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5/10/10

Retalhos: De Porto Amélia a Pemba - Apontamentos de Histórias Perdidas 2...

Outras Histórias perdidas...:
Ex-farmacêutico, ex-polícia, José Alves vive (vivia em Portugal...) em condições desumanas!!!!

DR. JOSÉ ALVES - O Diabo (jornal português) retoma a causa dos espoliados das ex-colónias e aborda mais um caso humano dramático: José Alves, de 88 anos, vive agora os últimos dias da sua vida em condições difíceis. Para trás fica uma história côr-de-rosa de um licenciado em Farmácia por terras de Moçambique:
Da polícia para a Universidade - Na recôndita aldeia de Gondelim, concelho de Penacova, todos o identificam como o «doutor José Alves», devido ao seu passado como farmacêutico. Este idoso, de barba e cabelos brancos em desalinho e unhas enegrecidas, move-se com muita dificuldade, apoiando-se num providencial cajado.

A idade não perdoa. Para ele o tempo passa devagar. Muito devagar. Revela uma lucidez e uma preparação intelectual invulgar para um homem de tão provecta idade. Vive ao abandono e somente a generosidade dos sobrinhos lhe disfarça a fome. Sobrevive com uma parca pensão de 30 contos.

Ele é um dos muitos espoliados das ex-colónias, que, da noite para o dia, ficou com uma mão-cheia de nada. Dir-se-ia que como o deste homem, nascido no período em que a I República dava os primeiros passos, há centenas de casos em Portugal. É possível. Mas cada história é uma história, e a de José Alves reveste-se de peculiaridades.

A pacata Gondelim, nas imediações da Barragem da Raiva, foi a terra que o viu nascer. Afecto à classe dos "pés-descalços" como faz questão de realçar, começou logo aos 5 anos a trabalhar no campo. «Não de sol a sol, mas de estrela a estrela», apressa-se a corrigir. O serviço militar foi cumprido em Vendas Novas. Os estudos ficam para trás sem grande êxito, apesar das otencialidades que todos lhes reconhecem. Concluiu o 2º ano do liceu apenas com a instrução primária cumprida. Entretanto, aceita o desafio de dois colegas e concorre à polícia.

Entusiasmou-se, e mais tarde retomou os estudos. A experiência obtida numa farmácia da terra fá-lo ganhar o gosto por estas matérias. Demanda a «cidade dos estudantes», onde tira o bacharelato em Farmácia, para espanto de muitos que indagavam o que fazia um polícia na universidade. Só posteriormente, com 35 anos e uma distinta média de 15 valores, logra a licenciatura na Universidade do Porto. Inicia o périplo por algumas farmácias do País, primeiramente no Padrão, no centro da cidade do Porto.

Mas o apelo das províncias ultramarinas revelar-se-ia mais forte. Em 1948 instala-se em Moçambique, na cidade de Lourenço Marques, na Farmácia Augusto Nazaré, onde era sócio a título simbólico, porque «a lei assim o obrigava». O despedimento leva-o até ao estabelecimento de João Ferreira dos Santos, na ilha de Moçambique, descoberta por Vasco da Gama em 1498 e onde os portugueses se instalaram em 1506. Reconhece que em três anos de permanência em África arrecadou mais do que nos restantes anos em Portugal. «Só para dar uma idéia, passei de dois para seis contos por mês, o que na altura era significativo.»

Em 1956 atinge a emancipação, quando passa a gerir a única farmácia de Porto Amélia. O facto de ter prescindido de ajudante obrigou-o a uma entrega total ao negócio, trabalhando «24 sobre 24 horas». -Ganhei a independência e deixei-me ficar para ver se ganhava mais algum. Só num mês acumulou 50 contos.

O esboroar do sonho africano - Os dias de tempestade levam-no à cadeia, apesar de ser o primeiro a reconhecer que o «preto moçambicano gostava de ser português». Detido, conviveu com nove pessoas como sardinha em lata, sujeitos a torturas e interrogatórios numa cela à temperatura de 40 graus. As acusações de traidor eram as mais frequentes no tempo de cativeiro, período em que perdeu dez quilos. -Só havia pão e água, e o peixe que serviam era podre e nem os cães o queriam comer, relembra.

Entretanto, dá-se a transferência da prisão provisória de Porto Amélia para o estabelecimento prisional de Machava, em Lourenço Marques. «Não me mataram porque não quiseram», relata, e conta as suas experiências nesta prisão política.

Aos 65 anos regressa a Lisboa, com "alguma roupa e um transístor". Dinheiro nem vê-lo. Antes de ser detido depositou cinco mil contos no consulado português em Moçambique, quantia que nunca mais reaveu. Fala com especial ternura do "canudo da formatura, escrito em latim", que o precipitar dos acontecimentos fizeram com que ficasse esquecido nas quentes terras de África.

Já em Lisboa seria acolhido pela Santa Casa da Misericórdia, onde, ironicamente, declara «não ter visto mostras de muita santidade».

À reforma social, no valor de cinco mil escudos, juntava-se o mesmo montante para a reforma da polícia, na sequência de um decreto-lei da responsabilidade de Mota Pinto, que privilegiaria quem tivesse sido funcionário do Estado. Um dia, na Segurança Social, um zeloso funcionário informou-o de que «não podia ter direito a duas reformas». Resultado: ficou reduzido a uma reforma, do tempo em que foi agente da autoridade. Do período em que foi farmacêutico, só perduram as memórias, porque da compensação social, nem tusto.

Por estes dias dorme num leito tosco e pobre sob quatro paredes sem condições, que, gracejando, denomina como «o palácio do doutor». Confessa que sofre muito com os rigores do Inverno, e o que lhe vale é o ar puro proveniente da imensa mancha de pinhal que o circunda - se calhar o segredo da sua longevidade.

