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8/29/11

Entre Porto Amélia e o Douro - Em tempo de Festas de Nossa Senhora do Socorro...

Em tempo de Festas de Nossa Senhora do Socorro  na Régua / Douro, recordo:

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994. (Atualização)

Conheci-o em Porto Amélia. O meu destacamento, sediado em Quelimane, viera substituir uns "cocuanes"* que estavam de regresso à Metrópole. Para trás deixava a luxúria dos palmares de Penabe, o esmagamento das infindáveis plantações de chá do Gurué, o silêncio e os ruídos da selva esplendorosa de Mocubela ou Maganja da Costa, a confraternização da boa gente da capital da Zambézia.

Foi em Março de 1968. Em Lisboa, Salazar ainda não agonizava, e Marcelo Caetano repartia o seu tempo entre a Faculdade de Direito, a reescrita do seu Manual de Direito Administrativo e o seu escritório de jurisconsulto ali para os lados da Rua do Ouro, mal sonhando que, em finais desse ano, ocuparia S. Bento para assistir, num desterro brasileiro, ao funeral do Império. Em Lourenço Marques, a Polana estava cheia de sul-africanos e os ecos do Norte mal chegavam às esplanadas.

O Jaime Ferraz Gabão era, a par da sua actividade profissional numa empresa algodeira, o correspondente, para o distrito de Cabo Delgado, do mais prestigiado jornal Moçambicano - o Diário de Moçambique** - e criava, semanalmente, uma página regional onde dava oportunidade a jovens colaboradores. Uniu-nos a paixão pêlos jornais. Essa afinidade gerou entre nós uma profunda estima e, com o tempo, à medida que nos íamos conhecendo, uma amizade tão grande que, ainda hoje, à distância de vinte e seis anos, nem sei como definir.

O Jaime era uma alma generosa e não queria morrer com remorsos nem deixá-los aos vivos. Abandonara a Régua quando os seus sonhos se desfizeram e a realidade que os seus olhos contemplavam era tão crua que não hesitou quando um velho amigo o convidou para abalar até às paragens do indico.

Feito, posteriormente, o reencontro com a Mulher que sempre o acompanhou até ao fim dos seus dias, o meu saudoso amigo ganhou a paz a que todo o ser humano tem direito quando se está de bem com Deus e os seus semelhantes.

África dera-lhe a razão da vida e a justificação para a partilhar. Sob o tecto africano, nos dias abrasadores ou nas noites do cacimbo, o Jaime consumia e retemperava as energias de um homem que, no nosso Douro, herdara o amor do trabalho honrado. Nunca foi patrão nem capataz, nunca ostentou ou humilhou, nunca cortejou poderosos nem desprezou deserdados, nunca separou brancos de um lado e pretos do outro. Amou a África porque a África - caros leitores - é encantamento deslumbrante, um chamamento emocional que arrebata, uma sedução tão arrepiante que não há palavras para a descrever, só sentindo-a, calcorríando as picadas inóspitas e engolindo o seu pó, bebendo água do coco ou dos pântanos solitários, aganando sob o fogo do seu sol ou tremendo nas suas madrugadas de névoa.

Eu entrava em casa do Jaime Ferraz Gabão sem bater à porta, sentava-me à sua mesa sem perguntar onde era o meu lugar, conversávamos horas sem fim no deleite do entardecer, íamos e vínhamos pelas ruas e cafés de Porto Amélia com a naturalidade de quem vivia o tempo todo na fruição plena da fraternidade e as areias da praia de Wimbe já conheciam os nossos pés nas manhãs de Domingo.

Findo o meu tempo de serviço militar regressei à minha aldeia e o Jaime por lá ficou. Ainda recordo, comovido, as nossas lágrimas de despedida.

Um dia, nas sequelas da tal exemplar descolonizaçâo, ele voltou, também, às suas origens. Foi um trauma de que nunca se curou. Aquilo foi como uma traição que, na sua boa fé, não contava; um murro medonho na esquina da sua vida, na pureza da sua certeza patriótica. Desgastado e amargurado, vendo, mais uma vez, o seu ideal a fugir-lhe, mastigou em seco muitas desilusões e incompreensões. Pertencia àquele tipo de homens que não tem pele de elefante porque cultivava a franqueza e a capacidade de perdão. Custava-lhe a ruindade à sua volta, os anátemas dos retornados, a indiferença por uma terra e por uma causa que interiorizara tão profundamente que alturas tinha em que já não sabia se as raízes eram mais fortes - ou mais fracas - do que as saudades dolorosas dos batuques, do cheiro das queimadas, dos dias em mangas de camisa, da leveza das brisas da baía de Pemba, do carregado das trovoadas no mato, do odor a catinga ou dos gritos da hiena sem companhia.

O jornalismo enganou-lhe as recordações, sublimando-as em descrições sempre apaixonadas mas nunca desonestas. Sabia que um jornal, fosse qual fosse o seu dono, não era um palco de propaganda, nem um púlpito de ressabiados pessoalismos, nem um ócio de frustrados a envenenarem relações, nem um palanque onde os vencidos políticos ruminassem vinganças. Praticou um jornalismo de transparência porque não ocultava o relevante e, quando assumia a opinião, não ofendia sentimentos nem provocava a consciência alheia. Tinha a educação herdada do berço e cultivada no pragmatismo do quotidiano. Escreveu muitas páginas de memórias das terras e das gentes por onde andou e viveu sem verbalismos ou maniqueísmos. Viveu o dilema dos que, conhecedores dos largos espaços, se ressentem, sofrídamente, das estreitezas dos horizontes, onde, afinal, a poesia da alma se reflecte no limite dos muros da indiferença das coisas e das pessoas. Sem sabedorias arcádicas ou carreiras/academistas, mas possuidor de um entusiástico autodidactismo. O Jaime Ferraz Gabão transformava a simplicidade escondida na mais bela descoberta. Homem solidário, condoía-se de um pé descalço e não dominava as revoltas do seu sangue. Se é preferível a responsabilidade dos gestos que não praticamos porque outros nos impedem aos que não fazemos porque a eles nos recusamos, o Jaime culpava-se de todas as injustiças do dia a dia da vida. Era um espírito em permanente responsabilização e nunca contente de ver realizar-se o que se deve. Se aqui recordo o Jaime Ferraz Gabão neste livrinho das Festas em Honra de Nossa Senhora do Socorro, onde ele sempre colaborava com alegria, não é só para que conste, mas também para implorar à nossa Padroeira que, não se esquecendo de todos nós - os vivos - não olvide o meu querido e saudoso Amigo que, na Fé, viveu sempre, mesmo quando a morte já lhe rondava os passos.
- Por M. Nogueira Borges – Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro de 1994 (“recorte” cedido gentilmente por J A Almeida).

