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9/02/10

A NAIFA

«Tá ver? Tá ver? É o que lhe digo, um home num pode deixar de ser seguro! Hoje, de manhê, tive mesmo p´ra trazer a naifa. Disse cá p´ra mim: “ bem, num debe ser preciso, esta malta é porreira “, afinal, é o que se vê. Abaliei bem mal! Olhem-me qu´isto! Já onte, quando saíram do lagar e começaram a mandar vir, diga-se de passage, sem razão nenhuma, deu-me logo cá uma zoeira no toutiço que nem imagina a minha impressão! Só me deu bontade de abandonar a prensa e botar logo a gadunha a um! São alebantados lá os gajos! Tá bonito isto! Anda-te aí um que não é nada bem encarado, na minha palavra de honra! Onte, atão, era o que mais palrava, “que não, que não“, e não entraram mesmo no lagar! O tipo é o chefe deles, é mesmo reguila, e armou-te aí um banzé dos diabos! E eu cheio de bô fé a dizer que esta malta é porreira! Sim, senhor,bonito serviço!

Num importa o quê? Isso é o que lhe parece! Atão acha bem uma desfeita destas? Tem que haver respeito, isto inda num é o Brasil, ora esta! Eles pensam que vêm p´ra cá abusar ó quê? Que abusem na terra deles, homessa! Anda a gente a rogá-los, a dar-lhes dinheiro a ganhar, e depois fazem isto! Olhem-me qu´esta num tá mal, não senhor... Se me dá na bolha, inda bou a casa buscar o instrumanto! Tou a ver que sim! Inda bou buscar o alfange p´ra dar uns riscos àquele terrorista! Vocemessê num faz ideia da impressão que o gajo me mete!

Como? Num entendi o que o senhor disse? Não, já o merquei há uns tampos. Aquilo, carago!, tem p´raí o comprimanto da mão daquele rolador! Só visto! Autântico! Tem aquele comprimanto à segurança! P´ra que preciso eu disso? Tá boa a chiba, tá! A cada passo é preciso. Há sampre quem nos queira mal, uma zanga, uma espera, sei lá, uma hora de aflição. Onde calha se encontra um patife. À moda do outro, um home num gosta de ir p´ró xadrez, mas em vez de as levar num há-de dar? Conversa... mas isso é indiscutíbel! Com calma? Com calma, leba-as um home e cala! É o que lhe digo! Eu tamém já lebei... Uma vez foi aqui no estômago, salvo seja aqui neste sítio, que nem lhe conto. Inda tenho a marca dos pontos e nunca mais me esquece! Lebei à volta de cinco pontos. Diz a minha qu´inté me saíram as tripas! Ela é que diz isso, eu num bi nada... Mas eu mandei-lhe, tamém, três rasgos que o puz às portas da morte! Andava eu a podar, nessa ocasião, numa Quinta duns ingleses, era uma coisa grande, até queriam pôr torneiras p´ra regar aquilo, veja bem; eu binha todos os dias a casa, nesse tampo a minha escrita tava sempre em dia, entende-me o que quero dizer?, bom, eu binha todos os dias a casa e, uma noite, encontro aquela alma no caminho. Desgraçado! Trazia uma borracheira que só bisto! Deu-me p´ró entreter. Às páginas tantas, começa-te lá cum relambório! Inda aguantei, mas depois num pude mais, inté a minha Mãe ofendeu, o grande cabrão! Como o senhor sabe, isso nenhum filho, que o seja de bom sangue, finge que num oube. Mandei-lhe umas lostras nas bantas e umas troviscadas no lombo cum pau que eu trazia sampre comigo, quando, sem eu contar, ripa-te de uma naifa e zás!, enterra-ma aqui mesmo, salvo seja. O que me valeu? A navalha da enxertia! Num lhe digo nada! Amandei-lhe umas cortadelas que nem queijo! Deixei-o lá a gemer, ali nos Quatro Caminhos, e soube, depois, passada uma boa tamporada, que se tinha mudado p´ra Lisboa e que andava lá a chegar massa nas obras. Eu lá me arrastei até casa, inventei que me tinha cortado cuma foice e quem me deu os pontos foi o Dr. Silvério, um santo home, num desfazando, e que Deus tenha em bom lugar. Claro que ele desconfiou logo, que era bô médico, e disse-me: “Pilroto, p´ra próxima chamo a Guarda!“ . Aquilo morreu, já foi há muito ano e inté nunca mais tive nada, mas nunca mais me fiei. Tanho andado sampre firme, nas devidas condições, que o mundo num tem só putos de Pais e putos de Mães, mas, tamém, filhos de outros Mães que num sabemos donde vêm e para onde vão, percebe-me o senhor o que quero afiançar?

