5/04/10

Retalhos - De Porto Amélia a Pemba: FAROL MARINGANHA


HISTÓRIA DE PORTO ÀMELIA - FAROL MARINGANHA - IV A GENTE E A SOCIEDADE

A população de Pemba é bastante heterogénea, tendo para lá emi­grado do interior os macuas, os ngonis ou mafites e os macondes.

Do litoral, os nguja do Tanganica, os sacalaves do Madagáscar e os mujojos das Comores. A civilização europeia, particularmente a trazida pelos portugueses é também notória, já que ali a colonização assimilou grande parte da população, mesmo a não mista.

Nas regiões circunvizinhas à cidade de Pemba existiam já antes da ocupação pelos portugueses algumas povoações chefiadas por ré­gulos, sendo o principal o sultão Mugabo, seguido de outros como o Said Ali, Mutica, Macesse e o Mugona.

O Governador de Cabo Delgado que, em em 1857 foi incumbido de ocupar a região e aí formar uma colónia, faz especial referência ao "velho" Mutica que, à excepção dos outros, falava ainda a língua portuguesa e muito contribuirá para o sucesso das negociações.

Fortemente swahilizados estes régulos que se expressavam e escre­viam geralmente em árabe, edificaram sociedades semi-feudais cuja autonomia se manteve ao longo dos tempos, até mesmo hoje, con­tinuando a exercer grande influência e poder no seio da população, cujo principal credo é o maometanismo mesclado de antigas tradições fetichistas como em quase todas as regiões da província.

A estas autoridades de relações amigáveis e até mesmo honestas com outros povos em certas alturas, também não lhes faltaram momentos de agitação e saque.

Já em 1843 o cheique Macesse, que chefiava a região actualmente conhecida por Pemba-Metuge, revolta-se contra a submissão aos portugueses, expulsando a companhia militar portuguesa estacionada num navio à entrada da baía de Pemba. Como corolário do desenrolar destes acontecimentos o cheique Macesse devolve a bandeira por­tuguesa às autoridades coloniais nas mãos do ajudante de Arimba, José F. Carrilho e recusando-se a pagar qualquer espécie de tributo.

Salientam-se também as investidas feitas pelos régulos Mugabo, Said Ali e outros contra caravanas europeias no circuito de Quissanga, obrigando-as a uma rota que levaria a mercadoria antes para Porto Amélia.

Se por um lado isto viria a abrir um caminho para o desenvolvimento de Porto Amélia a finais do século XIX, não menos verdade é que o facto veio a onerar bastante o processo de embarque e desembarque da carga já que Quissanga comunicando mais directamente com o "medo" era o principal porto exportador de então para o comércio e tráfico “ajaua-meto”.

A maior parte dos régulos antes da segunda década do nosso século se submetiam, na cintura de Pemba, ao régulo Mugabo, cujas terras confinavam com as da "coroa do medo", estas chefiadas pelo pode­roso maravi Mualia, ora submetido ora sublevado aos portugueses.

O quadro etnológico da população de Pemba remonta-se principal­mente à fusão do grupo macua com castas muani, penetrados res­pectivamente a partir de Murrébue e Quissanga.

Embora de diferentes origens as populações de Pemba se subordi­navam ao régulo Muária também de origem maravi.

O regulado Muária nasce cerca de inícios dos anos de 1880 quando famílias como Heri e Bachir pertencentes ao mesmo clã atingindo a região do medo avançam em direcção ao litoral pela rota Chiúre/ Mecufi/Murrébue.

De acordo com a "rainha" Muamba Omar Ussofo mais conhecida por Nhanicuto e descendente dos Muária, a dinastia se inicia com um tal Heri l na região de Changa (Murrébue) nas terras do régulo Nampuipui.

À morte de Heri l sucede ao trono Heri II que, para não defrontar o régulo Nampuipui que lhe fizera guerra acusando-o de ocupação ilícita das suas terras e compromisso com os portugueses, foge e refugia-se em Pemba na área da Maringanha. Parte do clã seguiu para Quissanga.

O successor de Heri II foi Remane Bachir que viajando para a África do Sul, como era seu hábito levando consigo voluntários (de acordo com a fonte ) que para lá queriam ir viver, foi chamado para assumir o cargo e é nessa altura adoptado o cognome de "Muária" para o regulado que agora começava.

Muitas vezes se fala de Muária como tendo alguma relação de parentesco, de clã ou mesmo qualquer outra com o regulo Muália, o que é negado por Muamba Ussofo, mas pode sobreviver a ideia de auto-identificação com o poderoso e conterrâneo maravi das terras do medo.

Amad Ali, avô do régulo Remane Bachir, descobre a zona de Marindima em Pemba e mobiliza a sua família e a gente de Changa para a habitar, o que veio a acontecer.

No entanto, fugitivos aos ataques dos ngonis, que lançavam as suas investidas com armas de fogo e azagaias a partir do ponto da colina que cai a pique na região de Marindima, bem como pelo facto de ali não haver água potável, a população deixa a zona e vai fixar-se junto às lagoas de Natite.

É então que Remane Bachir manda limpar as áreas de Nuno e Ingonane para ser habitada colocando lá como chefes dois familiares seus, nomeadamente as rainhas Nhanicuto e Nhacoto.

Enquanto isto o régulo Remane Bachir Muária entrega o Wimbi ao chefe Namacoma e a região compreendida entre o Nanhimbe e Maringanha ao seu irmão capitão-mor Tagir Bachir.

