia, por vezes, naquilo que eu julgava ser uma fuga de ti. Assim, queda e muda, de quando em quando um esgar, que acho de sofrimento ou de repulsa, sem uma reacção ao meu aperto de mãos, sem um esboço de vontade; assim ao teu lado, parece que não tenho ninguém, que vivo só na companhia de uma defunta por enterrar, um isolamento duplo, que já não sei se estou sozinho ou acompanhado.

   Quem diria, quando nos conhecemos, que uma coisa destas te (nos) iria acontecer! A medicina diz que não tem cura para ti. Vais, então até o coração (ou o cérebro) parar, levar esta vida vegetativa, sem te aperceberes de nada, de quando te dou os comprimidos, a sopa passada ou o leite por um biberão, como quando os filhos eram bebés, sem saberes quem é a enfermeira que me vem ajudar e ensinar a lavar-te, a mudar a algália? Será que não quero que morras? Tenho medo que apodreças, cries pústulas, e o teu espírito fuja pela janela de Agosto? Umas vezes, quando, cavalo enfreado, o desespero me toma, tenho ganas de te deixar, nunca mais ver essa tua cara de esquife, de fatalidade, esse rosto que foi tão belo e, agora, um desenho de mímica. Mas não fujo, lembro-me que podia ser eu no teu lugar, e tu, tenho a certeza, nunca me abandonarias. Para lá de tudo, o nosso amor não merece nenhum abandono, nasceu da atracção fulminante do nosso olhar, consubstanciou-se na posse da carne e na mistura do sangue; é tão forte que, mesmo quando não existirmos, havemos – almas invisíveis – de voar sobre a terra, e os que ficarem saberão que nenhuma memória se sepulta. De noite, quando me deito, apetece-me acordar-te; acaricio as tuas coxas, a tua púbis, subo ao teu ventre, aos teus seios, e é como se um cadáver estivesse a meu lado, só a quentura me diz que ainda existes; arrepio-me de ainda te cobiçar, querer possuir-te até ao fundo de mim, de nós, igual àquelas horas em que, loucamente, nos esmagávamos na sofreguidão. Não te troco nem me lembra de o pensar, falta-me a coragem de te substituir. Para onde foi aquela voracidade de viver que me ajudava a disfarçar os instantes de incerteza? Ver-te de olhos brancos, da côr da tua pele, sem um clarão, um lampejo, breve que seja, um sinal de presença partilhada, é um castigo sem culpa que me estremece de revolta. 

   Lembro-me de quando dávamos banho aos filhos ou íamos a correr com eles para o médico, mal qualquer tosse ou febre nos inquietava o sono ou o instinto. E recordo, muitas vezes, nestas alturas, não sei por que absurda  associação de ideias, quando te vi pela primeira vez! Tinhas umas covinhas na cara, uns olhos de Primavera e um riso de Estio. Escrevia-te cartas incendiadas, chamava-te amorzinho e boneca das minhas brincadeiras. Como passa e se transforma a vida! A porteira do colégio, medrosa, entreabria a porta com um sorriso de adorável cumplicidade, pegava no envelope e dizia-me que era a última vez. Mulher corajosa e amorável, que arriscava, aos olhos tentaculares das freiras, o seu emprego, como se aquele amor clandestino também fosse dela ou imaginasse um semelhante. Nas tardes de domingo seguia-te os passos aonde te levavam as vestes negras. Rias-te às escondidas, tapando a boca com as mãos, a Manuela a dar-te cotoveladas, eu a mandar-te recados pelos olhos, e tu encolhias os ombros, desenhavas um coração com os dedos e « Amo-te » com os lábios. Meu Deus!, como se trituram sonhos, se desfazem previsões! Olho as paredes, e apetece-me deitar fora as fotografias em que estamos, esmagá-las sob os meus pés, queimá-las na lareira, arrasar as nossas lembranças, para que nada reste do antigo e que me ofende quando o comparo à idade de hoje. Nem quando te vêm visitar e me misturo, nesse intervalo, no movimento das ruas para não me desabituar do Mundo, te esqueço. És um castigo que não merecia, ainda menos tu, mas és esse castigo que me interroga a ideia de Deus, embora não consiga apagá-la numa certeza, ao ponto de não suportar os sinos das missas domingueiras e ter vontade de mudar de casa para o meio de um monte só com pedras para esmurrar, e ouvir, ao longe, num eco sem fim,  os berros que engulo neste sexto andar. E aí chorar bem alto as lágrimas de raiva, de desgosto, de porquê a mim?, de injustiça sentida como uma ingratidão sem nome. Será possível, meu amor, que te tenha acontecido uma coisa destas, a ti, que foste o sol da minha vida, o corpo do meu ( do nosso ) prazer, a razão de todas as manhãs te deixar com vontade de regressar depressa, de te telefonar duas e mais vezes ao dia com o chefe a perguntar-me se tinha alguma amante, o pessoal a rir-se quando eu dizia que era a minha mulher.