Olhe, que horas são? Pela nova ou pela velha? Minha Nossa Senhora! Já bou oubir um reportório desgraçado da patroa, que aquilo quando a comida esfria ela aquece quinté parece que a casa bai abaixo! Tem um génio estuporado! E ai de quem lhe responda, bai tudo raso, parece um ciclone! Daquilo é que tanho medo! É cá uma naifa que o senhor nem bai ao fundamanto! Amanhê, às seis velhas, tanho aí um lagar p´ra incubar. Santas noites e desculpe-me esta franqueza.»
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no Blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

    3/21/11

    O SILVA

    Conhecera-o em Mafra, no C.0.M., onde, durante meio ano, nos sacrificámos para termos alguma hipótese de escolher a futura colocação num quartel próximo de casa. Fazíamos o que nos mandavam, mesmo que isso nos violentasse, prolongávamos o esforço para lá dos limites, decorávamos os regulamentos como quem engole a repugnância, manuseávamos as armas com a presteza dos autómatos e desmanchávamos as culatras com a troça de um desfastio.

    Encontrámo-nos em Chaves para formar Batalhão, embarcámos no mesmo barco para Moçambique e separámo-nos em Nacala. Durante meses trocámos SPM, mas, repentinamente, os seus aerogramas cessaram.

    Um dia, num desses dias em que o calor húmido cola as roupas à pele, encontrámo-nos numa cidade construída no meio dos pântanos. O abraço teve a alegria de uma criança quando lhe reaparece o brinquedo preferido. No café, repleto de ventoinhas de tecto, de fumos de cigarros e conversas agitadas com pressa de recuperar os afectos interrompidos, estendemos o reencontro. Continuávamos, afinal, os mesmos: sedentos de regresso e de paz, contrariados na guerra e desaproveitados na vida, sem vontade de matar mas obrigados a fazê-lo para não morrer, a rotina do estupor a tapar-nos os horizontes; vivíamos de recordações, os passeios a Lisboa e à Ericeira para vermos as coxas das miúdas a atirarem-se aos cadetes de Mafra; os bonecos do Franco no Sobreiro, os escuros corredores da EPI ensombrados pelos fantasmas das batalhas de Naulila ou La Lys; os bifes do Novo Rioma, as melodias sineiras dos carrilhões, aos domingos, a encimarem a monumentalidade barroca de D. João V; os devaneios bucólicos à foz do Lizandro, as marchas na Tapada com os gamos e os veados a mirarem-nos surpresos; as saudades de Coimbra como feridas incicatrizáveis, a quietude das nossas aldeias separadas pelo eco de um berro, as bocas das namoradas sem uso; o velho do Salazar que nunca mais morre, o tempo que demora a passar, o cansaço da escrita que só apetece para a família chegada e, quantas vezes, sem saber o que se dizer.

    - Por que deixaste de escrever?

    - É sempre a mesma merda, depois das patrulhas só me apetece dormir. Aliás, sabia que, mais dia menos dia, me dariam um mês de descanso e que o faria aqui, sem dinheiro para ir à Metrópole. – Fez uma pausa para um gole de Laurentina. - Sabes quem morreu? O Daniel.

    - Não era aquele gajo que dizia que queria meter o chico?

    - Tinha essa mania, pintava-se de preto e ia sempre com granadas à cintura; rebentou-lhe uma defensiva e fodeu-se. Matou-se sem glória. Ainda está em Miteda, lá num canto, cheio de chumbo por dentro e por fora, à espera de um barco.

    Um tipo esquisito, o Daniel: sorumbático, ombros fortes a rasgarem o blusão, o rosto de feições montesinas, uma reserva forçada como se a vida nunca lhe permitisse uma subtileza. Deliciava-se com a aplicação militar e constava que limpava todos os dias a bicha de Aspirante. No bar, nunca passava de meio chá com duas bolachas e, enquanto os outros folgazavam, ele ficava horas sentado a ver a televisão espanhola.

    - Mas, sabes – retornou o Silva quando já passeávamos na marginal - , o tipo tinha melhorado, estava mais dócil e já se ria para os soldados. Não havia operação que não quisesse ir, confiante, «vou ali e venho já», dizia ele. O Capitão ia propô-lo para um louvor ao nível de Governador Geral. Agora, então, é que vai ser uma maravilha com o gajo já morto. E a malta do pelotão já gostava dele, sabes? Dormíamos no mesmo cubículo, jogávamos a sueca, mas nunca nos afeiçoámos. Quando vi a padiola e o tipo estendido é que senti uma coisa cá dentro que ainda hoje não consigo precisar. Pareceu-me um desperdício, um roubo, a cópia dum hipotético futuro meu, notei-lhe a ausência, que ele tinha existido comigo, que estávamos, afinal, no mesmo lugar. Tive medo e, não sei se por isso ou por ele, chorei que nem um desalmado, como se as lágrimas me desculpassem de estar vivo, entendes o que quero dizer? Uma justificação que se dá mesmo sem se ser obrigado. Esta merda é fodida. Andamos aqui todos a ver se safamos o canastro e quando morre alguém parece que temos culpa por não sermos nós.

