Rui Paes: pinto, como e durmo
Rui Paes, o pintor que ilustou um livro infantil de Madonna, fala de si, da sua vida e do seu trabalho:
Rui Paes estava sentado no chão da Galeria Municipal de Matosinhos, às voltas com um banco de madeira. «É como a Paixão de Cristo», sorriu. Dos pregos saía uma tinta avermelhada. «Isto interessa-me: a nossa inabilidade para o sangue», acrescentou. É este, então, o português que ilustrou o livro de Madonna. No I Simpósio Internacional de Pintura, realizado em Matosinhos, Rui Paes crucificava um banco de madeira. A entrevista começou ao contrário: foi o pintor que se atreveu ao diálogo. Esta foi a resposta à pergunta que não houve: Faço pintura mural e, porque tem de ser, procuro que as formas sejam correctas, ou, mais importante, que se adaptem ao espaço arquitectónico, porque senão a ilusão não funciona, contradiz-se e desfaz o efeito. A disciplina mental é importante. A exactidão tem uma disciplina mental. Utiliza um sistema que não é um sistema fixo, único, mas que se adapta às circunstâncias, como agora aqui, em Matosinhos. Eu vinha com uma ideia: a de que Matosinhos era uma cidade de pescadores, e tinha criado uma imagem em relação a essa ideia. Mas quando cheguei cá alterei completamente tudo, porque preferi começar a absorver aquilo que me foi dito, aquilo que vi e aquilo que percebi e transportar isso para a pintura. Em vez de forçar o meu tema e sobrepor a esse tema uma coisa extemporânea, decidi alterar a ordem: deixar que a cidade me dissesse o que quis dizer e que eu pusesse na tela aquilo que ela me quisesse dizer.
E o que é que a cidade lhe disse, até agora?
E o que é que a cidade lhe disse, até agora?
Imensas coisas. Fiquei espantado com a quantidade de lendas, com a religiosidade do sítio!
Como é que surgiu a ideia deste banco que estava a decorar? Disse-me que tinha a ver com a nossa inabilidade para o sangue.
Em Inglaterra, onde vivo, a religião oficial é mais despojada, com uma imagética muito mais despojada do que a nossa. Eles têm pavor àquelas imagens da tortura, àquela fase em que Cristo é sentenciado e castigado. Essas imagens não aparecem muito nas igrejas protestantes, também porque são muito mais austeras, muito mais limpas - em Inglaterra, sobretudo. Esse foi um dos aspectos que sempre me interessou muito na religião: o aspecto gráfico do sofrimento. E o sofrimento pode ser físico, emocional, intelectual. Somos quatro pintores, no encontro em Matosinhos e a cada um foi oferecido um banco pequenino de pinho para decorarmos. (Ainda por cima pinho, que é a ideia da madeira da cruz... embora eu não saiba qual foi a madeira usada na crucificação.) Eu gostei muito da Igreja do Senhor de Matosinhos. Gosto muito da arte do período barroco e, quando me foi sugerido que decorasse o banco, que o pintasse, não pude deixar de pensar nisso, no corpo branco de Cristo depois de torturado, depois de chicoteado. Esta é uma imagem que faz parte da pintura clássica. Achei que o banco só podia ser aquilo: símbolo mesmo da Paixão de Cristo e da entrega do pintor, da entrega do artista ao seu trabalho, que também é total.
Em que medida é que relaciona a Paixão de Cristo e essa entrega à arte? Não tem a ver com o sofrimento pelos outros...
Não, não, pelos outros nunca. É sempre por nós próprios, pelo nosso trabalho. Mas é o exercício de uma solidão absoluta. A pintura é o exercício da extrema solidão. E eu gosto de estar sozinho comigo, foi-me dada essa grande dádiva. O meu trabalho é o meu companheiro, e eu estou bem com ele. Fecho-me no ateliê e esqueço-me.
Como é a sua vida em Londres?
Como é a sua vida em Londres?
Divido o meu tempo entre Londres e o campo. Tenho um ateliê em Londres e um ateliê ao pé de Cambridge, onde passo muito tempo. Mas é uma vida assim: pinto, como e durmo. Hoje, faço muito menos jardinagem. Tenho andado desligado das plantas. Mas lá ponho umas camélias de vez em quando. É uma vida muito tranquila.
Ainda continua a pintura mural, a intervenção nos castelos?