Anra Bachir sucede a Remane no regulado Muária e tendo este morrido fica como sucessor o seu sobrinho Fadili Adi, seguindo-se - lhe o seu irmão Anli Mugola.

Durante o reinado de Anli Mugola, este entregou a zona do Cariacó ao chefe Amada Muária, já na década de 60 do nosso século, que ao ser preso pela Pide é substituído por Abdul Latifo Ncuo.

Para além das já citadas rainhas o Paquitequete teve ao longo dos tempos ate à independência de Moçambique outros chefes, no­meadamente Mussa Amad, Pira Anlaue, Said N’Ttondo, entre outros.

Das relações com as autoridades coloniais que, mesmo antes de ocupar a região mandavam anualmente um encarregado de cobrança do imposto, a velha Omar Ossofo relata que quando chegava tal enviado eram içadas três bandeiras portuguesas: uma na praia junto à ponta Romero, a outra à frente da residência do régulo Remane e a terceira no quintal deste.

A população para não pagar o imposto abandonava as suas casas e internava-se mais para o interior e o funcionário da administração colonial em acto de vingança queimava todas as residências, obri­gando a população a construir alpendres provisórios após a sua retirada.

Em língua macua “marapata” significa alpendre ou algo provisório, alcunha que a população deu ao dito funcionário.

Nessa altura a designação de Pemba limitava-se somente a uma pequena área, próximo à ponta Miranembo, onde o governador colonial Jerónimo Romero havia instalado o "Estabelecimento da Baia" e construído um fortim que a população de Muária usou como refúgio nas razias que os sacalaves levaram a cabo.

Embora fora dos parâmetros deste estudo mas para dar uma ideia mais ampla da distribuição territorial do regulado Muária podemos acrescentar que dados de 1970 indicam que o régulo Ntondo, ocupava em Porto Amélia uma área de 1.042 km2 (Paquitequete), seguido do propriamente chamado Muária em Natite com 264 km2, Namacoma no Wimbi com 504 km2, o Piripiri no Gingone chefiando uma área de 8 km2 e o Nansure do Cariacó a Changa com 230 km2. (3)

Considerando por outro lado que os portugueses recrutavam na região do medo os carregadores para as suas caravanas é óbvio que muitos deles em Pemba se foram fixando, o mesmo sucedendo à gente migrada das regiões costeiras.

Os conflitos tribais que sempre existiram entre ambas as etnias (e para um período mais curto também com os macondes) eram compensados pelas trocas comerciais, sobretudo o contrabando e tráfico de toda a espécie.

Apesar de Pemba ser zona costeira, provida de uma enorme baía, muito pouca gente se dedica hoje à pesca, absorvendo o sector pes­queiro apenas cerca de 200 pescadores (dados de 1987) que em suas casquinhas, lanchas e algumas pequenas embarcações fazem não mais que uma produção anual de 150 toneladas de pescado. É também verdade que a intensiva exploração ao longo dos tempos dentro e ao largo da baía, tornaram os recursos marinhos mais escassos.

De marinho típico é, por aquelas bandas, verem-se, nas vazantes das águas com bastante afluxo no período das marés vivas, mulheres, homens e até mesmo crianças de tenra idade ora cercando peixe muidinho com finas malhas ora apanhando conchas ou moluscos comestíveis.

Tão típico é isto quanto o prazer de encontros amigáveis na praia ao nascer e ao pôr do sol, nem que seja sob o pretexto da necessidade de defecar na praia (por tradição), ali se juntam grupos de pessoas em animadas conversas (e quem sabe não mais?) por várias horas.Grande parte da população dedica-se no entanto à pequena indústria artesanal e a outras ocupações liberais e informais bem como ao comércio, não deixando de praticar um pouco de agricultura para subsistência, com especial incidência no milho, mapira, mandioca e mexoeira.

Pemba, este pequeno satélite e entreposto swahili de tempos remo­tos, conserva ainda suas antigas tradições e hábitos assimilados das gentes do Tanganica. A preferência em artigos do mercado oriental e a quase generalização da língua swahili, embora misturado com o idioma macua e a língua portuguesa, é também realidade.

O “Sungura”, dança importada da Tanzânia, diverte todos os dias e durante toda a noite a população dos bairros periféricos.

Dessa gente não há quem falte, pois aliado ao divertimento algum namorisco poderá, eventualmente, acontecer.

Os três ou quatro conjuntos musicais que actuam em simultâneo nos principais bairros de caniço expressam-se em língua swahili. Os dançarinos os acompanham.

O "mini na kissikia swahili" (eu compreendo swahili) liga uns e outros numa libertação e fruição de mais um dia passado.

As comunidades de maior influência árabe-swahili, muito dedicadas ao comércio com a Tanzânia, localizam-se em ambas as extremida­des: Maringanha ao Sul e o Paquitequete ao Norte.

Contava há poucos anos um velho auxiliar de faroleiro uma interes­sante e peculiar história sobre a origem do nome Maringanha já que a explicação nos conduz a um facto de que a gente de Maunhane jamais viria a esquecer: trata-se da construção de poços de água, um dos mitos de mau agouro ameaçador de morte a quem o construísse.