   Como aconteceu isto? Ignorámos, durante anos, que a morte tem o privilégio da impunidade e a vida se sujeita a todas as arbitrariedades julgadoras; que a desfilada dos anos aniquila a espontaneidade  e cimenta a rotina dos silêncios onde mergulham as saudades do que nunca fomos. Não tínhamos à volta, nem em nós, a gelatina da mistificação, conhecíamos as agruras alheias, mas não as víamos na vizinhança dos nossos passos.  Afinal, chegaram, quando nunca as esperávamos.  Já não as conheces; eu, como escolhido, vou ter  que  aprender a fingir que as divido contigo. Quero-te útil até acabares. Vamos, então meu amor, ser vizinhos até ao fim.
- M. Nogueira Borges*, Portugal, 26/2/2010.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

3/21/11

O SILVA

Conhecera-o em Mafra, no C.0.M., onde, durante meio ano, nos sacrificámos para termos alguma hipótese de escolher a futura colocação num quartel próximo de casa. Fazíamos o que nos mandavam, mesmo que isso nos violentasse, prolongávamos o esforço para lá dos limites, decorávamos os regulamentos como quem engole a repugnância, manuseávamos as armas com a presteza dos autómatos e desmanchávamos as culatras com a troça de um desfastio.

Encontrámo-nos em Chaves para formar Batalhão, embarcámos no mesmo barco para Moçambique e separámo-nos em Nacala. Durante meses trocámos SPM, mas, repentinamente, os seus aerogramas cessaram.

Um dia, num desses dias em que o calor húmido cola as roupas à pele, encontrámo-nos numa cidade construída no meio dos pântanos. O abraço teve a alegria de uma criança quando lhe reaparece o brinquedo preferido. No café, repleto de ventoinhas de tecto, de fumos de cigarros e conversas agitadas com pressa de recuperar os afectos interrompidos, estendemos o reencontro. Continuávamos, afinal, os mesmos: sedentos de regresso e de paz, contrariados na guerra e desaproveitados na vida, sem vontade de matar mas obrigados a fazê-lo para não morrer, a rotina do estupor a tapar-nos os horizontes; vivíamos de recordações, os passeios a Lisboa e à Ericeira para vermos as coxas das miúdas a atirarem-se aos cadetes de Mafra; os bonecos do Franco no Sobreiro, os escuros corredores da EPI ensombrados pelos fantasmas das batalhas de Naulila ou La Lys; os bifes do Novo Rioma, as melodias sineiras dos carrilhões, aos domingos, a encimarem a monumentalidade barroca de D. João V; os devaneios bucólicos à foz do Lizandro, as marchas na Tapada com os gamos e os veados a mirarem-nos surpresos; as saudades de Coimbra como feridas incicatrizáveis, a quietude das nossas aldeias separadas pelo eco de um berro, as bocas das namoradas sem uso; o velho do Salazar que nunca mais morre, o tempo que demora a passar, o cansaço da escrita que só apetece para a família chegada e, quantas vezes, sem saber o que se dizer.

