12/06/09

Contos E Poesias do Índico - HUVILO



(Clique na imagem para ampliar. Gravura fictícia formada por imagens livres recolhidas na net)

Corria o ano de 1840. Nas terras do velho Mbavala, o rei makonde, o sol caia vermelho colorindo o manto verde da floresta. Um grande grupo de guerreiros makondes de troncos nus e com as partes intimas cobertas de pedaços de pano encardido, adquirido nos comerciantes árabes e aventureiros swahil, acompanhavam atentamente, no terreiro da povoação, o discurso contagiante do rei Mbavala. Enquanto discursava, corria nas suas terras, de boca em boca, a surpreendente notícia de aproximação de um grupo Nguni que raptava homens e mulheres e cobrava coersivamente tributos às populações das povoações que ia atacando enquanto avançava em direcção ao extremo norte do actual território de Moçambique. O grupo pertencia a um outro grande grupo de guerreiros Nguni proveniente de Zwangendaba que, por volta de 1837, estivera no vale do Zambeze e em zonas limítrofes semeando terrores entre populações endefesas e mais tarde atravessou o Zambeze, perto de Cachomba, tendo uma boa parte se dirigido para Tambara e outra para o norte atraído pelas notícias de existência de um rendoso negócio de ouro, marfim e escravos.

- Meu povo! – Disse o ancião com uma voz trémula. – Tenham coragem para enfrentar o inimigo que vem. Ele vem de longe e carrega o ódio nos olhos, por isso, vai destruindo tudo que lhe aparece na sua frente. Os nossos mensageiros trauxeram notícias frescas dando conta da aproximação do inimigo. Os nossos irmãos que vivem nas imediações da nossa povoação começaram a chegar aterrorizados pelas notícias da chassina que inimigo vai cometendo enquanto caminha ao encontro das nossas terras...

Enquanto o velho falava para a multidão de guerreiros, pequenos grupos de velhos, mulheres e crianças aproximavam-se sorateiramente às varandas das cabanas que se achavam no limiar do terreiro ávidos de acompanhar as palavras do Mabavala.

- Protejam as crianças, os velhos e as mulheres. Defendam com bravura a nossa tribo e toda a riqueza que os nossos antepassados nos deixaram. Cantem as canções de bravura e coragem para que dignifiquemos o sangue derramado pelos guerreiros mais valentes da nossa tribo.

A multidão ululou, os guerreiros aceneram ao ar arcos e flechas e em conjunto deram o grito de coragem. Havia gente demais e o ar estava abafado. A noite entrava calma trazendo consigo estrelas e o nevoeiro. No alto, uma caravana de passáros cortou o céu num chilreio carregado de apavor. O velho calou-se. Acendeu um tabaco. Aspirou voluptosamente o fumo e, no fim, prosseguiu:

- Vigiem as fronteiras do nosso reino. Coloquem homens em todos os cantos para que o inimigo não nos surpreenda. Na hora da chegada, toquem o lipalapanda – o chifre de antílope – para que todos saibam que o inimigo está nas nossas terras.

Calou-se novamente. Levou o tabaco aos lábios. Puxou duas vezes. Tossiu vezes sem conta e voltou ao ponto onde havia interrompido.

- Meu povo! – Disse o ancião com uma voz entrecortada e trémula. – Preparem esconderijos para que as crianças, os velhos, os enfermos e as mulheres grávidas possam se proteger contra a chassina que vem. Preparem as armadilhas que os nossos antepassados nos ensinaram e ordeno para que esta noite todos guerreiros fiquem de vigia cantando e dançando para afugentar o espirito do medo. O curandeiro Namakhoi fará o trabalho que lhe compete distribuindo alguns punhados de ervas que vos protegerão de todo o mal durante a batalha. Coragem, guerreiros! Coragem...

O kôta virou-se para a corte, cruzou os braços nas costas e fez um sinal indiscrptivel para um dos anciãos mais antigo da tribo. De seguida, abandonou o terreiro dirigindo-se para a grande palhota andando com um cómico aprumo e movendo-se na noite tão cautelosamente como se estivesse a pensar em alguma coisa. Ao chegar a porta, mandou o mensageiro real reunir o chefe dos guerreiros, o curandeiro Namakhoi e outros ancião mais importantes da povoação e no fim, entrou na palhota fechando a porta nas suas costas. O kôta queria se inteirar de tudo, desde a estratégia da guerra até ao tipo da magia que o curandeiro Namakhoi pretendia usar para derrotar o inimigo. No entanto, o rufar dos tambores e o ecoar das vozes fizeram-se ouvir no terreiro. Vozes embaladas na brisa nocturna atravessavam a floresta densa do planalto dos makondes e homens fortes e valentes dançavam e cantavam canções de autores imemoráveis e perdidos na poeira do tempo cujas suas letras passavam de boca em boca e de geração em geração modificando-se constantemente de acordo com o momento. Os guerreiros dançavam em redor de uma grande fogueira contorcendo-se com abandono, simulando combates, zombando o inimigo e fumando bangui, a rainha da coragem. A medida que dançavam, as labaredas cresciam, a lenha ardia com intensidade e, de vez enquando, pequenas faúlhas saltavam no ar apagando-se rapidamente na noite fria.