Mais um, dos muitos casos, que continuam a escapar à sensibilidade dos políticos da nossa praça.
Nota da redação do "O Diabo": Indaguei, por várias vias, se o Dr. José Alves ainda seria vivo e soube que ele teria morrido em finais de 2001.

AQUELAS FIGURAS DE PEMBA QUANDO ERA PORTO AMÉLIA... ou saudades daquela "má-lingua" - amigável e no bom sentido - que nos fazia sorrir...! - (Trechos extraídos do Bar da Tininha-Yahoo!"):
Sobre o Dr. José Alves - De: Fernando Gil - Data: Dom Mai 11, 2003 10:55 am - E o WalksWagen a apodrecer em frente à porta da farmácia? Lembram-se? Mas não sei se vocês sabem um pouco da história da vida deste Homem. Ele era polícia em Portugal e, ficando sem pais, ajudou um irmão mais novo a formar-se. Como tantas vezes e infelizmente acontece, quando o irmão se apanhou com "canudo" não mais o quiz ver e contactar. Ele, que só tinha a 4ª classe, encheu-se de brio e em 3 anos, a trabalhar, fez o liceu e entrou na Universidade para Farmácia. Foi assim que, quando acabou o curso, foi ter com o irmão com a passagem para Moçambique e o "canudo de farmacêutico" e tanto se quis isolar que escolheu o lugar mais remoto em Moçambique: Porto Amélia, na altura. Era um bom homem que ajudava muita gente cedendo medicamentos de borla a muitos africanos. Um abraço.
- Fernando Gil.

De: Jorge Alberto Eusébio Carneiro, Data: Dom Mai 11, 2003 12:00 pm - Lembro-me sim que era o José Carrilho, magro de estatura média/alta. Dos frequentadores do Bar para além de todos os nomeados muitos outros como o Cristina (Mário?) (Sagal e algodão-compras??), o Nuro Gani muito amigo da minha familia e de nós em especial e de muitos dos condutores de camião ao serviço da Sagal. Pesquei também nas noites na ponte/cais com o dr. Alves e isto numa altura em que em 57/58 o Governo deu a possibilidade de férias pagas a quem cá estivesse na Universidade e tivesse os Pais em Àfrica; as alternativas então eram ir para o cais no fim da tarde/noite, ir para o Desportivo ou para o Pemba jogar ping-pong. Foi por esses anos que a praia do Wimbe começou a ser mais frequentada; até então era a praia em frente à Sagal e de vez em quando a chamada praia do Palmar que julgo eu era nas cercanias do Wimbe. Bom domingo a todos.
- Jorge Carneiro.

Sobre o Carling do Miéze - De: Antonio Fernandes Coelho - Data: Seg Mai 12, 2003 5:34 am - Assunto: Alemão solitário - De seu nome Carling (é assim que se escreve?) era o maior fornecedor dos saborosos carangueijos nados e criados nos matopes e mangais do Mièze...
Por falar em figuras "típicas" daqueles tempos; quem se lembra daquele que, na loja do Ávila ao lado do Marítimo, recusou comprar umas quantas chávenas porque, segundo ele, tinham a asa do lado esquerdo e lá em casa ninguem era canhoto?
Se não é verdade, pelo menos a história corria... e umas tantas outras do género, atribuidas ao mesmo personagem?
Fica o desafio à vossa memória.
E quem se lembra do pequeno-grande homem, alfaiate, de nome Piera?
Vamos lá a puchar pelos neurónios... e a tirar do baú as recordações que pertencem à infância de todos.
RECORDAR É VIVER!
- António Fernandes Coelho.

Sobre o Dr. José Alves - De: João Manuel C Araujo - Data: Seg Mai 12, 2003 5:52 am - Do Dr. Alves lembro-me de 2 curiosidades:
  1. Uma vez tive uma virose, supostamente depois de ter sido objecto de rigorosas manifestações de irritação por parte de uma cria de Leoa capturada pelo Sr Nunes Vicente (lembram-se dele?). O Dr. Alves, que além de bom coração era conhecido pela sua frontalidade teve o seguinte comentário dirigido à minha Mãe: "Ó minha senhora, isso não é nenhuma virose. É daquelas doenças que periodicamente matam uma data de crianças por aí!". Mas sou mesmo eu que vos estou a escrever...
  2. Conta-se (será talvez lenda) que periódicamente ia ao Banco com um tambor de lata de óleo cheio de notas para fazer depósitos (a curiosidade é o tambor).

Já agora, e prometo continuar brevemente, lembro:

  • A madame Dallman(?) que foi a primeira senhora que vi a conduzir camião e a fumar cachimbo. Se bem me lembro vivia ao lado dos Andrade Pais.
  • Um capataz alemão da plantação do sr. Moreira Longo, de nome Siegert, que tendo adormecido em cima de uma árvore enquanto esperava por um leopardo caiu da árvore quando o leopardo lhe "atirou" com um rugido.
Abraços,
- João Manuel Araújo.

Sobre o Dr. José Alves - De: Antonio Fernandes Coelho - Data: Seg Mai 12, 2003 7:20 am - Falando do Dr. Alves, contava-se ainda a história de uma conhecida e querida figura da "nossa Praça" que um dia lhe foi pedir um creme para as rugas.
O nosso amigo, com ar pensativo, pôs-se a olhar as prateleiras dos medicamentos enquanto cantarolava baixinho:

- "Oh tempo, volta p'ra trás"...

Estava aviada a receita...
- António Fernandes Coelho

De: Jaime Luis Gabão - Data: Seg Mai 12, 2003 10:48 am - Assunto: Re: Alemão solitário - O tal das chávenas... Parece que lembrei... Não seria o famoso Pinto da Cunha ?...
- Jaime Luis Gabão

De: Inez Andrade Paes - Data: Seg Mai 12, 2003 11:53 am - Jaime, era sogra do Sr.Frank também consul da Alemanha que trabalhava na Pillipy. Era a Frau Dalman que nós por sermos amigos dos netos dela a tratávamos por Oma (Avó). Eles viviam mesmo ao nosso lado.
Muitos se devem recordar daquela pequena ponte que ficava no meio da grande avenida que ía ter aos fusileiros e que chamavam de Gravata.
Foi essa Senhora que numa das suas idas para "Pequena Macarara" (a machamba mais pequena ali perto da cidade)e já com um "grão" valente na asa, deitou uma das guardas da ponte abaixo, pois além de fumar muito gostava dos seus Whiskies...
Foi a melhor maneira de fazer ali uma avenida decente.
Mais um abraço,
- Inez Andrade Paes.

