Tinham caminhado toda manhã no meio da mata fechada e debaixo do céu sinistro coberto de nuvens enormes, pesadas e escuras sem que trocassem palavra alguma. Levando as costas o filho mórbido, a casa toda mudada a cabeça num volumoso atado de pano, Achepe marchava em frente do Nkule, seu marido, num passo nervoso e sem ocultar a sombra de aflição e tristeza que lhes perspassavam pela fisionomia. O filho menor estava doente há dias. Não comia e nem falava e o infurtúnio sucedera subitamente quando brincava na companhia de amigos no terreiro da casa do tio materno. Várias tentativas haviam sido accionadas para devolver a saúde ao menor, mas todas mostraram-se infrutíferas restando agora, como último recurso, a consulta do wihiyango mais afamado da região para desvendar o mistério ocultado por detrás da doença.
Caminhando em silêncio e com a mente mergulhada em profundas meditações, Nkule ia tentando advinhar o mistério que rodeava a doença do filho e o provável autor. De quando em vez, maldizia a tradição que lhe obrigara a viver na aldeia dos pais da esposa até nascer o primeiro filho, pois, na sua óptica o infurtúnio que se alojara no filho sobrevinha indubitavelmente da acção de um feiticeiro da família da mulher. Enquanto ordenava o juizo deste modo, Nkule aguardava com ansiedade a chegada à aldeia Mwanga, que ficava a norte de Miteda, onde esperava confirmar às suas deduções.
Entretanto, o casal prosseguiu a caminhada tortuosa no caminho apertado e ladeado de arbustos e capim alto. O silêncio entre eles era tumular e a aflição pelo filho era-lhes maior. Porém, à medida que avançava a passos largos em direcção ao destino ia se ouvindo, em forma de eco, nas proximidades do caminho, o sistemático e repetido «coc, coc, coc, coc,...» do batimento dos pés descalços no chão castanho e rico de humo, que era característica principal do planalto makonde em todas suas extensões. Já a meio caminho do destino, dois perdizes passaram próximo deles voando de forma razante e fazendo-lhes sentir no rosto o ar deslocado pelas asas. Nkule assustou-se, tossiu uma vez e riu exibindo a sua dentadura branca, cor de marfim, afiada com mestria conforme as velhas tradições. O sucedido lhe causara uma impressão dramática a ponto de fazê-lo esquecer temporariamente o drama que vivia. Olhou atrás sorrindo, meneou a cabeça e quando volveu o olhar, passou a costa da mão no rosto e sentiu os sulcos das tatuagens marcadas indelevelmente na pele. Roçou-as levemente, sem dar em conta, e no fim, comentou:
- Aquelas aves são demasiadamente atrevidas. Contudo, espero que não estejam a anunciar um mau augúrio.
Achepe não pronunciou palavra alguma e limitou-se a marchar serpenteando o corpo e fazendo tocar ao de leve no capim seco os vestes que trazia.
De repente, um vento forte agitou o capim e torceu as árvores, fustigando-as furiosamente e ameaçando derrubar a trouxa que Achepe carregava no alto da cabeça. A mulher fez um movimento brusco para atrás e afrente e, tentando equilibrar a trouxa, prosseguiu a marcha sob o olhar atento e vigilante de Nkule que lhe seguia acompanhando-a os passos.
- Pelo visto, vai chover. – Afirmou Achepe, finalmente, passados escassos momentos após a acção fustigante do vento.
- Certamente. Por isso, temos que apressar para que achuva não molhe-nos demasiadamente.
Manteram-se calados novamente e continuaram a andar cada vez mais rápido. Passado algum momento, uma claridade ofuscante e violenta brilhou instensamente, o céu bramiu e dentro das nuvens estrondeou brutalmente. Num instante, o casal viu-se alucinado visualmente pelo relâmpago e ensurdecido pelos ribombares dos trovões. De súbito, a chuva despenhou em catadupa encharcando o casal dos pés à cabeça e obrigando-o a refugiar-se debaixo de uma frondosa mangueira que se achava ao lado do caminho que seguia em direcção a aldeia.
Quando a chuva abrandou, o jovem casal retomou a marcha já sentido nas entranhas da medula o ar frígido do planalto. Volvido alguns instantes, a chuva parou e começou a ouvir-se de longe vozes de gente trazidas pelo vento. Nisto, acelerou o passo procurando alcançar as vozes o mais breve possível. Cruzaram-se com alguns aldeões vindos das machambas e poucos metros depois alcançaram o limiar da aldeia. A aldeia era excepcionalmente grande e bela, conhecida e admirada pelo esplendor invulgar que revestiam as festas tradicionais e sobretudo pelo excepcional prestígio de que gozava o chefe da aldeia e o wihyango Nkapalule. Curiosamente, o chefe da aldeia chamava-se Mwanga e era demasiadamente idoso; Tinha uma estatura baixa e era considerado uma personalidade invulgar, pensador original e filosófico. O seu prestígio e seus feitos heróicos haviam se espalhado por todo o planalto e não havia linhagem makonde alguma que não conhecesse alguma das suas proezas.