* - "cocuanes" termo adaptado do idioma macua e que quer dizer velho(os), no caso: "...viera substituir uns militares mais antigos".
**retifico - Jaime Ferraz Gabão era correspondente e distribuidor para Cabo Delgado do Diário de Lourenço Marques com sede em Lourenço Marques, atual Maputo. Embora colaborasse eventualmente com outros jornais moçambicanos e portugueses, o Diário de Moçambique estava sediado na cidade da Beira e, se a memória não me falha, seu correspondente para Cabo Delgado era o também saudoso Administrador Zuzarte.
  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão citado no portal do Sport Club da Régua - Aqui!
  • Cartal de Longe - Lembrando o cidadão e  o jornalista Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!
  • UM DE NÓS - Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Aqui!
  • Várias 'ligações'(post's) que comentam Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!

RECORDANDO... - Por Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, a propósito das Festas de Nossa Senhora do Socorro

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994.


5/14/11

Escritos do Douro - MEMÓRIAS DOS NOSSOS BOMBEIROS

                                                                                                   M. Nogueira Borges

""Conheci-o em Moçambique, para onde fora mobilizado, no ano de sessenta e oito. Mais concretamente, foi em Porto Amélia que começou uma das minhas mais lindas amizades. O Jaime Ferraz Gabão – é dele que se trata – deixara um dia a sua Régua em busca de outros horizontes que lhe desse, e aos seus, novo sentido à vida. Pertenceu a essa plêiade de cabouqueiros que em África assegurou a sobrevivência sem chibatas, antes com suor repartido entre brancos e negros, respeitando as gentes, pois há sempre uma alma para dar a Deus. ... ... ""
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I- «Era ainda pequenino, acabado de nascer», mas lembro-me, no meio de alguma sombra, do primeiro fogo que vi. Eu brincava, com o Aires e o Manel, no quintal da casa onde nasci ; seria Verão, e no entardecer,  porque o meu Avô, ao fundo, sentado num cesto vindimo, vestia colete e embrulhava um cigarro de tabaco de onça. O ar tinha uma calma de convento e só os crianças algaraviavam nos caminhos. Corríamos com os arcos, que descarrilavam dos ganchos, perdendo-se nos bardos de um calço rente ao muro. De repente, o meu Avô pegou na bengala que o ataque lhe impusera, levantou-se a gesticular, mandou-nos parar, e gritou pelo Alberto que dava palha ao Castanho. Minha Mãe também acorreu, pois quando o Pai se alterava toda a estirpe desassossegava.

Em Santo Estevão, no caminho alto que dá para o Rodo, uma chama, logo espalhada em contágio descontrolável, começava a devorar uma casa e outras anexas. Quase todas tinham muita madeira na sua feitura e o incêndio alastrou com a rapidez de um roubo. O povo despertou num clamor de tragédia. Mulheres, de canecos à cabeça, corriam a despejar a água colhida numa fonte escassa, situada no fundo da rampa; os homens, de sacholas e pás, lançavam a terra que arranhavam no caminho. Eu e os meus amigos largamos tudo e fomos para o pé do meu Avô a quem faltou a saliva para colar a mortalha. Batia com a bengala no chão e dizia para o Alberto: «Depressa! Chama o carro de praça para ir avisar os bombeiros!» Lembrei-me do inferno e dos pecadores. Jurei que iria ser sempre «um rapaz muito bem comportado», pois se as chamas infernais eram assim, então a minha Mãe tinha razão quando me dizia para comer a sopa toda.

Mal o carro vermelho, tocando a sineta, chegou ao Fial parece que as labaredas amainaram em respeito. Mas alegria tivemos nós quando o vimos a fazer a curva da árvore queimada, capacetes e machados reluzentes de homens que vinham «acabar com o fogo». Vários, aos gritos, se lhes dirigiram, ensinando o atalho onde o carro não cabia. Em desafio, pareceu, as chamas alteraram-se como se tivessem encontrado restos de papel. Correndo, os bombeiros lançaram-se àquele inferno verdadeiro, espalhando instruções, clamando ânimos, recusando desfalecimentos. Ainda hoje, ao escrever estas linhas, me emociono com o recordativo. Quando, no final, vencido o abrasamento, eles, descompostos e afogueados, desceram para a Régua, deixaram atrás de si o triunfo cantado no agradecimento dos atormentados, que, varrendo as cinzas da sua amargura, sonhavam com casas de cantaria.

Fiquei sempre com essa impressão juvenil de reverência e carinho pelo sacrifício e solidariedade dos nossos bombeiros, consolidada vida fora, algumas vezes lembrada quando as peripécias da vida, muitas vezes, me esbofeteiam com a surpresa.

II- A sirene dos Bombeiros ouvia-se no alto de S. Gonçalo. Era um chamado que afligia. Começava por um grito de desespero, de quem é atacado à falsa fé, seguido por prolongado gemido de sofrimento, esperando uma ajuda caridosa. Repetido, como se ninguém acudisse, esse apelo sonoro, num eco estendido pelos montes e vales, dilacerava as almas e escurecia a natureza. Os homens suspendiam as fainas, soerguiam-se, olhavam em redor, lançavam o olhar para Avões ou São Domingos, firmavam-se em Remostias ou no cimo do Peso; queriam ver onde se elevava o fumo, se era dentro ou fora da “vila”. Tiradas as “teimas” e assente a origem, debruçavam-se, de novo, para a terra que lhes dava o suor do sustento.

