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12/14/17

SABORES GASTRONÓMICOS ENTRE OS WAMWANI DA ILHA DO IBO/CABO DELGADO. ACHEGAS PARA SEU ESTUDO.


Por Carlos Lopes Bento
- Antropólogo. Doutorado em Ciências Sociais. Sócio da SGL.      
Com esta comunicação, que foi elaborada com base em dados actuais, disponibilizados por vários informadores mwani, procuramos revelar alguns dos traços da cozinha mwani do quotidiano, festiva e do sagrado e conhecer, não só a complexa e heterogénea composição das suas saborosas comidas, como também os pratos considerados emblemáticos servidos em Cabo Delgado, particularmente, na ilha do Ibo. 

Situação geográfica das Ilhas de Querimba
Dispostas em forma de rosário, numa direcção norte-sul, as Ilhas de Querimba, que constituem o arquipélago do mesmo nome ou de Cabo Delgado formado por mais de três  dezenas de pequenas ilhas, situam-se no Oceano Indico Ocidental, a norte da ilha de Moçambique, entre as baías de Pemba e de Thunghi.

A ilha do Ibo, uma das cerca de 32 ilhas que integram o arquipélago, faz parte do território litorálico norte de Moçambique e é a 4ª ilha em superfície, mas com apenas 15 Km² (5x3).

Situada a sul da ilha de Matemo e a norte da ilha de Quirimba, possui um riquíssimo património humano e histórico resultante de intensos movimentos comerciais e religiosos encetados, desde o séc. VIII, por povos de múltipla proveniência (..., árabes, persas, suaílis, indianos, chineses, africanos (makhwa, makonde, yao, mafites, …), portugueses, franceses, wasakalava, ingleses,... ), constituindo um território privilegiado, fértil em contactos, choques e interpenetrações de culturas, um espaço de cooperação, competição e de conflito, um local propício a transformações biológicas e socioculturais.

Estes seculares cruzamentos, conjugados com as condições ecológicas específicas da ilha e com a diversidade crenças religiosas da população do Ibo, originaram um típico e riquíssimo património alimentar, resultante da interpenetração secular das cozinhas e culturas asiática (polinésia, indiana e persa), americana, africana e europeia. 

Dada a natureza dos seus solos corálicos e a irregularidade das chuvas, a agricultura na ilha do Ibo foi sempre praticada em pequena escala. Contudo, face ao crescente aumento da sua população, os seus moradores tiveram a necessidade de cultivar, em pequenas machambas, mandioca, feijão, milho, mapira, abóboras e pepinos, tanto nos seus quintais, vedados a laca-laca, onde plantaram papaeiras, goiabeiras, bananeiras, palmeiras, massaniqueiras e ateiras, como também nos terrenos baldios, fora da povoação.

Atendendo a que produção é insuficiente para satisfação da totalidade das necessidades alimentares, resolveram o problema indo fazer as suas machambas nas terras firmes próximas, onde colhem milho, arroz, mapira, feijão, mandioca, amendoim, gergelim, rícino, castanha de caju, mangas, … . 

A palmeira, o cafezeiro silvestre e a mangueira crescem, em número limitado, por toda a ilha.

Há criação de gado caprino, ovino e bovino, em pequena escala e de aves de capoeira.

Pela sua posição geográfica, a ilha do Ibo é rica em recursos aquáticos (peixes, crustáceos e moluscos). Para além dos pescadores, homens e mulheres, sempre que se deparam com dificuldades financeiras recorrem à pesca, utilizando armadilhas e pequenas redes ou panos junto à praia.

Esta disparidade entre as actividades agrícola e pesca influenciaria, decisivamente, a cozinha mwane, onde predomina a utilização dos produtos marinhos. 

A população pratica as religiões católica e islâmica, esta limitativa de alguns produtos alimentares.
Depois destes pertinentes considerandos, volto ao tema principal.

Do seu património alimentar, realçarei, nesta Comunicação (1), a comida mwane preparada e consumida no dia-a-dia, nas datas festivas e nos tempos sagrados e a sua heterogénea composição. 

A cozinha mwane utiliza na confeção dos seus variados manjares: arroz, mandioca, feijão,  milho, mapira, meixoeira, abóbora, gergelim, amendoim, coco, rícino, cana doce, batata doce, pepino, cebola, tomates, coentros, alhos, piripiri, castanha de caju, manga, papaia, anona, ata, romã, ananás, massanica, jambalão, banana, tamarindo, limão,  folhas verdes de hortaliça, mandioca, de batata doce, moringa e abóbora, excelentes para confecionar a matapa, peixe fresco ou seco e mariscos( camarão, carangueijo, lagosta, lulas, chocos, polvo, inhamata ... ), carne de bovino, caprino, ovino e de aves, ovos, açucar, sal, mel, vinagre, especiarias- açafrão, gengibre, cominhos, canela, cravinho e cardamungo. 

A alimentação, habitualmente, preparada pelas mulheres, embora em 1971 existissem 27 cozinheiros, tem como base o caril (nsuzi), de:

- carne ou peixe/polvo/carangueijo/inhamata, 
- coco (nsuzi uanazi),
- oleo de amendoim  (nsuzi uamafuta),
- abóbora (nsuzi uamanga),
- feijão (nsuzi uaunde), 
- caranguejo, camarão, macasa, inhamata, ... . 

e como acompanhamento (kuria):

- arroz de coco (kanazi), 
- bilinjé (arroz), 
- milho (kamafafaluela), 
- arroz refogado (kitoré),
- milho e feijão (makutshuko), 
- lumino de batata doce, banana, mandioca, abóbora
- mazizima (papa de mapira) 
- quitoré (arroz refogado)  
- matapa de folhas.

Para além dos temperos orientais que adquire, utiliza muitos produtos da terra: sal, priripiri, manga verde, de que faz vinagre, tamarindo (verde e maduro), limão, cebola, alho, tomate, fruto do embondeiro, ... .

Também se prepara e consome vários tipos de achar (conservas): limão, cebola, tamarindo, manga, que são conservados em sal, piripiri e vinagre. 

Bolos: nkate, de f.trigo (uabolo), f. milho (uariba), f. mandioca (pinaga), f.arroz (pneu), f.trigo (uumacajojo), f.arroz (vitumbula), f. mapira (viliosso), biscoito, igual ao anterior mas com forma biscoito de Portugal, f.arroz (uakumimina), uapão de ló, uasonho, 

Doces: abóbora, batata doce, meixoeira cozidio, coco (uanazi), amendoim pilado (uaintessa), castanha caju pilada (uacorosso), gergelim pilado (uaifuta), massanica (iaunazi), pera, papaia, banana, caju, manga, ngodó (bolo de farinha de arroz, coco e açucar que é servido na festa das raparigas culávia mwari) , uaunde, dinuto, virassassa, 

Os pratos de carne de cabrito, galinha, pato ovino ou bovino são apenas consumidos em datas festivas.

Como bebidas utlilizam água simples, chá, café, leite, limonada, laranjada. Para algumas cerimónias utilizam a água das chuvas e a água de coco.
Do seu trem de cozinha constam: frigideiras, panelas de barro- com boca larga para o  caril (kikalando), com boca pequena para arroz (kiungo), e para água (mivulo), panelas de cobre, alumínio e ferro, caçarolas de barro, tachos de alumínio, frigideiras, pedras de moer, peneiras (kissero), coadores (msudjo), almofarizes e pilões de madeira, raladores (mbusi), concha de casca de coco (lupaua),trempes de ferro, ... .

Com exceção do mês do Ramadão, o mwane faz três refeições por dia, diferentes das do quotidiano, nas cerimônias especiais- ritos de passagem, festas religiososas e nalgumas cerimónias de despossessão de espíritos.

No dia a dia
São servidas três refeições diárias: pequeno almoço/matabicho, almoço e jantar.

Ao pequeno almoço
Das 6 às 8 horas a alimentação é diversificada. Habitualmente toma-se:

- Chá com ribas, pneus, sonhos ou vitumbulas
- Chá com pão, ou bolos,bolos, nkate de trigo, milho, mandioca ou arroz, riba, leite e pão, 
- Pão e peixe frito.
- Leite ou leite com pão
- Café
- Ovos, cozidos ou fritos
- Arroz ou feijão com caril de peixe
- Mandioca cozida com peixe frito

Ao meio da manhã podia comer-se batata doce ou qualquer doce.

Ao almoço
Das 12 às 14 horas, a refeição é pouco variável. Habitualmente come-se:

- Arroz ou mapira e mais raramente, feijão, com caril de peixe­- frito, cozido ou assado ou de âmbar, temperados com  achares/azedos de manga ou limão.
- Tocossado de peixe acompanhado de arroz de coco 
- Arroz com peixe frito.
- Cebolada de peixe

Por vezes, pelas 17 horas, podia tomar-se uma chávena de leite ou comer sobejos do almoço.

