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1/23/09

O INCÊNDIO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão).

(Clique na imagem para ampliar - Imagem original do ForEver PEMBA)

Passavam poucos dias que as aulas na escola haviam terminado e o espirito de férias já manifestava-se em nós através de inumeras brincadeiras: caça aos passarinhos, às escondidas nocturnas, o passeio desautorizado ao quartel da “Meia-Via”, o banho na praia do INOS, a visita ao navio abandonado nas imediações da base naval da marinha, a perseguição nos galhos das amendoeiras do jardim infantil, roubo de amoras e jambalão no quintal da SOGERE, entradas “roubadas” nos jogos de futebol do Estádio Municipal, entre outras.

Uma certa manhã de céu azul e de sol dourado, eu, Quino, Amur, Bacar – o filho do árbitro – e Kaidar, o filho primogénito do ché Omar, jogavamos o “bate-sai” com a bola de trapo junto à valeta que delimita os bairros de Ingonane e Natite, precisamente, atrás do belo monumento de emulação socialista, quando de súbito alguém entre nós gritou em macua apontando à zona cimento:

- Olhem pra aquilo!

Paramos o jogo; Kaidar pegou a bola, pôs debaixo do braço e pregou o olhar na direcção da zona cimento. Imitamos o gesto rapidamente e os nossos olhos viram uma nuvem enorme de fumaça preta que teimava subir ao céu acompanhada de grandes labaredas que ameaçavam engolir a zona intermédia entre o fundo do Hotel Cabo Delgado e o prédio Cunha Alegre.

- É o hotel a arder! – Disse Kaidar em voz alta.
- Não. – Atalhou Bacar e acrescentou meio excitado. - Parece o prédio Cunha Alegre...
- É inacreditável! – Gritei pasmado pelo acontecimento.
- Vamos ver de perto. – Sugeriu Quino fazendo movimento para caminhar.
- Não. Não dá, é perigoso. – Advertiu Amur visivelmente dominado pelo medo.
- Vamos, malta! – Insistiu Quino movido pela curiosidade.

Kaidar fitou a malta de esguelha por algum momento. Com uma espressão corporal que denunciava-lhe uma apetencia voraz de matar a curiosidade, cedeu a insistência do Quino iniciando a marcha decididamente com o destino ao coração da pacata e modesta cidade de Pemba, vulgarmente conhecido por “wa Texeira”, entre os nativos.

Timidamente o gesto foi imitado por todos nós e juntos precipitamo-nos a seguir um pequeno percurso da estrada, muito arenoso, que levava a zona urbana. Trajando camisas e camisetes cansados de uso, calças e calções desbotados, empoeirados, rotos nos tornozelos e nas nádegas e denunciando orgulhosa e humildemente a nossa origem, iniciamos, pouco tempo depois, a andar na estrada de terra batida, cor vermelha e poeirenta todos ofegantes e banhados de suor.

Enquanto caminhavamos curiosos, dos dois bairros vizinhos vinham gente despertada pela fumaça e pelas linguas de fogo assustadores que bailavam ao sabor do vento ameaçando à qualquer instante causar tragédia. Mais adiante, juntamo-nos a um grupo de homens, mulheres e adolescentes que também dirigia-se ao nosso destino.

- Dizem que um bandido armado ateou fogo os últimos quartos do hotel e fugiu à sete pés, sem deixar rastos. – Explicou alguém no meio da multidão.
- Ouviram?! – Questionou Amur sussurando e tomado pelo medo.
- Não é nada isso. – Tranquilizou Quino muito confiante. – Deve ser um boato.
- E se fôr verdade? – Interroguei-o contaminado pelo temor do Amur.
Quino não respondeu e limitou-se a marchar. Naquele momento ideias medrosas fizeram a minha mente sua oficina e diversas imaginações macábras passaram insistentemente na minha consciência, um tanto quanto, repletas de razão. Pois, a guerra de desistabilização estava nos seus momentos iniciais em Cabo Delgado, pese embora Pemba não se ressentisse tanto como em algumas províncias do centro e sul do país, donde vinham relatos de cenas aterrorizantes protagonizadas por bandos armados; Daí que, todo cuidado era pouco, e razão pela qual todos viviamos em constante vigilância, que na altura apelidou-se de vigilância popular. Porém, deixemos de lado esta página triste da história de Moçambique independente e voltemos ao mais primordial.

Volvido algum momento alcançamos a zona urbana. Atravessamos uma ponteca de ferros de linha férrea atravessados horizontalmente de uma extremidade da valeta principal à outra secundária muito pequena, que delimita a zona urbana e a peri-urbana e começamos a percorrer a avenida Eduardo Mondlane no seu lado asfaltado, que ficava à escassos metros do local do incêndio.

A cidade estava agitada, barulhenta e abarrotada de gente apavorada que aproximava e saia do local do incêndio provocando um murmúrio ensurdecedor. Tanto no hotel, assim como, nos estabelecimentos comerciais e nas residências das redondezas eram visíveis rostos espantados pelo acontecimento e indignados pela ausência de corpo de bombeiros na cidade. Já próximo do sinistro, homens e mulheres civis e alguns militares corajosos tentavam em vão extinguir as chamas com areia e água trazidas da vizinhança em pequenos baldes. Enquanto isso sucedia, na carroçaria do camião ressaltavam faúlhas muito reluzentes acompanhadas de um estalar constante de madeira e as chamas, por sua vez, elevavam-se cada vez mais ao céu ameaçando queimar os fios de transporte de energia eléctrica da rua 12.