De: Antonio Fernandes Coelho - Data: Seg Mai 12, 2003 12:27 pm - Assunto: Recordações - Sim, Jaime, a pessoa em questão na história das chávenas é mesmo essa.
Falava-se ainda de uma sua ida à Capitania do Porto para obtenção de licença para ter o Petromax aceso na varanda. É que, no gozo, o "velho" Patacua, ex-faroleiro, o convencera de que a luz podia induzir os navios em erro... (da casa dele nem o mar se via, embora fosse perto).
Havia histórias fabulosas naquela terra! Basta começar a recordar e é como as cerejas; vêm umas atrás das outras.
Lembram-se de alguém que, à noitinha, junto ao Estádio e escondido no banco trazeiro de um carro, levou com uma chapa de matrícula na tola?
NB: Desculpem mas aqui não há nomes.
- António Fernandes Coelho.

De: Zé Norberto - Data: Seg Mai 12, 2003 1:46 pm - Assunto: Re: Recordações - Eu era muito miúdo, mas falavam tanto das originalidades dele que virou "herói" da minha infância. Devia ter tido qualquer coisa a ver com o carvão. Não foi por isso que vocês, os da geração do Tó Coelho e do Jaime, terão dado carinhosamente a alcunha de Charbonnier ao filho, irmão da Adélia, ou já estarei confuso?
Um dia foi à Niassa Comercial devolver uma máquina de escrever novinha que havia comprado só porque alguém lhe disse que ela dava erros ortográficos!
Um abraço.
- Zé Norberto

De: João Manuel C Araujo - Data: Seg Mai 12, 2003 3:03 pm - Assunto: [Bar da Tininha] Re: Pois... - E doeu que se fartou. Ainda tenho cicatrizes visíveis. Mas o pior estava para vir: quem me tratou foi o inesquecível Dr. Carmo, que não se calou nem 1 segundo enquanto me limpava os cortes.
- João.

De: Antonio Fernandes Coelho - Data: Seg Mai 12, 2003 5:07 pm - Assunto: Recordações - Oh Zé Norberto,
Com pena minha mas estas (maldita falta de acento aqui no teclado de casa) enganado.
O Charbonier era o saudoso Luis Faria (o pai negociava carvão e a malta, pimba: Sai alcunha. Sabes como é...).
Essa da maquina de escrever estava engatilhada mas disparaste tu, tudo bem. Vale na mesma.
Rodam-me na mente mais algumas historietas que irão saindo com o tempo. Saborear devagar sabe melhor.
Quanto a nomes, tem paciência Jaime mas tem que ser com muitos "pesinhos de lã" pois casos ha que são um tanto sensiveis.
Vamos com calma. Voltaremos à chapa na tola. Prometo.
- António Fernandes Coelho.

De: Zé Norberto - Data: Ter Mai 13, 2003 6:13 pm - Assunto: Re: Recordações - Obrigado, Tó Coelho. Bem me parecia que eu estava equivocado sobre qual deles tinha tido o privilégio de ser rebaptizado Charbonier. Ainda bem que a tua memória é mais fiável do que a minha!
Um abraço.
- Zé Norberto.
(Transferência de arquivos do sitio "Pemba/Régua" que será desativado em breve)

De Porto Amélia a Pemba: Apontamentos de Histórias Perdidas...


Nos anos 60 esteve em Porto Amélia um médico de nome Camilo de Araújo Correia que, em 1991, publicou um livro denominado "Livro de Andanças". Desse livro extraímos:

APONTAMENTOS DE HISTÓRIAS PERDIDAS - Quando recordo o tempo de Porto Amélia, muitas vezes me salta na memória o meu amigo Armando Cepêda.

Era um homem largo, inteligente e bondoso. No carão de pugilista a linha dos olhos e a linha da boca traçavam, a miúdo, um sorriso paralelo a deixar transparecer uma acomodada filosofia de vida.

Era casado com D. Maria, senhora absoluta da Pensão Miramar. E digo senhora absoluta porque ali quem mandava era ela. Nem o marido nem os filhos davam a mínima ordem naquela nau de tripulação negra, capaz de todas as preguiças e descuidos. Com dois berros e dois cascudos aquela criadagem indolente andava numa roda viva. D. Maria era uma senhora robusta, de língua solta com sotaque do Porto.

Parecia um salpico, na costa de Moçambique, do pincel genial de Abel Salazar, em momento de inspiração tripeira. Armando Cepêda mandava na sua oficina de reparação de motores de que era especialista em Diesel. A oficina ficava na Rampa, aquela encosta medonha que nem a bordadura de acácias rubras conseguia suavizar. Medonha e obrigatória na ligação da parte alta com a parte baixa de Porto Amélia.

Passei muitas horas naquela oficina entre carcaças da mais diversa maquinaria avariada, à espera que Armando Cepêda lhe restituísse a serventia perdida. E dava gosto ver aqueles dinossauros sair de um sono pesado e regressar ruidosamente à floresta, com uma palmada na anca. Uma palmada que só o meu amigo Cepêda sabia dar.

Conseguíamos conversa entre roncos de motor e marteladas de todos os sons. E tudo servia para dois dedos de conversa, a fazer sede para dois goles de cerveja. Guardo ainda um cinzeiro de pé alto que Armando Cepêda me fez numa pausa do serviço. É a estilização de uma cobra erguida na ponta do rabo a equilibrar meio coco na fúria da cabeça.