Ao jantar

Das 19 às 20 horas, a refeição é variável, constando de 

- Chá com nkate, bolo ou pão 
- Chá com nkate de magaga
- Leite e café 
- Chá com aletria
- Arroz com caril de peixe
- Arroz de mapira com caril de peixe
- Arroz cozido com peixe
- Ovos fritos ou cozidos

Ao almoço e jantar, sempre que possível, come-se não só tchima/matapa de verduras (de folhas de abóbora, mandioca e hortaliça), batata doce ou mandioca, cozidas ou assadas, como também fruta, seja papaia, banana, laranja, ananás, pera goiaba, pera abacate, anona, ata, manga, de produção própria ou comprada. Também os doces caseiros diversos, são, algumas vezes, também consumidos.

Cerimónias religiosas e outras

Nas cerimónias religiosas - nascimento do profeta Maomé, festa a S. Francisco Xavier, maulide e fateha-oração pelos mortos confecciona-se uma alimentação especial constituída por carne de bovino e caprino.

No cumprimento de promessas, a alimentação preparada, galinha ou pato com arroz de caril é oferecida a orfãos ou alunos da madrassa), 
- No início da construção de casas, embarcações, gamboas e  a falta de chuva, preparam refeições à base de carnes de bovino, cabrito, galinha, pato e de arroz, em que a mapira, como elemento purificador(mapézi), o coco e os bolos têm presença obrigatória.

Cerimônias familiares

- Akika, apresentação da criança ao 7º dia do nascimento. No dia aprazado, de manhã cedo, as mulheres (familiares, amigas e vizinhas) preparam, com esmero, no quintal da família anfitriã, os bolos rote e o caril de cabrito, que, mais tarde, serão servidos aos convidados que molham os bolos no mel e o caril no azedo (achar feito localmente com manga verde, limão, pepino, tamarindo...). De realçar que, também, aos dignatários políticos e religiosos, aos vizinhos e órfãos, por uma questão de testemunho e de prestígio social, são oferecidas pequenas porções de carne, crua ou cozida, de mel e bolos. Como bebidas são servidos chá, café ou qualquer refresco e nunca bebidas alcoólicas proibidas pelo Alcorão. 

- Kutolola, furar orelhas das raparigas para brincos (kutolola brinco) e base nariz para kipine (kutolola kipine) serve-se doce de gergelim e bolo de arroz (n´godó).

- Corte de cabelo de rapazes e raparigas a comida própria: caril de carne de vaca, de galinha ou pato, com arroz ou apenas bolos e biscoitos com chá ou leite.

- Kulavia - Saída das raparigas do enclausuramento porque vai casar ou demora em fazê-lo. Nesta ocasião fazem-se doces de n'godó e nkate de mapira ou mandioca.

- Limbaje. Confecionam-se doces da melhor qualidade feitos pela família da noiva com a importância enviada pelo pai do noivo, na carta do pedido de casamento, que depois são enviados com a resposta ao pedido feito.

- Arusse - Casamento. Para a almoço do dia do casamento, o pai da noiva compra: 2,5 de arroz, 1 bovino, 1 cabrito, 1,5 saco de farinha de trigo, 25 quilos de açúcar, cocos, batatas, temperos. As pessoas mais abastadas, por vezes, confeccionam pratos de chacuti, chamuças, bebinca, … .

Nos ritos de passagem

- Kumbi, circuncisão dos rapazes, no acampamento, alimentam-se de mel, arroz de cabrito, peixe assado, tudo sem caril nem sal; já em casa, tomam leite, chá e bolos.

- Riga, iniciação das raparigas, faz-se caril de galinha sem temperos, chá forte com café com leite, bolos e biscoitos.

Nas cerimônias ligadas aos cultos de possessão, nas chamadas danças do diabo, há comidas que variam consoante a origem do espírito incorporado na mulher, que não farão parte desta comunicação.

E para terminar a indicação dos pratos da cozinha mwane mais recomendados por amigos nossos Muadjas:

- tocossado de peixe com xima de mandioca ou milho branco, ou arroz de coco ou mapira com coco;
- lumino (de mandioca ou de batata-doce, banana macaco verde) de peixe fresco; 
- caril de coco de caranguejo/camarão/peixe acompanhado com arroz ou leite  de coco;
 - quitoré com safi frito, acompanhado de arroz de coco, de mapira, de meixoeira ou soloco;
- peixe frito com milho e feijão (macutchucu);
- arroz de coco ou de mapira com  caril de peixe e molho de coco;
- caril de cabrito com arroz amarelo
- caril de peixe com arroz de coco e matapa
- bolo de meixoeira cozido, rotis (apas), filhoses, nkate wa kumimina (bolo de arroz) e nkate wa magaga (bolo de mandioca seca;
- doces de abobora e batata-doce.

Uma análise mais aprofundada da cozinha mwane, dos seus ingredientes e objectos/utensílios utlizados na sua preparação alimentar mostrar-nos-á que:

- grande parte das plantas alimentares - cereais, legumes e árvores de fruto - e especiarias são originárias  da Asia, Oceania e da América;

- Muitos dos utensílios utilizados  chegaram a África através da difusão cultural, provenientes da Oceania e Asia- pilão, mós, raspador, … ;

- muitos dessas plantas e utensílios são signos comuns da língua suaíli  ou dela derivados  e cobrem uma vasta área de África do litoral e interior;

- muitas iguarias e seus temperos, bolaria, doces são vocábulos das línguas suaíli, macua e português.

A cultura alimentar, aqui descrita, longe de estar completa, mostra bem a diversidade e a riqueza da cozinha mwane- do dia-a-dia e festiva, bem diferente da preparada nas terras firmes do interior, muito mais simples, tanto nos produtos como na confecção. A diferenciação existente deve-se aos seculares contactos da comunidade mwane com gentes de outras culturas e civilizações: árabe, asiática, e europeia, portadoras de outros saberes e estilos de vida, muitos deles integrados, por úteis, na cultura local.

Terminada a minha Comunicação, resta-me agradecer a vossa estimada presença.

A todos um BEM HAJA.
- Carlos Lopes Bento
ANEXOS
ALGUMAS RECEITAS TÍPICAS DA GASTROMONIA MWANE

TOCOSSADO DE GALINHA

Ingredientes:

2 Frangos
1 ½ Tomate grande
2 Caldos Knorr de frango
1 ½ Cebola grande
1 Colherinha de massa de tomate
6 Azedos de manga previamente demolhados para tirar a acidez
½ Colherinha de sal
3 Piri-piri
1 ½ Colherinha de óleo

Execução:

Cortar o tomate e a cebola em pedaços pequenos, para que não fiquem nem grandes nem picados.
Num tacho, colocar 1 chávena de água e deitar um caldo Knorr, metade do tomate e da cebola já cortados, meia colherinha da massa de tomate e deixar ferver um pouco, cerca de 1 minuto.
Adicionar o frango, mais 1 chávena de água e a restante ½ colherinha de massa de tomate. Juntar 1 ½ colherinha de óleo.
Deixar ferver, pôr ½ colherinha de sal (para dar outro sabor, para além do caldo Knorr) e deixar ferver mais um pouco. Por fim, colocar o resto da cebola e tomate cortados e o azedo, sem mexer.
Deixar cozer estes últimos ingredientes sem mexer, deixando apenas acamar.
Ao deixar cozer muito bem, golpear 3 piri-piris e juntar para apurar.

Autoras:
- Compilada por Fernanda Carrilho e executada por Maria Judith Viegas Rodrigues Carrilho.

TOCOSSADO DE PEIXE

Ingredientes:

0.5 Kg de peixe grande / médio fresco (de preferência) às rodelas.
3 tomates grandes bem maduros sem pele e cortados aos pedaços.
1 cebola grande às rodelas.
1 dente de alho grande picadinho.
1 piripiri às rodelas (opcional).
Sal à gosto.
Sumo de 1 limão.
Água suficiente pra cobrir tudo.

Modo de fazer:

Coloca num tacho o peixe já limpo. Por cima, deita os restantes ingredientes exceptuando os 2 últimos.
Leve ao lume brando. Quando o líquido do peixe diminuir um pouco, deita a água e deixa reduzir um pouco sua quantidade. Por fim, adiciona o sumo do limão, mexendo o tacho e pouco depois desliga.
Acompanha-se com arroz de coco.
N.B. - Pode-se substituir por frango, é também saudável e delicioso.