No entanto, houve uma explosão repentina acompanhada de uma bola enorme de chamas vermelhas. Abrigamo-nos todos medrosos debaixo de uma das palmeiras que erguia no centro das duas faixas de rodagem da avenida Eduardo Mondlane.

- O que vem a ser isso? – Questionou Amur.
- Deve ser o tanque do camião. – Disse uma idosa que também abrigara-se numa das palmeiras próxima.
- Camião? – Inquiriram todos em coro e incrédulos.
- Sim. – Gritou a idosa arranjando-se uma das capulanas que lhe desprendera do corpo no momento da explosão. – É um camião militar que, sem mais, nem menos, entendeu pegar fogo no meio da estrada quando vinha roncando no sentido descendente da rua 12.

Quando a velha acabou de proferir estas palavras, deflagraram tiros de armas ligeiras no meio do incêndio, fazendo os curiosos correrem em debandada em todas as direcções. Nesse instante, um bando de corvos que grasnava nas palmeiras douradas do centro da cidade bateram as asas em vôo espectacular e desapareceram nas frondosas amendoeiras e incontáveis amoreiras do parque infantil do ring desportivo.

- Vamos pra casa, malta. – Anuiu Amur tremendo de medo.
- Nem pensar! – Contrariou Kaidar. – Agora que estamos aqui vamos procurar saber o que realmente está a passar-se.
- Concordo contigo! – Observou Bacar olhando para a fumaça cinzenta e escura que já abrandava de intensidade deixando mais nítido o camião militar em chama.
- Let´s go, malta. – Decidiu Quino iniciando a caminhada.

Retomamos a marcha já rapidamente por entre as palmeiras douradas da faixa central da grande avenida e pouco depois, alcançamos a rotunda das avenidas 25 de Setembro e Eduardo Mondlane que fica em frente do Hotel Cabo Delgado. Embrenhamo-nos corajosamente no meio da multidão e com muita agilidade como formigas encontramo-nos, finalmente, a escassos metros do camião em chama. Era um Ziro Russo, cor verde e de caroçaria de madeira. Tinha o vidro frontal caido e estilhaçado no capón, seis rodas grandes vazadas e em chama.

- Deus do céu! – Exclamei visivelmente excitado e continuei inquirindo. – Como foi possível isto?!
- Houve um curto circuito... – Respondeu-me alguém dentre os espectadores vizinhos.
- Ninguém morreu? – Quís saber Quino.
- Felizmente, não! – Disse uma senhora que se achava à nossa frente vestida ao rigor a moda macua: lenço na cabeça, blusa de manga comprida, brincos nas orelhas e no nariz, capulanas multicolores, pulseiras nos braços e chinelos nos pés.
- Mas porquê não criam um comando de bombeiros nesta cidade? – Questionou em voz alta um velhote visivelmente irritado com o que sucedia.
- Estão a espera que aconteça o pior! – Alguém respondeu no meio da multidão em tom de voz cómica.

Porém, as chamas consumiram o camião, por completo, no meio de olhares impotentes dos mirones e no fim, o fogo abrandou deixando o local poluido de fumaça esbranquiçada e espessa, acompanhada de um forte cheiro de borracha queimada.

Passado algum momento, a multidão foi esvairando-se até que não tendo mais graça a permanência no local, saimos dalí correndo e brincando animadamente o pega-pega com destino ao jardim infantil, próximo ao campo municiapal.
- Allman Ndyoko, 20/01/2009, para o ForEver PEMBA.
- Extrato do livro: Contos de Infância Distante.

O Autor:
-Francisco Absalão;-Nome artístico -Allman Ndyoko;
-Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
-Residência actual - Maputo;
-e.mail's:

Leia:

  • "O Suicídio" - Um conto de de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 02 de Junho de 2008 - Aqui!
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !

6/02/08

O Suicídio - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Imagem original daqui. Clique na imagem para ampliar)
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O SUICÍDIO
E
m pouco tempo, correra em toda aldeia Kunakavanga de boca em boca e de familia em familia o boato segundo o qual, o jovem Kanhembe havia sido visto na calada da noite envolvido em acto de adultério com Malonda, terceira mulher do nkulungwa Kavanga, régulo da aldeia Kunakavanga. Segundo as más linguas, Kanhembe mantinha o seu romance secreto com Malonda, uma jovem esbelta, clara, tatuada e com dentes afiados como mandavam as regras na sua comunidade, desde os tempos recuados, época em que os dois eram adolescentes. O seu romance veio a conhecer o fim quando, sem consentimento da jovem, os pais decidiram aceitar o pedido de casamento formulado pelo Kavanga sem que este tenha dialogado com a Malonda. Temendo represálias pesadas por parte da família, Malonda não viu outra saída se não seguir o destino que lhe era traçado pela circunstância, pese embora o seu coração estivesse entregue espontaneamente ao Kanhembe. Esta situação trouxe um grande sofrimento ao Kanhembe que assistiu, sem nada fazer, à cerimónia da entrega do seu amor ao velho Kavanga que, orgulhosamente, fez questão de paralisar a vida da aldeia do nkulungwa Nkwemba para os aldeões testemunharem o seu célebre enlace.
O tempo passou e consigo foram as lembrança do célebre casamento do velho Kavanga e, por ironia do destino, passado muitos anos, Kanhembe veio a casar na aldeia Kunakavanga, onde vivia Malonda, seu amor roubado. Como a tradição makonde daquele tempo mandava o homem viver os primeiros dois anos na aldeia e na familia da mulher, Kanhembe veio morar na povoação de Kunakavanga em cumprimento da tradição. Foi nessa altura que gente de má fé espalhou em toda aldeia inúmeros boatos dando conta que Kanhembe andava de cavaqueira com Malonda, esposa do afamado nkulungwa Kavanga. Como não houvesse evidências, Kanhembe foi poupado aos interrogatórios dos velhos conservadores do conselho dos ancião da aldeia Kunakavanga.
Porém, uma certa noite de céu decorado de estrelas e de terra banhada de luar, foi visto alguém, no silêncio da noite, saindo dissimuladamente da cubata de Malonda e se precipitando para o terreiro da aldeia, na direcção em que morava o jovem Kanhembe, num dia em que Kavanga dormia descansadamente na casa da quarta esposa, localizada na entrada da aldeia. Este acontecimento espalhou-se no dia seguinte em toda aldeia, tendo sido, uma vez mais, posto em causa o bom nome do jovem Kanhembe, que na altura do acontecimento se encontrava na aldeia vizinha participando na cerimónia fúnebre de um dos parentes do terceiro grau morto há dias por um leão quando voltava da machamba.
Quando voltou a aldeia, o jovem foi colhido de surpresa pela noticia que não parava de espalhar-se. Sentindo-se ultrajado e sendo tratado pelos aldeões com atitude de real culpado, saiu de casa à tarde sem se despedir e com lipeta nas costas contendo uma longa corda de ntope que servira para empilhar capim que tinha sido usado dias anteriores para cobrir a palhota dos sogros. Kanhembe atravessou o terreiro em diagonal, passou pela rua da Malonda como se quisesse dizer algo e mais tarde seguiu o caminho que levava a floresta conservando um silêncio tumular. Pensativo, passou em frente de uma casa que cheirava a gordura e em que se achava uma infinidade de gente bebendo nkalogwè e de súbito ouviu o seu nome pronunciado com intusiasmo. Não parou e nem se dignou olhar. Continuou a marcha em direcção a floresta. Próximo ao limiar da aldeia, três homens trajando roupas usadas até o remendo olharam-no com espanto e passaram-lhe duvidando a sua sanidade mental. Kanhembe não se atrapalhou e continuou a sua marcha como se a morte na sua grandiosa força lhe chamasse com excessiva urgência.
Entretanto, após ter deixado a aldeia andou alguns minutos num caminho tortuoso que levava às machambas dos aldeões e, mais adiante, bem perto do caminho embrenhou-se pela mata onde, próximo a uma mangueira frondosa parou. Defecou nas imediações e trepou na árvore até aos primeiros ramos, onde tirou a corda, amarrou num dos ramos que se mostrava consistente, fez um nó e pôs-se ao pescoço. Meditou durante alguns instantes e de repente deixou-se cair. Os olhos arregalaram-se, o pescoço estreitou-se e a corda penetrou-lhe às entranhas, obrigando-o a soltar a lingua para fora como se de um búfalo morto se tratasse. Estrebuchou violentamente e, por fim, mantve-se sereno com o mijo a escorrer pelas pernas abaixo. Oscilando ao prazer do vento, o corpo de Kanhembe manteve-se na floresta durante quatro dias e na tarde do último dia, foi descoberto por um caçador que passava por ali a caminho das suas armadilhas e que logo, tratou de comunicar os aldeões. Quando estes chegaram, soltaram o malogrado em estado de putrefacção e trataram de o enterrar sem que o levassem à aldeia.
Dias depois, Kavanga surpreendeu Malonda em acto de adultério na sua cubata com um dos anciãos da sua aldeia. O sucedido chocou aos populares e, rapidamente, o conselho dos anciãos tratou de ocultar o sucedido para que não criasse rebilião.
Francisco Absalão
21/04/2008
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GLOSSÁRIO:
Nkulungwa – Chefe da povoação;
Ntope – Acta selvagem;
Lipeta – Muchila feita de pele de animais selvagens;
Nkalogwè – Oteka ou, por outra, bebida tradicional feita de mipira.
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O Autor:
-Francisco Absalão;
-Nome artístico -Allman Ndyoko;
-Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
-Residência actual - Maputo;
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Leia:
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29/Março/2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24/Outubro/2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19/Março/2008 - Aqui !