O facto deu-se após o ciclone de 1914 quando, já reconstruída a povoação de Maunhane, o faroleiro Heliodoro José Carrilho inaugura os poços (por ele próprio mandados construir) gritando o lema: “Muringana?”, que em língua local significa "estão completos?" ao que a população respondia em uníssono "Ti ringana”, que nada mais é do que a confirmação.

Será que por popularização como indicava a fonte e deturpação da expressão "mu ringana" viria a resultar Maringanha?

As cartas no entanto designam de ponta "Maunhane" à região e não é de admirar já que localmente a expressão significa "no sítio dos macacos" dado que em tempos parece ter sido ali o local por eles preferido.

Ainda hoje muitas vezes se vêem macaquitos a vaguear pela Ma­ringanha saltitando por entre o sombreiro das casuarinas e coqueiros junto ao farol como que apreciando as centenas de mulheres que na vazante avançam pelo mar em busca de marisco, o "caril" diário.

Trata-se principalmente da apanha de certas conchas com carne comestível mas pouco ou nada comercializável por se tratar quase de um dever tradicional de toda a mulher e suas crianças procurar moluscos e pequenos crustáceos tanto para seu sustento como até por simples ocupação do tempo e desporto.

Para além da pesca artesanal a população da Maringanha dedica-se também à pequena agricultura bem como à fermentação alcoólica do caju. Aqui a amêndoa deste fruto é no geral consumida quer verde quer torrada depois de seca ou mesmo, em ambos os casos, também utilizados na culinária.

Na outra extremidade de Pemba encontramos o Paquitequete que apesar de desenvolver um forte comércio swahili alberga por outro lado famosos artesãos e gastrónomos ensinados no Ibo e trazidos para ali aquando da transferência da sede da administração da Com­panhia do Niassa.

Ourives trabalhando a prata das moedas portugesas antigas e o ouro das libras estrelinas que ainda vão aparecendo, arrancado às relíquias de algumas poucas “sinharas” (senhoras) ainda vivas apesar de velhinhas, que em seus quintais confeccionam para venda famosos doces, compotas, diversos bolos doces e salgados bem ainda como achares de variado tipo.

O Paquitequete está quase separado da cidade por uma lângua que seca quando a maré vaza mas repleta de água na enchente e, nessas ocasiões, não falta “negociozinho” aos miúdos das casquinhas ganhan­do algumas coroas aos que desejem encurtar o caminho caso estejam em ambas as extremidades já que a ponte se situa quase no extremo sul deste enorme bairro.

O nome de Paquitequete provém da expressão "pá hitequete” que significa por um lado "no sítio do hitequete" ou melhor uma planta que cresce toda emaranhada muito comum ali, por outro é aplicada à característica do próprio bairro com casitas todas muito juntinhas umas das outras formando um autêntico emaranhado.

Engloba ele junto ao mar as áreas de Cofungo na ponta Mepira, seguindo-se em direcção à ponta Romero as zonas conhecidas por Nazimogi, Paquitequete propriamente dito, Cumissete e Cuparata. Há a acrescentar ainda uma casta de mestiços do Ibo que se isolou um pouco mais para a costa a seguir a lângua, dando origem ao bairro da Cumilamba que galga um pouco a parte da escarpa Leste da cidade de Pemba.

Enquanto que na Maringanha a ponta é alcantilada e orlada por um recife de coral que cobre e descobre em Mepira ela è baixa e arenosa caindo a costa a pique sobre o mar.

Nas regiões centrais da península localizam-se os bairros semi-urbanizados de Ingonane, próximo à ponta Romero assim como o de Natite e Cariacó mais a sul onde vivem principalmente os novos artesãos, o pequeno operariado local e os potenciais produtores e negociantes de aguardente e outras bebidas tradicionais, tais como os fermentados de cereais ou farelos.

Estes bairros desenvolvem-se a partir da ponta Romero que é baixa e também orlada por recife de coral que cobre e descobre. Tem praias arenosas mas as ondas são no geral bastante violentas. A ponta Romero antes da ocupação pêlos portugueses era conhecida pelo nome Miranembo.

A tradição reza que ainda no tempo em que a região era floresta cerrada, albergando grandes manadas de elefantes certo dia enfurecidos avançam em direcção ao mar e o mais velho (o chefe) que seguia à frente não foi capaz de estancar na ponta o que o levou a precipitar-se por sobre as águas e dai engolido pelas ondas. De súbito os outros elefantes param e aterrorizados tomam rumo oposto fazendo uma retirada para o interior sem nunca mais por ali aparecerem.

Ora, localmente a expressão “umuiria” significa engolido e “nembo” o vocábulo elefante, ou seja o lugar onde foi engolido o elefante. Naturalmente, segundo a lenda, as duas expressões ter-se-iam fundido dando origem à palavra “umuirianembo”, posteriormente, “miranembo”.

Entre o Cariacó e a Maringanha encontram-se o Wimbe e o Nanhimbe (actual bairro Eduardo Mondlane) dedicando-se à agricultura de su­bsistência e à fermentação alcoólica do caju.

Já no cimo da colina podem-se ver, do levante ao poente, os bairros de Chuiba ou "Planalto dos Cajueiros", Gingone e Muxara, pratica­mente cobertos de cajueiros, e são os que mais comercializam a amêndoa do caju e se dedicam à fermentação alcoólica da respectiva maçã bem como à pequena agricultura.