No entanto, o casal aproximou-se a uma palhota, onde uma mulher grávida peneirava o milho sentada debaixo do beiral. Nkule pediu licença e depois de autorizado cumprimentou a mulher grávida e no fim, quis saber onde vivia o wihyango Nkapalule. A mulher indicou com o dedo uma palhota que se achava em frente da chitala. Nkule agradeceu cordialmente e retomou a marcha, juntamente com a sua esposa, dirigindo-se às palhotas próximas a chitala sob olhar devorador dos aldeões que lhes apreciava como se estivessem em exposição. Enquanto caminhavam, Achepe ia apreciando as belas palhotas da aldeia e sua gente mansa e alegre.
À semelhança da disposição das palhotas da maioria das aldeias makondes, a estrutura arquitetónica da aldeia Mwanga não fugia a regra. A aldeia era de forma circular e as palhotas que se encontram na primeira fila à volta do terreiro central eram habitadas por um homem ou uma mulher da mesma likola a que pertencia o chefe da aldeia. No terreiro central emergiam árvores de fruto e no centro se encontrava a chitala, casa de reunião dos homens. Na chitala os homens passavam o seu tempo livre esculpindo, conversando e tomando a mesma refeição, enquanto as mulheres passavam parte do seu tempo trabalhando no terreiro junto das suas habitações e comendo juntamente com as vizinhas à sombra da árvore ou do beiral da palhota ou dentro dela no tempo de chuva.
Nisto, ao chegarem na casa do wihyango Nkapalule foram recebidos por duas mulheres idosas que trataram de receber a trouxa que Achepe trazia à cabeça e lhes servir igoli no beiral da palhota para se acomodar. Nkule pediu água para beber e quando uma das mulheres que lhes recebera afastou-se em busca da água, Achepe despredeu nas costas o filho mórbido e deitou-o no leito do igoli cobrindo-lhe uma capulana com delicadeza. Quando a mulher trouxe água fresca numa cabaça e entregou ao Nkule, a outra entrou na segunda palhota que assomava no quintal para lhes anunciar.
Gerou-se, no entanto, um momento de extrema espectativa durante o qual o casal esteve atento à movimentação das mulheres que por coincidência eram esposas do famoso Nkapalule. Pouco tempo depois, saiu da palhota principal e maior uma figura humana cheia de rugas, esquelética, velha, de boca sem dentes e chupada. O homem era magro, por natureza, a ponto de parecer não ter carne sobre os ossos. Atravessou o terreiro da casa andando lentamente e curvado, e, dirigiu-se ao encontro dos visitantes.
- É ele? – Inquiriu Achepe, com os olhos esbugalhados de pasmo e pavor.
- É... Mas não te incomodes ele é apenas velho. – Respondeu Nkule com toda serenidade que lhe foi possivel. Contudo, ele também estava embaraçado, mas fez um esforço para não o demostrar.
De costas curvadas o ancião passou lentamente em frente deles e entrou na terceira palhota. A esposa mais velha do ancião convidou os visitantes a entrar na palhota, onde se encontrava o marido. Quando os visitantes se acomodaram numa esteira de palha do lado oposto do wihyango, Nkapalule, disse:
- Sei tudo o que levou-vos a me procurar e tudo o que se passou convosco pelo caminho. Não me perguntem porquê, pois, essa é a minha virtude.
Nkule espantou-se pelas declarações e, por fim, fixou o olhar no rosto do velho. Apesar da pequena escuridão que se desenhava no interior da palhota, naquele momento descobriu que nas órbitas profundas do Nkapalule os olhos eram extraordinariamente vivos e atentos e a sua face estava profundamente tatuada de dinembo que lhe emprestavam a elegáncia e perpetuavam a sedução e o orgulho de ser makonde. Porém, manteve-se atento às palavras do ancião.
- Vocês querem saber o que se passa com o vosso filho. – Prosseguiu Nkapalule. – E querem saber quem provocou esta desgraça.
- Sim. – Apressou-se Nkule a responder com convicção.
- Muito bem! – O velho arregalou os olhos e com ar misterioso, continuou: - Vamos rogar que os espiritos dos antepassados conceda-nos permissão para que o vosso desejo seja realizado.
- Assim seja. – Anuiu Nkule visivelmente curioso.
