9/25/10

Lampejos de poesia - AMOR INCONDICIONAL

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Quisera ter palavras que não escondessem os meus pensamentos...
Quisera que os meus sentimentos fustigassem mais fortes que o vento...
Quisera borrar o silêncio que não faz mais que mentir todo tempo...
Quisera abraçar-te sem necessidade de ter-te nos meus braços...
Escutar-te sem o aveludado acariciar da tua voz...
Quisera ser tudo aquilo que anseias que eu fosse...
Sonho, mentira, fantasia, magia, utopia...
Camarada, amigo, irmão, companheiro, amante, heroi, mestre...
Ou, simplesmente, voltar a ser um menino inocente...
Disposto a seguir-te cegamente todo o tempo...

- Herculino Loureiro, Setembro de 2010.

A CASA

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Todos, uns mais que outros, estamos ligados às casas onde morámos. As peripécias da existência levam-nos, muitas vezes, a geografias diferentes das que conhecemos na nascença. São as condições do destino, contrariando a vontade ou os desejos de mudança para a concretização (ou não) de um sonho. As casas são o canto das confidências ou o altifalante dos destemperos, a alcofa do amor ou o antro da repulsa, o espelho da harmonia ou da truculência, o retrato da ternura ou do gelo, a redoma das inocências ou o estilhaçar das más criações.

As casas são pedaços da nossa memória povoada de risos e de choros, de zangas e de perdões, de vida e de luto, de realizações inesquecíveis e injustiças traumatizantes, de brincadeiras e de recriminações, de opulência e de escassez, de grandezas e misérias – de tudo, afinal, de que é feita a roda da vida.

Quantas vezes uma casa é a referência de uma cronologia, o antes ou o depois de uma casualidade, a justificação de uma luta, o renascer de uma afirmação, o hiato de uma dificuldade, a certeza de uma vida inteira. As casas são sempre a moldura de uma época, figurantes imóveis da mobilidade do nosso filme.

Há dias, vi, na longa avenida onde moro, uma dessas casas, por onde passei, ser demolida como quem esmaga uma inutilidade. Subia-se por uma escada em cotovelo, que dava a um longo corredor, marginado por quartos, até terminar numa pequena cozinha aproveitada numa reentrância da sala de jantar, frente à qual se estendia uma frondosa ramada que, todos os anos, dava alguns almudes de vinho americano, e onde, à sombra dela, as crianças faziam tropelias diante da complacência de uma bondosa avó. Foi ali que escutei, enquanto o sono não vinha, o ruído dos eléctricos nas suas correrias nocturnas, no tempo em que passear à noite ainda era uma liberdade; que, surpreso, ouvi sagas africanas de esplendor e de debandada, contos de honra e de abdicação; que ri com satisfação e me silenciei nas preocupações; afaguei nascidos e chorei por quem abandonava o mundo; que confirmei o ensinamento da minha meninice aldeã: a partilha do pão tanto pode ser por dois como por quatro.

Quando o mastodonte de tijolos e cimento parar de crescer para o céu, vou pedir ao novo dono que ponha uma bandeira, lá no alto, com um coração desenhado. É A ÚNICA MANEIRA DE EU VOLTAR A OLHAR PARA LÁ.
- Texto de M. Nogueira Borges*, Porto, Setembro de 2010.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

9/22/10

De Porto Amélia a Pemba-Em busca da História! Documentos... 35

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9/18/10

A PROCISSÃO

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Gumiares é uma aldeola de pouco mais de um cento de casas, acabadas e ricas, umas, construídas à medida das posses e remediadas, outras. Tem um caminho a meio, separando vinhedos escassos de pomares abundantes. Entra-se por ele, esmagando o serrim de uma carpintaria alimentada pelos pinheiros do monte de Santa Bárbara com a sua capelinha, em vigilância protectora, a encimá-lo.

Naquele final de uma manhã de Agosto, sob um calor abafado de trovão a molengar os corpos, a banda de música actuava no adro, os emigrantes encostavam-se aos carros com as letras dos países do seu suor e as chaminés fumegavam no fazer dos almoços melhorados.