Cedida por Margy

ACHAR DE SOLÃO

Ingredientes:

1 n’sudjo ou kitunga cheio de manga seca (azedo ou ambuche).
2 copos de vinagre.
6 pés de cravinho.
2 colherinhas de cominhos em pó.
2 colherinhas de coentros em pó.
½ colherinha de açafrão.
3 colherinhas de piripiri moído.
2 colherinhas de massa de tomate (para quem queira).
2 cebolas cortadas.
1 alho que chegue para uma colher cheia quando pisado
2 colherinhas de sal.
Óleo que chegue para a quantidade do azedo de manga (mais ou menos 6 conchas).
1 colherinha de açúcar.

Preparação:

De véspera, coloca-se a manga seca numa tigela e deitam-se os 2 copos de vinagre, deixando a demolhar até ao dia seguinte.
No dia seguinte, cortam-se as 2 cebolas e pisam-se muito bem os alhos com o sal. Colocam-se então a cebola dum lado, o alho doutro e todos os temperos juntos.

Execução:

Verte-se o óleo que chegue para todo o azedo numa panela, deixando até ferver. Após ter fervido, retira-se a panela do fogo. Aí, colocam-se todos os temperos e só depois o azedo. No final, deita-se 1 colherinha de açúcar e volta-se a colocar no fogo para misturar tudo e ficar pronto.

*Notas:

- N’sudjo ou kitunga, são kisseros pequenos, ou seja, peneiras feitas tradicionais Mwanes (do Ibo).
- Azedo ou ambuche, é manga seca em Kimwane, língua falada no Ibo.

Autoras:
- Receita compilada por Fernanda Carrilho e feita por sua Mãe, Maria Judith Viegas Rodrigues Carrilho.

ACHAR DE LIMÃO

Achar de limão é feito assim: 

Limãozinho maduro. piri-piri em pó ou fresco vermelho e sal.
Abre-se o limão em quatro com a casca e mete-se o sal e o piri-piri dentro do limão.
Vai-se arrumando num frasco de vidro ou barro... no final deita-se sumo de limão até cobrir o limão todo no frasco... Tapa-se o frasco e põe-se a ao sol durante um ou dois dias para curtir.
O suco de limão fica espesso e esta pronto para servir.
Atenção.... o achar não é caril, portanto serve-se só um  pouco...

- Cedida pela Nady.

LUMINO DE MANDIOCA

Ingredientes:

2 kg de mandioca. 
1/2 litro de leite de coco.
1 cebola.
Peixe, camarão ou frango.
Açafrão.
Manga seca, manga fresca(acida)ou tamarino ou suco de limão.
Sal e piri-piri verde. 
Modo de fazer:

Descascar a mandioca e cozer com um pouco de sal. Não deve ficar mole mas bem cozida.
Cortam-se as tiras não finas e arrumam-se numa panela.
Põe-se o leite de coco e o resto dos ingredientes todos (excepto o peixe ou frango) na panela, leva-se ao lume e vai-se mexendo lentamente ate começar a ferver. (fogo brando).
10 minutos depois da fervura, põem-se as postas de peixe já fritas e tostadas, ou os bocados de frango já cozidos ou o camarão fresco descascado.
Mais 10 minutos de cozedura e o lumino está pronto.
Pode-se acompanhar com um achar de limão.

- Cedida pela Nady.

MATAPA DE ABÓBORA

Cortas as folhas como se fosse pra fazer caldo verde, e pões numa panela com um pouco de água a cozer ( 10 minutos).
Enquanto isso levas leite de amendoim, cebola cortadinha, tomate fresco, sal e malagueta (se houver) e pões a cozer, mexendo sempre com uma colher de pau (se não tiveres colher de pau, tens que mexer com a mão senão, não anima...) rsrsrs brincadeira.
Quando o amendoim começar a engrossar despejas as folhas que já estão quase cozidas.
Deixas apurar mais uns 10 minutos e já esta  pronto.
Podes variar pondo camarão fresco, fica bom. também.

- Cedida por Nady.

FEIJOADA À MODA DO IBO

A base, é galinha e camarão e as quantidades ao gosto, possibilidades de cada um e nº de convivas.
De preferência o feijão e a galinha, devem ser do tipo cafreal, ou seja, pequenos e saborosos. 
No sul de Moçambique, este feijão chama-se "Timbauene".
O feijão coze-se primeiro, de preferência com um chouriço para dar o gosto, mas de carne de vaca ou carneiro!!!
Entretanto, prepara-se o refogado com os temperos: A cebola não deve ser muito picada, o alho só pisado e tudo isto se frita em muito pouco óleo, com tempero de pó de caril (mistura de açafrão indiano, colorau/coentro e cominho). 
Podem pôr-se outros temperos, ao gosto.
Depois do refogado bem cheiroso, deitar a galinha aos pedaços, mexe-se bem para fritar por fora sem deixar cozinhar e depois tapa-se o tacho e deixa-se cozinhar.
Se precisar de liquido, nunca água: ou cerveja ou vinho branco.
Quando a galinha estiver quase cozida, deitar o camarão descascado (eu deixo ficar as cabeças) e o feijão e deixa-se ferver por 5 minutos. Então, mistura-se isto tudo numa lata de leite de coco, deixa-se levantar fervura, mexendo sempre, mas não mais que 5 minutos e está pronto. 
É melhor quando feita de véspera.
Serve-se com arroz branco simples ou de coco, banana frita e ananás grelhado, querendo.

- Receita cedida, gentilmente por São Alves.


Quem é Carlos Lopes Bento 
DADOS PESSOAIS
- Carlos Lopes Bento, nasceu no ano de l933, em  Mouriscas, concelho de Abrantes e reside no Monte de Caparica, concelho de Almada..

FORMAÇÃO ACADÉMICA
- Doutorado em Ciências Sociais –Especialidade: História dos Factos Sociais, em 1994, pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade Técnica de Lisboa, Licenciado em Ciências Antropológicas e Etnológicas pelo mesmo Instituto e Diplomado com o Curso Superior de Administração Ultramarina pelo antigo Instituto Superior de Estudos Ultramarinos.

ACTIVIDADE PROFISSIONAL E CIENTÍFICA
- Em Moçambique, por motivos profissionais, de 1961 até 1974, onde desempenhou funções de chefia e realizou trabalho de campo entre os povos makhwa de Murrupula e Mogincual, makonde de Mueda e mwani das Ilhas de Querimba e Porto Amélia (Pemba).
- Em 1994, defendeu, publicamente, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas, da Universidade Técnica de Lisboa, a tese de doutoramento “ As Ilhas de Querimba ou de Cabo Delgado. Situação Colonial, Resistências e Mudança- 1742-1822.
- Docente universitário, desde 1980, nas Universidades Livre e Internacional e no Instituto Superior Politécnico Internacional. Para além da orientação de vários trabalhos finais de licenciatura, leccionou Introdução às Ciências Sociais, Metodologia da Investigação, Antropologia Cultural e Comportamento Organizacional nas licenciaturas de Gestão Turística e Hoteleira e de Gestão Bancária e Seguradora, do Instituto Superior Politécnico Internacional (ISPI).
- Foi director do Centro de Investigação Aplicada em Gestão Hoteleira e Turística, tendo coordenado o Projecto de I&D sobre “Culinária tradicional num processo de mudança, na zona do Pinhal”.
- Presidiu aos Conselhos Pedagógico e Científico do ISPI.
- Membro da Sociedade de Geografia de Lisboa, onde exerceu cargos de direcção, nas secções de Etnografia, Antropologia e História. Actualmente faz parte da Direcção da mesma, e de vários centros de investigação ligados a África, onde tem apresentado dezenas de Comunicações.
- Investigador em vários projectos de natureza sócio-politica e de desenvolvimento em todo o Continente e Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, designadamente, "A Reconversão da Pesca Artesanal, entre os rios Tejo e Sado- Aspectos Humanos", comparticipado pela JNICT.
- Participação em muitas dezenas de eventos científicos ligados à temática africana e do turismo.