Os tempos de que trato eram de necessidade, em que uma sardinha de barrica dava para três, comia-se cebola com sal e broa com azeitonas, mas havia uma enorme riqueza de solidariedade. As gentes sofriam com o mal alheio, gostavam de ajudar e sentiam como suas as lágrimas vizinhas. A escassez irmanava no relevo dos gestos. Ser bombeiro era fazer parte dessa honra, ditada pelo falar popular, soldados da paz e serventes da humanidade, voluntários do mundo e escravos da lida contra o infortúnio, corpos fardados e almas civis.

III- As noites do Douro, nesse Agosto de 53, eram mais escuras do que hoje. A sua claridade vinha da lua, dos faróis de carro que, de quando em vez, alumiavam o silêncio dos vinhedos, um ou outro poste, de longe em longe, plantado pela boa vontade da Chenop, o petromax de quem levava a recolher a ebriedade, que esquecia nas tabernas as injustiças da sua sorte  desajustada na sua contabilidade doméstica.
Foi numa dessas noites que a Régua se cobriu com o clarão da tragédia. A Casa Viúva Lopes, forte estabelecimento comercial da época, ardia diante do pasmo assustado da terra, tolhida pelo sobressalto e pelo dó. Nem o rio ali ao pé nem o clamor da população segurou o recheio ou as traves que o defendia. Bem lutaram os bombeiros; lutaram até ao fim e até à morte. Lá ficou o Senhor Figueiredo, imortalizado pela pena do nosso Escritor, também ele imortal, João de Araújo Correia, como o João dos Óculos, que ganhava a vida a desenhar palavras no chumbo tipográfico. Lá ficou, queimado pelo seu voluntarismo, pela dedicação e amor ao próximo.

Na nossa Região, os Bombeiros Voluntários da Régua sempre foram uma referência. Associação humanitária a dar «vida por vida», num ditame nunca contestado, servindo, sem olhar a quem, nas dificuldades físicas e morais, na vida e na doença, na esperança e na morte. Mais uma vez se comprovara, bem duramente, a tradição e a lenda da sua história.

IV- Conheci-o em Moçambique, para onde fora mobilizado, no ano de sessenta e oito. Mais concretamente, foi em Porto Amélia que começou uma das minhas mais lindas amizades. O Jaime Ferraz Gabão – é dele que se trata – deixara um dia a sua Régua em busca de outros horizontes que lhe desse, e aos seus, novo sentido à vida. Pertenceu a essa plêiade de cabouqueiros que em África assegurou a sobrevivência sem chibatas, antes com suor repartido entre brancos e negros, respeitando as gentes, pois há sempre uma alma para dar a Deus. Ofereceu-me a sua mesa e as suas palavras nas noites em que brilhavam as acácias rubras sob os candeeiros escurecidos pelos mosquitos. Sentia-lhe a saudade pelo regresso, mas, também, receio de um dia ter que abandonar tudo - por pouco que fosse – depois de anos de sacrifício. Colaborámos, na distância – ele há tempos e com melhor saber – nos semanários regionalistas da nossa terra, cada qual na sua independência e companheirismo. Eu regressei e ele ficou.

Um dia abraçámo-nos na Rua dos Camilos. Ele viera nessa leva, inventada por uma qualquer pejorativa mente, de “retornados“. Ainda tentara ficar, mas a onda de oportunismo e adesão cobarde aos valores nunca professados, não lhe sossegavam as entranhas. Chegou de olhos tristes e coração despedaçado. Depois de alguns anos de aptidões reconquistadas, o Jaime adoeceu no corpo, que no espírito nunca sarou. Prolongou a doença o mais que pôde, mas quando ela chegou ao fim não encontrou grande resistência: ele já se cansara de lutar, de andar de abrigo em abrigo em busca da serenidade.
Foi numa tarde de Junho, quando a Régua é um inferno de calor, que ele subiu para o Peso onde descansa eternamente. Foram os nossos bombeiros  que o levaram, associado que era. Atrás, com os seus familiares e amigos, eu recordava-o numa mistura confusa, em que cabiam as memórias dos meus mortos, dos fogos e das cinzas, mas, também os carinhos dispensados aos vivos, ajudando, até, a nascer muitos que perpetuam o nosso mundo.

Agora que vem aí o Verão, estação para algumas descomposturas e traições humanas, ofensivas da natureza e dos socorros dos soldados da paz, que não falte o apoio e a boa fé de quem manda, mesmo neste tempo de desgosto e baixeza moral.

Abril 2011

Nota: Agradecemos ao escritor M. Nogueira Borges, natural do concelho de S. Marta de Penaguião, por ter escrito para o Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua este brilhante texto sobre as suas memórias dos bombeiros e, em especial, sobre os da Régua. O nosso muito obrigado por ter evocado factos e figuras que ainda hoje são inesquecíveis na longa história dos Bombeiros da Régua.
- Matéria cedida por M. Nogueira Borges e J. Alfredo Almeida para Escritos do Douro em Maio de 2011. Clique nas imagens ilustrativas do texto acima para ampliar.
== :: ==
Memórias dos Nossos Bombeiros - 1
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 28 de Abril de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
MEMÓRIAS DOS NOSSOS BOMBEIROS
Memórias dos Nossos Bombeiros - 2
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 5 de Maio de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
MEMÓRIAS DOS NOSSOS BOMBEIROS - 2
Transcrito do Blogue "Escritos do Douro"

8/14/09

Em tempo de Festas de Nossa Senhora do Socorro na cidade da Régua recordo Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua/Douro/Portugal - 1994.

Conheci-o em Porto Amélia. O meu destacamento, sediado em Quelimane, viera substituir uns "cocuanes"* que estavam de regresso à Metrópole. Para trás deixava a luxúria dos palmares de Penabe, o esmagamento das infindáveis plantações de chá do Gurué, o silêncio e os ruídos da selva esplendorosa de Mocubela ou Maganja da Costa, a confraternização da boa gente da capital da Zambézia.