- Por que deixaste de escrever?

- É sempre a mesma merda, depois das patrulhas só me apetece dormir. Aliás, sabia que, mais dia menos dia, me dariam um mês de descanso e que o faria aqui, sem dinheiro para ir à Metrópole. – Fez uma pausa para um gole de Laurentina. - Sabes quem morreu? O Daniel.

- Não era aquele gajo que dizia que queria meter o chico?

- Tinha essa mania, pintava-se de preto e ia sempre com granadas à cintura; rebentou-lhe uma defensiva e fodeu-se. Matou-se sem glória. Ainda está em Miteda, lá num canto, cheio de chumbo por dentro e por fora, à espera de um barco.

Um tipo esquisito, o Daniel: sorumbático, ombros fortes a rasgarem o blusão, o rosto de feições montesinas, uma reserva forçada como se a vida nunca lhe permitisse uma subtileza. Deliciava-se com a aplicação militar e constava que limpava todos os dias a bicha de Aspirante. No bar, nunca passava de meio chá com duas bolachas e, enquanto os outros folgazavam, ele ficava horas sentado a ver a televisão espanhola.

- Mas, sabes – retornou o Silva quando já passeávamos na marginal - , o tipo tinha melhorado, estava mais dócil e já se ria para os soldados. Não havia operação que não quisesse ir, confiante, «vou ali e venho já», dizia ele. O Capitão ia propô-lo para um louvor ao nível de Governador Geral. Agora, então, é que vai ser uma maravilha com o gajo já morto. E a malta do pelotão já gostava dele, sabes? Dormíamos no mesmo cubículo, jogávamos a sueca, mas nunca nos afeiçoámos. Quando vi a padiola e o tipo estendido é que senti uma coisa cá dentro que ainda hoje não consigo precisar. Pareceu-me um desperdício, um roubo, a cópia dum hipotético futuro meu, notei-lhe a ausência, que ele tinha existido comigo, que estávamos, afinal, no mesmo lugar. Tive medo e, não sei se por isso ou por ele, chorei que nem um desalmado, como se as lágrimas me desculpassem de estar vivo, entendes o que quero dizer? Uma justificação que se dá mesmo sem se ser obrigado. Esta merda é fodida. Andamos aqui todos a ver se safamos o canastro e quando morre alguém parece que temos culpa por não sermos nós.

Era ao fim da tarde quando África é uma perturbação enlanguescida. O sol, bolha de sangue estampada no horizonte, morria, lentamente, num desmaio de donzela consolada pelas carícias do mar. A noite caía cedo – como caem todas as noites africanas -, uma brisa de sirgo sensualizava os corpos e espevitava frémitos. As mulheres, de vestidos leves ou calções generosos, espalhavam perfumes e ousadias. Os homens, de balalaicas impecáveis, fumavam LM e miravam as capulanas das negras roliças. As peles tinham a cor da nascença ou da frequência da piscina. Caminhava-se num chão de vidro, os sorrisos atirados para os lados. A guerra estava longe, mesmo que fosse ali ao lado, para lá da picada vermelha, da escuridão da selva, da desconfiança das tembas. Nas esplanadas, o gelo desfazia-se no uísque ou nas coca-colas; a cerveja gelada acompanhava-se com pratinhos de camarões, ameijoas ou pedacinhos de dobrada; as faces enrubesciam, as barrigas, bem instaladas, avolumavam-se - respirava-se um ar de insolvente abundância.

- Não te choca este ambiente? Até esta paneleirice inglesa de os carros andarem pela esquerda com os volantes do lado direito me mete confusão! – exclamou o Silva. - Anda um tipo, no mato, de canhangulo em punho – prosseguiu nervoso -, sujeito a levar um tiro nos cornos, a lutar pela Pátria como dizem os cabrões, chega-se aqui e parece que nada se passa.