O rei saiu da palhota, soltou um profundo suspiro e parado em frente da palhota pôs-se a contemplar no escuro a densa floesta, sentindo o ar frio da noite e aspirando o agradável aroma do planalto. Caminhou lentamente pelo quintal com os braços cruzados nas costas como era o hábito. Porém, deteve-se num tronco de Mula e sorriu consigo mesmo animando a sua face tatuada e dominada de profundos sulcos. O kôta recordava-se com saudade a sua juventude, principalmente, na época em que com bravura enfrentava gente de outras tribos que caçavam mulheres makondes nas machambas e riachos, afim de vende-las como escravas aos comerciantes árabes e aventureiros swahil. Fechou os olhos como se quisesse trazer de volta aqueles momentos e depois, deu meia volta e encaminhou-se novamente a palhota movendo-se com um aprumo forçado e cómico, típico da idade.

Já a madrugada, um jovem, que o chefe dos guerreiros escalara para guarnecer as imediações da povoação, irrompeu no terreiro correndo apavorado e vomitando sangue coagulado. Os guerreiros Nguni haviam lhe mutilado a lingua e obrigado a se dirigir a povoação afim de anunciar a sua chegada. O tam-tam dos tambores cessou imediatamente; Dois guerreiros dirigiram-se a palhota real, anunciaram ao rei o sucedido e voltaram novamente ao terreiro, onde os outros guerreiros haviam já abandonado e tomado a posição no limiar da floresta e nos ramos das árvores que se espalhavam nas redondezas da povoação. O rei e a corte fugiram para a floresta, onde foram escondido num abrigo preparado para tal. De súbito, a povoação ficou silenciosa e quando o sol ia se erguendo lentamente e a queimar, pouco a pouco, o orvalho no capim e nos arbustos ouviu-se um forte ulular e um grande grupo de guerreiros Nguni vestidos de peles e munidos de lanças e escudos de peles de animais bravios irrompeu o centro da povoação, pilhando mantimentos e animais domêsticos, quebrando potes e outros objectos de barro, e, quando ia incendiar as palhotas, os guerreiros makondes lançaram-se contra o inimigo dirigindo-lhe flechas envenenadas com ervas selvagens. A batalha levou muito tempo e, usando uma táctica de guerra desconhecida entre os makondes, os guerreiros Nguni infringiram pesadas derrotas aos guerreiros do rei Mbavala. Os prisioneiros de guerra foram severamente humilhados e quase metade da população foi escoraçada numa louca perseguição até às margens do rio Rovuma, onde atravessando a nado e numa visível situação de desespero refugiaram-se para as terras do Tanganhica, rei dos Massai, no actual território da República da Tanzania. Um outro grupo de Makondes liderado pelo o rei deposto exilou-se nas terras do Mataca, o rei ajaua, na actual província do Niassa.

Entretanto, meses depois guerreiros makondes apoiados por homens valentes e corajosos da tribo ajaua expulsaram os invasores tendo-lhes perseguido até às terras mais distantes, em direcção ao centro do actual território de Moçambique . Passados alguns dias, o rei Mbavala e a sua corte regressaram do exílio acompanhado do rei Mataca. Porém, os que haviam atravessado o Rovuma jamais voltaram e por lá criaram a comunidade dos makondes da Tanzania. Nisto, alguns dias depois, houve uma grande festa na povoação que durou uma semana comendo-se carne caçada no interior da floresta, bebendo-se diversas bebidas tradicionais, dançando-se ao som dos tambores e assistindo-se diversas sessões de mapico. Como gratidão dos feitos heróicos dos guerreiros ajaua demonstrados no momento da expulsão e perseguição dos invasores, o rei Mataca recebeu de presente, do seu homólogo Mbavala, uma bela donzela para casar, uma enorme estátua de pau-preto com a sua figura «estampada» no tronco e teve de volta meia centena de mulheres da sua tribo que serviam de escravas nas residências oficiais dos membros da corte dos Makondes. Para além deste acto, houve uma cerimónia tradicional de firmamente de amizade entre as duas tribos, onde os curandeiros de ambos os lados foram convidados a oferecerem os seus préstimos por forma a abençoar aquela amizade que nascia e a garantir por via mágica a sua renovação de geração em geração até ao mais infinito.