3/19/08

O Nó Sagrado - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Imagem original recolhida na net)
Era uma tarde azul de chambo – época seca que começa em Julho e termina em Outubro.
Isolado do resto do mundo, a vida no planalto corria normalmente com a sua gente envolvida em labores diferentes, como é lógico, e despreocupada com a evolução e inovação, contudo, fiéis a tradição herdada dos ancestrais.
Kandingwele, jovem caçador da linhagem de midamu, chegou exauto na margem esquerda do rio Chudi acompanhado de três cães de caça e pousou no chão quatro dimbutuka, produto de um dia de caça na densa floresta makonde. Limpou com a palma da mão o suor que lhe escorria pela face abaixo e sentou-se na sombra de um arbusto que crescia alegre na margem do rio. Tirou do lipeta um favo de mel, sacudiu-o contra o tronco do arbusto e, destraido, pôs-se a saborear o mel com gosto naquele recanto da natureza digno de admiração.
O sol estava escaldante, o ar pesado e quente. Ao longo do rio a vegetação era toda fresca. Havia sombras de sobra por todo lado e no leito do rio podia-se ouvir o murmúrio das águas correntes que passavam entre os musgos e as pedras levando e espalhando por todo leito folhagem seca e fresca caída das árvores que se prostravam majestosamente ao longo das duas margens.
Passado algum momento, Kandingwele ergueu-se do arbusto e pequenos ramos com folhagem roçaram-lhe cordialmente a face tatuada com esmero. Espreguiçou-se bocejando e marchou cansado até perto das águas do rio. Lavou as mãos lentamente, bebeu a água com avidez de um guerreiro perdido e por fim, lavou o rosto com as duas mãos. De seguida, ergueu-se ajeitando a sua ingonda e no silêncio da imensidão da floresta ouviu vozes e risos estridentes. Deteve-se alguns instantes escutando atentamente e, nesse momento, os cães ladraram com ímpeto correndo em direcção ao nascente do rio, onde três donzelas makondes banhavam-se destraídas e envolvidas numa louca brincadeira que obrigava água a espumar e a emitir um barulho ensurdecedor.
As donzelas assustaram-se.
Sairam da água a sete pés tapando com as palmas das mãos as partes íntimas do corpo.
Kandingwele escondeu-se entre as árvores e, sorrateiramente, pôs-se a assistir as raparigas apavoradas. Dobrou-se sobre o ventre três vezes, como quem não podia mais de tanto rir, e depois manteve-se sereno espreitando entre a ramada as donzelas que se esforçavam a vestir rapidamente. Nisto, puseram-se as bilhas com água à cabeça e sairam apavoradas em direcção à povoação aliando a presença de cães, noutra margem do rio, à presença indubitável do homem.
Quando as donzelas desapareceram da vista, Kandingwele sentou-se, novamente, debaixo da sombra do arbusto e sem dar em conta viu-se mergulhado em profundas meditações através do coração, órgão que, segundo os velhos sábios makondes, pensa e sente. Melancólico, Kandingwele, rebuscou relíquias amorosas de um passado muito recente e guardadas a sete chaves nas profundezas da sua memória. Revisitou com gosto a lista de raparigas que namorara às escondidas longem dos olhos desconfiados dos aldeões e por fim, sorriu de orgulho e satisfação esboçando na sua fisionomia triste uma expressão alegre e animada. Aspirou o ar profundamente, meneou a cabeça vigorosamente para afastar da mente aquelas recordações que lhe enchiam de emoção o coração. Volveu o olhar nas águas que corriam no leito cantando em tom cristalino e depois arrancou nas proximidades uma pétala enorme de uma flor selvagem. Desfez em pedaços insignificantes, sem saber porquê, e lançou-os para o rio. Olhou os retalhos com indiferença enquanto se esmeravam em vão contra a correnteza das águas que faziam os objectos passarem velozes por entre as pedras e o caniçal musgoso que predominava o leito do Chudi. Repetiu vezes sem conta esta brincadeira até que passado algum momento, ouviu o estalar insistente de ramos e folhas secas. Kandingwele revistou rapidamente a mata com os olhos e escondeu-se por entre os arbustos. O som insistente de pisadas de ramos e folhas secas intensificou-se significativamente e de repente, surgiu em frente dos seus olhos, noutra margem do rio, uma bela e sedutora rapariga que levava debaixo do braço esquerdo uma bilha decorada com perfeição por uma ceramísta makonde anónima perdida algures nas inúmeras povoações do planalto. Desceu o rio distraída até às águas, onde encheu a bilha e saiu para pousa-la na margem coberta vegetação verdejante. De seguida, despiu-se naturalmente, desceu, novamente, o rio e lançou-se às águas trauteando feliz com a vida.
Kandingwele saiu do esconderijo profundamente encantado pela beleza extraordinária da jovem makonde. Aproximou-se ao leito do rio e os olhos se encontraram. A donzela sorriu e continuou o banho olhando para o estranho que lhe assistia estupefacto noutra margem do rio. Kandingwele acenou-lhe a mão timidamente e a rapariga retribuiu o gesto naturalmente. Os dois olharam-se tranquilamente nos olhos como se se conhecessem de toda vida. Kandingwele sentou-se no chão cruzando os braços no peito e continuou apreciando a rapariga admirando, sobretudo, os seus seios túrgidos, olhos semi-esbugalhados, lábios escuros e carnudos, o seu olhar contagiante, suas coxas fartas e nádegas bamboleantes.