Antes e depois de jantar, Armando Cepêda derramava o corpanzil naquelas cadeiras do jardinzinho da pensão à espera de todos os cansaços, de todos os tédios e nostalgias. Recordo ainda o perfume adocicado das magnólias que o calor da noite parecia libertar suavemente.

Os hóspedes vinham chegando, um a um, à roda das cadeiras e a eles se juntavam residentes de Porto Amélia para dois dedos de conversa. Pessoas vindas de toda a parte pelas mais variadas razões, algumas delas muito roladas pelas mais diversas geografias. Comerciantes, agricultores, médicos, funcionários públicos, engenheiros, militares, todos enleados naquele fio de nostalgia tropical que parece igualar todos os homens.

As palavras iam ficando mais espaçadas e moles com o andar daquelas noites suadas. Mas se a conversa caía sobre o mato, Armando Cepêda erguia-se um pouco da posição quase horizontal, para, pouco a pouco, dominar o assunto.

E todos nos erguíamos um pouco também para o ouvir contar histórias de camiões atolados no matope, dos perigos e dos encantos do mato. E de caça. Armando Cepêda não era, digamos, um caçador de safaris. Era caçador solitário, muitas vezes por exigência da esposa, quando a despensa fraquejava. Apertado por ela, Armando Cepêda ia ao mato abater um javali como quem vai ao fundo da capoeira buscar um frango.

Por duas vezes o acompanhei nesta caça de subsistência. A ele e ao Jacinto dos Caminhos de Ferro devo o conhecimento do mato. Sem eles a minha África teria sido pouco mais do que uma África de cidade. Jacinto era uma velha glória do Benfica. Ter sido guarda-redes das primeiras categorias era uma recordação que lhe fazia ainda rebrilhar os olhos. Jacinto era um caçador tão metódico como apaixonado. Dois pisteíros negros, o velho Land Rover, um bom farolim e a arma escolhida para o tipo de caça determinado. E eu, às vezes, graças a Deus! Sim, dou graças a Deus por ter vivido o emocionante espectáculo de andar a esmo pelo mato, com o jeep aos solavancos, farolim a esquadrinhar os espaços mais suspeitos e a surpreender os animais na intimidade da noite.

Inesquecíveis aquelas imbabalas saltitantes e graciosas como bailarinas a fugir ao palco de luz que lhes ofereciamos. E aquela sensação de liberdade plena que se experimenta, ao descansar nas quinandas, ouvindo o crepitar da fogueira e do falajar dos negros contra o silêncioprofundo do céu?Sempre me pareceu que Jacinto, mesmo a mexer na burocracia do seu emprego, tinha os olhos no mato. Tanto que, mal deixava a secretária, caía no quarto a pintar. A pintar o mato; sempre com animais em primeiro plano e, tão recortados, que pareciam postos ali depois do quadro pronto. Não era um bom pintor. As telas eram o seu mato teórico para onde gostava de ir, a qualquer hora. Uma vez, só porque me demorei um pouco mais a ver três gnus a pastar, ofereceu-me o quadro. Na bagunça do regresso, o quadro perdeu-se. E tenho pena. Estaria hoje numa das minhas paredes com as saudades da África a retocá-lo todos os dias.

De uma vez o Jacinto convidou também para a caça o Dr. Manuel Jóia, médico do «Bartolomeu Dias», ancorado na baía de Porto Amélia, em patrulha da costa de Moçambique. Foi o seu baptismo de mato. O grande entusiasmo com tudo o que ia acontecendo redobrou quando, ele próprio, abateu um javali. Entre as seis e as dez da manhã é fácil encontrá-los nas áreas da sua predilecção. Passam como carruagens de um comboio rápido. Jacinto aconselhou:

— Aponte a um dos primeiros... Pode ser que acerte num dos últimos...

E o Manuel Jóia acertou, julgando, a princípio, não ter acertado. O raio do bicho com um rombo na barriga ainda se fartou de correr como se nada fosse com ele! Depois lá caiu como se tivesse caído do comboio.

No «Bartolomeu Dias» os oficiais comeram javali até lhe chegarem com um dedo e festejaram o seu médico como um herói da selva.

Voltemos ao meu amigo Armando Cepêda. Ele era, como já lhes disse, um caçador solitário. Saía antes da madrugada e regressava antes do entardecer. Da segunda vez que fui com ele «à carne» aconteceu uma coisa que me apetece contar.

O sítio escolhido para o abate foi uma velha machamba de milho abandonada, entre Porto Amélia e Mecufi.

— Aqui é um sítio bom por causa dos restos do milho e não há macacos a denunciar a nossa presença com a gritaria — disse o Armando Cepêda, saindo da picada.

Não havia meia hora de sol, quando apareceu um javali do outro lado da pequena veiga que dominávamos completamente de onde nos haviamos instalado. Era um animal relativamente pequeno, a grunhir e a estraçalhar a um e outro lado do focinho temeroso.

Parecia nada recear e, no entanto, toda aquela energia de patas e focinho parava, de vez em quando, como se tivesse havido um curto-circuito. Depois de uns segundos de imobilização total, a fúria do javali restabelecia-se para, daí a pouco, sofrer nova pausa.

— O bicho está desconfiado... eles são muito desconfiados... — disse Armando Cepêda, à boca pequena, sem tirar os olhos do javali.

Como vinha na nossa direcção, a certa altura ficou a uma boa distância de tiro.

— Então?! — perguntei baixinho.
— Quanto mais perto o abatermos, menos custa a arrastar para o jeep...
— Pois é... —  disse, reconhecendo a minha inexperiência.

Armando Cepêda sorriu aquele sorriso de linhas paralelas.

Quando o javali ficou a uns trinta metros, perguntou-me se queria atirar.