O rochoso baixo de Nacole a 1,5 milhas para Sueste da Ponta Mepira, projecta ao longo das suas praias de Chibabuara onde, do ponto mais alto da cidade, a colina se faz cair abruptamente.

Outrora um esconderijo de larápios por possuir densa floresta, hoje a sua população é essencialmente constituída por pescadores que, apesar dos rumores de existência de um polvo gigante ali mesmo na baía, essa gente continua fazendo alguma pescaria sem qualquer receio.

No centro da península onde está instalada a cidade de Pemba, ergue-se a zona de cimento desde a Baixa ou "Cidade Velha" junto à qual foram construídas as primeiras casas de alvenaria por facilidades de acesso ao porto, estancando numa planície provida do melhor parque habitacional.

É também nesta zona onde se encontram o Governo e serviços públicos diversos, combinados com uma cadeia de estabelecimentos comerciais bem como um parque infantil onde funciona também uma creche.

O actual porto e ponte cais de Pemba na baixa estão localizados na região meridional da baía a 5 amarras para Sueste da ponta Mepira, com fundo de lodo. O fundeadouro pode alcançar-se a pouco mais de 80 metros, onde se encontra o molhe cais, dado que os fundos se aproximam bastante da terra.

Existem no porto diversas instalações para armazenamento de cargas e para serviços marítimos e aduaneiros. Está também apetrechado com um sistema para a contenção de combustíveis que, através de uma conduta de cerca de um quilómetro, são despejados para os depósitos da Petromoc próximos à povoação de Chibabuara.
- Do Livro "Pemba e sua Gente" de Luis Alvarinho.
EXTRAS - O FAROL DA MARINGANHA

Pudesse eu ligar para (289)824983 ou ir pessoalmente localizar a Rua Actor Nascimento Fernandes, lá para as bandas de Faro, Algarve, na terra de Camões, encontrar Maria dos Anjos Martins e conversarmos hoje sobre o Farol da Maringanha.

Não é por nada. É que no livro que me ofereceu, com o nome Pemba, de contos lusófonos, em retribuição ao meu “Caso de Montepuez”, ela me pôe muito pensativo quando na página 81 fala do faroleiro que sempre guarnecia aquele farol em tempos de sua juventude.

Apresentando-se com o pseudônimo, Angie Paraízo, a nossa escritora, que é natural de Cabo Delgado, apresenta um faroleiro que ficava horas a fio, sentado nos primeiros degraus do farol esperando ver os tentáculos do polvo gigante que emergia silencioso e rápido do fundo das águas do mar. Passava as tardes à espera do seu único amigo, a sua única visita, apesar de saber que ele só vinha ao pôr-do-sol. O velho faroleiro gretado pelo vento e pelo sol, cofió na cabeça de cabelos brancos, pés descalços, olhar perscrutando o mar até ao limite do horizonte.

Ás vezes, conforme Angie Paraízo, o polvo surpreendia o coitado do velho faroleiro, elevando os grandes tentáculos acima do nível do mar, deixando-os deslizar pelas paredes escuras do farol para em seguida rodopiar em espiral provocando agitação nas águas. O velho sorria e agradecia. Estamos perante um maringanha morto e monótono.
:: Júlio Gabão, Jaime L. Gabão e o saudoso Rodrigo Carrilho ::

O que gostaria então de dizer a minha amiga luso-moçambicana, é que no mesmo sítio, estou a dizer, no farol da Maringanha, já não há nada que justifique a solidão de que sofreu o faroleiro. O bairro da Maringanha não tem hipótese de ficar isolado, não há lugar para ser apenas o polvo a brincadeira do faroleiro e não só.Maringanha fica hoje alguns quilómetros mais perto da cidade de Pemba, porque a engenhosidade de mentes particularmente empresariais permitiu queo farol seja não só aquele dispositivo sinaleiro, mas também o nome de um complexo turístico-cultural, enfim, lugar para todo o tipo de lazer, que Pemba há muito precisava.

Aliás, não há mato a partir da praia do Wimbe, a pouco e pouco foram aparecendo lugares de restauro e brincadeiras adultas, sendo que a seguir vem a “Aquilla Romana”, depois temos a sempre trabalhadora Célia, o campismo, etç., etç., salta-se um pouco para permitir que um pequeno bosque ainda continue a viver por razões humanas. É que lá está o cemitério dos hindus, é lá onde se queimam, depois do que estamos no complexo “O Farol”.

É Albertino Cuomo, o cabo-verdiano que agora (há duas semanas) fez o destino obrigatório dos que sabem descansar, claro, com certas posses.

Houve tempos em que aos fins-de-semana tínhamos pessoas a irem a Nampula para se deleitarem com os ambientes quentes do “Xitende” ou “Monteiro Splays” ou ainda nas Quintas Nasa, do Galo e muito recentemente no complexo “O Bambo”. Noutros tempos a gente dirigia-se a Montepuez para usufruir do que “Zavala” proporcionava, hoje não.

Pudesse eu convidar a minha amiga Angie Paraízo para, com ela, com a sua idade, ficar pelo menos trinta minutos no “Farol”, depois iríamos pela costa até noutro complexo pertencente a Chabane Combo, só para ver que o espaço está sendo ocupado, por isso a solidão do faroleiro não mais voltará, pelo menos em Maringanha.
PS - Em tempo: Estiveram cá os “Massucos” do Niassa, para confirmarem que são na verdade os mais-mais da atualidade. Há muito que Pemba precisava de espetáculos de luxo, fora da cassete que se traz e se imita burlando deste modo o público que muito respeito merece. Ficou de parabéns Narciso Gabriel e o seu restaurante Wimbe que trouxeram os “Massucos”, agora traga-nos os “Eyuphuros” e verá.
- Pedro Nacuo - Notícias de 27/09/2002-Texto cedido por Anvar e Inez Andrade Paes.