ÁREAS CIENTÍFICAS DE INTERESSE
Continua a interessar-se pela Antropologia Africana- governação colonial, ritos de passagem, alimentação e contactos de cultura- pela cultura alimentar tradicional, pela cultura organizacional e pelos problemas humanos relacionados com a mudança em comunidades rurais e piscatórias e em organizações empresariais, particularmente, turísticas e hoteleiras

COMUNICAÇÕES E PUBLICAÇÕES 
- 1980 - "Problemas Eco-Sociais e a Reconversão da Pesca Artesanal";
- 1982 - "O Trabalho de Campo na Antropologia e o Desenvolvimento";
- 1984 - "O Desenvolvimento das Pescas nas Costas do Algarve-Achegas para o Estudo do seu Passado";
- 1986 -  "As Potencialidades das Fontes Históricas na Pesquisa Antropológica";
- 1986 - "O Desenvolvimento das Pescas nas Costas do Algarve-Achegas para o Estudo do seu Passado. Breves Considerações Finais";
- 1987 - "A Pesca do rio Tejo. Os Avieiros: Que Padrões de Cultura? Que Factores de Mudança Sócio-Cultural? Que Futuro?";
- 1988 - "O Desenvolvimento das Pescas nas Costas do Algarve-Achegas para o Estudo do seu Passado.- Ambiente, Tecnologia e Qualidade de Vida";
- 1989 - "A Posição Geo-Política e Estratégica das Ilhas de Querimba. As Fortificações de Alguns dos seus Portos de Escala";
- 1990 - “La Femme Mwani e la Famille. Étude Quantitatif des Quelques Comportements des Femmas de l’île d’Ibo”;
- 1991 -  O 1º Pré-censo de Moçambique- A Relação Geral de População de 1798 das Ilhas de Querimba ou de Cabo Delgado";
- 1992 - "Uma Experiência de Desenvolvimento Comunitário na Ilha do Ibo/Moçambique entre 1969 e 1972";
- 1997 - "Os Prazos da Coroa nas Ilhas de Querimba e a sua Importância na Consolidação do Domínio Colonial Português";
- 1998 - "Ambiente, Cultura e Navegação nas Ilhas de Querimba. Embarcações, Marinheiros e Artes de Navegar";
- 1999 - "A Administração Colonial Portuguesa em Moçambique- Um Comando Militar em Mogincual, entre 1886 e 1921";
- 2000 - "Situação Colonial nas Ilhas de Querimba ou de Cabo Delgado- Senhorios, Mercadores e Escravos" (Resumo da tese de doutoramento);
- 2000 - “Contactos de Cultura Pós-Gâmica na Costa Oriental de África. O Estudo de um Caso Concreto”;
- 2001 - “A Ilha do Ibo: Gentes e Culturas-Ritos de passagem”;
- 2001 - “Ambiente, Cultura e Navegação nas Ilhas de Querimba- Embarcações, Marinheiros e Artes de Navegar”.
- 2003 - “A Cozinha Tradicional na Área do Pinhal e o Desenvolvimento Regional - O Maranho como Prato Emblemático num Processo de Mudança”;
- 2003 -“A possessão em Moçambique- O Curandeiro N´kanga entre os Wamwuani do Ibo (1969-74)”.
- 2004 - "A Antropologia da Alimentação em Portugal.- Um estudo concreto;
- 2005 - "A Sociedade de Geografia de Lisboa e o Turismo”
- 2007 -  “Um Projecto de Investigação sobre Cozinha Tradicional na Área do Pinhal e Vale do Tejo. (Breve Notícia.(Meados Do Século XX)”;
- 2008 - “O Novo Código de Posturas da Câmara Municipal de Cabo Delgado, de 1887. Uma Leitura Etnográfica;
- 2009 - “Tecnologias Tradicionais do Mundo Rural, no Ribatejo: O Ciclo do Azeite em Mouriscas (Abrantes), nos meados do Século XX”;
- 2010 - “Os Sakalava de Madagascar em Moçambique. Ataques às Ilhas de Querimba e Terras Firmes Adjacentes e Suas Implicações, entre 1800-1817”;
- 2011 - “As Condições de Trabalho em Moçambique, depois da Abolição da Escravatura. Direitos e Deveres dos Serviçais e Colonos e dos Patrões, em 1880 na Província de Moçambique”;
- 2011 -“A Mestiçagem Biocultural nas Ilhas de Querimba/Moçambique e suas Implicações na Administração Colonial Portuguesa. Achegas para o seu Estudo”;
- 2011 - “Notas sobre algumas das seculares manufaturas  das Ilhas de Querimba ou de Cabo Delgado;
- 2013 - “Palestra na Escola Secundária do Cartaxo sobre” Memórias do mundo rural no alto Ribatejo, nos meados do século xx. O ciclo dos cereais: o milho e o trigo, a sua transformação em farinha e o fabrico do pão caseiro, em fornos a lenha”
- 2014 - “Sabores gastronómicos entre os wamwani da ilha do Ibo/Cabo Delgado. Achegas para seu estudo”;
- 2015 -“ Moinhos e Azenhas de Mouriscas. Vivências e Memórias de um jovem moleiro -1944-1949”. A.I.D.I.A., Cadernos Culturais, nº 9, Agosto 2015. 2ª edição. 2017. pp. 57”;
- “Mouriscas. Preservar o seu Património Cultural para Defesa da sua Identidade”. A.I.D.I.A , Cadernos Culturais, nº 10, Novembro 2015, p. 133”;
- 2016 - “Mouriscas, do Passado ao Presente. Artes e Ofícios e seus Titulares(1860-1911) . A.I.D.I.A,  Cadernos Culturais, nº 12, Março 2016, pp 257”;
- 2017 - “Obreiros do Mundo Agrícola de Mouriscas, I e II. Proprietários, Agricultores e Jornaleiros e seus Titulares (1860 e 1911). A.I.D.I.A, Cadernos Culturais, nºs 20, Dezembro 2016, pp. 296 e 21, Março 2017, pp 120”;
- Tem publicados dezenas de artigos sobre as Ilhas de Querimba  em https://foreverpemba.blogspot.com.br/
FESTAS FELIZES 
Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "ForEver PEMBA" em 14 de Dezembro de 2017. Permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos e imagens deste blogue só com a citação da origem/créditos.

4/27/15

GLÓRIA DE SANT´ANA, VISITA A ILHA DO IBO, EM BUSCA DO SABER

Prof. Carlos Lopes Bento


11/14/14

A CONSTRUÇÃO DO FAROLIM DA MUJACA, NA ILHA DO IBO

Prof. Carlos Lopes Bento

4/03/14

Histórias sem tempo...


Posted by Hello...Ou Histórias de África !
Por Maria de Lourdes Sant’Anna
A.A. Nº 278/36
Uma vez que vou contar algumas das histórias que vivi nos anos 57/58 em Cabo Delgado, parece-me que devo começar por caracterizar a região em causa.

A província de Cabo Delgado situa-se no extremo nordeste da República de Moçambique, com uma densidade populacional de vários milhares de habitantes cujas etnias representativas são as macondes, macuas e mwani.

Com uma superfície de 82.625 km², que inclui 4.758 km² de águas interiores, é limitada a norte pelo rio Rovuma, a sul pelo rio Lúrio e a oeste pelo rio Lugenda. O Oceano Índico banha o litoral leste, uma extensão de aprox. 425 km.

A vegetação característica é de florestas de mangais, junto dos rios e do mar, de planícies e savanas com árvores de pequeno e médio porte mas com predominância de embondeiros, além das matas e das florestas.

Existe ainda a norte do Cabo Delgado um arquipélago de 31 ilhas e ilhéus, o arquipélago das Quirimbas, que inclui, entre outras, a ilha do Ibo. (Por curiosidade direi que as mulheres do Ibo são conhecidas pelas sua beleza, com um tom de pele castanho dourado e grandes e alongados olhos verdes).

Aos que entram por mar em Porto Amélia, depara-se um espectáculo inesquecível: a baía de Pemba.

Considerada como a terceira do mundo em grandeza, com cerca de 15 quilómetros de amplitude, dizia-se que “podia dar abrigo a uma esquadra naval inteira”. E que, sendo também uma das mais profundas, num dos seus recessos, o “poço”, viviam tubarões de mais de 6 metros, jamantos com uma envergadura de cerca de 4 metros e garoupas de centenas de quilos.

Foi em 1897 que a companhia colonial determinou ao Capitão José Augusto Soares da Costa Coleral que procedesse à implantação de um povoada na baía de Pemba, que era assim que as povoações nomeavam a região.

O comércio que se fazia nas margens da baía desenvolveu-se imenso, tanto com as populações locais como com as caravanas que vinham do interior. E os pedidos de arrendamento e de aforamento de talhões começaram logo a seguir ao traçado da região, enquanto que a região de “Pampira”, junto do posto militar construído em 1897, passou a denominar-se Porto Amélia, em homenagem à última rainha de Portugal.

Com a nossa chegada em janeiro de 57, os habitantes não crioulos, africanos ou mestiços atingiram o número de 502. E foi nessa região que vivemos cerca de dois anos.