— E se falho e não aparece mais nenhum? Não podemos aparecer à D. Maria de mãos a abanar!...
— Deus nos livre!... Ninguém a aturava!...

Soaram dois tiros com intervalo de um segundo. O javali caiu no meio da erva como um saco de batatas.

Com um arame atado às patas de trás e um pau atravessado na outra ponta foi fácil arrastá-lo até ao jeep.

O «mata-bicho» à sombra daquela mangueira isolada no mato rasteiro, ainda hoje me sabe. D. Maria era uma senhora farta. Arranjou-nos um farnel que dava para atravessarmos a África. Fígado de cebolada, meio metro de omelete, carne assada, queijo, muito pão, cerveja e água mineral. Do começar ao palitar, foi uma larga hora a comer. A comer e a contar coisas.

No fim de arrumar a tralha, com o método e a lentidão que o caracterizavam, disse o Armando Cepêda, já todo contente com a ideia:

— Vamos cumprimentar o meu amigo Rosas! É chefe de posto aqui perto. Vai ficar todo contente!

Era realmente ali perto e o senhor Rosas ficou todo contente. Quis logo que nos sentássemos na varanda e foi dizendo:

— Vindes em boa altura! Tenho uma esplêndida carne de búfalo novo; vou já arranjar uns bifes e umas costeletas...
— Para mim, não! — cortei, aflito.
— Ora essa!... Por quê?! — admirou-se o senhor Rosas.
— Desculpe... é que acabámos agora mesmo de comer este mundo e o outro...
— Bem... Bem! — respondeu desalentado, mas logo a berrar lá para dentro:
— Hassan!

Apareceu um negro, a limpar as mãos, a fazer vénias e a sorrir de orelha a orelha.

— Prepara uns bifinhos e umas costeletas daquela carne... com aquele molho... Tu sabes como é!

Hassan sabia como era. Meia hora depois, apareceu na varanda com uma travessa enorme no meio de uma pequena mesa portátil, já posta para três pessoas. O cheiro da carne apanhou-me de surpresa. Era de tal maneiras agradável e penetrante que até as glândulas salivares me doeram!

— Vai uma pontinha, doutor, só para provar? — perguntou-me o senhor Rosas de olhinho irónico.
— Isso cheira pela vida... — consegui dizer em plena vertigem.

A pontinha de carne que o senhor Rosas me pôs no prato «só para provar» foi uma costeleta do tamanho de uma raquete de ping-pong espessa, suculenta e aromática...

A princípio com uma certa cerimónia e depois com uma certa gula lá fui andando pela costeleta fora. Acabei a «raquete» como mandam as regras: pegando-lhe pelo cabo... Quando pousei o osso rapado, diz-me o senhor Rosas com sorriso de vitória:

— Então, doutor, estava boa?

A vitória não foi do senhor Rosas. Foi da África. Daquele sentir tudo de novo, como uma estreia dos sentidos, em cada momento que passava.

Conheci Megama Abdul Kamal muito antes de o vir a encontrar, frequentemente, na Pensão Miramar.

Megama era régulo do Chiure, com influência religiosa numa larga faixa de terreno entre o Rovuma e o Lúrio. Homem abastado, senhor de terras e camiões, era também transportador habitual da grande companhia algodoeira Sagal.

Fui a sua casa a convite do Armando Cepêda, chamado a consertar o motor de um poço. Nas apresentações vi que eram grandes amigos. Julgo que, por isso, Megama me olhou logo com respeito e franqueza, sem duvidosa humildade dos negros daquele tempo.

O motor ficou composto num instante. Nós levámos mais tempo... Megama quis que provássemos de todos os seus petiscos. Seu era também o café, da planta à chávena. A mâozada firme e confiante com que nos despedimos havia de repetir-se, vezes sem conta, por todo o meu tempo de Porto Amélia.

No regresso ao jeep, ouvi falas e risinhos por detrás de uma paliçada. Notando a minha estranheza, Armando Cepêda logo me esclareceu:

— São as mulheres de Megama...

Na cidade, vim a saber pelo Jaime Ferraz que deveriam ser umas sete... Em Porto Amélia o Jaime sabia um pouco de tudo!

Um dia, Megama apareceu no Hospital Militar todo dobrado e cheio de dores. Era uma hérnia estrangulada, há três dias... Os cirurgiões costumam «berrar» com os doentes por virem tão tarde, em evidentes situações de solução cirúrgica. Mas o Dr. Manuel Simões Coelho não berrou. Tratava-se de Megama Abdul Kamal! E por se tratar de tão importante personagem o post-operatório teve aspectos de peregrinação.

Vinham negros de toda a parte, trazidos por aquele fio invisível que é o sentimento religioso, temperado na fé e na obediência.

Com o vai e vem da gentiaga, a vida do hospital acabou por se perturbar. Ao ponto de, pelo terceiro dia, o Simões Coelho me pedir:

— Tu, que és todo amigo do Megama, podes garantir-lhe que está livre de perigo, que tudo vai correr bem... e pedir-lhe que faça constar as suas melhoras, a ver se acaba esse corrilório!...

Assim fiz. Megama compreendeu e actuou muito bem. As visitas acabaram de um dia para o outro. Nem umas só voltou a aparecer! Ainda hoje me espanta o extraordinário poder de comunicação dos negros naquelas lonjuras primitivas, sem rádio, sem telefone e sem correio.

Armando Cepêda era um caso curioso de fotógrafo. Nem amador, nem profissional. Era fotógrafo de ocasião, para ganhar uns cobres suplementares. Essa ocasião surgia quando os indígenas precisavam de retrato para a caderneta. Dava-lhe jeito aproveitar os domingos, que no mato não têm qualquer significado. Era sempre recebido nas aldeias com grandes manifestações de contentamento. Nas pausas da algazarra, fotografava quatro negros de cada vez, sentados numa tábua. Depois, no «estúdio», a tesoura lá os separava. No domingo seguinte, a caminho de outra, passava pela aldeia fotografada e distribuía os retratos. Havia corridinhas e gritos de alegria, com todos a querer ver a cara de cada um no retalhinho de papel.