Foi em Março de 1968. Em Lisboa, Salazar ainda não agonizava, e Marcelo Caetano repartia o seu tempo entre a Faculdade de Direito, a reescrita do seu Manual de Direito Administrativo e o seu escritório de jurisconsulto ali para os lados da Rua do Ouro, mal sonhando que, em finais desse ano, ocuparia S. Bento para assistir, num desterro brasileiro, ao funeral do Império. Em Lourenço Marques, a Polana estava cheia de sul-africanos e os ecos do Norte mal chegavam às esplanadas.

O Jaime Ferraz Gabão era, a par da sua actividade profissional numa empresa algodeira, o correspondente, para o distrito de Cabo Delgado, do mais prestigiado jornal Moçambicano - o Diário de Moçambique** - e criava, semanalmente, uma página regional onde dava oportunidade a jovens colaboradores. Uniu-nos a paixão pêlos jornais. Essa afinidade gerou entre nós uma profunda estima e, com o tempo, à medida que nos íamos conhecendo, uma amizade tão grande que, ainda hoje, à distância de vinte e seis anos, nem sei como definir.

O Jaime era uma alma generosa e não queria morrer com remorsos nem deixá-los aos vivos. Abandonara a Régua quando os seus sonhos se desfizeram e a realidade que os seus olhos contemplavam era tão crua que não hesitou quando um velho amigo o convidou para abalar até às paragens do indico.

Feito, posteriormente, o reencontro com a Mulher que sempre o acompanhou até ao fim dos seus dias, o meu saudoso amigo ganhou a paz a que todo o ser humano tem direito quando se está de bem com Deus e os seus semelhantes.

África dera-lhe a razão da vida e a justificação para a partilhar. Sob o tecto africano, nos dias abrasadores ou nas noites do cacimbo, o Jaime consumia e retemperava as energias de um homem que, no nosso Douro, herdara o amor do trabalho honrado. Nunca foi patrão nem capataz, nunca ostentou ou humilhou, nunca cortejou poderosos nem desprezou deserdados, nunca separou brancos de um lado e pretos do outro. Amou a África porque a África - caros leitores - é encantamento deslumbrante, um chamamento emocional que arrebata, uma sedução tão arrepiante que não há palavras para a descrever, só sentindo-a, calcorríando as picadas inóspitas e engolindo o seu pó, bebendo água do coco ou dos pântanos solitários, aganando sob o fogo do seu sol ou tremendo nas suas madrugadas de névoa.

Eu entrava em casa do Jaime Ferraz Gabão sem bater à porta, sentava-me à sua mesa sem perguntar onde era o meu lugar, conversávamos horas sem fim no deleite do entardecer, íamos e vínhamos pelas ruas e cafés de Porto Amélia com a naturalidade de quem vivia o tempo todo na fruição plena da fraternidade e as areias da praia de Wimbe já conheciam os nossos pés nas manhãs de Domingo.

Findo o meu tempo de serviço militar regressei à minha aldeia e o Jaime por lá ficou. Ainda recordo, comovido, as nossas lágrimas de despedida.

Um dia, nas sequelas da tal exemplar descolonizaçâo, ele voltou, também, às suas origens. Foi um trauma de que nunca se curou. Aquilo foi como uma traição que, na sua boa fé, não contava; um murro medonho na esquina da sua vida, na pureza da sua certeza patriótica. Desgastado e amargurado, vendo, mais uma vez, o seu ideal a fugir-lhe, mastigou em seco muitas desilusões e incompreensões. Pertencia àquele tipo de homens que não tem pele de elefante porque cultivava a franqueza e a capacidade de perdão. Custava-lhe a ruindade à sua volta, os anátemas dos retornados, a indiferença por uma terra e por uma causa que interiorizara tão profundamente que alturas tinha em que já não sabia se as raízes eram mais fortes - ou mais fracas - do que as saudades dolorosas dos batuques, do cheiro das queimadas, dos dias em mangas de camisa, da leveza das brisas da baía de Pemba, do carregado das trovoadas no mato, do odor a catinga ou dos gritos da hiena sem companhia.

O jornalismo enganou-lhe as recordações, sublimando-as em descrições sempre apaixonadas mas nunca desonestas. Sabia que um jornal, fosse qual fosse o seu dono, não era um palco de propaganda, nem um púlpito de ressabiados pessoalismos, nem um ócio de frustrados a envenenarem relações, nem um palanque onde os vencidos políticos ruminassem vinganças. Praticou um jornalismo de transparência porque não ocultava o relevante e, quando assumia a opinião, não ofendia sentimentos nem provocava a consciência alheia. Tinha a educação herdada do berço e cultivada no pragmatismo do quotidiano. Escreveu muitas páginas de memórias das terras e das gentes por onde andou e viveu sem verbalismos ou maniqueísmos. Viveu o dilema dos que, conhecedores dos largos espaços, se ressentem, sofrídamente, das estreitezas dos horizontes, onde, afinal, a poesia da alma se reflecte no limite dos muros da indiferença das coisas e das pessoas. Sem sabedorias arcádicas ou carreiras/academistas, mas possuidor de um entusiástico autodidactismo. O Jaime Ferraz Gabão transformava a simplicidade escondida na mais bela descoberta. Homem solidário, condoía-se de um pé descalço e não dominava as revoltas do seu sangue. Se é preferível a responsabilidade dos gestos que não praticamos porque outros nos impedem aos que não fazemos porque a eles nos recusamos, o Jaime culpava-se de todas as injustiças do dia a dia da vida. Era um espírito em permanente responsabilização e nunca contente de ver realizar-se o que se deve. Se aqui recordo o Jaime Ferraz Gabão neste livrinho das Festas em Honra de Nossa Senhora do Socorro, onde ele sempre colaborava com alegria, não é só para que conste, mas também para implorar à nossa Padroeira que, não se esquecendo de todos nós - os vivos - não olvide o meu querido e saudoso Amigo que, na Fé, viveu sempre, mesmo quando a morte já lhe rondava os passos.
- Por M. Nogueira Borges – Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro de 1994 (“recorte” cedido gentilmente por J A Almeida).