(Transferência de arquivos do sitio "Pemba" que será desativado em breve)

4/28/10

Brasil - Bons exemplos...

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4/27/10

O VIÚVO

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É tudo sempre igual.  Às sete acorda, sem coragem de se virar para o lado que era o da Mulher. Estica o braço, num gesto instintivo, a ver se ela ainda lá está, e um vazio magoado repete-lhe a ausência. Limpa as lágrimas à aba do lençol, liga o rádio-despertador para o barulho lhe atenuar o abandono, mas apaga-o logo, que lhe enojam as notícias do mundo. Quando sente, na rua, o trânsito a amainar, levanta-se e atavia-se por hábito. O espelho só lhe serve para não se cortar ao fazer a barba; todos os dias os cabelos embranquecem, os ombros descaem, os olhos encovam-se e as faces enrugam-se para lá do que justificaria a natureza. Aquece, no micro-ondas, o leite com um pingo de café de véspera, torra uma fatia de pão que barra com geleia (o Médico proibiu-lhe a manteiga por causa do colesterol ) e veste-se.

Mal sai do elevador, acende o cigarro que melhor lhe sabe no dia todo. Desce a Avenida calado, olhos espetados no chão, as pessoas incomodam-no, o rebuliço enerva-o, a vida fá-lo triste. Compra uma rosa vermelha na Florista, entra no cemitério, pede a cadeirinha de abrir e fechar na guarita do segurança, a quem dá uma gorjeta mensal, desce as escadas para o 2º. talhão e senta-se junto da campa da Mulher. As pessoas cumprimentam-no, já o conhecem, assim como a morte que o enlutou. Segura a cara entre as mãos, no modo de quem se concentra numa oração, e debruça-se para a fotografia debaixo da qual está escrito: Eterna saudade do teu marido. N. 12/10/40 – F. 07/01/02. Os lábios dizem o que ninguém ouve, os olhos choram o que todos entendem. Ali fica a manhã, qual obelisco de cré, alheado de tudo, mesmo da confusão cigana nos gavetões do fundo. Quando a sineta toca, ergue-se, devolve a cadeira e diz «até logo» num esforço falado.

Se ganha coragem, vai a casa fazer um arroz branco e grelhar um bife daqueles já embalados no supermercado. Aprendeu a cozinhar quando a Clotilde, magra e branca como a caliça, caiu na cama. Fez quilómetros entre a cozinha e o quarto em que, lentamente, definhava, a pedir-lhe instruções para o refogado, o estufado da carne ou do peixe, a quantidade de sal, o tempo de cozedura, levar-lhe a colher com uma amostra para «vê lá se está bom assim», teimar com ela para comer «nem que seja um bocadinho», esmagar a sopa para não lhe custar a engolir.

Aflige-o a casa vazia, chega a ter mesmo saudades daqueles dias sofridos em que a ajudava a levantar-se para a levar aos tratamentos. Corre, por vezes, ao quarto; parece-lhe ouvir a Clotilde naquele gemido que foi a maneira de o chamar nos três últimos anos de vida que o cancro demorou para a vencer. Chora, mas, já nem repara, tantas e repetidas são as lágrimas que só quando não as tem é que se espanta. Senta-se no sofá, tira o som da televisão e adormece por uns minutos. Desce à pastelaria do rés-do-chão, toma um café e repete o caminho e as rotinas da manhã. Alguns, perante os seus olhos vermelhos, acercam-se dele, tentam permutar consolos, estimulam-no a passear, distrair-se; esboça um trejeito de agradecimento que lhe sai como um suspiro refreado. Com a chegada da noite, os círios, nas lajes, sobressaem entre margaridas, cravos e flores do campo. Custódio, do cimo das escadas, vira-se, uma última vez, para o lugar onde a Mulher eterniza, acena-lhe, manda-lhe um beijo, curva-se para a sua solidão, devolve a cadeirinha ao segurança e passa o portão com a sineta a dar o último toque de aviso.