    Era ao fim da tarde quando África é uma perturbação enlanguescida. O sol, bolha de sangue estampada no horizonte, morria, lentamente, num desmaio de donzela consolada pelas carícias do mar. A noite caía cedo – como caem todas as noites africanas -, uma brisa de sirgo sensualizava os corpos e espevitava frémitos. As mulheres, de vestidos leves ou calções generosos, espalhavam perfumes e ousadias. Os homens, de balalaicas impecáveis, fumavam LM e miravam as capulanas das negras roliças. As peles tinham a cor da nascença ou da frequência da piscina. Caminhava-se num chão de vidro, os sorrisos atirados para os lados. A guerra estava longe, mesmo que fosse ali ao lado, para lá da picada vermelha, da escuridão da selva, da desconfiança das tembas. Nas esplanadas, o gelo desfazia-se no uísque ou nas coca-colas; a cerveja gelada acompanhava-se com pratinhos de camarões, ameijoas ou pedacinhos de dobrada; as faces enrubesciam, as barrigas, bem instaladas, avolumavam-se - respirava-se um ar de insolvente abundância.

    - Não te choca este ambiente? Até esta paneleirice inglesa de os carros andarem pela esquerda com os volantes do lado direito me mete confusão! – exclamou o Silva. - Anda um tipo, no mato, de canhangulo em punho – prosseguiu nervoso -, sujeito a levar um tiro nos cornos, a lutar pela Pátria como dizem os cabrões, chega-se aqui e parece que nada se passa.

    - Fazem um esforço para esquecer que a guerra existe. – fingi sentenciar. Eles até dizem que a guerra só os empobrece, como se acreditassem que acreditamos. Há aí tipos a fazerem fortunas. Sentem-se desobrigados e alguns dizem que resolviam isto sozinhos, falavam com a Frelimo e dividiam ao meio o poder. Nós andamos cá a complicar, a esvaziar o Tesouro para nada. Toleram-nos, acarinham-nos, convidam-nos para almoçar e esforçam-se por nos tornar importantes.

    O Silva trazia o cansaço do mato que, quando longe dele, procura, mais que o ócio, o farejo da fêmea. Reparava nas raparigas com um olhar que tanto parecia uma imploração condoída como um prenúncio de vulcão prestes a explodir. Tinha o rosto seco pelas vigílias cacimbadas e pelo desejo reprimido. Só a inibição social o detinha. Mas não pretendia o sexo fácil, comprado por meia dúzia de quinhentas, sim a naturalidade de um ímpeto civilizado, a satisfação racional que lhe matasse a fome de homem e não de macho. Na Metrópole, ficara a Joana, cabelos compridos e lábios de polpa, sentada nos bancos de Direito, a ouvir aquelas secas das Obrigações, a escrever-lhe noite sim noite não, ele duvidando, às vezes, se a encontraria, que o amor é muito bonito quando a presença não se imagina mas sente. Já sabia que o verdadeiro amor é o do sangue, o único que é cego a sacrifícios e não discute contas. Jurara fidelidade, aquela promessa fogosa que a despedida longa solicita, mas omite o imprevisto.

    - Já reparaste – atirou o Silva – que aqui as raparigas parece que crescem mais depressa do que lá no puto? - Veem-se aí catraias, acabadas de nascer, quinze, dezasseis anos, corpos de mulheres feitas, desinibidas e a pedir tudo! – insuflou, enquanto um sorriso concupiscente lhe envolvia os olhos.

    - Acautela-te e não te deixes levar por aparências. O sonho de muita miúda que te mira é apanhar um alfereszito e amarrá-lo a um embondeiro. Então as mulatas adoram galões e camuflados. Não te esqueças que tropa é sinal de submissão – chacoteei.

    - Quer-se dizer que o mais seguro é na temba...– acentuou Silva em tom desconsolado.

    - Olha para aquilo! – anotei. - Andam cem cães atrás e os pais nunca a largam. O tipo é um coca-cola ligado ao cajú e ela é uma broeira que só tem corpo e passeia os livros na Escola Técnica. É só encenação, espremida não dá nada, quando abre a boca é de fugir.

    - Não me importava nada de experimentar. Quem fugia, se calhar, era ela com o susto! – motejou Silva.

    Dir-se-ia que toda a gente afluíra à beira-rio, baptizado por Vasco da Gama, há séculos, de Bons Sinais, já sem os vestígios da fortaleza que a história de mil e quinhentos diz ter existido em comércio esclavagista. De cá para lá, desde a ponta em que se erguia o palácio do Governador até à outra da zona da piscina, os corpos deslizavam na mornidão amansada por um cacimbo prematuro. Chamavam-lhe o picadeiro, montra das vaidades e da alcoviteirice.