- Fazem um esforço para esquecer que a guerra existe. – fingi sentenciar. Eles até dizem que a guerra só os empobrece, como se acreditassem que acreditamos. Há aí tipos a fazerem fortunas. Sentem-se desobrigados e alguns dizem que resolviam isto sozinhos, falavam com a Frelimo e dividiam ao meio o poder. Nós andamos cá a complicar, a esvaziar o Tesouro para nada. Toleram-nos, acarinham-nos, convidam-nos para almoçar e esforçam-se por nos tornar importantes.

O Silva trazia o cansaço do mato que, quando longe dele, procura, mais que o ócio, o farejo da fêmea. Reparava nas raparigas com um olhar que tanto parecia uma imploração condoída como um prenúncio de vulcão prestes a explodir. Tinha o rosto seco pelas vigílias cacimbadas e pelo desejo reprimido. Só a inibição social o detinha. Mas não pretendia o sexo fácil, comprado por meia dúzia de quinhentas, sim a naturalidade de um ímpeto civilizado, a satisfação racional que lhe matasse a fome de homem e não de macho. Na Metrópole, ficara a Joana, cabelos compridos e lábios de polpa, sentada nos bancos de Direito, a ouvir aquelas secas das Obrigações, a escrever-lhe noite sim noite não, ele duvidando, às vezes, se a encontraria, que o amor é muito bonito quando a presença não se imagina mas sente. Já sabia que o verdadeiro amor é o do sangue, o único que é cego a sacrifícios e não discute contas. Jurara fidelidade, aquela promessa fogosa que a despedida longa solicita, mas omite o imprevisto.

- Já reparaste – atirou o Silva – que aqui as raparigas parece que crescem mais depressa do que lá no puto? - Veem-se aí catraias, acabadas de nascer, quinze, dezasseis anos, corpos de mulheres feitas, desinibidas e a pedir tudo! – insuflou, enquanto um sorriso concupiscente lhe envolvia os olhos.

- Acautela-te e não te deixes levar por aparências. O sonho de muita miúda que te mira é apanhar um alfereszito e amarrá-lo a um embondeiro. Então as mulatas adoram galões e camuflados. Não te esqueças que tropa é sinal de submissão – chacoteei.

- Quer-se dizer que o mais seguro é na temba...– acentuou Silva em tom desconsolado.

- Olha para aquilo! – anotei. - Andam cem cães atrás e os pais nunca a largam. O tipo é um coca-cola ligado ao cajú e ela é uma broeira que só tem corpo e passeia os livros na Escola Técnica. É só encenação, espremida não dá nada, quando abre a boca é de fugir.

- Não me importava nada de experimentar. Quem fugia, se calhar, era ela com o susto! – motejou Silva.

Dir-se-ia que toda a gente afluíra à beira-rio, baptizado por Vasco da Gama, há séculos, de Bons Sinais, já sem os vestígios da fortaleza que a história de mil e quinhentos diz ter existido em comércio esclavagista. De cá para lá, desde a ponta em que se erguia o palácio do Governador até à outra da zona da piscina, os corpos deslizavam na mornidão amansada por um cacimbo prematuro. Chamavam-lhe o picadeiro, montra das vaidades e da alcoviteirice.

Era uma cidadezinha de moradias predominantemente familiares, estilo colonial, com um jardinzinho sempre bem tratado pelos mainatos. Por si própria se fez, sem o ouro metropolitano, saneados os pântanos que não dispensavam, tantos anos depois, a pulverização diária, impregnando, pelo cair da tarde, o ar dum cheiro repelente de fenotrina. Na generalidade, os seus habitantes tinham a franqueza nascida em terras transmontanas ou beirãs, e ofereciam, nas suas salas climatizadas, copos de uísque cheios de gelo com «chim! Chim!» de sorrisos. Os arruamentos, rectilíneos, cruzavam-se como se medidos em estirador de arquitecto, os poucos prédios em altura eram uma apressada resposta à multiplicação demográfica que a guerra gerara. Visitavam-na não só a flutuação militar ou os endinheirados do Malawi que atravessavam a fronteira de Milange como se fosse a Valença Moçambicana, mas, também, os senhores do cajú, do chá e do óleo de copra, abundantes nas plantações conquistadas ao mato. Na época das chuvas, com as picadas intransitáveis, impróprias para Nissans e Land-Rovers, quanto mais utilitários, a cidade recuperava a identidade. O aeroporto, longa fita de terra batida, metade asfaltada, que permitia a escala dos friendships da DETA ou os ronceiros Dakotas com a Cruz de Cristo pintada, dava-lhe um ar civilizado.