Além do lado fortemente positivo em relação a paisagens deslumbrantes, ao grande relacionamento humano, devo dizer também que havias aspectos fortemente negativos. Infelizmente o polo negativo levou-nos a deixar Porto Amélia e a ir para o Dondo (Beira).

Como já disse a baía de Pemba surpreendia pela sua enorme beleza. Em linhas gerais, na margem esquerda erguia-se a cidade baixa, com a ponte-cais, a capitania do Porto, o posto meteorológico, o comércio, as empresas, o consulado (alemão), o único banco e também a única pensão, além de três creches e de um cinema.

Na parte alta da cidade, erguia-se o bairro residencial, o hospital, a igreja paroquial e mais adiante o quartel e depois dele o campo de aviação.

Havia apenas uma única estrada alcatroada, a ligar a baixa com a alta, e cá em cima as ruas eram todas de terra batida, dum vermelho que o vento levantava e manchava tudo de um pó grosseiro.

Mas a par da terra, vermelha que o vento levantava, havia o outro vermelho/róseo, que surgia por vezes quando o sol ia a caminho do poente, tingindo a atmosfera de tons rosados a envolver suavemente árvores, a nós próprios, numa imagem de irrealidade, como se de um sortilégio se tratasse.

Disseram-se ser um fenómeno pouco frequente mas normal em paisagens equatoriais.

E era um livro surpreendente, aquele cujas páginas eu ía lendo num dia a dia cheio de expectativas.

Também a ponte-cais era local de reunião, não só para os pescadores à linha, mas também para nós, os outros que ali apareciam não só para confraternizar mas também para apreciar a beleza das trovoadas que, do outro lado da baía iam riscando os céus com as faíscas que aos zigue-zages, entrecruzando-se, se lançavam vertiginosamente no mar entre os tons exaltados de todas as cores do arco-iris, numa beleza sem limites.

O fundo do grande círculo da baía de Pemba descia da escarpa alta, que a dominava, até ao mar, numa cerrada floresta de verdes. E no dizer dos nativos que não se aventuravam lá, aquela era a região das jibóias e dos leões.

Pois havia uma história que se prendia com aquela teimosa região. Uma criança de três anos, residente numa machamba, situada na “zona possível” antes da floresta das jibóias e dos leões, iludindo o “pequenito” cuja missão era brincar com ele, desapareceu uma tarde.

Da cidade vieram todos os transportes disponíveis e, ao entardecer, as lanternas foram-se acendendo à medida que todos se internavam mais na floresta. E foi já tarde de noite que se encontrou a criança, a uns três quilómetros dentro da floresta, a dormir serenamente encostada a uma árvore.

Quase impossível de acreditar, mas assim aconteceu.

A primeira vez que por convite dum residente entrámos numa “zona de caça grossa”, num minúsculo Volkswagen que era o carro utilitário usado, tivemos a sorte de encontrar um majestoso leão.

O nosso carro havia parado, pois o dono, que era caçador experimentado, pelo abanar do capim alto percebeu que seria um dos tais animais que ele gostaria que nós, recém-chegados, apreciássemos em pleno mato, além das dezenas de macacos que, pendurados nas árvores, nos espreitavam guinchando.

O desejo do nosso amável anfitrião cumpriu-se, pois, pouco depois, a monstruosa cabeça dum leão surgiu ali, a cerca de dois metros de nós. É de facto uma sensação de tanto medo, que não se pode descrever, apenas sentir.

O animal olhou para um lado e para o outro (onde nós estávamos, eu completamente muda e paralisada) e internou-se de novo no capim alto para surgir mais adiante, atravessar a estrada num passo lento, embrenhando-se de novo no capim.

À medida que prosseguíamos, começaram a aparecer africanos que caminhavam sempre no meio da estrada. Todos eles levavam levantado, ao ombro, um alto e grosso pau em cuja ponta balançava um pequeno saco branco, enquanto que, com a outra mão, seguravam na cabeça uma lanterna de querosene, acesa, que, na tarde que caía, espalhava uma luz leitosa.

(Foi-nos dito que, em regra, o leão só ataca quando tem fome e as suas zonas de caça não são nas proximidades das estradas. No entanto, o leão, já velho, pode esperar as mulheres que vão buscar água, longe da aldeia, ou viajantes que, por necessidade, se afoitem noite dentro longe das suas cubatas).

Pois a lanterna que aqueles que íamos encontrando levavam à cabeça seria então para afugentar as hienas que, traiçoeiras, não atacam as pessoas de frente e que, seguindo-as, não se atrevem a investir contra aqueles que lhes parecem mais altos. Portanto, a lanterna, além da luz que projectava, era também uma defesa contra esses animais.

Lembro-me que, quando fomos visitar as quedas de água do rio Lúrio, descemos por uma vereda até lá abaixo, onde o rio era mais estreito e havia uma pequena língua de areia. Sentados num dos rochedos existentes já no rio, reparámos num africano que o atravessava a nado, levando numa da mãos erguida acima da cabeça um tronco a arder.

Quando chegou perto de nós, perguntámos-lhe se ali havia crocodilos. Que sim, que de manhã tinham visto um muito grande a apanhar sol. Já na areia, a nossa pergunta se não tinha tido medo quando atravessara o rio, a resposta simples surpreendeu-nos a todos: “Patrão, quando Deus quer...”

Numa das caçadas onde participei fomos até uma lângoa (área pantanosa, com bancos de nevoeiro) de cerca de 40 quilómetros de diâmetro. Levávamos dois pisteiros africanos, bem conhecedores da zona, que, porém, daquela vez se perderam devido ao denso nevoeiro que nos envolvia. Andámos por ali às voltas mais de duas horas e caça, nem uma peça se via. No entanto, pelos excrementos que, por vezes, o nevoeiro deixava ver, compreendi que, pelo menos, búfalos e outros animais de grande porte poderiam ser encontrados.

Dentre as várias caçadas em que participámos apenas como “mais dois”, uma ficou na minha lembrança.

Saíramos da cidade já de noite a caminho duma pequena lagoa onde, de madrugada, os animais iam beber. E durante a viagem, os caçadores lá atrás “repartiam” entre si a caça que poderiam adivinhar por entre a vegetação: olhos verdes pertenceriam a gazelas, a antílopes, a palaves, a leopardos, etc. Mas olhos vermelhos, esses seriam sempre de leão.

Quando surgiu um par de olhos fosforescentes, bem vermelhos, desceu da carrinha o caçador ao qual cabia aquela peça. O silêncio era impressionante, mesmo aterrador. Guiado apenas pelo próprio foco preso à cabeça, o caçador breve se afastou para reaparecer pouco tempo depois em corrida desordenada, gritando “talaco”, “talaco” (nome dado pelos nativos às formigas carnívoras que se deslocam em grossas e espessas colunas de milhões destes insectos e que destrói tudo por onde passa). Mas embora tenha dito que havia pisado a coluna, não se lhe encontrou uma única formiga. Ainda hoje mantenho as minhas dúvidas sobre a realidade deste encontro...

Mais para a madrugada surgiu então o local procurado. E não tenho adjectivos suficientemente convincentes que possam demonstrar o que vi.

Os animais erguiam-se numa frente única, num magnífico conjunto a sobressair do branco leitoso que o sol ia tingindo de tons rosados. Eram cerca de 14 palaves, que bebiam tranquilamente, enquanto o mais alto e mais forte que atento vigiava em breve deu pela nossa presença. E logo aquele nobre animal levou a manada em carreiras desordenadas e voltou atrás para enfrentar os caçadores de armas apontadas.

E fecho mais uma série de “Histórias de África” com a partida de que, para não fugir à regra, fomos alvos pouco depois de chegarmos.

Em terras pequenas, alguns caçadores gostavam de pregar partidas aos crédulos recém-chegados. E foi assim que, durante várias horas, entre cafés e whiskies pudemos ouvir histórias de caçadas cada vez mais empolgantes, cada vez a deixar-nos – porque não dizer? – mais encantados.

Claro, o herói era sempre um, ele , o nosso contador. Mas como se tratava dum caçador profissional bem conhecido pela sua grande coragem e valentia, depressa se esqueciam as partidas que adorava pregar aos novatos que chegavam de longe, prontos a acreditar em tudo sobre a vida do mato, que aliás ouviam com agrado.

Voltarei a contar mais “Histórias de África”. Em 13 anos de vivências por terras africanas, muitas foram as histórias acontecidas e que ficaram registadas no grande livro das nossas memórias, umas boas, outras más...
In: http://www.aaaio.pt/public/ioand096.htm

12/08/13

RIP Virgílio de Lemos!