    Era uma cidadezinha de moradias predominantemente familiares, estilo colonial, com um jardinzinho sempre bem tratado pelos mainatos. Por si própria se fez, sem o ouro metropolitano, saneados os pântanos que não dispensavam, tantos anos depois, a pulverização diária, impregnando, pelo cair da tarde, o ar dum cheiro repelente de fenotrina. Na generalidade, os seus habitantes tinham a franqueza nascida em terras transmontanas ou beirãs, e ofereciam, nas suas salas climatizadas, copos de uísque cheios de gelo com «chim! Chim!» de sorrisos. Os arruamentos, rectilíneos, cruzavam-se como se medidos em estirador de arquitecto, os poucos prédios em altura eram uma apressada resposta à multiplicação demográfica que a guerra gerara. Visitavam-na não só a flutuação militar ou os endinheirados do Malawi que atravessavam a fronteira de Milange como se fosse a Valença Moçambicana, mas, também, os senhores do cajú, do chá e do óleo de copra, abundantes nas plantações conquistadas ao mato. Na época das chuvas, com as picadas intransitáveis, impróprias para Nissans e Land-Rovers, quanto mais utilitários, a cidade recuperava a identidade. O aeroporto, longa fita de terra batida, metade asfaltada, que permitia a escala dos friendships da DETA ou os ronceiros Dakotas com a Cruz de Cristo pintada, dava-lhe um ar civilizado.

    No mato circundante ficava a temba, caniço habitado pelo diminuto proletariado negro, macuas meios indeiscentes e mulatos de desconhecidas paternidades, que, no fim do trabalho, iludiam o descanso na aguardente de cana e batucavam espíritos entre o capim. As tarimbas, noite dentro, não tinham sossego, as mulheres entregando-se, contando moedas, à febre duma juventude que despia e vestia fardas como se despachasse um desassossego. Na cantina do branco, comiam-se pernas de caranguejo e bebiam-se bazukas à sobreposse, enquanto, no alpendre, corpos suados e ébrios, se agitavam diante do gira-discos das marrabentas. Era um lupanar ao relento com o cacimbo já colado aos corpos e às coisas, o suspiro da selva insinuando-se nas palhotas que escancaravam intimidades; um alcouce de misérias, ónus acusatório de um comportamento tiranizado, a ostentar as fraquezas como macropias de heroísmo.

    O Silva, atarantado pela liberdade, longe dos buracos, das rações de combate e dos tiros, pedia sempre, pelo meio da manhã, um jeep que o levava à praia e o ia buscar ao anoitecer para encher a barriga de camarão, bife de impala e cerveja que o inebriava pelo silêncio da madrugada. Cantava, então, fados de Coimbra que o Capitão do Quadro, de mentalidade miliciana, aplaudia com tosse exagerada e um (des)concerto dos presentes. Numa dessas noites, de copos avançados, Silva atravessou-se:

    - E agora – disse ele –, vamos encenar uma Serenata Monumental! O Largo da Sé Velha é um mar negro de capas, calmo e trágico. Calmo, porque precede a revolta; trágico, porque não a pode concretizar. Mas, malta! - exaltando-se - a hora está a chegar! A submissão não é eterna! Tudo acaba, até a infelicidade! Virá o dia em que brancos e pretos, as raças todas se abraçarão, e o Mundo há-de ser uma bebedeira de amor!

    - Alferes Silva...– cortou, tolerante, o Capitão Velasco. – Está na hora de irmos dormir...

    - Meu Capitão, o sono é a morte dos que não querem gritar a vida! Peço a todos – abarcando, com um movimento circular, os que assistiam, de desfrutados sorrisos, ao serão imprevisto - que levantem os braços, assim como eu estou a fazer, agitem as mãos como se tivessem capas, e berrem um grande eferreá pela esperança!

    Uns melhor, outros pior, imitaram-no.

    Depois, foi vê-lo e ouvi-lo, de olhos marejados, entoar a Samaritana, o corpo estremecendo num desespero angustiado.

    A noite suspendeu-se de espanto. No lodo do rio, os crocodilos despertaram; no capim, cerce aos muros do quartel, ouviram-se restolhadas de bichos; as palmeiras da marginal agitaram-se em sussurros de brisas; a lua, virgem donzela, corou de lascívia; a escuridão desvendou ouvintes com dentes de neve; as lágrimas saltaram de emoção; os corações estoiraram contra os arames farpados; as picadas, para lá do asfalto, foram percorridas por asas de liberdade; nos terreiros do mato os tambores e as marimbas pararam de tocar; os babuínos, nos galhos das baobás, deixaram de latir; as jacarandás lilases ficaram rubras como as vagens das acácias; os duendes do melungo puseram-se, estupefactos, à escuta; os grilos encolheram as capas amarelas; as cigarras pararam o estrídulo e, na caserna, uma gelada desilusão adormeceu.
    Silva antecipou, em dois dias, o regresso ao Planalto, aproveitando a boleia de um Alouette para Mueda, onde apanharia uma qualquer coluna para Miteda.

    - Silvestre! – berrou-me. - Dá cá um abraço e continua-me com essa missão humanitária de consolar o mulherio solitário...

    - Olha que a solidão é nossa, Silva...

    Foi a penúltima vez que o vi, acenando-me, enquanto o helicóptero, como brinquedo de Feira Popular, se elevava. Passados poucos dias, pelos canais de informações militares, soube que o Silva ficara na Curva da Morte quando fazia o retorno a Miteda.

    Revi-o, nos porões do Pátria, o nome escrito nas tábuas que encaixotavam o seu esquife. Ao lado ia o do Daniel.