A rapariga saiu da água, passou as mãos pelo o corpo abaixo escorrendo gotas que lhe cobriam a pele e vestiu-se lançando olhares furtivos e sedutores ao Kandingwele. Quando acabou de vestir-se, pôs-se a bilha à cabeça, acenou a mão em sinal de despedida e serpenteando o corpo, propositadamente, desapareceu da vista seguindo o caminho que conduzia a povoação.
Entretanto, naquele dia à noite, já em casa e dentro do aposento, Kandingwele, não conseguia encetar o sono. Rebolava de um lado para o outro tentando apagar na sua mente aquela extraordinária donzela que vira à tarde daquele dia na margem direita do Chudi. Todavia, as suas recordações eram mais vivas e fortes do que o seu simples desejo de apagar na sua mente aquelas doce lembranças que lhe roubavam o sono. Contudo, já perto da madrugada o jovem foi vencido pelo sono.
No dia seguinte era domingo. Ao entardecer, o som de lipalapanda irrompeu o céu do planalto cortando-o de lés-a-lés e anunciando a sessão dominical de mapiko. Em pouco tempo as ruas ficaram agitadas. O terreiro encheu-se de gente e jovens de povoações distantes chegaram para uma competição de mapiko. Os murmúrios multiplicaram-se e o terreiro ficou barulhento. Era um grande dia!
Entretanto, soaram, por alguns instantes, os sons de vinganga e ntodje e, por fim, o som de lipalapanda cortou, novamente, o céu anunciando o inicio da competição. Kandingwele saiu do quintal e já na rua que conduzia ao terreiro da povoação juntou-se a um grupo de aldeões que se dirigia a competição fazendo comentários dos melhores grupos de mapiko. Enquanto caminhavam com destino ao terreiro, junto deles vinham vozes entrecortadas embaladas em cânticos antigos trazidos até ali pelo vento que soprando sem impetuosidade, levava consigo à terras distantes o tam-tam secular dos tambores, despertando assim os espíritos antigos adormecidos na imensa e densa floresta makonde.
Pouco tempo depois, chegaram ao terreiro e juntaram-se à multidão que cantava acompanhando orgulhosamente as batucadas dos tambores. Havia muita gente. O ar estava pesado e o cheiro humano era intenso. O mapiko com seus vestes e máscara característicos dançava no centro da roda humana fazendo, de quando em vez, brincadeiras engraçadas com o auditório. A sua frente, um grupo de tocadores de batuques esforçava-se em tocar os tambores procurando ganhar a simpatia do público que delirava acompanhando os cânticos dos percussionistas.
Kandingwele fez ao acaso uma ronda com os olhos em torno da multidão e, de repente, algo chamou sua atenção: doutro lado da moldura huamana estava a donzela do rio. Fez um esforço no meio da multidão caminhando ao seu encontro e quando chegou perto a donzela tinha já desaparecido. Ficou perplexo! Olhou em redor como se estivesse a procura de um diamante perdido e, por fim, saiu da multidão todo melancólico e pôs-se a procura da rapariga nos pequenos aglomerados de gente que se achavam nas inúmeras sombras de mangueiras espalhadas pelo terreiro.
De súbito, alguém bateu-lhe suavemente as costas. Kandingwele virou-se interrogativamente e viu à sua frente a donzela do rio sorrindo-lhe.
- O que procuras? – Quis saber a rapariga.
- Eu?
- Sim!
- Nada. – Disse Kandingwele embaraçado e depois acrescentou. – Estou a tentar apanhar ar fresco.
- Muito bem.
- E tu? O que fazes aqui?
- Queria ver se conseguias me descobrir...
- Como soubeste que vinha ao seu encontro?
- Advinhei.
O jovem fez um movimento para caminhar deixando um casal de velhos passar e depois, questionou:
- Chegaste bem ontem?
- Cheguei. – Sorriu. – E tu?
- Cheguei também, mas não consegui dormir nem tão pouco.
- Porquê?
- Não parava de pensar em ti.
A donzela riu. Olhou o interlocutor nos olhos e manteu-se serena e sorridente.
- Nunca alguém havia me deixado assim na vida. – Confessou Kandingwele honestamente.
- A sério?
- A sério. – O jovem esboçou uma expressão facial sincera e patética.
A donzela agitou o corpo toda gingona acompanhando com estilo o rufar dos batuques. Dirigiu o olhar para o centro da roda humana onde dois mapikos dançavam procurando mostrar à todo custo o auditório tudo o que sabiam acerca da arte de dançar mapiko. De seguida, volveu o olhar ao interlocutor.
- Posso te fazer uma pergunta? – Questionou Kandingwele.
- À vontade.
- O que faço para ganhar o seu coração?
A donzela riu. No fim, disse:
- Mostra que és valente.
- Como? – Sorriu. – Matando um leão ou domando um crocodilo?
- Não. – Retorquiu a donzela sorrindo.
- Então, como?
- Pedindo a minha mão em casamento.
Os dois jovens desataram a rir todos satisfeitos.
- A propósito. – Disse a rapariga assim que os risos cessaram. – Como te chamas?
- Kandingwele. E tu?
- Nkalimile.
- Belo nome.
- O seu também é muito belo, pese embora seja meio engraçado. – Observou Nkalimile.
- Porquê?
- Sei lá...