Deambula pelas redondezas a fazer horas de jantar. Vai, frequentemente, a um restaurante barato, na cave de um prédio subaproveitado, a que se chega descendo umas escadas gastas, e lhe lembra o Aeminium dos tempos de Coimbra. Aí fica, após o café, a fumar e a fazer que vê televisão. Quando as mesas se esvaziam e os empregados começam a abrir a boca, levanta-se para percorrer os escassos metros que o levam a casa. Aqui chegado, dá uma dose de friskies à gata que mia a queixar-se do isolamento e da falta dos pés da Clotilde na cama, nem repara se a mulher-a-dias lhe deixou o chão limpo e a roupa passada, mastiga, para lhe dar o sono, mais umas folhas do livro de cabeceira (anda a ler o Diário de Um Mago do Paulo Coelho) e quando pressente a mornice a inebriá-lo sintoniza, baixinho, o despertador na Antena 2, carrega na tecla de sleep e fecha a luz. Mas, ao contacto com os lençóis, entra numa espertina suada, um vazio que o magoa, um medo, até, de estar só. Imagina a Clotilde junto de si, lembra-se quando a afagava, a amava com uma ternura duplicada, como se sentisse o seu corpo a fugir-lhe, a repetir-lhe, vezes sem conto, que a queria por amor, pela emoção e o prazer de a ter nos seus braços. Pensa no filho que não tiveram. Sempre o desejaram e tentaram, mas, quando, esgotados todos os meios, a Medicina lhes sentenciou a impossibilidade natural de o terem, recusaram qualquer outro processo, incluindo a adopção. A Clotilde ainda viveu algum tempo de dúvida, ele é que não: filho tinha que ser mesmo do sangue e consoante «Deus mandava». Bem escutava os colegas no emprego, amigos e conhecidos a queixarem-se das exigências filiais, as extravagâncias e irresponsabilidades, as noitadas e vícios, o desapego familiar e a frieza perante os princípios em que foram criados, a obsessão de quererem tudo num facilitismo que arrepiava os que abdicavam de si por eles, a cultura do depósito-de-asilo, transferindo para Lares os velhos e as suas reformas de anos e anos de canseiras como quem faz um trespasse familiar. E “se Deus assim o quiz Ele lá sabe porquê. Talvez achasse que para sofrimento já bastava o que viria”.

Custódio, quando se reformou da Companhia de Seguros, sem descendência que lhe condicionasse as horas ou aumentasse as preocupações, convencera a Mulher a acompanhá-lo numa viagem de revisitação do passado. Sempre sonhara voltar à África da sua comissão militar. Finalmente, o Cardoso, amigo dos tempos da Faculdade, gerente de uma delegação bancária em Lourenço Marques (nunca se habituara a Maputo), que lhe escrevia várias vezes a convidá-los para irem até Moçambique, recebeu-os com alegria e demora. Foram por um mês, ficaram três.

Mal desceu as escadas do avião inebriou-se com aquele cheiro inconfundível de África, um odor agrográfico que lhe encheu as narinas e a alma. Voltou a saborear as praias com palmeiras a marcarem riscos de sombras nas areias, os mariscos como aperitivos da cerveja gelada, o calor abrasador, a nudez das sestas, a angústia dos entardeceres, o agro-doce da catinga e da terra queimada, o perfume das acácias, mangueiras e embondeiros dispersas pelo mato e pelos bairros do caniço. Mas, já não era como no seu tempo. Desiludiu-se com o desleixo, a sujidade, a carência e a impressão de quem espera qualquer coisa ou alguém para um recomeço. Foi a Nacala onde desembarcara no Niassa; a Quelimane onde apanhara paludismo; nadou na baía de Porto Amélia e misturou as lágrimas da emoção com a doçura dos corais que nenhuma independência roubara; no Alto do Molocué, o alpendre do Chefe de Posto, em que dormira em algumas noites de cansaço, já não existia; o cantineiro apanhado que conhecera em Mocuba tinha ido «pró puto» e, na sua cantina, sem telhas e sem portas, definhavam as cinzas das fogueiras que tinham mitigado o cacimbo da noite anterior; em Mueda ainda escutou o eco do rebentar da armadilha que cegou o Adérito e decepou o Toni. Andou de um lado para o outro, como uma borboleta tonta, de avião e avioneta, de Land Rover e almadia, encheu-se de poeira, bebeu litros e litros de água e bazukas de Laurentina, gastou, sem os contar, montes de meticais, praticamente o que recebera no reajuste da assinatura da reforma, e sentia-se tão feliz que se imaginou, novamente, com vinte e quatro anos, agora livre de armas e camuflados e do medo de um tiro, vindo do capim, lhe ceifar a vida. Na picada que levava a Montepuez sentiu-se confuso, uma pressão no peito que até parecia que ia estoirar; ver-se ali, de novo, foi como se recuperasse os temores antigos, sabendo, ao mesmo tempo, que eles já não se repetiriam; esse conflito de emoções deu-lhe um sossego tão generoso que chorou de olhos ao céu.

A Clotilde estava espantada com ele. Aquela azáfama, aquela fome e aquela sede, como se o mundo fosse acabar no minuto seguinte, os seus gritos e os seus silêncios, o borbulhar das lágrimas e os berros de alegria quando reencontrava os lugares onde estivera. Uma noite, ele que era tão reservado, quase pudico, na intimidade, levara-a para as areias de Wimbe e, com a espuma das ondas a coçegar-lhes os pés, reinventaram uma segunda noite de núpcias com um batuque, para os lados do Farol, a celebrar rituais. Ao deixaram a terra morena foi como se acordassem, mais ele do que ela, dum sonho no paraíso.

Pouco depois de chegarem, num daqueles exames de rotina anuais, um pesadelo de chumbo derrotou-lhes a felicidade. Nunca mais a vida lhes sorriu. Rezaram para que a mastectomia fosse a tempo, mas, ele, chamado à parte pelo Cirurgião, ficou incumbido de disfarçar a esperança diante dela. A morte anunciada da Clotilde acabou com a razão da sua existência.