* - "cocuanes" termo adaptado do idioma macua e que quer dizer velho(os), no caso: "...viera substituir uns militares mais antigos".
**retifico - Jaime Ferraz Gabão era correspondente e distribuidor para Cabo Delgado do Diário de Lourenço Marques com sede em Lourenço Marques, atual Maputo. Embora colaborasse eventualmente com outros jornais moçambicanos e portugueses, o Diário de Moçambique estava sediado na cidade da Beira e, se a memória não me falha, seu correspondente para Cabo Delgado era o também saudoso Administrador Zuzarte.
  • Página de Peso da Régua onde recordo Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!
  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão citado no portal do Sport Club da Régua - Aqui!

3/30/09

KANIMAMBO: o percurso de uma família de “retornados” de Moçambique...

Sugestão de leitura:

Kanimambo - Romance de Tânia Jorge baseado no drama vivido por milhares de portugueses naturais e residentes na ex-colónia de Moçambique:

""Kanimambo é um romance baseado em factos verídicos que retrata o percurso de uma família de “retornados” que nunca se sentiram como tal.

Um percurso que se inicia nas estradas poeirentas da colónia portuguesa de Moçambique, no começo da década de 50, e continua a fazer-se em terras lusitanas até aos nossos dias.

Beatriz é a personagem principal deste livro. Depois de ser afastada da mãe com apenas dois anos, conhece o amor nos braços de José com quem forma uma família.

A conturbada Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974, e a fuga de casa da sua filha mais velha vêm abalar a harmonia em que se habituou a viver.

Os anos que se seguem são difíceis e dolorosos para milhares de pessoas que, como eles, se vêm obrigadas a partir da terra que consideravam ser a sua.

Depois de atravessar um oceano e de perder o lar e o marido, Beatriz espera a sua velhice rodeada pelo afecto dos filhos e das netas. Porém, a vida nem sempre se revela aquilo que dela esperamos...""

Locais onde encontrar "Kanimambo":


3/26/09

Retornados de África: A mancha que não se apaga - Espoliados em Moçambique querem ser ressarcidos!

Depois de Abril de 1974, a "novela" que envergonha continua:

Tomar: Retornados de Moçambique querem ser ressarcidos.

Sete portugueses que regressaram de Moçambique após a independência querem que o Estado português lhes pague juros pelo tempo que demorou a restituir-lhes as quantias que haviam depositado nos consulados e que devolva os emolumentos e acréscimos que pagaram.

O processo, que entrou no Tribunal de Tomar em Abril de 2000, tem sexta-feira a sessão de audiência destinada às alegações finais das partes.

Na sequência da independência de Moçambique e da eclosão da guerra civil, os queixosos depositaram, em 1976, dinheiro nos Consulados de Portugal em Maputo e na Beira (num total de cerca de 3,1 mil contos, 15,5 mil euros), com a promessa de que esses montantes lhes seriam devolvidos a breve prazo já em Portugal.

Contudo, já em Portugal, e apesar de sucessivas solicitações no sentido de reaverem o dinheiro com que poderiam refazer as suas vidas, o Estado apenas reembolsou as quantias depositadas nos Consulados 20 anos depois (nos anos de 1995 e 1996), sem ter em conta a depreciação do escudo nesse período, alegam os queixosos no processo.

«O valor aquisitivo dos montantes que o Estado se propôs a pagar era mais de 15 vezes inferior ao valor aquisitivo ao tempo do depósito», afirmam na acção.

Os sete queixosos consideram que o Estado devia restituir os emolumentos pagos, as quantias depositadas e os juros vencidos e que, ao não o fazer, entrou em mora, que «constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor».

O Estado alega que quando restituiu as quantias aos autores da queixa, estes renunciaram à indemnização pelos juros de mora.

Contudo, essa renúncia foi feita por simples documento particular e não por escritura pública.

A acção que corre no Tribunal de Tomar, encaminhada para os mandatários pela Associação de Espoliados de Moçambique, pede, nomeadamente, que sejam declarados nulos, por carecerem de forma legalmente prescrita, os contratos que os autores celebraram com o réu, bem como as posteriores renúncias aos juros.

Pede ainda que o Estado seja condenado a pagar os juros legais de mora vencidos desde a data da interpelação até à data da devolução dos montantes depositados, da ordem dos 11 mil contos (55,4 mil euros), bem como 60,5 mil contos (cerca de 302 mil euros) de emolumentos e acréscimos.

Os autores pedem igualmente uma indemnização por danos morais e patrimoniais devido ao não cumprimento atempado da obrigação de restituição dos depósitos.

O valor total da acção ronda os 71,6 mil contos (cerca de 358 mil euros).

Na contestação, o Estado alega que restituiu as quantias depositadas, que os queixosos estavam devidamente alertados no momento em que assinaram a declaração de que mais nada tinham a receber ou a reclamar e que eventuais juros terão prescrito.

Num processo semelhante a este, que correu em 2006 na 4ª Vara Cível de Lisboa, o Estado foi condenado a pagar 17 vezes o valor do depósito consular efectuado por um queixoso, sentença confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, mas a juíza do processo que corre em Tomar indeferiu o pedido de junção destas decisões judiciais.
- Diário Digital/ Lusa, quinta-feira, 26 de Março de 2009 11:43.

  • Outros post's deste blogue que mencionam o "drama" dos "retornados de África espoliados em 1975 - Aqui!

3/15/09

Retornados de África - A mancha que não se apaga... 2

(Clique na imagem para ampliar)

Na sua edição de 30º. aniversário em suplemento deste domingo, o "Correio da Manhã" lisboeta, entre o que foi notícia de destaque ao longo dos últimos trinta anos, coloca em relevo o trabalho do 'macua' Fernando Inácio Gil e sua entrega desde 1975 à causa dos apelidados "retornados" que, até hoje, aguardam o pagamento por parte do governo português da indemnização dos bens que tiveram de abandonar em África.

Transcrevo: ""1979 - Meio milhão de portugueses tinha regressado das ex-colónias ultramarinas.

Não foi fácil encontrar trabalho e condições de vida digna.

Natural de Moçambique e a prestar serviço no Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais, Fernando Inácio Gil – que, em 1975, coordenara a ponte aérea entre Lisboa e Luanda – sustentava, em 1979, ser 'falsa a afirmação de integração total'.