No mato circundante ficava a temba, caniço habitado pelo diminuto proletariado negro, macuas meios indeiscentes e mulatos de desconhecidas paternidades, que, no fim do trabalho, iludiam o descanso na aguardente de cana e batucavam espíritos entre o capim. As tarimbas, noite dentro, não tinham sossego, as mulheres entregando-se, contando moedas, à febre duma juventude que despia e vestia fardas como se despachasse um desassossego. Na cantina do branco, comiam-se pernas de caranguejo e bebiam-se bazukas à sobreposse, enquanto, no alpendre, corpos suados e ébrios, se agitavam diante do gira-discos das marrabentas. Era um lupanar ao relento com o cacimbo já colado aos corpos e às coisas, o suspiro da selva insinuando-se nas palhotas que escancaravam intimidades; um alcouce de misérias, ónus acusatório de um comportamento tiranizado, a ostentar as fraquezas como macropias de heroísmo.

O Silva, atarantado pela liberdade, longe dos buracos, das rações de combate e dos tiros, pedia sempre, pelo meio da manhã, um jeep que o levava à praia e o ia buscar ao anoitecer para encher a barriga de camarão, bife de impala e cerveja que o inebriava pelo silêncio da madrugada. Cantava, então, fados de Coimbra que o Capitão do Quadro, de mentalidade miliciana, aplaudia com tosse exagerada e um (des)concerto dos presentes. Numa dessas noites, de copos avançados, Silva atravessou-se:

- E agora – disse ele –, vamos encenar uma Serenata Monumental! O Largo da Sé Velha é um mar negro de capas, calmo e trágico. Calmo, porque precede a revolta; trágico, porque não a pode concretizar. Mas, malta! - exaltando-se - a hora está a chegar! A submissão não é eterna! Tudo acaba, até a infelicidade! Virá o dia em que brancos e pretos, as raças todas se abraçarão, e o Mundo há-de ser uma bebedeira de amor!

- Alferes Silva...– cortou, tolerante, o Capitão Velasco. – Está na hora de irmos dormir...

- Meu Capitão, o sono é a morte dos que não querem gritar a vida! Peço a todos – abarcando, com um movimento circular, os que assistiam, de desfrutados sorrisos, ao serão imprevisto - que levantem os braços, assim como eu estou a fazer, agitem as mãos como se tivessem capas, e berrem um grande eferreá pela esperança!

Uns melhor, outros pior, imitaram-no.

Depois, foi vê-lo e ouvi-lo, de olhos marejados, entoar a Samaritana, o corpo estremecendo num desespero angustiado.

A noite suspendeu-se de espanto. No lodo do rio, os crocodilos despertaram; no capim, cerce aos muros do quartel, ouviram-se restolhadas de bichos; as palmeiras da marginal agitaram-se em sussurros de brisas; a lua, virgem donzela, corou de lascívia; a escuridão desvendou ouvintes com dentes de neve; as lágrimas saltaram de emoção; os corações estoiraram contra os arames farpados; as picadas, para lá do asfalto, foram percorridas por asas de liberdade; nos terreiros do mato os tambores e as marimbas pararam de tocar; os babuínos, nos galhos das baobás, deixaram de latir; as jacarandás lilases ficaram rubras como as vagens das acácias; os duendes do melungo puseram-se, estupefactos, à escuta; os grilos encolheram as capas amarelas; as cigarras pararam o estrídulo e, na caserna, uma gelada desilusão adormeceu.
Silva antecipou, em dois dias, o regresso ao Planalto, aproveitando a boleia de um Alouette para Mueda, onde apanharia uma qualquer coluna para Miteda.