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

    12/30/10

    A SENHORA DAS DORES

    Caminho sem relógio, procurando as sombras, turvado pela mornaça e um cheiro de flora que me lembra o caril. As vivendas, com avisos de empresas de segurança e grades nas janelas, têm as persianas semi-cerradas por onde escapa o ressonar das sestas. Os carros, de marcas alemãs e suecas de não sei quantos turbos, também dormem embrulhados em lonas escurecidas de pó, pintalgadas por cagadelas de pássaros e folhas ressequidas. Vê-se que é uma zona chique onde o dinheiro não tem ideologia, de tanto nem se conta, ou, então, de pouco se disfarça em muito. Ao lado, na Estrada da Mata que leva a Vila Real de Santo António, o parque de campismo diz-me que talvez haja quem viva com mais gosto, sem medo de assaltos, a cheirar o restolho, os pinheiros bravos e as sardinhas assadas. Percorro a longa avenida Vasco da Gama, de esplanadas vazias, onde destila um ou outro loiro ariano a atestar o depósito com enormes canecas de cerveja que só de olhar metem impressão. No vasto areal continuam os fanáticos do bronze grudados às areias a derreterem os cremes e a celulite. O chão escalda como piche, desvio-me para a zona pedonal, evito o largo das carroças à espera do fim do dia para os passeios turísticos, entoando chocalhos e empestando o ar com as necessidades cavalares. Um grupo de peruanos (ou bolivianos?) montam, já, a aparelhagem para o espectáculo nocturno de música andina; algumas bocas lambuzam-se de gelados num ritual de lábios e de línguas que envergonha os atrevidos quanto mais os pudicos. Mostruários de jornais e revistas do jet-set, raquetes e bolas, camisetas berrantes e óculos de sol, fios dentais e calções de banho, isqueiros e pilhas, cremes e preservativos, colchões de plástico e remos do mesmo, cadeirinhas e guarda-sóis, toalhas e almofadas, chinelos para meter entre o polegar e o indicador e sandálias para as unhas pintadas, bóias e flutuadores infantis - tudo o que cabe num armazém de chinas. Os restaurantes, pegados uns aos outros, atravancados de preçários, esplanadas de cadeiras e reclamos de visas e american express, não dão uma folga para as pessoas passarem.

    Deixo o Monte Gordo cosmopolita, dos prédios altos como pinocos, ilhas verticais de camas-sofás, e meto-me pelas ruelas estreitas da povoação antiga, pertença da genitura piscatória, com casinhas renteadas aos passeios. É a zona dos cafés-tipo-tasca ao custo do Norte, dos pratinhos de tremoços e amendoins a acompanhar imperiais, do frango de churrasco, do bezugo nas brasas, dos idosos desfiando o tempo em cadeiras de lona às riscas, das crianças gincanando por entre os carros estacionados, das mulheres de crepes vitalícias.

    Entro na pequenina Igreja semelhante a um adereço de presépio, de suave frescura, simples como tudo o que, em nome de Deus, devia ser. Custa-me a adaptar os olhos à penumbra. Vejo uma Senhora de Fátima num nicho à direita do Altar. Todas as Senhoras de Fátima são assim: rosto plácido, olhar terno, boca sem ofensas, mãos delicadas segurando um terço com as contas dos pecados do mundo. À esquerda, um Senhor dos Passos, transportando uma cruz, tem um rosto de sofrimento mas os olhos sem rancor. Um arranjo floral, mistura de gladíolos vermelhos e gerberas amarelas, está aos pés de uma Imagem ornamentada com um cónico manto roxo até aos pés. Aproximo-me para melhor A ver e paro, surpreso, com a presença de uma velhinha, cabelos todos branquinhos, vestido negro, um ciciar de Padre Nossos tão leve que nem a notara, sentada a um canto junto à porta da sacristia. Fiquei especado, sem me mexer, transportado aos vultos da minha infância. Esboçou um sorriso e disse-me: «É a Senhora das Dores... É linda não é?...» Sorri-lhe, também, agradecido, e respondi com os olhos afogueados: «É linda como a Senhora que me fez lembrar a minha Avó!...» A velhinha, então, num farfalho de saias, levantou-se, abriu-me os braços, beijou-me, e acrescentou: «Deus Nosso Senhor o acompanhe!»

    Quando abri a porta, à saída, por entre o ranger das dobradiças, ouvi (ou foi um eco da memória?):  «Deus Nosso Senhor te acompanhe, Meu Filho!» Era a voz da minha Avó que vinha das profundezas da terra, ou das alturas do céu, e se manifestava à rutilância do sol.
    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    7/07/10

    O REFORMADO

    (Clique na imagem para ampliar)

    Silveira, durante toda a sua vida de trabalhador bancário, nunca recusou um serviço ou um lugar. Assim, não se importou de mudar de terra, vendo a família só aos fins-de-semana, para ocupar a gerência de um Balcão de província. Fez a sua carreira com esforço, sem contabilizar horários, nunca discutindo tarefas, embora, muitas vezes, se achasse mal recompensado. Não se queixava. Ele é que escolhera.

