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Todos, uns mais que outros, estamos ligados às casas onde morámos. As peripécias da existência levam-nos, muitas vezes, a geografias diferentes das que conhecemos na nascença. São as condições do destino, contrariando a vontade ou os desejos de mudança para a concretização (ou não) de um sonho. As casas são o canto das confidências ou o altifalante dos destemperos, a alcofa do amor ou o antro da repulsa, o espelho da harmonia ou da truculência, o retrato da ternura ou do gelo, a redoma das inocências ou o estilhaçar das más criações.
As casas são pedaços da nossa memória povoada de risos e de choros, de zangas e de perdões, de vida e de luto, de realizações inesquecíveis e injustiças traumatizantes, de brincadeiras e de recriminações, de opulência e de escassez, de grandezas e misérias – de tudo, afinal, de que é feita a roda da vida.
Quantas vezes uma casa é a referência de uma cronologia, o antes ou o depois de uma casualidade, a justificação de uma luta, o renascer de uma afirmação, o hiato de uma dificuldade, a certeza de uma vida inteira. As casas são sempre a moldura de uma época, figurantes imóveis da mobilidade do nosso filme.
Há dias, vi, na longa avenida onde moro, uma dessas casas, por onde passei, ser demolida como quem esmaga uma inutilidade. Subia-se por uma escada em cotovelo, que dava a um longo corredor, marginado por quartos, até terminar numa pequena cozinha aproveitada numa reentrância da sala de jantar, frente à qual se estendia uma frondosa ramada que, todos os anos, dava alguns almudes de vinho americano, e onde, à sombra dela, as crianças faziam tropelias diante da complacência de uma bondosa avó. Foi ali que escutei, enquanto o sono não vinha, o ruído dos eléctricos nas suas correrias nocturnas, no tempo em que passear à noite ainda era uma liberdade; que, surpreso, ouvi sagas africanas de esplendor e de debandada, contos de honra e de abdicação; que ri com satisfação e me silenciei nas preocupações; afaguei nascidos e chorei por quem abandonava o mundo; que confirmei o ensinamento da minha meninice aldeã: a partilha do pão tanto pode ser por dois como por quatro.
Quando o mastodonte de tijolos e cimento parar de crescer para o céu, vou pedir ao novo dono que ponha uma bandeira, lá no alto, com um coração desenhado. É A ÚNICA MANEIRA DE EU VOLTAR A OLHAR PARA LÁ.
- Texto de M. Nogueira Borges*, Porto, Setembro de 2010.
- Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.
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