Os dois desataram a rir novamente felizes com a vida. Entretanto, afastaram-se da multidão e caminharam até perto do limiar do terreiro, onde detiveram-se no beiral de uma das palhotas que circundava o terreiro. Já longe do barulho dos populares e dos tambores, kandingwele, quis saber:
- Que linhagem pertences?
- Sou ntchipedi . E você?
- Midamu.
- Bem que não somos da mesma linhagem . – Monologou Nkalimile.
- Já agora, que faço para te ver novamente?
- É muito simples. – Assegurou a donzela. – Vivo na entrada da povoação e também podes me encontrar no rio nas tardes.
- A mesma hora que te vi ontem?
- Com certeza.
- Então, para não te roubar mais tempo,vejo-te outro dia.
- Não tem de quê.
Kandingwele fez movimento para caminhar. Os jovens olharam-se nos olhos intensamente e, no fim, deram-se as costas. Kandingwele dirigiu-se a casa muito feliz e Nkalimile voltou a juntar-se à multidão que assistia e dançava ao som das batucadas de vinganga e ntodje que, de quando em vez, eram intercaladas pelos sons ensurdecedores de lipalapanda .
No entanto, nos dias subsequentes Kandingwele e Nkalimile encontraram-se no rio e na floresta várias vezes até que uma certa tarde de quinta-feira e de céu nublado Kandingwele sentado na cama de lutandove ao lado do pai e do tio materno informou-lhes da sua pretenção de casar-se com Nkalimile.
- A ideia é boa e eu estava a espera de ouvir algo semelhante faz muito tempo. – Disse o pai rabiscando com uma bengala umas linhas obliquas na terra.
- E quem é a menina? – Quis saber o tio visivelmente emocionado.
- É Nkalimile. Uma bela e educada rapariga que vive lá no fim da povoação.
- É trabalhadora e saudável? – Inquiriu o pai olhando o filho firmemente.
- É, pai...
- Muito bem.
- E de que linhagem ela é?
- É ntchipedi.
Houve silêncio. Depois de alguns instantes, o pai disse:
- Há problema, meu filho.
- Que problema? – Quis saber Kandingwele estupefacto.
- Não é possível casares com essa rapariga. – Disse o tio tocando levemente o ombro do sobrinho.
- Porquê?
- É uma longa e complicada estória... – Explicou o pai. De seguida, acrescentou. – Foi há muito, muito tempo que tudo começou.
O velho calou-se. Reflectiu alguns instantes e voltou ao fio de pensamento.
- Há muito tempo um homem da linhagem vankundya matou um elefante na floresta. Ele e gente da sua linhagem comeram o animal todo de uma só vez e ficaram dali em diante a serem chamados vantchipedi, isto pelo facto de terem conseguido devorar sozinhos um elefante enorme.
O velho fez uma pausa novamente para ordenar as suas ideias, mas logo voltou ao ponto onde havia interrompido:
- Depois deste acontecimento, passaram duas gerações e houve likumbi muito grande. Na véspera do regresso dos rapazes do mato, morreu um deles e, pelo sucedido, todos rapazes adoptaram o nome de vamidamu em alusão às marmitas que era levadas para eles no mato. Depois disso, passaram-se ainda gerações. Portanto, vankundya e vamidamu são parentes dos vantchipedi e não é permitido casar entre eles.
Kandingwele suspirou. Meneou a cabeça como se estivesse a desaprovar a estória e manteu-se cabisbaixo. O tio olhou-o, passou-lhe a mão pelas costas e disse:
- Há muitas outras estórias antigas que proibem casamentos entre certas linhagens. Por exemplo, gente da linhagem vamboei estão impedidos de casar-se com membros da linhagem vanachuluma porque antigamente estes últimos mataram um parente dos vamboei. Apesar desta morte ter sido compensada com uma outra, infelizmente, estas duas linhagens ficaram para sempre inimigas.
- Por isso, filho, tens que procurar rapariga doutra linhagem para casar. – Disse o pai visivelmente abalado.
- Tenho certeza que vais achar, novamente, alguém especial que te fará muito feliz. – Encorajou o tio procurando animar o sobrinho.
Kandingwele manteu-se calado. O pai e o tio não pronunciaram uma palavra se quer e, passado algum momento, o jovem ergueu a cabeça e saiu dali melancólico para passear...
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Glossário:
- Chambo – Época seca que começa em Julho e termina em Outubro;
- Midamu – Alguém da linhagem vamidam;
- Dimbutuka – Gazelas;
- Vanachuluma –Linhagem Nachuluma;
- Vamboei – Linhagem Mboei;
- Rankundya – Linhagem de Nkundya;
- Likumbi – Lugar onde se realizam ritos de iniciação para os rapazes. Normalmente é lugar perto da povoação, mas escondido no mato, onde os vaali (rapazes ou meninas) vivem durante os meses de sua segregação no mato;
- Lutandove – cama composta de base de estacas e atravessada com cordas tecidas com palha;
- Ntchipedi – Alguém da linhagem vantchipedi;
- Lipalapanda – Chifre de antílope, normalmente, usado para anunciar uma festa ou animar uma sessão cultural;
- Midamu – Alguém da linhagem vamidamu;
- Vinganga – Batuque pequenos, achatados e meio delgados;
- Ntodje – Batuque delgado;
- Mapiko – Dança de máscara;
- Makonde – Povo do norte de Moçambique.
  • Leia também "O Turbilhão Lendário" outro texto de Francisco Absalão transcrito no ForEver PEMBA em 24/Outubro/2007 - Aqui !
O Autor:
- Francisco Absalão
- Nome artístico - Allman Ndyoko;
- Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
- Residência actual - Maputo;