Custódio tem sessenta e cinco anos mas corpo de cem. Quem o viu e quem o vê espanta-se com as metamorfoses da vida, os alcatruzes desta nora em que uns gemem sob a canga do destino e outros, indiferentes aos dramas alheios como se eles nunca lhes acontecessem, levitam na ignorância. Só, sem ninguém a quem se entregar, vive, desde então, um dilema: há-de, ou não, recolher-se a um desses malditos Lares, num baixar de orelhas ao que tanto abomina, para que lhe sirvam uma sopa, lhe façam uma cama, o tratem quando a doença um dia o espreitar numa esquina, vistam-lhe o cadáver e o enterrem no talhão que, deixará escrito, será o da Clotilde. «Por um lado, é mau, que detesto compartilhar solidões desconhecidas; por outro, será bom, morrerei mais cedo. Não quero andar aqui muito tempo sem Ela.», disse ao Manuel, seu amigo do peito, num encontro casual, com um sarcasmo de revolta. O seu velho companheiro de estudos e de emprego, imaginando-se no seu lugar, sentiu um calafrio gelado.

Um dia, ao vê-lo, aligeirou a passada, apanhou-o, pôs-lhe um braço no ombro e gracejou: «Custo – era assim que o chamavam - ergue-me essa espinhela e ANDA VER O SOL! Lembras-te da canção do José Afonso que tu cantavas?...» Olhou-o com aqueles olhos sem estímulo, parados, esboçou um sorriso e apertou-o numa convulsão que, rapidamente, foi mútua. Manuel acompanhou-o ao portão do cemitério e percebeu-lhe, ainda, quando ele se virou para o abraçar, um sorriso de franqueza, quase, quase igual ao riso dos anos felizes, mas era um sorriso remoto numa cara desiludida.
- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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MEMÓRIAS DE CABO DELGADO - EPIDEMIA DE VARÍOLA NA ILHA/VILA DO IBO, ENTRE ABRIL DE 1883 E JANEIRO DE 1884

Por Carlos Lopes Bento(1)
Ainda não refeita do susto provocado pela “guerra dos pretos” de 26 de Janeiro de 1883, a população da Ilha do Ibo, seria surpreendida, no mês de Abril desse mesmo ano, por uma epidemia de varíola, que terá começado em Janeiro nas Terras Firmes-, e duraria, cerca de 10 meses, (todo o período das estação seca e alguns meses da estação chuvosa) causando graves prejuízos sociais e económicos.

De acordo com as informações mensais, fornecidas pelas autoridades do Governo de Distrito de Cabo Delgado e publicadas no Boletim Oficial do Governo-Geral da Província de Moçambique, os factos:

Abril
Estado sanitário: Regular.
Ocorrências extraordinárias: Manifestaram-se no Ibo, três casos de varíola. Estabeleceu-se um barracão enfermaria na contra costa desta Vila, sítio onde já estivera, com bom êxito, em 1855, grassando igual mal, para recolher e tratar os varíolas. Ali se acham dois, em vias de curativo, tendo falecido, antes de construído, o barracão, um terceiro que fora o primeiro a ser acometido.

Maio
Estado sanitário: Regular.
Ocorrências extraordinárias: Aumentaram até 13, neste mês, os casos de varíola no Ibo. Foi necessário abandonarem o barracão da Mujaca, que já não comportava os variolosos, alugando-se, nas proximidades da praça de S. João, por indicação dos facultativos, uma casa espaçosa, onde estão sendo tratados 10, tendo saído já 2 curados e falecido 1.

Junho
Estado sanitário: Mau.
Óbitos: Em 11, Salimo e em 27, Filipe, ambos gentios, de varíola;
Ocorrências extraordinárias: Continua a grassar a varíola na Vila. Entraram durante o mês na respectiva enfermaria 16 variolosos, saíram 14 curados e faleceram 2, ficando em tratamento 10. Abundaram as febres neste mês.

Julho
Estado sanitário: Mau.
Óbitos: Em 2, Não Zanga e Mangute, indígenas gentios, vítimas de varíola; em 9, Maxangano e em 12, Amade, gentios indígenas, vítimas de varíola; em 25, Aristides Luciano Evaristo de Meneses, natural de Goa, ignora-se a filiação e a idade, solteiro, facultativo de 2ª classe do quadro de saúde, em comissão, vítima de varíola; em 27, José Caronga e Semba, e em 13, Pedro, indígenas, vítimas de varíola.
Ocorrências extraordinárias: Continua a varíola no Ibo, tendo falecido vítima desta epidemia o delegado de saúde, ficaram a cargo de um enfermeiro de 3ª classe as enfermarias e farmácia. Entraram durante o mês na respectiva enfermaria 7 variolosos, saíram 2 curados e faleceram 7, ficando 8 em tratamento. O aumento da mortalidade neste mês, em que aliás, o número de doentes baixou em referência a Junho, torna bem frisante a falta de delegado de saúde. As febres continuaram na Vila em grande escala.

Agosto
Estado sanitário: Mau.
Óbitos: Em 11, Joaquim Ataíde Correia, nascido no Ibo, filho natural de Bento Correia, de 47 anos, solteiro, amanuense da enfermaria regimental; em 12, Antónia Liberato Dias, nascida no Ibo, filha natural de Sauchande Madangy, de 7 anos de idade; e em 25, Catarina, nascida no Ibo, filha natural de Paciência, de 45 anos, solteira, de cor preta, criada de servir. Vítimas de varíola, além de um dos mencionados, mais sete pretos gentios, que se saiba.
Ocorrências extraordinárias: Continua em actividade a epidemia de varíola. Durante o mês, entraram durante o mês na respectiva enfermaria 27 variolosos, saíram 14 curados e faleceram 4, ficando 17 em tratamento. As febres endémicas também não afrouxaram.