Recebido de um Amigo, via e-mail:

Faleceu o grande poeta moçambicano, natural da ilha do Ibo, Virgílio de Lemos, ontem, em Paris. Pela mão de outra grande poeta (poetisa) de Cabo Delgado, Glória de Sant'Anna pude "conhecer", em Pemba, a poesia daquela grande figura das Letras. Leiam este lindo poema escrito,em 1995, em Pemba/Ibo, "Ibo, eu calo a minha pena". - Assina JNC.
Clique na imagem para ampliar

Virgílio de Lemos nasceu na Ilha do Ibo em Cabo Delgado - Moçambique em 1929. Cresceu e estudou entre Lourenço Marques e Joanesburgo. É uma das figuras fundamentais da poesia moçambicana, ao lado de Rui Knopfli e José Craveirinha. Fundador da revista de poesia Msaho em 1952, que simboliza a ruptura com a literatura colonial. No seu primeiro número figuram Noémia de Sousa, Reinaldo Ferreira e Alberto Lacerda. A sua obra conta poemas, contos e crónicas, e um estudo sobre o "barroco estético" na literatura de Moçambique. Ele teve uma parte activa na vida política e na resistência ao regime colonial entre 1958 e 1963, altura em que opta pelo exílio em França. O seu livro de poesia, Para fazer um mar, editado pelo Instituto Camões foi lançado a 31 de Maio 2001 na Feira do Livro de Lisboa, com prefácio de Luís Carlos Patraquim. - In António Miranda, Setembro de 2009.
  • Notícia do falecimento de Virgílio de Lemos em "PÚBLICO"

8/24/13

Uma figura da História da Ilha e Vila do Ibo: JACOB MAMUDO (Bob)

Jacob Mamudo (Bob), há relativamente pouco tempo falecido (24 de Agosto de 2009), é ilustre filho e parte da história da Ilha do Ibo.
Até 1974, foi membro da Comissão Municipal local à qual prestou colaboração efectiva.
Amigo da terra que o viu nascer, respondeu sempre com prontidão e desinteressadamente, a todos os pedidos de ajuda feitos à época colonial pelas autoridades constituidas no concelho.
Para o recordar-mos, ficam aqui algumas imagens que consideramos documentos para a história da também histórica Ilha do Ibo e de Moçambique:
1970 - Visita de dois estudiosos, drs. Pierre Verin (francês) e Amaro Monteiro, antropólogos, linguístas, professores, pesquisadores da civilização malgaxe e de outras ilhas do Índico à Ilha Quisiva. Esta viagem de estudo acompanhada pelo Dr. Carlos Lopes Bento, administrador do Concelho do Ibo, só foi possível graças ao apoio logístico de Jacob Mamudo (Bob) também na foto.
 
Entrevista de Jacob Mamudo (imagem acima), vogal da Comissão Municipal do Ibo, concedida a 13 de Setembro de 1963 ao correspondente do jornal "Diário de Lourenço Marques" em Cabo Delgado, Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, em consequência da ida de uma representação de Cabo Delgado a Lisboa, recebida pelo Dr. Oliveira Salazar.
A leitura do conteúdo da entrevista mostra calramente a dimensão e sentido da Pátria Portuguesa de então em relação às suas colónias.
(Clique nas imagens acima para ampliar)

Representação da Vila do Ibo, a Lisboa, em 1963 - Na foto está o Jacob Mamudo (Bob) com o estandarte da Vila do Ibo, entre outros participantes da representação de Cabo Delgado.

Histórico  de JACOB MAMUDO mais conhecido por BOB:
- Filiacao: Mamudo Agy Jacob e Luisa Zamith.
- Nasceu em 11/05/1927 na histórica vila do Ibo.

Desde 1959 que esteve a testa da firma comercial fundada no Ibo pelo seu pai em 1919, “Flor do Ibo” de Mamudo Agy Jacob.

Bob jogou a bola pelo Clube Desportivo do Ibo e  a sua actividade comercial incluia a venda de produtos alimentares, representações e agenciamentos de transportes maritimos (Companhia Nacional de Navegação), aéreos (Comag e TTA), banca (BNU - actual CGD), açucareira (Sena Sugar Estates) e também se dedicava à venda de peixe seco, percorria semanalmente, por terra e mar, centenas de quilometros desde o Ibo até Nampula.

Em 1975 mudou-se e transferiu a firma para Pemba, desta vez com maior destaque para venda, representação e distribuição de material de pesca (Equipesca), oleo alimentar e sabão (Companhia Industrial do Monapo) e açucar (Distribuidora Nacional do Açucar).

Devido a sua saude, encerra as actividades comerciais em 2006 e muda-se para Maputo, onde vivem sua filha, irmãs, cunhado e sobrinhos e pode ter melhor assistencia médica. Nesta altura a firma “Flor do Ibo de Mamudo Agy Jacob, Sucessor” devia ser a mais antiga firma comercial Moçambicana no norte ainda em actividade (87 anos).

Entre finais dos anos 80 e principio de 90, Bob e outros conterraneos seus nomeadamente Ernesto Silva (Simba), Candido Manuel Inacio (Kesso), Mussa Alimomade (Magaga), Leopoldino Costa e Jordãp Soares (Joda) todos já falecidos, e Issa Tarmamade  fundam a Associação dos Amigos da Ilha do Ibo (AAIIBO), cujo maior objectivo era de promover e tentar encontrar ou criar oportunidades que possibilitassem o renascer da esperança de desenvolvimento da Ilha do Ibo e neste caso concreto tiveram sempre o apoio dos srs. Antonio Simbine, Governador da Provincia de Cabo Delgado nessa altura e de Magido Ali, então Director da Industria Comercio e Turismo.

Também já se voltava a celebrar o “São Joao Baptista” no Ibo, 24 de Junho, anualmente, e realizavam-se excursões a partir de Pemba.

Anos mais tarde com a nomeação de Jose Pacheco (actual Ministro do Interior de Mocambique) para Governador de Cabo Delgado, a questão do Ibo voltou a ganhar interesse, tendo havido vários encontros entre o Governador Jose Pacheco e Jacob Mamudo para troca de ideias e impressões.

Hoje com os meios de comunicacão e de transportes existentes, ja estão criadas as bases para tornar o Ibo num destino turistico. O Ibo ja não dorme mais.

Em Julho e agosto de 2007, vai pela ultima vez à Europa, Inglaterra visitar o filho, nora e netos e Portugal visitar a filha e netos e tratamentos médicos.

Nessa viagem a Portugal teve o desejo de rever  amigos seus, elaborou uma lista da qual constavam os nomes de Carlos Bento, Carlos Soares, Rosario Dias, Barreira de Sousa e outros que não me lembro.

Infelizmente devido ao seu estado de saude nao concretizou esse desejo.

6/17/13

PARA A HISTÓRIA DE CABO DELGADO COLONIAL - MAIS UM ANIVERSÁRIO - 249º. DA FUNDAÇÃO EFETIVA DA VILA DO IBO

Por Carlos Lopes Bento 

Estão a iniciar-se as festas joaninas da Vila do Ibo, vila centenária que comemora os 249 anos da sua fundação e da instalação da sua primeira Câmara Municipal, que em 26.6.1764, já estava a funcionar.

Neste dia 16 de Junho, lembro a chegada ao Ibo, a 16 de Junho de 1764, do  responsável pela coordenação de todos os trabalhos, o governador e capitão-mor, Caetano Alberto Júdice.

Por continuar a não ser pacífica a data da fundação da Vila do Ibo, para uns 1761, para outros 1764, aqui deixo um pequeno apontamento que julgo trazer alguma luz sobre o assunto. Vamos aos factos documentais.

Para fazer face ao estado de ruína total em que se encontrava o governo civil e económico de Moçambique e doutros portos e, por nestes lugares, não haver, nem quem administrasse na primeira instância a justiça às partes, nem quem tivesse a seu cargo o cuidado do bem comum do povo, as Instruções régias, de 9 de Maio de 1761, vieram determinar que, a ilha de Moçambique e os portos e povoações de Quelimane, Sena, Tete, Zumbo, Manica, Sofala, Inhambane e Ilhas de Querimba, fossem erigidas em vilas, sujeitas ao Ouvidor de Moçambique, as quais ficariam a beneficiar de todos os privilégios concedidos às vilas do Reino...

- Outros trabalhos do historiador Carlos Lopes Bento neste blogue.
- O Dr. Carlos Lopes Bento no Google.
PARA A HISTÓRIA DE CABO DELGADO COLONIAL
- MAIS UM ANIVERSÁRIO - 249º. - DA FUNDAÇÃO EFETIVA DA VILA DO IBO:
Clique nas imagens para ampliar. Colaboração de texto do historiador Dr. Carlos Lopes Bento. Edição de J. L. Gabão para o blogue "ForEver PEMBA" em Junho de 2013. Permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue só com a citação da origem/autores/créditos.