10/24/07

O TURBILHÃO LENDÁRIO - Uma prosa acontecida em Pemba !

(Aqui, imagem de autoria do artista gráfico italiano Piero "Ingonane" que residiu em Pemba de 1989 a 1999)
Nada de melhor nos terá acontecido, naquele ano, do que as nossas férias na baia de Pemba, no norte do país.
Eu e o mano Beto haviamos passado de classe e o kôta prometera, logo nos primeiros dias do ano, umas férias na casa do avô Omar, em Paquitequete .
Assim que ficamos de férias na escola partimos de Maputo para Pemba, de autocarro, na companhia da tia Awa que viera nos buscar à capital.
A viagem fora cansativa mas, ao mesmo tempo, divertida, desde o terminal do TSL, na Avenida das FPLM , até ao controle de Pemba, no bairro de Mahate.
Dali partimos de táxi com destino a casa do avô Omar, no bairro de Paquite, como os pembenses lhe chamam, onde ficariamos quinze dias a gozarmos as férias por entre o marulhar das ondas do Índico.
Enquanto nos dirigíamos para a cidade, que distava uns quilómetros, o taxista ia-nos amostrando a paisagem dominada, principalmente, por embondeiros e algumas árvores menos frondosas e arbustos vulgares.
Do Alto-Gingone, um bairro periférico do aeroporto local, vimos a “esteira” azul do mar deitada manjestosamente ao longo da baia, parecendo um enorme anzol feito de água.
Mas, para o lado direito da estrada que nos conduzia, emergia uma nova cidade próxima da faixa de areia branca que ladeia quase toda a cidade: era a famosa praia do Wimbe, um enorme potencial turístico da região norte do país.
No entanto, pouco tempo depois desembocámos na cidade e passámos pela artéria principal do bairro de cimento.
Enquanto o carro deslizava na estrada asfaltada, vimos de longe os bairros de Cariacó, Natite e Ingonane e, mais tarde, rumamos pela marginal até ao bairro costeiro de Paquitequete, na zona de Kumilamba, onde o táxi parou em frente da casa de um dos vizinhos do avô; descemos, caminhando depois por uma rua estreita que nos levou direitos ao destino.
Ao chegarmos, fomos recebidos com alegria e, dos familiares e vizinhos, recebemos apertos efusivos de mão, à moda dos makimuanes.
Sentado na esteira de palha, na companhia do mano Beto e de outros garotos curiosos que se aproximaram ao chegarmos, pus-me a contemplar a casa que era feita de pau-a-pique, rebocada com matope e coberta de macuti .
O quintal era de bambú suportado por diversas estacas sólidas provenientes de Ulonto, lá na outra margem da cidade.
Depois de todo o cerimonial que um visitante merece, não aguentei mais: ergui-me da esteira e fui para a frente da casa, onde fiquei olhando para o mar azul e ouvindo o som das ondas misturado com o som dos búzios.
Durante muito tempo fiquei ali imóvel e boquiaberto, vendo ao longe pequenas embarcações à vela, pescadores puxando redes carregadas de peixe, barcos a motor transportando passageiros para o Ibo, Mocimboa da Praia, Quirimbas e outros pontos da Província.
Depois de um tempo, deitei o olhar para a margem onde me encontrava e fiquei apreciando a beleza das ondas e assistindo ao espectáculo dos carangueijos que, espantados pelo marulhar das ondas, fugiam em debandada ao encontro dos seus esconderijos que raramente falhavam.
Entretanto, a minha tranquilidade naquele sítio não tardou a chegar ao fim.
Um garoto aproximou-se interrompendo a minha concentração na observação da natureza e, com uma ponta de timidez, informou-me:
- Precisam de ti.
- De mim? – Interroguei-o sem desviar o olhar do mar.
- Sim.
- Aonde?
- Lá no quintal.
- E quem precisa de mim? – Quis eu saber, olhando os seus olhos.
- Avô Omar. – Replicou ele, desviando o olhar.
- Voltou?
- Sim. – Sorriu. – Faz um tempo.
Saí dali e fui até ao quintal. “escoltado” pelo miúdo, que não parava de me lançar olhares furtivos, e, ao chegar, saudei o avô e fiquei conversando com ele desde o rpincípio da tarde até ao anoitecer.
Passados alguns dias e após termos pedido autorização ao avô, eu e mano Beto, e outros garotos do bairro, fomos à praia brincar.
Era sábado; a praia estava repleta de banhista e os pescadores ainda não tinham voltado do mar.
Ficámos na margem apanhando búzios, construíndo castelos de areia, perseguindo caranguejos, brincando com garrafas-azuis e ajudando os pescadores a puxar as redes e a tirar da água os pequenos barcos à vela.
Foi neste dia que ouvi dos nossos novos amigos a lenda do turbilhão Nunumuana, que fica a algumas milhas da Baía de Pemba.
Fiquei curioso e ao mesmo tempo cheio de medo.
Naquele dia não saí de noite para ver o mar sob o luar e muito menos para contar quantos segundos passam entre o acender alternado dos faróis das rochas de Ingonane e Ulonto.
Um certo dia, estando eu na companhia do avô Omar a pescar na zona portuária da baía, interroguei-o acerca da veracidade da misteriosa lenda que corria de boca em boca entre os garotos pembenses.
Ele garantiu-me a veracidade da história e prometeu contar-me tudo, noutro dia, porque a história era longa e complicada.
Os dias foram passando, um atrás do outro, e todas as noites ouvíamos histórias diversas contadas pelo avô, mas, curiosamente, o kôta não se lembrava de contar a história do turbilhão.