Trinta anos depois, 'o que mais dói' a Fernando Gil, septuagenário, é 'o não pagamento da indemnização dos bens'. Não é sequer uma dor pessoal pois, sendo militar e requisitado para o serviço público, entretanto reformado, a vida não lhe correu mal. 'É pelos outros, os que em África construíram uma casa e a arrendaram para garantirem a reforma numa altura em que não havia Segurança Social.'...""

  • O texto integral em formato "pdf" - Aqui!
  • Retornados de África: A mancha que não se apaga... - Aqui!
  • Retornados: Drama ou epopéia inacabada? - Aqui!
  • Espoliados & Retornados - Aqui!

8/26/08

Ex-Combatentes do Ultramar - Ignorados, desconhecidos, desprezados e agora também abandonados!

(Clique na imagem para ampliar. Imagem original daqui.)
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Envolvido por uma juventude vivenciada em Pemba-Moçambique-colónia, recebo diáriamente o news letter de um portal - "Guerra do Ultramar" onde se fala e tenta manter viva a memória e a HISTÓRIA de muitos heróis de uma guerra acontecida no ex-ultramar português até Abril de 1975.
Normalmente, as nações, colocando de lado ideais políticos de esquerda ou direita, reverenciam, homenageiam, respeitam, prestigiam e acarinham com destaque, porque são exemplos que honram, enobrecem e fazem parte da HISTÓRIA, seus ex-combatentes, seus heróis sofridos, mutilados, arruinados psicológica e fisicamente, quando vivos, assim como cuidam das campas e protegem as famílias dos que morreram com glória e coragem em defesa da Pátria.
Lamentávelmente, parece que isso não vem acontecendo no Portugal de agora, onde, segundo leio e vejo no portal referido acima e na reportagem do passado dia 10 de Agosto do diário português "Correio da Manhã" que transcrevo em parte devido à extensão do texto, mas que poderá ser lido integralmente aqui, os heróis portugueses da antiga guerra do ultramar vivem o presente do culminar de suas vidas, nas ruas da amargura e do abandono que envergonha e humilha. Pois aqui fica:
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10 Agosto 2008 - 00h00 - Ultramar - A luta na rua.
Ser sem-abrigo é estar na condição de alguém que esgotou todos os recursos para resolver as vicissitudes da vida. É uma luta inglória que cerca de 200 veteranos da Guerra do Ultramar vivem hoje, apesar de a esta terem sobrevivido. Vale-lhes a caridade.
É preciso coragem para viver duas guerras: a de ter combatido no Ultramar e a de ser sem-abrigo. Deitado colado à montra do posto dos Correios da rua dos Caminhos de Ferro, junto a Santa Apolónia, Lisboa, repousa um antigo primeiro-cabo na Guerra Colonial hoje sem morada para receber correspondência. José Freitas foi obrigado a defender a pátria em Angola. Como ele, combateram cerca de 1,2 milhões de efectivos, dos quais 700 mil estão vivos. Quase dez mil morreram em batalha e têm os nomes inscritos no Monumento ao Combatente, perto da Torre de Belém. Regressaram 30 mil com o corpo ferido, deficiente. Pela cabeça de metade passam traumas e stress de guerra. Estima-se, por fim, que 200 sejam sem-abrigo – mas quem cuida destes?
Todas as noites há rondas da Comunidade Vida e Paz – e de outras instituições – na rotina dos sem-abrigo de Lisboa. Por ser Verão basta um saco-cama para enrolar José Freitas.
'Vim parar à rua porque sou da rua', diz, emocionado. 'Não tenho rendimento mínimo, não tenho nada. O que tenho é de arrumar carros.' O seu corpo está visivelmente debilitado. Muito magro.
'A única memória que tenho da guerra é que fui para a mata no Toto. Estive ali 17 meses até que saí para Luanda onde ia embarcar, mas fiquei lá sete meses', recorda, levantando a manga para mostrar a tatuagem. As suas palavras são vagas. E estas são as curtas memórias que se podem ouvir de José quando fala deste período da sua vida, entre 1972 e 74. 'Não sofro com nada, só que gosto de andar sozinho. Tenho muitos amigos – e aponta para os dois sem-abrigo ao seu lado – só que, às vezes, gosto que não falem comigo' – afirma. Depois, confessa que 'antes de ir para a tropa não era assim'. Dizem os técnicos que o acompanham que nos últimos dez anos se tem degradado física e emocionalmente – é o alcoolismo.
Não é fácil fazer com que um sem-abrigo conte o que se passou na tropa. António Bengaló, 63 anos, era o soldado 33 446 em Moçambique. Embarcou em 1965 e regressou, precisa, a 14 de Março de 68. 'A mágoa que sinto é uma coisa muito íntima. Acredito que haja muitos [ex-combatentes] que se façam de malucos só por interesse.' Mas este não aceita essa ‘alcunha’. 'Estive um ano na Zambézia. Não havia lá guerra nenhuma. No Sul havia a chamada guerra subversiva e no Norte é que já havia zona de combate. Quando fui para aí lembro-me de um rapaz que era alcunhado de ‘Alho’ – até parece que o estou a ver – e havia outro rapazola perto de nós que com um estilhaço na garganta morreu aos meus pés...'
As pernas de António já fraquejam. Garante que não é alcoólico e que só ganha 180 euros do Rendimento Social de Inserção. Servem para pagar o quarto. Alimentação é o que lhe vai aparecendo com o apoio aos sem-abrigo. 'Já sei que não sou desprezado.' Pelo menos diz isso porque exclui a família. Da mulher divorciou-se e 'os filhos aproveitam a deixa para ser livres e, depois, o velho não presta para nada.' Da profissão de dourador (trabalho com peças antigas de sacristia) e, depois do 25 de Abril, de pintor da construção civil, ainda não recebe qualquer reforma... ...
- A reportagem na íntegra no "Correio da Manhã"!

  • Guerra do Ultramar: Guerra na Rua - Aqui!


  • Combatentes mortos na guerra colonial... - Aqui!


  • retornados de África; A mancha que não se apaga - Aqui!