Setembro
Estado sanitário: Mau.
Óbitos: 16.
Ocorrências extraordinárias: A epidemia desenvolveu-se de um modo assustador. As vítimas da Vila, de que a autoridade teve ciência, montam a 12, de ambos os sexos, número que esta muito aquém da mortalidade havida, pois que os pretos por ignorância ou falta de meios não têm dado conhecimento do passamento dos seus.
Durante o mês, na enfermaria entraram 20, saíram 24 curados e faleceram 8, ficando 5 em tratamento. Em todos os pontos da Vila há brancos e pretos em curativo nas próprias casas, não se devendo por isso julgar do desenvolvimento da varíola pelo movimento da enfermaria. As febres endémicas também não abrandaram.

Outubro
Estado sanitário: Mau.
Óbitos: Em 9, António Monteiro Baptista, do Ibo, filho ilegítimo de Joaquim Monteiro Baptista e de Ana Morais, de 42 anos, proprietário, de varíola; em 12, Constantino António Resende, do Ibo, filho legítimo de Rodrigo José Resende e de D. Teresa Portugal Carrilho, de 55 anos, casado, capitão-mor de Bringano e Fumbo, de varíola; em 19, António Magalhães, do Ibo, ignora-se a filiação, de 28 anos, solteiro, soldado nº 81 e 1035 da 1ª Companhia de Caçadores 1, de varíola; além destes, mais 5 gentios de varíola.
Ocorrências extraordinárias: Continua a varíola a fazer estragos na Vila. Várias famílias estão refugiadas no continente.
Pelos motivos constantes da anterior informação apenas houve a autoridade conhecimento dos óbitos retro mencionado.

Novembro
Estado sanitário: Mau.
Óbitos: Em 8, João Soares Maria Rebocho, do Ibo, filho natural de Alberto Barradas Maria Rebocho e de Luísa Ferreira Soares, de 6 meses, de varíola;.em 22, José Vicente San’Ana Peres, natural de Goa, filho de Tomé Caetano do Rosário Peres e de Ana Francisca Simões e Peres, de 40 anos, casado, proprietário, de varíola; em 26, João Monteiro Baptista, do Ibo, filho Joaquim Monteiro Baptista e de Ana Soares, de 40 anos, solteiro, faroleiro de 2ª classe, de varíola; Mais 7 gentios, de varíola.
Ocorrências extraordinárias: A epidemia de varíola parece que tende a diminuir.

Dezembro
Estado sanitário: Vai melhorando.
Óbitos: Em 20, Inocência Vicente de Sequeira, nascida no Ibo, filha natural de Josefa de Sequeira, de 34 anos, viúva, proprietária, de varíola.
Ocorrências extraordinárias: Está quase extinta a epidemia de varíola. Deram-se durante o mês alguns casos, mas poucos e isolados.

Janeiro de 1884
Estado sanitário: Bom.
Óbitos: Em 23, Vicente Africano Dias, filho de Constantino Conceição Dias, de 63 anos de idade, viúvo, proprietário, de varíola.
Ocorrências extraordinárias: Pode considerar-se extinta a epidemia na Vila.

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A maior parte destes dados estão confirmados no Relatório do Governador José Raimundo da Palma Velho, relativo ao ano económico de 1882-1883, que sobre o estado sanitário do Distrito de Cabo Delgado, então sob a sua responsabilidade, escreveu:

“Faleceu o delegado de saúde antes de ser formulado o mapa do movimento da enfermaria regimental, ficando este estabelecimento a cargo de um enfermeiro de 3ª classe, de quem não se pode obter esse mapa.
Em geral o estado sanitário do distrito foi satisfatório até ao aparecimento da epidemia da varíola. Desde Janeiro deste ano, aproximadamente, tem grassado essa epidemia no continente. Na vila do Ibo manifestarem-se em Abril último os primeiros casos. Para serem recebidos e tratados os indígenas afectados estabeleceu-se, desde logo, um barracão enfermaria na contra costa da ilha. Mas dentro um pouco foi mister arranjar outra enfermaria, pois aquela já não comportava os variolosos, alugando-se então nas proximidades da praça de S. João, por indicação dos facultativos, uma casa espaçosa e própria para o indicado fim. (…).
Medidas de política sanitária adoptaram-se algumas conducentes à limpeza e asseio das ruas, quintais, poços, etc., procedendo-se também, regularmente, à inspecção dos géneros alimentícios.
As necessidades higiénicas mais palpitantes da Vila são: a sua limpeza geral e dos arredores; a construção de um cemitério com a capacidade necessária para receber indistintamente todos os mortos; e o saneamento do ponto sito na sua parte central e a oeste da Vila.”

Como poderemos verificar pelos factos relatados, embora as medidas sanitárias tomadas pelas autoridades, o número de vítimas, que foi elevado, parece estar subestimado e, por isso, longe da realidade. A epidemia não escolheu sexos, idades, estados ou classes sociais.

Nesta data - em que se aproximava a nova ocupação e exploração de África, pois, nos finais do ano de 1884, iria ter lugar a Conferência de Berlim -, no campo da política sanitária pouco se tinha feito e, quase, tudo estava, ainda, por realizar.

(1) - Antropólogo e antigo administrador dos concelhos dos Macondes, do Ibo e de Porto Amélia(Pemba).