3/18/13

ILHA DO IBO em Março de 2013

O IBO DO MÁRIO LOPES  -  Mário Lopes nada conhecia a norte de Marromeu e foi em busca da história do JOÃO BAPTISTA. Ao chegar à ILHA DO IBO conheceu a força que a natureza impõe ao preservar as vigas de uma História que não quer ruir e, teve em simultâneo, a percepção do que é o paraíso.
Clique nas imagens para ampliar. Imagens cedidos por MÁRIO LOPES, realizadas em sua recente estadia na Ilha do Ibo - Março 2013. Homenagem ao historiador e conselheiro da Ilha do Ibo, 3º oficial da Administração Estatal reformado - João Baptista que perfaz em Junho 86 anos, a Atibo Biché e ao historiador e antigo Administrador da Ilha do Ibo (época colonial), Dr. Carlos Lopes BentoEdição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "ForEver PEMBA" em Março de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

2/11/13

Retalhos: De Porto Amélia a Pemba - ILHA DO IBO - PERDIDA NO MAR E NA HISTÓRIA

ILHA DO IBO - PERDIDA NO MAR E NA HISTÓRIA - Em Porto Amélia raramente se dizia a ilha do IBO; dizia-se, muito simplesmente, o IBO. Foi ao IBO, veio do IBO, vive no IBO...

Naquele falar e falajar do entardecer nas deliciosas varandas coloniais, fui ouvindo história daquela ilha da costa de Moçambique, entre o Lúrio e o Rovuma. O mistério ia, pouco a pouco, aguçando a minha curiosidade. O próprio café do Ibo, que o senhor Ferreira nos servia no «Botão de Rosa», ajudava ao mistério. Era um café delgadinho, acastanhado, de cheiro e sabor muito estranhos. Mas acabamos por gostar dele e precisar dele. Era revigorante e tirava a ideia de deitar em horas de andar a pé. E quem quisesse ler ou escrever pela noite fora, era só tomar um cafézinho do Ibo, depois de jantar. Insónia assegurada.

Quando a curiosidade começou a inquietar-me, não tive outro remédio se não reparti-la com o meu inesquecível companheiro Simões Coelho. O Dr. Manuel Simões Coelho, grande cirurgião e grande pianista, veio a falecer em Portugal, meses depois de ser desmobilizado.

Não foi difícil entusiasmá-lo. Ele também já andava mortinho por conhecer o Ibo. Difícil foi arranjar transporte que nos levasse pela costa acima, até ao ponto da travessia. O jeep do Hospital Militar 338, a que pertencíamos, estava mesmo a calhar, mas a viagem era paisana demais para o podermos usar sem dar nas vistas...

Acabámos por aceitar a oferta de um indiano—um velho Opel sempre a torrar ao sol implacável da Av. Jerónimo Romero. Só depois de aceitarmos, com muitas mesuras de parte a parte, é que soubemos do estado lastimoso do carro. A cor era o menos, mas sempre lhes direi que ia do vermelho alaranjado, nas pregas mais protegidas, ao diospiro podre nas superfícies mais expostas.

Depois de uma revisão que, afinal, só serviu para nos afirmar que era uma temeridade partir, assim, com duas senhoras e duas crianças, lá fomos aos primeiros raios daquele sol que se erguia do lado do mar e se punha do lado da terra.
Logo aos primeiros quilômetros, o Opel triplicou os barulhos da partida e começou a cambar para o lado esquerdo. Por sua vez, as senhoras iam fechando a cara, daquela maneira que só as esposas contrariadas sabem fazer... O que nos valia, a mim e ao Simões Coelho, era a grande satisfação dos nossos filhos, o João e o Jorge. Riam e batiam palmas de cada vez que um macaco-cão atravessava a estrada, solene e atrevido.

— Ó papá, tu não apitas nas curvas?! — estranhou a certa altura o Jorge.
— Ó filho, tomáramos nós encontrar alguém, mesmo contra a mão! — respondeu, galhofeiro, o Simões Coelho.

Naquela fita de terra vermelha, marcada pelas tempestades e pêlos aventureiros, naquela solidão que parecia vir do princípio do mundo, buzinar seria uma ingenuidade e um sacrilégio.

A certa altura o «diospiro» cambou perigosamente para o lado de que vinha a queixar-se desde Porto Amélia — o esquerdo.

— O feixe de molas está a dar o berro! — informou o Simões Coelho, de rabo para o ar, meio metido debaixo do carro.
— E agora? — perguntei com a nítida sensação de ser ridículo naquele ermo.
— Vamos andando devagarinho... Mahate deve estar perto!— sossegou o Simões Coelho a bater as mãos, vermelhas de terra.

Depois de meia dúzia de curvas, dadas de credo na boca, Mahate apareceu como um bocejo da floresta.

Mahate era uma terra pequena e poeirenta surgida, ao que me pareceu com a exploração, naquela área, da companhia algodoeira Sagal.

Para nós foi a Divina Providência que ali instalou umas oficinas capazes de reparar o nosso carrinho cambado e gemebundo. Não seria preciso, mas sempre fomos dizendo que éramos amigos do senhor Eng° Guedes de Paiva, ao tempo, administrador da Sagal em Porto Ameia... Além do préstimo, os mecânicos foram de uma amabilidade inesquecível. Só tivemos de esperar um tempinho bem bom. Fomos passá-lo a uma daquelas lojas que só se encontram na África em pleno mato. Ali se vende de tudo, mas tudo cheira a tabaco e peixe seco.

Resolvemos esperar na varanda, quase ao nível da rua, a uma mesa de tampo coberto de moscas. Daquelas moscas que voltam sempre mal acaba o gesto de as afastar. Ao fundo da varanda bebia cerveja um negro gordalhufo, esgoleirado, mas bem vestido. Limpava, a espaços, um suor azulado e parecia, de olhar fixo, contar as garrafas que já bebera e tencionava beber.

É o doutor do Ibo!... — informou o pretito que nos trazia os pedidos; adivinhando em nós a estranheza de ver ali tal figura.

Ainda pensamos em abordá-lo para lhe dizermos quem éramos e onde íamos, mas o nosso colega parecia estar ao fundo de uma varanda sobre o infinito...

Do outro lado da rua havia um inacreditável campo de futebol. Apenas umas canas espetadas no chão poeirento limitavam o necessário rectângulo em cujas extremidades havia uns paus tortos a servir de balizas. O piso era de terra moída e remoída por mil pés a ir e a vir na mira do golo. Mas o campo tinha uma vaidade que ainda hoje me dói... Por cima da entrada uma tábua ressequida dizia assim numa caligrafia acabada de aprender:

LEÕES DE MAHATE

Quando pensávamos em ir ver se o carro já estava pronto, o «diospiro» apareceu, trazido por um funcionário da Sagal. Vinha todo teso e reluzente de limpeza, íamos batendo as palmas de contentamento. As nossas mulheres sorriram, finalmente. Pareciam já duas noivas em viagem de núpcias...
Dali até ao ponto de embarque para a ilha do Ibo correu tudo bem, mas tudo feito com muito cuidado por causa do piso. Quando menos se esperava surgia um pontão de troncos, ali posto para dar passagem no leito seco de um riacho efémero. Se bem me lembro, só atravessamos um curso de água permanente — o rio Montepuez. Era em Tandanhangue que se embarcava para o Ibo. Não havia povoado, nem havia cais. Apenas uma enseada minúscula acolhia o barco a motor do vai-e-vem. Ao embarcarmos, as senhoras voltaram a fechar a cara e os rapazinhos a ficar mais contentes. Aquele barco pareceu-lhes, certamente, acabado de saltar de um quadradinho de banda desenhada... A mim pareceu-me pequeno para aguentar qualquer espécie de mar. Eu não sabia que no paraíso os barcos não têm tamanho... E foi uma viagem paradisíaca aquela que fizemos, ora quebrando espelhos de mar imaculado, ora atravessando florestas de mangai, de onde se erguiam bandos de pássaros, brancos e silenciosos como a neve.

Talvez influenciado pelas histórias de Somerset, esperava encontrar na Ilha do Ibo um pequeno porto com alguma agitação de gente curiosa e mercadorias pasmadas ao sol. O cais do Ibo não passa de um pequeno patamar com escadinhas a desaparecer na água quieta. À espera, apenas um rapaz de tronco nu, muito lesto nas manobras de atracagem.