E, é bom lembrar aos "senhores do agora", que a HISTÓRIA se fará. E não perdoará quem não a respeita nem honra!

2/23/08

RETORNADOS DE ÁFRICA - A mancha que não se apaga...

...ou o drama ignorado:
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Segundo Luis M. Viana do Diário de Notícias - Lisboa, RETORNADOS - Vivem-se vidas inteiras sem conhecer o desespero. Mas esse sentimento rude, amargo, foi partilhado em 1975 por centenas de milhares de portugueses em Angola sobretudo, em Moçambique, na Guiné (até em Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor), cidades inteiras de pessoas felizes, prósperas, esperançosas, com uma absurda confiança no futuro, viram-se de repente sem vida social, sem emprego, sem casa, com o dinheiro congelado nos bancos e um terrível sentimento de perigo em relação às suas vidas e às da sua família.
O desespero tem espinhos, alguns aguçados, e os seus bicos empurram as pessoas para o abismo. Em 30 de Junho, em Luanda, um grupo de 2500 residentes em Angola anunciou que, não conseguindo obter passagens aéreas ou marítimas para Lisboa, tencionava fazer a viagem até Portugal por via rodoviária, atravessando oito mil quilómetros de países africanos no sentido sul-norte ao longo de 90 dias.
A caravana motorizada esteve organizada para ser constituída por 200 camiões e 500 automóveis particulares, sendo os suprimentos destinados a 15 camiões-frigoríficos com capacidade para transportar 30 toneladas de alimentos cada um.
Alguns veículos foram transformados em oficinas móveis para fazer face à inclemência do trajecto e um dos organizadores, Guilherme dos Santos, fez contactos formais com a Cruz Vermelha Internacional e com a Comissão das Nações Unidas para os Refugiados para, na medida do possível, ajudarem essa travessia das selvas, savanas e desertos do continente africano.
Acabaram por não avançar para esse louco caminho para a morte.
Mais a sul, porém, houve traineiras a largar de Porto Alexandre, cheias de gente, em direcção a Portugal, onde chegaram, com muita sorte, sem males de maior.
Outros barcos de pesca artesanais cruzaram o Atlântico para despejarem no Brasil "retornados" que, afinal, não retornaram a Portugal.
E quase todos os que puderam escaparam por terra em direcção à África do Sul, e a outros países limítrofes, em alguns casos viajando com máquinas de obras públicas que iam aplainando os acidentes do caminho.
"O que dominou o primeiro tempo da chegada foi uma grande confusão na cabeça das pessoas", recorda Rui Pena Pires, sociólogo das migrações e, também ele, retornado de África.
"Mais do que a revolta, as pessoas tentavam perceber como é que se poderiam instalar em Portugal. A fase da revolta veio depois".
Na quantidade tremenda de gente que desaguou em Portugal aconteceu de tudo.
Uma pequena minoria tinha acautelado o seu património e preparado o seu regresso a Portugal. Outra minoria - precisamente aquela que mais tinha a perder com a independência das colónias uma vez que perdera os laços com a metrópole - nunca acreditou no pior desfecho, não preparou coisa nenhuma e veio sem nada, absolutamente nada para além da roupa que trouxe no corpo.
A larga maioria, essa, conseguiu trazer alguma coisa, pouca, mas suficiente para o espectáculo dos caixotes que inundou o cais e o aeroporto de Lisboa.
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Jovens, portugueses.
Com a descolonização, em 1975, abre-se em Portugal o ciclo da imigração, não só com o repatriamento de meio milhão de portugueses radicados nas colónias, mas também com o início de uma migração africana que, ao contrário do repatriamento, teve continuidade até aos dias de hoje.
Do número de retornados recenseados pelo INE em 1981 61% são oriundos de Angola, 34% de Moçambique e apenas 5% das restantes colónias.
Quase dois terços desses retornados nasceram em Portugal (63%), embora esta proporção se inverta nas camadas mais jovens - 75% dos menores de 20 anos eram naturais das colónias.
É muito curiosa a distribuição da origem dos retornados nascidos em Portugal 32% eram naturais do Norte, 36% do Centro e 20% da região de Lisboa.
Os distritos de Lisboa e Porto são os que maior número de pessoas enviou para África (12% e 11%, respectivamente), seguidos por quatro distritos do Nordeste: Viseu, Bragança, Guarda e Vila Real - é aliás com esta migração para África que se inicia o grave problema demográfico que hoje afecta o interior norte do País.
A estrutura por idade e sexo da população repatriada era, em 1981, significativamente diferente da do conjunto da população portuguesa.
Há um predomínio ligeiro da população masculina, 53% são homens, em praticamente todas as classes de idades e um forte peso da população jovem 64% dos retornados tinham menos de 40 anos.
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Os "tinhas".
Quando começou a fazer trabalho de campo com retornados, Rui Pena Pires frequentou algumas reuniões de retornados no princípio dos anos 90. E encontrou os grupos dos ressentidos, dos ainda inconformados com a desgraça de há 15 anos, muito limitado e circunscrito. Eram "os tinhas" (como lhes chamavam todos os outros com irónica condescendência), os que estavam sempre a dizer "eu tinha", "eu tinha"..."
A partir de 1975 as pessoas não tiveram mais tempo para pensar e foram obrigadas a começar a trabalhar de uma forma um pouco mais dura do que o normal para recomeçar tudo de novo", recorda o sociólogo das migrações.
"Foi a melhor coisa que podia ter acontecido se tivessem entrado numa lógica de reclamar e esperar por indemnizações ainda hoje, 30 anos volvidos, haveria situações complicadas de integração".
Sucedeu o contrário, porém.
Os retornados revelaram-se como um grupo com competências muito acima da média da sociedade portuguesa e rapidamente se disseminaram pela sociedade, em vez de se constituírem como uma sociedade colectividade delimitada.
É muito interessante ouvir hoje os retornados falarem das relações entre si "É como companheiros de escola que se encontram passados uns anos e falam sobre a vida do liceu. Quando as pessoas se encontram e acabam por descobrir que são retornados, há logo ali uma relação de afectividade, há um elo comum, resultante de uma desgraça que compartilharam. Depois começam a contar como cada um evoluiu, o que significa que o que é importante já não é o ponto de partida, mas o de chegada, o que interessa é onde se está, onde se chegou".
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Falta acrescentar que até hoje, o desgaste emocional, o sofrimento, os prejuízos morais e materias, a saúde abalada, as mortes, todo o tipo de crimes e a situação dramática vivenciados por milhares de famílias portuguesas e africanas "pulverizadas" atualmente por Portugal e por esse mundo afora e que atravessaram essa fase triste da descolonização portuguesa em África, não foram devidamente justiçados nem compensados. Pelo contrário: Os tais "heróis de barro" responsáveis por essa vergonha, continuam impunes, arrogantes, gabarolas e sorridentes. Descolonizar era necessário. Mas não dessa forma insana, indigna, caloteira !
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A não perder:
Reportagem - RETORNADOS - RDP ÁFRICA - 19/02/2008 - Escute aqui !
In "Moçambique Para Todos" - (Para evitar sobreposição de sons, não esqueça de "desligar" a "ForEver PEMBA FM" no lado direito do menu deste blogue.)