Silvestre, mordiscando a expectativa, dirigiu-se, com o irmão, à casa do primo Gabito que os recebeu no cimo das escadas.

- Sejam bem aparecidos! – esfuziou, enquanto descia com as cautelas dos seus setenta e cinco anos de reumatismo avivado em cada Inverno frio e húmido como eram os de Gumiares. - Então só vieram vocês? Mas eu contava com todos, valha-me Deus! – acrescentou pesaroso.

Cumprimentaram-se sem fingimentos. A Rosália – devia ter metade da idade do Gabito – surgiu fresca, a enxugar as mãos no avental, em jeito de matrona precoce.

Gabito, ao fim de meia dúzia de anos de viuvez, fizera as partilhas com os filhos e amancebara-se, num gesto de escândalo rural, com a sua antiga criada. Rosália possuía uns olhos verdes de fogosidade contida num rosto com traços de ligação controversa; o modo de ser de uma gazela desconfiada numa selva de leões, mas intervalos de desinibição previdente em riso de fêmea não realizada.

- Vamos esperar pela procissão e depois almoçamos – disse Gabito, boca escancarada de satisfação. - Agora está tudo na missa, mas acaba num instante – rematou seco.

Subiram para a sala de jantar. Numa mesa enorme, rodeada por cadeiras aveludadas de espaldar alto, os pratos, bem alinhados, luziam com os talheres; numa mais pequena espalhavam-se doces variados. À direita, ladeada por sofás de couro castanho debruados a madeira do mesmo tom, resplandecia uma cristaleira com serviços caros; em frente, sobre uma espécie de armário, regougava uma televisão. Para a rua davam duas janelas e uma varanda de sardinheiras. Debruçado nesta, Silvestre explorou as vistas: o monte de Santa Bárbara, revestido pelo verde dos pinheiros, roçava as nuvens; logo abaixo, na ondulação da descida, talvez um acre de terra com um punhado de cepas dispersas, de cultivo poupado, aguardando a vindima numa espera desalentada; dos vergeis de macieiras, alinhados a esquadro, evolava-se um perfume farto e adocicado; para a sua esquerda, num recanto de sabugueiros desquitado do conjunto, um melro cantou.

- Então o primo não foi à missa? – perguntou Silvestre.

- Não nos damos lá muito bem, eu e o Padre - respondeu, com um tom de aborrecimento na voz. – Fez uma pausa. - Sabe como é, coisas da terra, desta gente que não tem nada que fazer – completou com algum sarcasmo.

- E que tem isso a ver? Uma coisa é a devoção, outra...

- Tem razão, mas, sabe, não gosto de o encarar...

Gabito fora atrevido. Em Gumiares nunca se vira uma coisa assim. Um homem com sete décadas nas pernas, mais para lá do que para cá, netos crescido, juntar-se a uma Rosália qualquer, com menos – ou um pouco mais, que interessava? – de metade da sua idade!? O povo falara. No seu entendimento, aquilo era, por um lado, maluqueira de velho e, por outro, ganância de rapariga nova a sonhar com contos de reis, lagar e tulhas cheias. «O maluco do velho», como o chamavam na aldeia, contudo, segurara-se. Os dois filhos mais velhos, arrumados cada um em sua casa, pomares e cepas independentes, encolheram os ombros. A divisão de bens, todavia, não calara o Silva. Mais instruído, com frequência liceal e gosto pela leitura, quiçá mais amorável e delicado, não o satisfazia tanto o materialismo das coisas como a honra de uma maneira. Ia mais longe e mais fundo, ao sentimento da vida que se faz de respeito e gratidão. Após discussões azedas, por bastas ocasiões a ameaçar uso de mãos ou o que estivesse mais a jeito, apelidava os irmãos de traidores, incapazes de respeitar o nome e a memória maternas. Ciente de que a alma da Mãe se reincarnara no seu rebate, mandou, numa tarde de Maio, e com a liberdade que a sua condição de solteiro permitia, uma rajada de desprezo a todos eles e abalou para o Brasil onde um tio paulista lhe prometera guarida. Levava a recordação dela e, no bolso, as notas da venda da sua parte a um ricaço de Chãos. O irmão mais velho, bem o pressionara para lha vender, mas berrara-lhe que antes queria deixar tudo a monte a ceder um palmo a «hipócritas como tu!».