    Desmobilizado, quando do regresso de Angola, ainda voltou a Direito para fazer algumas cadeiras ao abrigo do estatuto dos ex-militares. Depois de um recomeço fulgurante que lhe consentiu os maiores entusiasmos, desistiu ao segundo chumbo de Obrigações, incapaz de suprir a ausência das aulas e dos pormenores que só a frequência daquelas dariam já que, não referidas nas sebentas, surpreendia-se sempre com o tamanho da sua ignorância de assuntos que nunca ouvira ou lera. Confundia-o, também, a bagunça contestatária, as constantes alterações de datas que o obrigavam, em vão, a faltar ao emprego e que a sua rotina militar de trinta e nove meses, feita de obediência indiscutível encarava mal. Aquilo já não lhe dizia respeito... Vira morrer e matara; estava cansado para, agora, se meter em guerras de berros. Soavam-lhe a arrufos de bem instalados, heroísmos intelectualizados, até ofensivos, comparados com os meses que vivera nos matos da Lunda.

    Após umas experiências avulsas em Editoras e Agências de Publicidade, candidatou-se a vários Bancos que, naquela época, era um emprego seguro e com estirpe social. O primeiro a chamá-lo para os testes psicotécnicos admitiu-o, num fim de Verão, ainda o 25 de Abril estava longe. Profissionalmente estável e eufórico pela febre bolsista da Primavera Marcelista, Silveira ganhou dinheiro e o coração da Celeste que, numa Seguradora, começara a juntar para o bolo do casamento. Se algumas dúvidas ainda lhe restavam, elas dissiparam-se: perdia, definitivamente, a esperança de acabar o Curso interrompido pela convocatória militar.

    Nascidos dois filhos com intervalo de um ano como se tivessem pressa de despachar a descendência, os anos passaram-se no desvelo da sua criação que culminou com as formaturas no Curso que ele nunca terminaria. Os filhos vingaram-no.

    Quando apareceram os netos, fizeram contas à vida e, vendo-a mais curta, decidiram que era a altura de lhes dedicar a segunda paternidade. A Celeste, aproveitando a maré dos novos conceitos de gestão, para quem um trabalhador não passa de um dígito, antecipou a reforma para cuidar deles, em vez de os ver depositados, todas as manhãs, ainda ensonados, num qualquer infantário. Passou, então, a ser só ele a levantar-se nas madrugadas de segunda feira, com o sol ainda a dormir, de tempo espremido para a viagem até à Agência distante. Custava-lhe, no Inverno, aquela chuva enovelada na escuridão fria, sempre com o credo na boca pelo nevoeiro ou o gelo da estrada. As noites na residencial, então, sem o aconchego das suas coisas e da sua gente, eram quase irascíveis. Foram anos em que – quantas vezes! - pensou, também, reformar-se para ficar no remanso com o chilreio infantil a preencher o apartamento. Afastava a ideia, lembrando-se do seu velho Pai: «Um homem só se reforma quando morre!»

    À Agência todos os dias lhe chegavam directivas a traçar objectivos de negócio. Com os outros dois colegas sempre ocupados, um na especificidade da Caixa e o outro no expediente normal, Silveira passava muitas horas no exterior a angariar novos clientes e visitando os antigos com propostas de aplicações financeiras. Nunca se retirava antes das oito, ocupado no trato da papelada administrativa empilhada no tampo da secretária e pondo a conversa em dia com a Celeste em telefonemas que, em alguns meses, lhe preocupavam o plafond autorizado. Sem pressa de sair - ninguém o esperava -, verdade se diga, contudo, que começava a sentir-se injustiçado. No Café da Vila, praticava algumas relações públicas que lhe granjeavam a simpatia do meio e a permanência de contas com bons saldos médios. Sentia mais a falta da família do que a abundância do trabalho. O vai e vem semanal enleava-o. Estava na hora de solicitar à hierarquia um regresso às origens, à certeza de sair de manhã e voltar ao fim da tarde, aquela rotina dos gestos e das vozes, o aconchego da noite com o corpo da mulher a aquecer o seu, sem fazer cálculos para o ajuste do fim de semana. Mal lhe soaram aos ouvidos, ou lhe caíram sob os olhos, os primeiros sinais de racionalização de custos, emagrecimento do pessoal, rejuvenescimento de quadros e outros quejandos na moda dos recursos humanos, passou a prestar mais atenção ao espelho para ver se as rugas o englobariam no rol dos dispensáveis. Não precisou de muito tempo - nunca dando a entendê-lo - para perceber que o seu dia estava prestes a chegar. Feitos trinta e cinco anos de serviço, excluindo mesmo o tempo a duplicar pela campanha africana, convidaram-no, entre encómios que lhe pareciam lisonjas interesseiras, se não quereria ir para o descanso. Não, ele não queria descanso, mas, continuar a trabalhar na terra onde estavam as suas companhias e posterioridades. Sentia-se credor desse desejo, justificado pela devotada dedicação profissional e pela humana justeza da sua razão. Fez ver isso às insinuações que lhe chegavam pelo telefone ou pelos convites sorridentes, com muitas batidelas nas costas, quando se deslocava à Sede, ninguém lhe garantindo a satisfação pretendida, porque «bem vê, com a reorganização em curso, muito difícil, a breve prazo, anuirmos ao seu pedido...». Sentia nessas ocasiões um adormecimento de desilusão, um «para que andei eu a sacrificar-me tanto...».