Um dia houve um pequeno acidente... Toda a gente parecia satisfeita, quando apareceu uma reclamação, já com o jeep a ronronar a partida.

— Patrão!... Patrão!... esta não é do nosso!
— Não é tua?! É tua, sim senhor!! — garantiu Armando Cepêda olhando para o negro e para o retrato.
— Não é!... Não é!... Nosso não tem chapéu!

Armando Cepêda sabia lidar com os negros. O grande respeito e admiração que lhes infundia emanava do seu grande espírito de justiça e bondade. Além disso, era um branco forte, compunha máquinas e matava leões.
:: O saudoso Armando Cepêda (Pai) ::

Não teve a mínima dificuldade em desfazer o equívico. Pôs a mão no ombro do negro e sossegou-o, assim:

— Ah!... o chapéu?... Fui eu que pus. É saguate! (brinde, oferta).

Os olhos do negro rebrilharam com aquela gorjeta inesperada. Depois vieram as palavras de gratidão de uma boca babada de riso:

— Brigado, patrão!... Brigado, patrão!...

E partiu, a misturar-se com os outros. Talvez a fazer-lhes inveja.
- Por Camilo de Araújo Correia, Livro de Andanças.

(Transferência de arquivos do sitio "Pemba/Régua" que será desativado em breve)

10/30/07

CAMILO DE ARAÚJO CORREIA - O escritor e médico do Douro que viveu também Pemba, partiu hoje !