No último dia da estadia do rei Ajaua nas terra dos Makondes, o sol nasceu muito quente e os seus raios brilhavam intesamente resplandescendo manjestosamente sobre o tapete verde da floresta. Um grupo de flamingos sobrevoou silencioso a povoação e, no fim, aterrou numa pequena lagoa que se achava no extremo sul da palhota do rei Mbavala. Um grupo de crianças nuas e desnutridas brincava debaixo do sol em frente da palhota do chefe dos guerreiros Makondes e dois cães vadios atravessaram o terreiro perseguindo-se numa empolgante brincadeira. Dois guerreiros ajaua munidos de lanças afastaram-se repentinamente da porta da quarta palhota real. A porta abriu-se e o velho Mataca saiu seguido pela rapariga oferecida pelo seu homólogo Makonde. De olhos cerrados, o rei aspirou o ar frio do planalto, lançou um olhar apreciador ao seu presente e caminhou para o terreiro, onde a sua corte e os donos da terra o esperavam para a despedida. Ao chegar, foi servido um acento no alpêndre improvisado para a despedida. Pouco tempo depois, o kôta Mbavala ergueu-se e discursou para o seu povo agradecendo o apoio dos Ajaua e pedindo às duas tribos para que valorizassem a amizade conquistada contando a sua história às novas gerações. Já perto do fim do discurso, a sua voz ficou demasiadamente trémula e, nesse momento, foi interrompido por um seu funcionário que o encaminhou ao acento. Quando ia se sentar, o chefe dos guerreiros quis apoia-lo, mas o ancião apartou-o com os braços fazendo um gesto de protesto de quem diz não sou tão velho para precisar de apoio para se acomodar. De seguida, o som dos batuques irrompeu o espaço reservado para a despedida e um grupo de dançarinos começou a dançar no meio da roda humana que assistia ao espectâculo rindo e cantando. Ao cessar o tam-tam dos tambores, o kôta Mataca fez um breve discurso agradecendo a hospitalidade, os presentes oferecidos e a libertação das mulheres da sua tribo feitas escravas muito antes da invasão Nguni. No fim, prometeu aos Makondes retribuir o gesto da devolução das escravas, defendendo que já não havia mais razões para as duas tribos manterem a prática de captura de mulheres das duas tribos para fins de escravatura.

O rei foi interrompido por uns aplausos que soaram de forma entusiástica. Contudo, quando os aplausos desvaneceram, o kôta retomou o discurso agradecendo vezes sem conta tudo quanto o povo Makonde havia lhe proporcionado. Dali, as duas cortes abandonaram o terreiro enquanto o rufar dos tambores se faziam sentir novamente e encaminharam-se na saída da povoação. Ao aproximar as paliçadas que circundavam a povoação, protegendo os habitantes contra os animais bravios, os dois reis apertaram-se as mãos efusivamente em sinal de despedida final e o kôta Ajaua deu meia volta e começou a caminhar juntamente com a sua corte e os seus guerreiros escoltando-o em todos os lados. O velho Mbavala não tinha ainda voltado para a povoação e se encontrava petrificado no sitio onde havia se despedido do amigo Ajaua, olhando-o de longe enquanto desaparecia por entre árvores frondosas e arbustos de meia altura que emergiam quase por toda a floresta. Quando os visitantes desapareceram, por completo, deixando a sua atrás vozes entrecortadas e trazidas pelo o vento, o velho encaminhou-se ao terreiro, onde pôs-se a assistir mais uma sessão de mapico até ao entardecer.

Passados muitos anos, a amizade das duas tribos ainda continua manifestando-se sob forma de huvilo e a sua genese corre de boca em boca entre as novas gerações de Makondes e Ajauas.
- Allman Ndioko, Moçambique, 17/05/2005

VOCABULÁRIO:
Huvilo - Uma espécie de amizade carregado de aspectos cómicos e menos sérios;
Makondes Grupo étnico de Moçambique localizado no planalto de Mueda, província de Cabo Delgado. Note-se que existe na República da Tanzania outro grupo de Makondes conhecido por Makondes da Tanzania e que é originário do actual planalto de Mueda.
Ajauas - Grupo étnico de Moçambique localizado no planalto do Niassa, no norte do país.
MbavalaRei do povo Makonde.
Mataca Rei do povo Ajaua.
Kôta Pessoa mais velha que pode ser pai, mãe, avô, tio, etc.
Bangui Soruma ou melhor cannabis sativa;
Mula Árvore frondosa e muito alta frequente no planalto de Mueda. Entre os Makondes de Moçambique a Mula servia, desde os tempos remotos até altura da independência nacional, para sinalizar campas nas grandes florestas do planalto;
Lipalapanda – Chifre de antílope, normalmente, usado para anunciar uma festa ou animar uma sessão cultural;
N’tela Erva medicinal que serve para curar alguma infermidade ou proteger qualquer mal. Normalmente tem tido efeitos mágicos.


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