    Deixou passar uns meses e negociou a reforma para o fim do Verão. Os foguetes do Ano Novo seriam o anúncio da sua despedida, amarga e revoltada. Mais que revolta, a constatação de que pouco lhe valera o vestir da camisola. Julgava-se, aos sessenta anos, amadurecido e disponível, ainda, para continuar. Estava no ponto ideal da cozedura, nem rijo nem mole, eficaz nas decisões e maleável no trato. Atingira o patamar do equilíbrio em que se é aceite pelo respeito profissional e pela experiência humana; ganhara a endurance cujo melhor retrato é o auto-domínio ao disparate, às pressões e às nervuras emocionais. Mandando-o porta fora, era como se interrompessem a história de uma vida ainda útil. Haviam-lhe comido a carne e como os ossos, irremediavelmente, já tinham prazo, antes que se quebrassem, davam-lhe o destino dos electrodomésticos fora de validade.

    Apesar de tudo, nos primeiros tempos, inebriou-se na disponibilidade do tempo e da vontade. Passeou o que pôde – concretizou, finalmente, o sonho de conhecer Paris, onde passou oito dias estonteantes, regressando com a sensação de não ter saciado nem uma décima da sua curiosidade -, leu, sofregamente, os livros tantos anos adiados – até arranjou coragem para Saramago - e, em muitas soalheiras manhãs de sábado – detestava o domingo para passear – ia com os netos para o parque da cidade mostrarlhes os «patinhos no lago», fiscalizando-lhes as bicicletas com rodas de apoio. Deu-se à excentricidade culinária, especializando-se num bacalhau assado no forno que rotulou de Bacalhau à Silveira. Ao princípio, guiava-se pelas revistas do Chefe Silva que a Mulher esquecera numa gaveta, mas, depois, fiava-se na sua fantasia que recriava com especiarias que rebuscava nas prateleiras do Continente. Arranjou, contudo, algumas guerras com a Celeste, pois incomodava-se, seriamente, quando ela, feita sabichona, lhe chamava a atenção para alguns destemperos. Chegou a ir ao futebol para se certificar da diferença de quando o via pela televisão, os seus sons e tons, a histeria das claques, o bruá da multidão na eminência dos golos e o estoiro orgástico quando aqueles se concretizavam.

    Estranhamente, assim como de um dia para o outro, começou a acordar mal disposto e cansado, a pensar no que iria fazer para se ocupar. Sentia-se desamparado, longe dos ruídos e dos cheiros da Agência. Faltava-lhe o imprevisto dum telefonema atribulado, suplicando-lhe pressas de financiamento; aquele poder de influenciar fundos sempre balizados nas regras estabelecidas que o escudavam de remorsos nas recusas obrigatórias.
    Continua...
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
    • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

    8/04/10

    A ROGA

    (Clique na imagem para ampliar)

    Em Setembro despertava-se da moleza de Agosto. Os que haviam debandado para banhos regressavam com as preocupações recobradas e os que tinham ficado esqueciam as sestas. Os casais iniciavam os preparativos da novidade: consertavam-se os cestos e soldavam-se as latas fundeiras; lavavam-se os lagares e as prensas; varriam-se os quintais, mesmo sabendo que eles ficariam imundos em poucos dias; verificava-se o estado dos toneis depois do dessarro e da mechagem; oleavam-se as tesouras, areavamse os potes e arejavam-se os armazéns e os cardenhos.

    Com a esfolha feita os lavradores vistoriavam as vinhas, afligiam-se com um ou outro podre, faziam figas aos agouros de chuvas temporãs - às vezes desejavam-nas perante a secura da polpa dos bagos -, escutavam os feitores, consensualizavam o início das vindimas e mandavam vir as Rogas que, ajustadas com o pessoal diário da terra, seriam os intérpretes da harmonia final de um solfejo tecido só Deus sabia com que receios.

    Eram os serranos. Vinham das terras de Baião, ali na fronteira do maduro e do verde, ou das cercanias beirãs em que os migalhos de cepas se perdiam nos fraguedos sem benefício. Juntavam-se por afinidades familiares, de amizade, ou pelos empenhos aos rogadores. Desciam ao Douro certos de uma jorna aumentada com que cultivariam os seus bocados ou reporiam os gastos com as vestimentas das festas de Verão. Cantando e dançando a chula ou o malhão ao som das concertinas, dos bombos, dos ferrinhos, das harmónicas de boca e, em alguns casos, das violas braguesas, chegavam cansados mas alegres. Roga que não exibisse este instrumental não era roga, porém, um ajuntamento despersonalizado sem hipóteses de renovação assalariada, a não ser que, no ano seguinte, se incorporasse em outros grupos de merecimento. Enchiam as estradas e os caminhos rumo às Quintas, onde, durante longos dias, cortariam as uvas, transportando-as até os lagares que, depois, pisariam em noites de pousa, quantas vezes prolongadas em incubações urgentes.