A vida acontece entremeada de alegrias, surpresas de todo o teor e desgostos a que costumo chamar de "pontapés"... Hoje recebi mais um, bem forte, doloroso porque "partiu" um AMIGO... AMIGO que, pela distância física, nem permitiu a permuta de um último abraço de despedida !
.
A notícia chegou assim, bem simples:
""Lamento trasmitir esta infeliz noticia.
Faleceu o nosso grande Amigo Dr. Camilo.
Já transmiti à Fillha os sentimentos em nome da nossa Família...
Faleceu no Porto, e está a caminho da casa mortuária do Peso da Régua.
Será sepultado amanhã em Canelas.
Logo à noite vamos ao seu velório.""
.
Para os leitores do blogue e Amigos que o recordam do tempo de Porto Amélia, onde foi diretor do Hospital Militar nos anos 60, aqui deixo link's que permitem a leitura de alguns de seus textos. Transcrevo assim um de seus "Apontamentos de Histórias Perdidas".
Descansa em paz Dr. Camilo de Araújo Correa (nasceu em 1925 na cidade do Porto mas viveu na Régua desde os três anos de idade) .
.
Quando recordo o tempo de Porto Amélia, muitas vezes me salta na memória o meu amigo Armando Cepêda.
Era um homem largo, inteligente e bondoso. No carão de pugilista a linha dos olhos e a linha da boca traçavam, a miúdo, um sorriso paralelo a deixar transparecer uma acomodada filosofia de vida.
Era casado com D. Maria, senhora absoluta da Pensão Miramar. E digo senhora absoluta porque ali quem mandava era ela. Nem o marido nem os filhos davam a mínima ordem naquela nau de tripulação negra, capaz de todas as preguiças e descuidos. Com dois berros e dois cascudos aquela criadagem indolente andava numa roda viva. D. Maria era uma senhora robusta, de língua solta com sotaque do Porto.
Parecia um salpico, na costa de Moçambique, do pincel genial de Abel Salazar, em momento de inspiração tripeira. Armando Cepêda mandava na sua oficina de reparação de motores de que era especialista em Diesel. A oficina ficava na Rampa, aquela encosta medonha que nem a bordadura de acácias rubras conseguia suavizar. Medonha e obrigatória na ligação da parte alta com a parte baixa de Porto Amélia.
Passei muitas horas naquela oficina entre carcaças da mais diversa maquinaria avariada, à espera que Armando Cepêda lhe restituísse a serventia perdida. E dava gosto ver aqueles dinossauros sair de um sono pesado e regressar ruidosamente à floresta, com uma palmada na anca. Uma palmada que só o meu amigo Cepêda sabia dar.
Conseguíamos conversa entre roncos de motor e marteladas de todos os sons. E tudo servia para dois dedos de conversa, a fazer sede para dois goles de cerveja. Guardo ainda um cinzeiro de pé alto que Armando Cepêda me fez numa pausa do serviço. É a estilização de uma cobra erguida na ponta do rabo a equilibrar meio coco na fúria da cabeça.
Antes e depois de jantar, Armando Cepêda derramava o corpanzil naquelas cadeiras do jardinzinho da pensão à espera de todos os cansaços, de todos os tédios e nostalgias. Recordo ainda o perfume adocicado das magnólias que o calor da noite parecia libertar suavemente.
Os hóspedes vinham chegando, um a um, à roda das cadeiras e a eles se juntavam residentes de Porto Amélia para dois dedos de conversa. Pessoas vindas de toda a parte pelas mais variadas razões, algumas delas muito roladas pelas mais diversas geografias. Comerciantes, agricultores, médicos, funcionários públicos, engenheiros, militares, todos enleados naquele fio de nostalgia tropical que parece igualar todos os homens.
As palavras iam ficando mais espaçadas e moles com o andar daquelas noites suadas. Mas se a conversa caía sobre o mato, Armando Cepêda erguia-se um pouco da posição quase horizontal, para, pouco a pouco, dominar o assunto.
E todos nos erguíamos um pouco também para o ouvir contar histórias de camiões atolados no matope, dos perigos e dos encantos do mato. E de caça. Armando Cepêda não era, digamos, um caçador de safaris. Era caçador solitário, muitas vezes por exigência da esposa, quando a despensa fraquejava. Apertado por ela, Armando Cepêda ia ao mato abater um javali como quem vai ao fundo da capoeira buscar um frango.
Por duas vezes o acompanhei nesta caça de subsistência. A ele e ao Jacinto dos Caminhos de Ferro devo o conhecimento do mato. Sem eles a minha África teria sido pouco mais do que uma África de cidade. Jacinto era uma velha glória do Benfica. Ter sido guarda-redes das primeiras categorias era uma recordação que lhe fazia ainda rebrilhar os olhos. Jacinto era um caçador tão metódico como apaixonado. Dois pisteíros negros, o velho Land Rover, um bom farolim e a arma escolhida para o tipo de caça determinado. E eu, às vezes, graças a Deus! Sim, dou graças a Deus por ter vivido o emocionante espectáculo de andar a esmo pelo mato, com o jeep aos solavancos, farolim a esquadrinhar os espaços mais suspeitos e a surpreender os animais na intimidade da noite.
Inesquecíveis aquelas imbabalas saltitantes e graciosas como bailarinas a fugir ao palco de luz que lhes ofereciamos. E aquela sensação de liberdade plena que se experimenta, ao descansar nas quinandas, ouvindo o crepitar da fogueira e do falajar dos negros contra o silêncioprofundo do céu?Sempre me pareceu que Jacinto, mesmo a mexer na burocracia do seu emprego, tinha os olhos no mato. Tanto que, mal deixava a secretária, caía no quarto a pintar. A pintar o mato; sempre com animais em primeiro plano e, tão recortados, que pareciam postos ali depois do quadro pronto. Não era um bom pintor. As telas eram o seu mato teórico para onde gostava de ir, a qualquer hora. Uma vez, só porque me demorei um pouco mais a ver três gnus a pastar, ofereceu-me o quadro. Na bagunça do regresso, o quadro perdeu-se. E tenho pena. Estaria hoje numa das minhas paredes com as saudades da África a retocá-lo todos os dias.
De uma vez o Jacinto convidou também para a caça o Dr. Manuel Jóia, médico do «Bartolomeu Dias», ancorado na baía de Porto Amélia, em patrulha da costa de Moçambique. Foi o seu baptismo de mato. O grande entusiasmo com tudo o que ia acontecendo redobrou quando, ele próprio, abateu um javali. Entre as seis e as dez da manhã é fácil encontrá-los nas áreas da sua predilecção. Passam como carruagens de um comboio rápido. Jacinto aconselhou:
— Aponte a um dos primeiros... Pode ser que acerte num dos últimos...
E o Manuel Jóia acertou, julgando, a princípio, não ter acertado. O raio do bicho com um rombo na barriga ainda se fartou de correr como se nada fosse com ele! Depois lá caiu como se tivesse caído do comboio.
No «Bartolomeu Dias» os oficiais comeram javali até lhe chegarem com um dedo e festejaram o seu médico como um herói da selva.
Voltemos ao meu amigo Armando Cepêda. Ele era, como já lhes disse, um caçador solitário. Saía antes da madrugada e regressava antes do entardecer. Da segunda vez que fui com ele «à carne» aconteceu uma coisa que me apetece contar.
O sítio escolhido para o abate foi uma velha machamba de milho abandonada, entre Porto Amélia e Mecufi.
— Aqui é um sítio bom por causa dos restos do milho e não há macacos a denunciar a nossa presença com a gritaria — disse o Armando Cepêda, saindo da picada.
Não havia meia hora de sol, quando apareceu um javali do outro lado da pequena veiga que dominávamos completamente de onde nos haviamos instalado. Era um animal relativamente pequeno, a grunhir e a estraçalhar a um e outro lado do focinho temeroso.