10/27/07

Ronda pela net - RETORNADOS: DRAMA OU EPOPÉIA INACABADA ?

Um tema que envolve milhares de portugueses que até hoje não encontraram a reposição de seu património construido e forçadamente deixado em África aquando da tal "descolonização exemplar" e que tem sido, simplesmente ou quase, ignorado com petulantes e cinicos desaforo e omissão pelos diversos governos lusos pós 25 de Abril de 1975.
Tema constrangedor que deverá continuar a ser debatido pela sociedade portuguesa, mormente pelos injustamente penalizados mas batalhadores e empreendedores "retornados", com insistência, inconformismo e rebeldia justificadas.

9/02/05

Espoliados & Retornados !

Da AEMO:

Artigo de opinião publicado no Jornal de Matosinhos, em 26.08.2005, pela pena de Francisco Junqueira:

Marcelo, os judeus de Gaza e os retornados do Ultramar.

Na habitual conversa com Ana de Sousa Dias, na RTP, no último sábado, Marcelo Rebelo de Sousa, que apostou, de novo, forte, na candidatura de Cavaco Silva, vaticinando-lhe uma vitória que nem Manuel Alegre nem Mário Soares, a candidatarem-se, serão capazes de evitar, criticou algumas das afirmações do fundador do Partido Socialista, ao responder ao entrevistador António José Teixeira, relativamente à displicência com que aquele encara a necessidade de o futuro presidente da República possuir vastos e bem alicerçados conhecimentos de economia, lembran­do, a propósito, Marcelo, ter dito, Soares, que não tinha culpa de estar com 81 anos, retorquindo-lhe que também, os portugueses, nomeadamente os eleitores, desse facto muito menos culpa têm -ressaltando as condições exigidas para que alguém possa ser proposto à mais elevada magistratura da Nação - exíguas, na verdade, e até ridículas, diremos nós.
Tempo, ainda, para comparar a saída, à força, dos judeus, pelas tropas israelitas, dos colonatos onde viviam desde há 38 anos, aí fixados, estimulados, incentivados e ajudados pelos diversos governos que sempre acreditaram na construção de um Grande Israel bíblico, e consideravam, os territórios, historicamente parcelas que cumpria anexar em definitivo - contra evidências, violências, ventos, e marés - tal qual aconteceu aos pejorativamente acoimados de "retornados" das antigas Províncias Ultramarinas Portuguesas.
Esqueceu-se, Marcelo Rebelo de Sousa, que, jovem estudante, visitou o Ultramar, era, seu pai, governador-geral de Moçambique - e o general Kaúlza de Arriaga, comandante-chefe das Forças Armadas - de explicar em que é que é comparável a situação e a odisseia de uns e de outros.
Há diferenças abissais.
Ainda ninguém se dispôs a fazer uma digressão histórica comprovatória de que os territórios, ditos lusos, eram, antes da chegada dos navegadores, países organizados, com língua, com fronteiras, com um vínculo que unisse regulados, sobados, clãs, e muito mais, sem falar em estruturas básicas, inclusive invocando-se, amiúde, a escravatura -foram os portugueses a acabar com ela, em primeiro lugar, em todo o mundo (e o Padre António Vieira, nisso, foi pioneiro), assim como com a pena de morte, nessa análise, avultando a factualidade da época, a gesta protagonizada à sombra da Dilatação da Fé e do Império, sendo, os portugueses, os mais benignos, os mais humanos, os mais solidários, os mais respeitadores, os menos rapaces, dando, aqui, lições à Inglaterra, à Itália, à Alemanha, à Holanda, à França, à Espanha, aos Estados Unidos da América.
Na comparação ao episódio da expulsão dos hebreus de Gaza, há, na realidade, similitude, até na intervenção das forças judias contra compatriotas seus, no respeitante ao comportamento dos militares portugueses, que em nada ficaram desfavorecidos na brutalidade, na desumanidade, na obediência cega a chefes que ora, anchos, com o país a arder, alcandorados a principescas mordomias e reformas chorudas, vêm crescer as panças, num culto vesgo a Epicuro, a Sade, a Dionísio, ao Ventre, morada, oirescente, do seu Deus, segundo os moralistas do velho Lácio.
Os judeus, extraditados, não regressaram de mãos a abanar.
Os portugueses vieram com uma mão à frente e outra atrás - não ao cabo de 38 anos, mas de mais de 5 séculos! -, e continuam, vítimas inocentes da cupidez, à margem do que lhes é devido, entregues ao Deus-Dará, ostracizados na página mais negra da História de Portugal -à espera que, um dia, já no outro mundo, se faça justiça.
A História, às vezes, repete-se.
Vergonhosamente.
Tristemente.
Soando lugubremente, o aviso de Camões, saciado, à míngua, pelo escravo Jau, a ferretear os protagonistas desse crime:
- "Entre portugueses, traidores houve (há) algumas vezes."
AEMO - ASSOCIAÇÃO DOS ESPOLIADOS DE MOÇAMBIQUE
Tel./Fax: 351.218809996