Agora vou fazer um projecto com um colega inglês para um cliente de Munique. Inclui elementos de arquitectura e escultura de um castelo que o cliente tem, mas isto é para uma casa de cidade. Ele quer trazer para a cidade aspectos de paisagem, arquitectura e escultura da outra propriedade do campo, e o trabalho vai ser baseado nesse tema. De resto, tenho andado à volta do livro que estou a fazer para o São Carlos ver caixa e a desenvolver também ideias à volta de um cavalo que me apareceu há 20 anos, um cavalinho que encontrei em França, em Aix-en-Provence.
Ainda continua a pintura mural, a intervenção nos castelos?
Agora vou fazer um projecto com um colega inglês para um cliente de Munique. Inclui elementos de arquitectura e escultura de um castelo que o cliente tem, mas isto é para uma casa de cidade. Ele quer trazer para a cidade aspectos de paisagem, arquitectura e escultura da outra propriedade do campo, e o trabalho vai ser baseado nesse tema. De resto, tenho andado à volta do livro que estou a fazer para o São Carlos ver caixa e a desenvolver também ideias à volta de um cavalo que me apareceu há 20 anos, um cavalinho que encontrei em França, em Aix-en-Provence.
Conte-nos melhor essa história do cavalo.
Numa viagem que fiz, há 20 anos, apareceu-me um cavalinho branco no chão, numa ponte, e eu guardei-o sempre. Um dia, reencontrei-o e disse: isto está a querer dizer-me qualquer coisa. É um trabalho pessoal, uma brincadeira que estou a fazer e que me está a divertir muito. É este o projecto em que estou envolvido em termos de pintura de cavalete: desenvolver uma imagem ligada a conceitos, a palavras... É mais um jogo de língua e actividade. As palavras que estão escritas na tela definem a acção do cavalo. Elas não estão escritas foneticamente correctas, mas soam como a ideia que quero passar. Apetece-me brincar com os ingleses! Eu gosto muito de línguas. Gosto muito da língua inglesa, conheço-a bem, é irresistível. Gosto das palavras. Não leio tanto como gostaria. Escrevo algumas coisas. Não sou um estranho às palavras, mas acho que as palavras têm de ser as palavras exactas.
É um bocado como a ilustração. As pessoas não entendem que um pintor é um pintor. Um pintor pinta. Pode fazer ilustrações para um livro, pode fazer pintura mural, pode fazer pintura de tela, pode fazer o que quiser. O que ele teve foi anos - seja de vida, seja de aprendizagem académica - que foram desenvolvidos à volta da pintura, do trabalho com tinta, com a expressão plástica. Por isso, eu estou a pintar sempre. Um músico e um pintor, nesse aspecto, não são muito diferentes. Um músico pode ser um intérprete e pode ser um compositor. O pintor também. Quando estou a ilustrar um livro, estou a seguir um guião, a interpretar um tema que me é oferecido, e estou a tentar alargar o espectro simbólico, significativo, do tema. Estou a interpretar, como um violinista poderá interpretar uma peça. Quando estou em frente a um cavalete, estou a compor. Mas continuo a trabalhar na mesma área.
É a diferença entre trabalhar uma imagem que é sua ou uma imagem de outra pessoa?
Que me é fornecida pelas palavras de outra pessoa. Se for o caso da pintura mural, é uma questão de orquestração. O pintor é um orquestrador. Eu orquestro quando faço pintura mural, porque tenho de incluir elementos que me são sugeridos, que me são exigidos, alguns. Tem de ter este aspecto, tem de ter aquele, não gosto de macacos, não faça um macaco a sorrir porque mete impressão...
No caso do livro da Madonna, o macaco foi uma das razões do encontro. Ouvi uma história que envolvia um macaco, a Madonna e o Rui Paes...
Sim, sim. [risos] A Madonna chegou a mim por causa de um castelo na Noruega, mas sobretudo por causa dos macacos que eu lá pintei. Quando me fizeram a proposta de pintar o «hall» de entrada, achei que, pelos elementos que a sala apresentava, o mais bonito era fazer uma coisa à chinesa do século XVIII, mas divertida. Quis fazer uma «singerie», uma macaquice. Os editores viram aquele trabalho no «New York Times» e pensaram: isto é uma possibilidade. Fizeram-me uma proposta, e eu fiquei muito interessado com o projecto. Quando a história chegou, pareceu-me difícil, mas li, reli e comecei a percebê-la. Emocionou-me, porque definia bem como é possível ser-se generoso, e entreguei-me ao projecto.
