Aerograma
Mueda, 10 de Março de 1972
Meu amor,
Hoje morreu o Rivelino.
Disseram que morreu.
É irremediável, mas queria falar disto a alguém.
Sabes? Quando morre alguém nós ficamos um pouco mais sós. Por isso te escrevo, um dia quando te conhecer, quando nos amarmos e quando eu precisar de dizer isto outra vez a alguém, entrego-te este aerograma, para me fazeres companhia.
Aqui onde estou, a meio mundo de ti e a meia vida de te conhecer, há uma guerra e todos os dias morre alguém, é como se deus fizesse connosco o que eu estou a fazer agora com aquelas latas de cerveja alinhadas na vedação.
Hoje a lata em que Deus acertou chama-se Rivelino e eu precisava de chorar um pouco.
Eu choro sempre que morre alguém, mesmo que morram várias pessoas por dia.
É a minha maneira de não aprender a morte; mesmo que não me apeteça chorar, choro.
É uma espécie de exercício para não me esquecer que sou humano.
De vez em quando interrompo este aerograma e dou um tiro numa lata de cerveja e não vejo que prazer pode dar isso.
É por pura curiosidade que o faço, para ver o que pode ter sentido deus quando o Rivelino morreu.
Falhei.
Não é fácil acertar numa lata de cerveja com uma G3 a esta distância.
Se aquela lata fosse o Rivelino eu hoje talvez não tivesse chorado, talvez não estivesse a escrever este aerograma e talvez não te viesse um dia a conhecer.
Mas o Rivelino morreu e eu sinto que é imperioso não deixar que isso passe em vão.
Aponto de novo a G3 e a lata de Laurentina aguarda ao longe que a minha pontaria volte a falhar.
Eu enchi as latas de areia e quando lhes acerto em cheio elas explodem.
É mais divertido assim, pensei eu, do que com uma lata vazia.
Mas quando se trata de destruição e de morte não vejo que o espectáculo divirta mais.
Será por isso que dizem que deus pôs uma alma dentro de nós, será que é para ela explodir quando morremos, para ser mais divertido?
Não faças caso.
Eu sei muito bem que não é deus que faz connosco o que eu faço com as latas de cerveja; são pessoas como eu que fazem isso, pessoas que aceitaram a missão de nos irmos abatendo uns aos outros por um motivo de que já nem sequer nos lembramos.
Quando esta guerra acabar ninguém se lembrará mais do Rivelino, então um dia, quando eu me sentir tão só como hoje e me apetecer dar tiros em latas de cerveja, eu hei-de encontrar este aerograma e dar-to-ei como se tu fosses a minha correspondente de guerra e nessa altura a solidão desvanecer-se-á um pouco.
Mas tenho que te encontrar primeiro, tenho que ir tentando pela vida fora até ter a certeza que és tu a destinatária deste aerograma.
Saberei que és tu se ao olhar-te não me apetecer chorar ninguém, como senão tivesse havido uma guerra, como se eu não tivesse feito com homens como eu, o que agora faço com as latas de cerveja.
E então sentirei um apelo enorme para te contar tudo isto, como se a música de um piano se soltasse, retinindo pérola a pérola sobre o pesado mármore do silêncio e acordasse em mim o riso e a inocência.
Se fores tu, lembraremos o Rivelino como uma criança inocente antes de lhe terem dado a missão que só é costume desculpar aos deuses e que na verdade nos transforma a todos em predadores ou em presas, em projécteis ou em alvos.
Se fores tu, terei a certeza que não aprendi a lição da morte, e este aerograma terá finalmente a sua destinatária.
Com todo o meu amor,
Manuel
© Manuel Bastos