Foi esse rapaz que nos levou a casa de Wong Jan, um chinês de hospitalidade lendária por toda a costas de Cabo Delgado e que, em Porto Amélia nos haviam indicado como único sitio do Ibo onde poderíamos ficar.

Wong Jan recebeu-nos com as vénias de todos os chineses a que, ao que me pareceu, juntou mais algumas de homenagem ao Simões Coelho, já famoso por aquelas bandas.

Depois de um banho, tomado a golpes de púcaro pela cabeça abaixo, fomos cervejar para a varanda. Íamos na segunda rodada, quando apareceu o «Madragoa» a esbracejar e a rir de lês a lês no carão moreno. O « Madragoa» era o Administrador da llha do Ibo. Não consigo lembrar-me do seu verdadeiro nome. Aliás, julgo que nunca o soube muito bem... Apesar de muito estimado e respeitado, ninguém a ele se referia de outra maneira.

—  Está cá o «Madragoa»! — anunciava-se, volta e meia, em Porto Amélia.

A simpática alcunha deve ter pegado por excesso de bairrismo do Administrador. Acho que dizia por tudo e por nada:

—  Sou de Lisboa e da Madragoa!

E por ser de Lisboa recordou pela noite fora com o Simões Coelho casos e recantos da saudosa terra de ambos.

Quando as senhoras e as crianças se foram deitar, como autómatos perdidos de sono, ficámos só os três. Melhor, os quatro. Wong Jan andava por ali, discretamente, atento à nossa sede e à nossa fome. A certa altura o Administrador insinuou que «estava mesmo a calhar» um certo pastelão de um certo marisco.

Apesar do marisco me parecer um tanto coreáceo, o pastelão, no seu conjunto, ficou delicioso. Mas esta delícia viria a estragar-me a noite... Não fiz a digestão daquele marisco tão aplaudido. De cada vez que me virava, sentia os pedacinhos inteiros a carambolar no estômago, como bolas de bilhar. E quando pela manhã, ouvi o Simões Coelho a falar no pátio com os criados, berrei-lhe, ainda da cama:

—  Arranja-me um pouco de aguardente!
—  'stá bem... 'stá bem! — respondeu com certa estranheza na voz.

Mas a aguardente nunca mais vinha. Passado cerca de um quarto de hora, voltei a berrar:

—  Então essa aguardente, Simões Coelho!?
—  Andam a tratar disso!... Tu julgas que estás na Régua?

Passados mais dez minutos, um criado bateu à porta.

—  Pronto, patrão! já 'tá — disse, contente, no seu riso de piano aberto.

Intrigado por não lhe ver nada nas mãos, perguntei:

—  Já está o quê?
—  O banho, patrão. Tem muita água!

Está visto que me andou a arranjar água quente em vez de aguardente!... Tomei um delicioso banho de bidom. O único banho quente em dois anos e meio de África.

O pequeno almoço tornou-se de fugida. Não queríamos perder o içar da bandeira naquele domingo passado tão longe.

A cerimónia foi breve mas de uma solenidade garantida pelo rigor militar dos sipaios. Nunca a nossa bandeira me pareceu tão nossa, a tremular assim naquele azul tão forte que parecia pintado.

Começamos a visita à ilha pelo Hospital. Ficava ali mesmo, naquele terreiro de árvores frondosas em redor do mastro da bandeira.

Não voltei a ver hospital tão limpo, tão arrumado e tão deserto. Apenas dois serventes negros nos fizeram as honras da casa, abrindo portas naquela solidão e respondendo baixinho às nossas perguntas. O Hospital pareceu-me apetrechado para o que desse e viesse. Viesse o quê? Apenas dois negros, muito velhos e muito magros estavam internados, mais por caridade que por doença. Nenhum respondeu às minhas perguntas. Nem os olhos mexeram, quando as repeti mais alto. Três mundos: o meu, o deles e o outro.

Ao recordar, agora, aquele deambular pelas ruas do Ibo, recordo paralelamente o percorrer das ruínas de Pompeia, visitadas muitos anos depois. Em Pompeia tudo aconteceu há tanto tempo que nada nos comove. Dir-se-ia que, ali, o Vesúvio e os séculos silenciaram tudo de tal maneira que as nossas almas e os nossos corações já nada podem sentir.

No Ibo o pano parece-nos caído sobre a opereta da grandeza e logo erguido para mostrar o drama da decadência. Entre a descida e a subida do pano, um curto intervalo para a História poder mudar de roupa.

Não pudemos visitar toda a Fortaleza por medida de segurança. Estavam lá prisioneiros muitos negros implicados na guerra, prestes a abrir ao sangue e à intolerância. O que vimos chegou para saber que a Pátria se defendia tão bem e tão longe.

Foi confrangedor passar diante de casas senhoriais, de paredes esventradas, sem telha que as proteja e porta que as guarde. Numa delas, em plena sala de jantar, de paredes apaineladas, crescia uma árvore com indescritível descaramento. Nas fachadas de armazéns arruinados, iam-se apagando os nomes de grandes firmas comerciais e um grande silêncio parecia amarrar-se àquela fiada de argolas de prender os animais de carga.

As casas habitadas eram poucas e dispersas. As pessoas vinham às portas ver-nos passar como fantasmas de um futuro que há-de vir. E ainda não veio.

Ao virar de uma esquina apareceu o nosso simpático Administrador. Vinha num jeep cheio de mossas, roncos de motor e grandes estoiros de tudo de escape. Queria oferecer-se para uma volta mais larga pela sua ilha.

Começou por nos mostrar, muito orgulhoso, um pequeno bairro social de sua iniciativa. As casas eram pequenas, de blocos feitos ali mesmo, sem qualquer estilo, a contar com um clima sem inverno. Foi uma nota de esperança naquela terra em agonia, desde o fim da escravatura. Sim. O Ibo foi próspero, enquanto entreposto de escravos. Ali se fixaram grandes famílias da Europa, vivendo na abastança, da compra e venda de negros.
Lá estão as casas senhoriais de estilo europeu a afirmá-lo e os apelidos nobres a resistir ainda aos humildes nomes indígenas: Ávila... Menezes... Carrilho... Ornelas... Alba... Coutinho... E o sangue? Ohl... o sangue... A garantir a sanidade dos cruzamentos de sangue latino e negro, temos o milagre das «brancas do Ibo». Milagre de brancura, de elegância, de beleza, de jeito de falar e jeito de ser. Iris Maria é uma branca do Ibo. Foi miss Portugal. Não tem havido mais porque o Ibo é longe e mau caminho...

Ao som daquele jeep rebentado percorremos boa parte da ilha com o nosso «Madragoa» a gesticular indicações com o braço livre do volante. Nada me pareceu cultivado com regra ou entusiasmo. Toda aquela agricultura de subsistência tinha o mesmo ar espontâneo do capim, mas toda aquela desolação definitiva não impedia o nosso Administrador de gesticular grandes projectos de abastança. Quando se punha de pé, de braço estendido a traçar lonjuras de cultivo, chegava a ouvi-lo como um eco de D. Quixote...

Por ventura a marca mais profunda que me ficou daquele passeio a esmo pela ilha, foi a visão das sepulturas individuais e familiares que íamos encontrando perdidas no capim. Mal se desligava o motor para irmos ver mais perto, caía sobre elas um silêncio quase doloroso. Que grande senhor negreiro estaria ali comido dos bichos e dos remorsos? Que formosura virginal teria acabado ali os sonhos de donzela?

Um ventinho de murmúrio respondia do infinito. Um grande silêncio respondia a toda a gente.

Outra vez o cais... outra vez o barco... outra vez o mangal no mar quieto... outra vez os pássaros brancos e silenciosos como a neve...

E a Ilha do Ibo lá ficou, perdida no mar e na História.
- Por Camilo de Araujo Correia (extraído de "Recordar é Viver")

- NOTA - Relato que se presume tenha acontecido na década de 1960, quando o médico duriense cumpriu serviço militar em Porto Amélia como diretor do Hospital Militar e publicado em 1991 em Portugal-Peso da Régua, no "livro de Andanças".

- Comentário de Carlos Lopes Bento no ForEver Pemba 3 em 14/09/2004:
Mais uma faceta das terras de Cabo Delgado, desta vez uma viagem por terra e mar. A narração está bastante próxima da realidade. O administrador "Madragoa" e "Malata" era em 1962 Mário Baptista de Oliveira. Escreveu, então, "Monografia Sobre a Ilha do Ibo", dactilograda, não publicada. Parabéns por mais um trabalho sobre as terras de Cabo Delgado, com a narração de uma viagem entre Porto Amélia e Ibo, por terra e mar. Mezungo m'barabara. Enviado por Carlos Bento em setembro 14, 2004 03:43 PM.

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