Parecia nada recear e, no entanto, toda aquela energia de patas e focinho parava, de vez em quando, como se tivesse havido um curto-circuito. Depois de uns segundos de imobilização total, a fúria do javali restabelecia-se para, daí a pouco, sofrer nova pausa.
— O bicho está desconfiado... eles são muito desconfiados... — disse Armando Cepêda, à boca pequena, sem tirar os olhos do javali.
Como vinha na nossa direcção, a certa altura ficou a uma boa distância de tiro.
—Então?!—perguntei baixinho.
— Quanto mais perto o abatermos, menos custa a arrastar para o jeep...
— Pois é... — disse, reconhecendo a minha inexperiência.
Armando Cepêda sorriu aquele sorriso de linhas paralelas.
Quando o javali ficou a uns trinta metros, perguntou-me se queria atirar.
— E se falho e não aparece mais nenhum? Não podemos aparecer à D. Maria de mãos a abanar!...
— Deus nos livre!... Ninguém a aturava!...
Soaram dois tiros com intervalo de um segundo. O javali caiu no meio da erva como um saco de batatas.
Com um arame atado às patas de trás e um pau atravessado na outra ponta foi fácil arrastá-lo até ao jeep.
O «mata-bicho» à sombra daquela mangueira isolada no mato rasteiro, ainda hoje me sabe. D. Maria era uma senhora farta. Arranjou-nos um farnel que dava para atravessarmos a África. Fígado de cebolada, meio metro de omelete, carne assada, queijo, muito pão, cerveja e água mineral. Do começar ao palitar, foi uma larga hora a comer. A comer e a contar coisas.
No fim de arrumar a tralha, com o método e a lentidão que o caracterizavam, disse o Armando Cepêda, já todo contente com a ideia:
— Vamos cumprimentar o meu amigo Rosas! É chefe de posto aqui perto. Vai ficar todo contente!
Era realmente ali perto e o senhor Rosas ficou todo contente. Quis logo que nos sentássemos na varanda e foi dizendo:
— Vindes em boa altura! Tenho uma esplêndida carne de búfalo novo; vou já arranjar uns bifes e umas costeletas...
— Para mim, não! — cortei, aflito.
— Ora essa!... Por quê?! — admirou-se o senhor Rosas.
— Desculpe... é que acabámos agora mesmo de comer este mundo e o outro...
—Bem... Bem!—respondeu desalentado, mas logo a berrar lá para dentro:
— Hassan!
Apareceu um negro, a limpar as mãos, a fazer vénias e a sorrir de orelha a orelha.
— Prepara uns bifinhos e umas costeletas daquela carne... com aquele molho... Tu sabes como é!
Hassan sabia como era. Meia hora depois, apareceu na varanda com uma travessa enorme no meio de uma pequena mesa portátil, já posta para três pessoas. O cheiro da carne apanhou-me de surpresa. Era de tal maneiras agradável e penetrante que até as glândulas salivares me doeram!
— Vai uma pontinha, doutor, só para provar? — perguntou-me o senhor Rosas de olhinho irónico.
— Isso cheira pela vida... — consegui dizer em plena vertigem.
A pontinha de carne que o senhor Rosas me pôs no prato «só para provar» foi uma costeleta do tamanho de uma raquete de ping-pong espessa, suculenta e aromática...
A princípio com uma certa cerimónia e depois com uma certa gula lá fui andando pela costeleta fora. Acabei a «raquete» como mandam as regras: pegando-lhe pelo cabo... Quando pousei o osso rapado, diz-me o senhor Rosas com sorriso de vitória:
— Então, doutor, estava boa?
A vitória não foi do senhor Rosas. Foi da África. Daquele sentir tudo de novo, como uma estreia dos sentidos, em cada momento que passava.
Conheci Megama Abdul Kamal muito antes de o vir a encontrar, frequentemente, na Pensão Miramar. Megama era régulo do Chiure, com influência religiosa numa larga faixa de terreno entre o Rovuma e o Lúrio. Homem abastado, senhor de terras e camiões, era também transportador habitual da grande companhia algodoeira Sagal.
Fui a sua casa a convite do Armando Cepêda, chamado a consertar o motor de um poço. Nas apresentações vi que eram grandes amigos. Julgo que, por isso, Megama me olhou logo com respeito e franqueza, sem duvidosa humildade dos negros daquele tempo.
O motor ficou composto num instante. Nós levámos mais tempo... Megama quis que provássemos de todos os seus petiscos. Seu era também o café, da planta à chávena. A mâozada firme e confiante com que nos despedimos havia de repetir-se, vezes sem conta, por todo o meu tempo de Porto Amélia.
No regresso ao jeep, ouvi falas e risinhos por detrás de uma paliçada.Notando a minha estranheza, Armando Cepêda logo me esclareceu:
— São as mulheres de Megama...
Na cidade, vim a saber pelo Jaime Ferraz que deveriam ser umas sete... Em Porto Amélia o Jaime sabia um pouco de tudo!
Um dia, Megama apareceu no Hospital Militar todo dobrado e cheio de dores. Era uma hérnia estrangulada, há três dias... Os cirurgiões costumam «berrar» com os doentes por virem tão tarde, em evidentes situações de solução cirúrgica. Mas o Dr. Manuel Simões Coelho não berrou. Tratava-se de Megama Abdul Kamal! E por se tratar de tão importante personagem o post-operatório teve aspectos de pereqrinação.
Vinham negros de toda a parte, trazidos por aquele fio invisível que é o sentimento religioso, temperado na fé e na obediência.
Com o vai e vem da gentiaga, a vida do hospital acabou por se perturbar. Ao ponto de, pelo terceiro dia, o Simões Coelho me pedir:
— Tu, que és todo amigo do Megama, podes garantir-lhe que está livre de perigo, que tudo vai correr bem...e pedir-lhe que faça constar as suas melhoras, a ver se acaba esse corrilório!...
Assim fiz. Megama compreendeu e actuou muito bem. As visitas acabaram de um dia para o outro. Nem umas só voltou a aparecer! Ainda hoje me espanta o extraordinário poder de comunicação dos negros naquelas lonjuras primitivas, sem rádio, sem telefone e sem correio.
Armando Cepêda era um caso curioso de fotógrafo. Nem amador, nem profissional. Era fotógrafo de ocasião, para ganhar uns cobres suplementares. Essa ocasião surgia quando os indígenas precisavam de retrato para a caderneta. Dava-lhe jeito aproveitar os domingos, que no mato não têm qualquer significado. Era sempre recebido nas aldeias com grandes manifestações de contentamento. Nas pausas da algazarra, fotografava quatro negros de cada vez, sentados numa tábua. Depois, no «estúdio», a tesoura lá os separava. No domingo seguinte, a caminho de outra, passava pela aldeia fotografada e distribuía os retratos. Havia corridinhas e gritos de alegria, com todos a querer ver a cara de cada um no retalhinho de papel.
Um dia houve um pequeno acidente... Toda a gente parecia satisfeita, quando apareceu uma reclamação, já com o jeep a ronronar a partida.
— Patrão!... Patrão!... esta não é do nosso!
— Não é tua?! É tua, sim senhor!! — garantiu Armando Cepêda olhando para o negro e para o retrato.
—Não é!... Não é!... Nosso não tem chapéu!
Armando Cepêda sabia lidar com os negros. O grande respeito e admiração que lhes infundia emanava do seu grande espírito de justiça e bondade. Além disso, era um branco forte, compunha máquinas e matava leões.
Não teve a mínima dificuldade em desfazer o equívico. Pôs a mão no ombro do negro e sossegou-o, assim:
— Ah!... o chapéu?... Fui eu que pus. É saguate! (brinde, oferta)
Os olhos do negro rebrilharam com aquela gorjeta inesperada. Depois vieram as palavras de gratidão de uma boca babada de riso:
— Brigado, patrão!... Brigado, patrão!...
E partiu, a misturar-se com os outros. Talvez a fazer-lhes inveja.
Camilo de Araújo Correia - Livro de Andanças.
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O calor está chegando aos trópicos...
Com ele vem o canto das cigarras.
Mas hoje, seu som parece-me mais triste !
Jaime Luis Gabão