Sim, sim. [risos] A Madonna chegou a mim por causa de um castelo na Noruega, mas sobretudo por causa dos macacos que eu lá pintei. Quando me fizeram a proposta de pintar o «hall» de entrada, achei que, pelos elementos que a sala apresentava, o mais bonito era fazer uma coisa à chinesa do século XVIII, mas divertida. Quis fazer uma «singerie», uma macaquice. Os editores viram aquele trabalho no «New York Times» e pensaram: isto é uma possibilidade. Fizeram-me uma proposta, e eu fiquei muito interessado com o projecto. Quando a história chegou, pareceu-me difícil, mas li, reli e comecei a percebê-la. Emocionou-me, porque definia bem como é possível ser-se generoso, e entreguei-me ao projecto.
Como reagiu o seu filho quando lhe contou a novidade? Gostava de saber como é que se chega a casa e se diz que se vai ilustrar um livro da Madonna.
Eu pedi-lhe que ele adivinhasse. Disse-lhe que ia trabalhar com uma cantora mais da minha geração... Ele acertou à terceira.
Já o tinha em muito boa conta.
Ele é muito sóbrio. Ficou contente, mas é uma pessoa muito sóbria. Eu estava no Rio de Janeiro quando recebi a notícia de que a Madonna tinha dado o OK e devo dizer que dei pulos. Estava sozinho no quarto de hotel e fiz aquelas coisas que só se vêem nos filmes.
Nos filmes salta-se em cima da cama...
Exactamente! [risos]
Chegou a conhecer a Madonna?
Sim, mais tarde. Falámos ao telefone e na apresentação do livro apresentámo-nos um ao outro. Ela é uma mulher lindíssima, não tem nada a ver com as fotografias. Ao vivo, é uma pessoa muito bonita e tem uma aura muito boa, projecta uma luz clara.
Em que lugar é que se encontra hoje? De regresso ao figurativo?
Eu nunca deixei de pintar figurativo. Mesmo quando pintava as grandes telas vermelhas. Quando saí de Portugal, o meu processo de criação tornou-se cada vez mais limpo, mais despojado, mais austero. Quando tive oportunidade de, pela primeira vez na vida, pintar oito a dez horas, no mestrado, isso deixou-me inquieto. O projecto definiu-se a si próprio, mas foi um projecto de limpeza, ligado a uma certa espiritualidade. O despojamento da pintura indicava o processo do meu próprio despojamento. Passei os primeiros meses no Royal College a mandar embora do meu pensamento as pessoas que interferiam, as vozes que interferiam. Foi mesmo um processo de limpar.
Mas essas vozes...
Eram vozes portuguesas.
Tinham a ver com os mestres, com a sombra de outros criadores, ou eram vozes pessoais?
Era toda a gente. Quis libertar-me das interferências: limpar, coar, polir, até poder estar só comigo. Os primeiros meses do mestrado foram feitos assim, e a pintura acompanhou tudo isso. Acabei por pintar grandes áreas com contentores vazios dentro delas. Foi mesmo um processo de limpeza, de limpeza espiritual, emocional.
Lembra-se de como era antes de pintar? Lembra-se do processo?
A primeira pintura a sério que fiz foi quando tinha sete ou oito anos. Foi o Deus nas nuvens do Rafael, a guache. Havia um livro escolar que na contracapa tinha uma pintura cuja parte superior era Deus e as nuvens com dois anjinhos. Eu gostava tanto daquilo, e era assim que eu queria pintar!
Com essa pureza?
Assim, tão bem! [risos]
Rui Paes nasceu em Moçambique (Pemba), em 1957. Terminou o Curso de Artes Plásticas da ESBAP em 1981. Em 1982 recebeu o Prémio Revelação Arús. Fez o mestrado em Pintura no Royal College of Arts como bolseiro da Gulbenkian. Foi premiado com uma bolsa da Beal Foundation, de Boston. Em 1990 realizou cinco Retratos Monumentais para os cenários de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, no Bayliss Theatre, em Londres. Tem executado pintura mural na Alemanha, Egipto, França, Inglaterra, Líbano, Noruega e Portugal. Vive e trabalha em Londres. Foi um dos convidados do I Simpósio Internacional de Pintura de Matosinhos. Ilustrou o livro infantil de Madonna Pipas de Massa e ultima as ilustrações para o livro O Fantasma Trezmelenas, de Alice Vieira, onde se conta às crianças a história do Teatro São Carlos.