- Silvestre! – berrou-me. - Dá cá um abraço e continua-me com essa missão humanitária de consolar o mulherio solitário...

- Olha que a solidão é nossa, Silva...

Foi a penúltima vez que o vi, acenando-me, enquanto o helicóptero, como brinquedo de Feira Popular, se elevava. Passados poucos dias, pelos canais de informações militares, soube que o Silva ficara na Curva da Morte quando fazia o retorno a Miteda.

Revi-o, nos porões do Pátria, o nome escrito nas tábuas que encaixotavam o seu esquife. Ao lado ia o do Daniel.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

3/20/11

Escrever nas tuas margens

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.


- Sobre uma fotografia de Miguel Guedes (tirada na margem do rio perto do cais da Régua) para um pensamento que me ficou ao ler esta poesia de um heterónimo de Pessoa (RICARDO REIS, in "Odes" ) - José Alfredo Almeida, Peso da Régua, Março de 2011.

3/16/11

AS BOLINHAS

A praia está, ainda, praticamente deserta. É uma manhã limpa com um sol já acariciante e uma saborosa envolvência de maresia. Aqui também há classes: de um lado, a área concessionada; do outro, a zona dos chapéus de sol. Na primeira, estão montadas as sombrinhas com as cadeiras reclináveis alugadas por bom dinheiro; na segunda, o preço é o carrego que cada um está disposto a transportar. Escolho, nesta, um espaço que não tenha de alterar pela preia-mar, espeto o guarda-sol, espalho as toalhas a delimitar território, liberto-me dos chinelos e da camisa. Vou até à orla, viro-lhe as costas, de frente para os prédios gigantes que se erguem como insultos de ganância, e comprazo-me com a babugem da ligeira ondulação a lamber-me os pés. As construções tipo legos, de traça usurária e sem decoro, são depósitos de corpos que aqui fazem a vingança quinzenal dos nevoeiros e das nortadas; alguém lhe chamaria arquitectura dos trezentos para dar lucros de boutique de shopping.

Lentamente, o areal vai-se enchendo. Uns, arrastando sobejos de sono, estendem-se, imediatamente, como sardões mal despertados; outros, esbaforidos pelo peso das tralhas, limpam o suor e, antes de se acomodarem, distribuem tabefes pela rezinguice infantil. Há de tudo: burlescos com óculos de esquiador, tias das revistas com panons transparentes e cosméticas burundangas, maternidades deliciosas que a tudo acodem sem um azedume, cabelos brancos que ainda não desistiram de usufruir a vida e transmiti-la à descendência, leitores de escrita light e de jornais desportivos, utilizadores de telemóveis com ares de executivos imprescindíveis ou de empresários sempre a facturar, gordas sem vergonha de libertarem as coxas e opostas de linhas geométricas limpando as areias como se fossem formigas.