Nisto, numa certa noite de luar, décimo terceiro dia da nossa estada em Pemba, a curiosidade obrigou-me a pressioná-lo a contar a história prometida, pelo que o velho me respondeu:
- Tudo bem. Eu vou contar, já que insistes tanto.
Acendeu um tabaco, fumou em silêncio com o olhar perdido num ponto indefinido, como se estivesse a pensar em algo guardado nas profundezas da sua memória, sorriu perceptívelmente fazendo animar a sua face sulcada de profundas rugas e, por fim, começou a narrar a história.
- Reza a lenda que foi há muitos anos, muitos anos mesmo – Repetiu com firmeza, a ponto de acordar o mano Beto que já apanhara uma soneca. – que um barco transportando uma terrível curandeira e seus ajudantes naufragou, numa zona a algumas milhas da nossa costa, e o naufrágio matou todos os ocupantes.
- Ninguém se salvou? – Quis eu saber, curioso.
- Ninguém! – Disse, meneando a cabeça e pegando, ao lado do tronco onde estava sentado, numa “ exportação ” de nipa , que de seguida levou aos lábios, e bebeu um golo pelo gargalo.
Depois de pousar a garrafa no chão, avivou a fogueira que ardia no centro da roda humana, feita de miúdos do bairro ávidos de ouvir histórias antigas transmitidas oralmente de geração em geração, e em seguida continuou:
- Daí, os náufragos transformaram-se em fantasmas ferozes, a ponto de consiguirem, com a ajuda de um turbilhão acompanhado de ventos tempestuosos, imobilizar um navio enorme. A partir daquele dia, todos os peixes da baía passaram a ser deles e, quem pescasse à noite, era frequente deparar-se com fantasmas recolhendo redes e libertando peixes das redes e dos anzóis. Foi nessa época que o peixe, o alimento principal dos nativos, começou a escassear e os pescadores passaram a morrer em massa, vítimas de misteriosos ventos fortes.
Estremeci, escutei o som do mar e olhei em redor do quintal iluminado pela lua que derramava a sua luz sobre todos os bairros da cidade.
Depois, apurei os ouvidos e fiquei ouvindo a história que o avô contava, gesticulando e falando num tom de voz carregado de uma miscelânia de emoção e terror.
- Então, os nativos da baía reuniram-se para resolver o problema e, para tal, chamaram o curandeiro Amisse que, com a ajuda dos ancestrais, conseguiu falar com a curandeira náufraga. Durante o diálogo ela proibiu a pesca nocturna, o uso da rede de malha fina, e o derramamento de líquidos estranhos nas águas e, além disto, ordenou que todos os barcos que passassem pela zona do turbilhão atirassem para o mar alimentos diversos, de preferência carne fresca, como forma de pagar tributo pelos peixes apanhados na baía. Estes alimentos serviam para alimentar os peixes nas profundezas do mar, para melhor se reproduzirem e crescerem saudáveis.
O kôta tossiu três vezes interrompendo a locução; bebeu um trago da sua “primeirinha”, e prosseguiu:
- Quem não obedecesse ao que Nunumuana dissera, uma gigantesca massa de água que se revolve rapidamente cobri-lo-ia imediatamente e, se se tratasse de um barco naufragaria, e os seus ocupantes transformar-se-iam em fantasmas imortais e, depois, ocupar-se-iam de vigiar o mar e impôr a ordem quando se julgasse conveniente.
O velho fez uma pausa.
Puxou do tabaco enrolado num pedaço de papel de caqui, e aspirou voluptosamente o fumo que invadiu temporariamente o espaço da roda feito pelos miúdos que o escutavam com paciência e manifesto interesse.
Depois, enterrou na areia a ponta acesa do cigarro e logo voltou ao fio da história:
- Na verdade, após a cerimónia com o curandeiro, toda a gente passou a respeitar e a cumprir rigorosamente o que Nunumuana dissera e, em consequência disso, os peixes multiplicaram-se na baía, as mortes dos pescadores diminuíram drasticamente, e os nativos e outros habitantes passaram a viver felizes.
O Kôta calou-se e fez-se um silêncio absoluto durante o qual pude ouvi-lo a ressonar como um contrabaixo desafinado.
Olhei para os garotos à minha volta, vi que ainda se achavam atentos como mochos e, por fim, tossi propositadamente.
O velho assustou-se, acendeu novamente o tabaco que havia enterrado na areia e libertou uma grande fumaça que o fez tossir vezes sem conta.
Após um tempo bebeu de uma só vez a sua “ primeirinha ”, entoou em Kimuane uma canção sobre a lenda e, por fim, ergueu-se e começou a dançar enquanto o acompanhavamos em côro, batendo palmas.
Dois dias depois, eu e o mano Beto tomámos o autocarro de volta para Maputo, onde chegámos ao terceiro dia.
Passada uma semana, um impulso não me deixava e, consequentemente, impeliu-me a escrever estas linhas como forma de imortalizar a lenda e dar a conhecer a toda gente como os pembenses passaram a valorizar e a preservar o mar e os seus recursos.
O Turbilhão Lendário por Francisco Absalão - In Blocos OnLine
  • Biografia de Francisco Absalão segundo o "Blocos On Line" - O nome artístico é: Allman Ndyoko. Nasceu em 11 de Abril de 1977 em Pemba, província de Cabo Delgado -Moçambique. Residência actual: Maputo.