O Silva subira na consideração de Gumiares, as gentes falavam dele com carinho, e o Padre Messias usava o seu exemplo na cristandade das suas prédicas.

Para Gabito, e restante família, o caso não os espantou. Desde os tempos dos estudos, em Lamego, que o Silva era dado a contrastes e arrebatamentos. Não suportava o que ele chamava imoralidades; o mais pequeno pormenor ético ou desconsideração consanguínea, deixava-o no limiar da exaltação. Repentino e apático, alegre e macambúzio, apaixonado e indiferente, irritado diante de um gasto e calmo perante uma poupança, podia-se afirmar, sem muito exagero, que foi com alívio que os irmãos o viram partir no carro de praça do Flecha. Só Gabito enxugou as lágrimas. Deu-lhe ganas de correr atrás dele, pôr-se diante do carro, gritar-lhe que abandonava tudo, até a Rosália se fizesse muita questão nisso, para que ele ficasse. Percebeu, num repente, que nada vale mais do que a presença de um filho, mesmo de um filho incómodo, mesmo um daqueles filhos a quem os Pais querem mais quanto mais mal lhes fazem. O Silva era o mais novo dos três, nascido já fora dos cálculos procriadores, o protegido da sua falecida, o menino que ela amparava porque – como dizia – «quanto mais sensível mais fraco». Nessa noite, nem o corpo quente da amante lhe fez esquecer a poeira que o Mercedes de aluguer levantou.

Gabito notou à sua volta o crescer de uma barreira de frieza que só o seu dinheiro conseguia rasgar. Tal magoava-o em dobro, porque àquela juntava a impostura com que o tratavam, mas a que se foi habituando. Até o Padre Messias deixara, sequer, de o olhar, a sua casa riscada no mapa dos desvelos paroquiais. A tudo resistia com maior ou menor custo, num faz-de-conta de normalidade. Só o silêncio do seu Silva lhe cortava o coração. Retirava-se, então, para o recém-adquirido pomar do Cosme, e ali chorava como um Pai, convulsivamente, abafando os soluços no barulho do motor de rega. Pusera-o a estudar num bom Colégio quando disse que queria tirar o Liceu, pensou que iria ser o Doutor da família em contraste com o João e o Fortunato que andavam de cá para lá no negócio da maçã. Se não continuou foi porque não quis. Enquanto a sua Mulher foi viva cumpriu sempre com os seus deveres, criara os filhos num exemplo de trabalho, fizera casa, prosperara com a inveja a pisar-lhe os calcanhares, nunca faltara com o necessário e, por vezes, resvalava nos dispêndios só para acirrar as emulações da aldeia. Juntara-se à Rosália porque não queria morrer sozinho num Lar com os filhos a visitá-lo para verem se ainda estava vivo e a lembrança da Mulher a aumentar-lhe o abandono. Mais do que uma amante de momentos raros ou um estímulo para disfarçar a preocupação prostática, era uma muleta a que se agarrava para cumprir hábitos de comida feita, roupa lavada, companhia de insónias, uma cabeça que não se esqueceria de lhe dar os comprimidos que o Médico receitasse, uma tratadeira para a incógnita de um fim de vida.

Um dia, malucando em tudo isto, o carteiro entregou-lhe uma carta de riscas amarelas. O coração quase lhe parou. Com a vista enevoada leu as primeiras letras do Silva. Que desculpasse, mas, ele, apesar da desconsideração que fizera à Mãe, não se esquecia do Pai; que estava bem, já dono de uma padaria nos arredores de S. Paulo, com algumas saudades, é certo, mas sem pensar em regressar.

- O Silva tem dado notícias, primo? – perguntou Silvestre.

- Lá está... Continua bem na vida, convidou-me para o ir visitar, só eu, claro... – reticenciou.