Nkapalule despejou na esteira ossadas de diferentes animais bravios, pegou numa faca e começou a cantar a pleno pulmões olhando para os ossos. Enquanto cantava, as suas esposas entraram na palhota respondendo em coro com uma aperfeiçoada concordância e comoção, e, por fim, sentaram-se ao seu lado prosseguindo com o coro. De repente, os olhos do wihyango mudaram de expressão, os lábios tremeram e a voz mudou de tom. Agitou a faca freneticamente durante alguns instantes e, a dado momento, manteve-se sereno a escutar a voz do coração. Nesse instante o cântico parou e fez-se um silêncio quase absoluto. Depois, suspirou profundamente, inalou um punhado de rapé meneando a cabeça, aspirou três vezes consecutivas e apontando a figura da Achepe, disse:
- O seu tio materno é o causador desta moléstia. Ele pretende matar o seu filho para lhe servir na machamba em forma de lindandocha. Voltem a casa o mais breve possível e digam a ele que eu lhe apontei como o causador do mal que se manisfesta nesta criança. Se ele sentir-se afrontado, lesado e difamado, sem justa causa, poderá queixar-me em qualquer aldeia e se provar que eu sou culpado, digo-vos do alto da minha dignidade que, deixarei de ser wihyango. Porém, se as minhas palavras forem verdadeiras verão que ele não se insurgirá e limitar-se-á a fazer uma coisa, que agora não vos digo, que restituirá a saúde ao vosso filho.
- Mas tem a certeza mesmo que o autor desta moléstia é o meu tio? – Inquiriu Achepe incrédula.
- Tenho, pois, o que digo não vem de mim... tudo é divino.
– É que não pode ser!
- Mas é... – Respondeu Nkule visivelmente revoltado.
Achepe baixou a cabeça, esfregou as vistas com a ponta da campulana que trazia enrolada ao corpo e, logo, as lágrimas não tardaram a salatarem-lhe dos olhos. Indignada pela revelação estrondosa e inesperada, Achepe, começou a chorar profundamente deixando escorrer, pelas faces negras e tatuadas, lágrimas copiosas.
No fim de algum momento, Achepe acalmou-se; Limpou-se as lágriamas com as palmas da mão e soluçando pós o filho nas costas. Nkule pagou a consulta com um um balde menor de amendoim que tirou da trouxa que a mulher carregava e abandonaram a palhota de regresso a casa. Quando atravessaram o limiar da aldeia e se embrenharam pela floresta adentro através de um carreiro que lhes foi indicado por uma das esposas do Nkapalule, as sombras da noite invadiam a floresta e as aldeias makondes, e, de longe ouvia-se o rufar dos batuques que vinha de algures distante trazido pelo vento. No alto do céu, os morcegos e outras aves de rapina iniciavam o seu voo habitual saindo de maneira espectacular das cavernas e dos troncos seco de árvores frondosas e seculares.
Ao chegarem a aldeia, dirigiram-se a casa do tio da Achepe, onde curiosamente esperava-lhes sentado à porta da sua palhota.
- Não digam nada! – Apressou-se o tio a dizer, assim que Nkule pediu licença. Depois, prosseguiu. – A ganância e o egoismo levaram-me a molestar o vosso filho de forma abominável. Sei que não mereço perdão, mas ao menos permitam-me restituir a saúde ao vosso filho.
Parado diante a entrada da palhota, Nkule, ouvia o discurso fervendo de ódio. Naquele momento o homem quis desferir um golpe, mas a sua consciência falou mais alto e, nisto, limitou-se a olhar a figura do tio abanando a cabeça desaprovadamente.
No entanto, reinou entre eles um silêncio de magoar os ouvidos, durante o qual Achepe aproveitou tirar da cabeça a trouxa que trazia e entregar o filho mórbido ao tio. Ao recebê-lo encaminhou para o interior da palhota, onde deitou na esteira e saiu para a outra palhota que se encontrava no mesmo terreno. Nkule e Achepe assistiam com interesse a movimentação do molestante vigiando-lhe todos seus movimentos. Pouco depois, o molestante voltou com uma cabaça cheia de água, parou no limiar da porta da palhota, onde se encontrava o doente e começou a confessar o crime proclamando, de seguida, que a doença não prossiga. Ao terminar a proclamação, que foi feita em voz baixa para que os vizinhos não ouvissem, cuspiu dentro da cabaça mormurando numa linguagem imperceptivel e lançou a água sobre os pés do doente. Feito isto, Nkule e Achepe levaram o filho a casa e no dia seguinte, incrível que pareça, o menino acordou sarado...
- Por Allman Ndyoko - 01/03/2007.
Glossário
Wihyango – advinho.
Lindandocha – Fantasma ou escravo mágico, isto é, entre os makondes antigos existia a prática de matar magicamente alguém e posteriormente servi-lo de escravo para trabalhar na machamba e outros locais. Para gente comum a pessoa morria de verdade, mas para o lado mágico a pessoa passava a viver, mas sem o contacto nem o conhecimento dos progenitores se o autor da morte não forem eles.
Igoli – Cama de base feita de estacas de árvores e o leito tecido de uma corda de palha trançada.
Chitala – Alpendre erguido no terreiro da aldeia e funciona como local de convivio dos homens.
Likola – Linhagem.
- Contos E Poesias Do Índico de Allman Ndyoko!
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