Num súbito, a vizinhança da minha toalha inquieta-se: soerguem, uns, os cachaços do areal, despertam, outros, para uma montra apelativa, sorriem, elas, num jeito de brejeirice a dissolver o desdém, lançam, os mais entradotes, olhares nostálgicos. A aparição justificava o sobressalto. Há mulheres tão espectaculares que chegam a ser uma ofensa à inteligência: alta, sem exageros basquetebolísticos, cabelos longos, cor de libra Vitória, espalhados e deslizantes pelos ombros como sedalina, óculos de voleibol de praia numas faces trigueiras decoradas por duas argolas ciganas, busto voluntarioso de mamilos agulheados e defendidos por uma t-shirt justa que descia até a meio das coxas torneadas a fazer de mini-saia generosa, fita vermelha no tornozelo esquerdo que lhe dava uma ar jamaicano de prospecto turístico. O seu acompanhante, de paciência na cara e peso nas mãos, arvorava uma docilidade canina, ornamentado com um bordão no peito e um relógio todo o terreno. Enquanto ela ajeitava, a tiracolo, uma carteira tipo saco de flores tropicais, ele transportava um guarda-sol, duas cadeiras e uma bolsa de lona que lhe deve ter restado da guerra colonial. A beldade esticou uma enorme toalha rosa estampada com palmeiras, sentou-se, atirou, num desafio, a cabeça para trás, retirou os óculos (os olhos cintilaram esverdeados), passou os indicadores metódicos pelas sobrancelhas, tirou a t-shirt, e os seios, como molas, estremeceram de liberdade, numa provocação ao redondel, até se deterem firmes como dois ponteagudos marmelos. «Quem me dera ser bebé!», disse uma voz, «Cala-te, palhaço!», respondeu outra. O homem, depois de arranjado o poiso, pegou no tubo do creme e, num silêncio ruminante, começou a untá-la. Ela não falava, só lhe indicava com as mãos os locais onde queria o creme: mais nos ombros e nas costas. A cara, os mamilos, os braços e as pernas foi trabalho dela, em pormenor demorado. Terminado este, ergueu-se e foi até junto da ondulação lavar as mãos na areia. O seu andar era sensual como o corpo, com tudo no sítio, sem um acrescento ou uma diminuição, um fio dental a relevar umas nádegas afoitas e seguras, a respirar sexo por todos os poros. Tinha, todavia, um aspecto de súcuba, olhar esguelhado, que acompanhava sempre com um maneio da cabeça e das mãos a fingir que tirava as madeixas dos olhos. Fumava desalmadamente, soprando, pelo canto da boca, o fumo para cima, num trejeito de rufia de esquina, retirando as areias das pernas como se catasse piolhos. Estendida, de cigarro entre os dedos, puxou o guarda-sol para lhe aumentar a sombra e retirá-la ao acompanhante que continuou impávido diante das notícias da Bola.

Ao longe, por entre o amontoado humano, nascem os pregões dos vendedores ambulantes. Trazem, em cada braço, caixas de pasteis que propalam consoante a força das suas gargantas e o seu engenho publicitário. Uns, são incisivos: «Bolinhas!»; outros, mais enfeitados: «Boliiiiiinhaaaas!»; ainda outros, mais secos: «Boli!»; e os que soletram: «Há bolinhas com creme e sem creme! Há pasteis de amêndoa!» Os rapazes, ao chamamento, pousam os caixotes e distribuem bolinhas a torto e a direito a cem escudos cada uma. O calor vai apertando. As pessoas renovam unturas, passam os jornais a pente fino, também há quem leia Cem Anos de Solidão, estudantes preparam a segunda chamada, senhoras relaxam a fazer renda, discutem-se os milhões das transferências futebolísticas, arrematam-se as últimas amêijoas junto dos barcos dos pescadores.

Um Cabo de Mar e um Polícia, num roldão de apitos e vozes alteradas, investem pela praia num despropósito que confunde toda a habitualidade. Os banhistas espantam-se, pegam nas toalhas e interrogam-se, olham para o mar a ver se alguém está em dificuldade, o que será e não será, até se perceber, depois, que perseguem um vendedor em qualquer ilegalidade. Um dos cívicos, passo ligeiro, lança: «Àquele já lhe vou tirar as bolinhas!» Uma senhora, que fazia malha há uma eternidade e queria os netos sempre à sua volta, levantou-se da sua cadeirinha picada por um alfinete, deixou cair os óculos, e exclamou anelante: «Ó Senhor Guarda! O Senhor tem coragem de tirar as bolinhas ao rapazinho?!» O Senhor Guarda olhou-a, riu-se bondoso e prosseguiu o seu caminho, deixando um magote de risos encolhidos. A Avozinha fulminou-os, atrapalhou um sorriso atenuante, sentou-se, retomou a malha e afivelou a cara da boa fé injustiçada, enquanto a aparição, de mamas ao léu, levantava a juba e desenhava um trejeito malhadiço a lembrar uma preguiça sardónica.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.