Um foguete estoirou, interrompendo a fala. Outros se seguiram num ribombo que escandalizou a pasmaceira. O caminho, de súbito, perdeu o sossego. Mulheres ligeiras, com camisas brancas e saias azuis, passando sob a varanda do Gabito, cumprimentavam como quem não quer faltar ao respeito pelos estranhos; outras, cochichando baixinho, coziam-se às sombras das macieiras e aceleravam o passo como beatas queirozianas de um qualquer Padre Amaro.

O sol estava no auge. A missa acabara e o foguetório estremecia a terra. A passarada fugia em revoadas e os cães ladravam. Não tardaria a procissão.

Foi no regresso de uma madrugada de Junho. De Porto Amélia a Chãos, parara em Nacala, Beira, Lourenço Marques, Durban, Cape Town, Moçamedes, Lobito, Luanda, São Tomé e Funchal. Em Lisboa, Silvestre chegava ao fim de uma longa viagem. Lá longe, uma saudade sofrida espraiava-se pelas picadas e pelas tembas; uma lembrança de estoiros e gritos, raiva e sangue, corpos vigorosos e farrapos-lençóis; o Pires, Furriel alentejano, com risos interrompidos numa curva da Serra Mapé e uma braço do Barbosa numa mina de Muidumbe; os ecos das noites cacimbadas ou das tardes causticantes, de acampamento em acampamento. O regresso a Chãos, povoado decrépito mas rico - porque fora ali que ele vagira untado com o sangue da Mãe -, devolveu-lhe a dignidade cortada por um ditador raivoso que o mandara num barco transporte de carne para canhão; reencontrava os abraços da família e dos amigos, gente que suava nos campos, alguns já passados por África, outros à espera de vez, ignorando se o velho Calígula era eterno ou morreria como todos os mortais. Também os foguetes acordaram a aldeia naquela madrugada sem horas. Silvestre regressava vivo e moreno do sol moçambicano, mais velho e mais perspicaz que a ausência criara defesas, um rosto seco mas uma alma sempre – mas sempre – solidária. Partira um dia de Chaves com uma angústia do tamanho da Serra Amarela a tapar-lhe a garganta. Silvestre estava de volta e o estrondo dos foguetes lembrou-lhe a aleluia da sua ressurreição.

- Primo, daqui a pouco temos a procissão – atirou Gabito, sem saber que o estava acordando do limbo da memória.

Silvestre sorriu atencioso e não disse nada.

O cortejo, após uns nervosos preparativos no adro, espraiou-se, colorido, no caminho: à cabeça, o estandarte da irmandade de Gumiares seguro por um homem sem idade que é sempre assim a dos velhos, muito velhos, quando, ainda por cima, uma opa negra os envolve; depois, entre aquele e o Sagrado Coração de Jesus, dois anjinhos espantados, de vestes caras e inocências brancas, com as Mães perto para lhes remediarem qualquer descaída das asas; um Cristo curvado, de barbas e coroa de espinhos, arrastava uma tosca cruz de madeira; seguia-o Nossa Senhora das Dores, distraída a mirar os ocupantes da varanda do Gabito, que, apesar de tudo, tolerante na sua crença baptismal, sorria; um S. João espartano, de costelas salientes, cordeiro enrolado ao pescoço, compenetrava-se do seu papel; Nossa Senhora de Fátima, alta e bonita, num rosto trigueiro, ligeiramente comprido, caminhava serena e alheia do que à sua volta se passava; a uma curta distância seguia Santa Bárbara, de menino ao colo, em andor azul e vermelho repleto de marcos e francos; o Padre Messias, envolto na alva de linho, segurava a Custódia sob o pálio que os mordomos, escorrendo suor, levavam, inquietos, a mexerem-se para disfarçarem o incómodo; a Banda, logo atrás, pautava a cadência com o homem do bombo transfigurado num possesso enrubescido; por fim, homens, de chapéus nas mãos, e mulheres, de lenços brancos rendados nas cabeças, cantavam o Avé-Maria, enquanto os que se postavam nas bermas ajoelhavam à passagem do sobrecéu.

Quando a procissão acabou de passar, Gabito, como liberto de uma obrigação, fez um sorriso a unir as orelhas, virou-se para a Rosália e disse-lhe: «Pode vir o anho!»
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".

  • Também pode ler M. Nogueira Borges no Blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.