    Eu via-as a meio do Caminho Velho que dá de Remostias a S. Gonçalo. Traziam, penduradas nos bordões, as trouxas para acartarem os cestos, alguma roupa extra para maliciar em bailaricos e, nos rostos congestionados, um entusiasmo festivo. Alcançado o alto sobranceiro ao vale vinhateiro - a quem os antigos chamavam Poço do Vinho de Feitoria - que se estende até os muros do Peso, os homens e as mulheres da Roga cumprimentavam efusivamente os já conhecidos de vindimas anteriores. Os novatos, medrosos e rituais, de olhar esquivo, insinuavam-se no agrupamento até se igualarem na confraternização. Combinavam-se rodadas de quartilhos e enrubescidos bailaricos. Os patrões desciam as escadas que ligavam a cozinha ao terreiro, as reverências prodigalizavam-se no contágio da euforia, e havia quem distinguisse a dona da casa: «Vindo eu daqui tão longe/ Sem pôr os pés na calçada/ Venho dar os parabéns/ À senhora esposada.» O som da concertina e dos ferrinhos alegrava os corações que se esvaziavam de diferenças. Quando a noite se anunciava, a ceia retemperava esforços e espevitava vigores. O Feitor aconselhava o deitar cedo; os homens e as mulheres escolhiam os lugares em cardenhos separados, à mistura com pilhérias libidinosas.

    O dia começava cedo com dejejum de bagaço, broa e uma lasca de bacalhuço; a meio da manhã, serviam-se batatas com sardinha de barrica. O retinir das tesouras, pelos anfiteatros do gigantesco Coliseu Duriense, confundia-se com as cantigas e os chistes. Todos, novos e velhos, isentavam-se de pudores, mas, não chegavam ao destempero. Os novos arquitectavam namoricos e muitos beijos se roubavam a coberto da folhagem dos bardos. Os velhos, de nostálgicas sensualidades, instigavam-nas como num remorso por tempos de pouco proveito... As mulheres cortavam os cachos com a preocupação de não deixarem respigo ou bagos pelo chão, e gritavam «cesta!» para que o rapaz mais próximo a levasse para os cestos vindimos. Os homens aproveitavam para descansar, limpavam o suor, esvaziavam o garrafão e fumavam um cigarro; quando a fiada se completava, punham as trouxas nos ombros que fixavam nas testas com tiras de couro ou pano de saco. Subiam dos côncavos profundos, desciam as encostas arriscadas, arrastavam-se pelas estradas de asfalto escaldante, poisando, a intervalos, os carregos nos muros, para prosseguirem, depois, ao compasso da concertina ou da gaita de beiços do primeiro da fila, até alijarem a carga, com bufos de alívio, nos lagares.

    Terminado o trabalho do dia, as mulheres e os homens aperaltavam-se – mais elas do que eles -, misturavam-se aromas de perfume Tabu, os rostos recuperavam  serenidade. No fim da ceia juntavam-se os instrumentos, afinavam-se modas e dançava-se sob a luz mortiça. Acudiam aos portões trabalhadores de outras vindimas, pediam licença, o quinteiro transformava-se num palco de gente saltitante, requebrada, envolvente, com o malhão no corpo, a chula na alma, a satisfação nos olhos, o riso nos lábios, o fogo no sangue e a disputa concupiscente das raparigas mais bonitas.

    O rogador (como me lembro!) era um tipo alto, pescoço de bisonte, ombros hercúleos, mas – contraste humilhante - , mancando desajeitadamente; quando andava, a sua perna direita parecia que enxotava cães que se lhe tivessem filado. Chegava-se à Micas, mulher de muitos homens, e berrava-lhe, julgando que cantava: «Ai anda cá ó cantadeira/ Vem p´ra minha beira/ Anda cá p’ró pé de mim/ Ai quando estás à minha beira/ Querida cantadeira/ Ai para mim é um jardim.» A Micas, de olhar malhadiço, respondia-lhe: «Já te ouvi querido cantador/ Estou agora a chegar/ Aqui estou à tua beira/ Ouve lá ó cantador/ P´ra contigo dançar.» Depois, num repente, descabreavam pelo meio dos outros, que se afastavam a entusiasmá-los com palmas, num vira e revira incrível. Ele agarrava-a, soltava-a, recuperava-a, sempre a abanar com a perna, e a Micas, agitada num riso de gralha, a deixar-se levar com o descaro da experiência. Acabada a música, ficavam à espera da seguinte, enlaçados, a arfar, de olhos desassossegados.

    Quando as estrelas iam altas e a lua se pousava no Cume, o Feitor ordenava o recolher. Apagavam-se as luzes, fechavam-se os lagares e os portões, os cães ladravam, a gataria reatava o cio, os bêbedos esborrachavam-se contra as paredes, arremessando asneiradas e desafios de navalhas, a brisa de S. Pedro amaciava frémitos e o sono vinha pesado que, ao outro dia, a vindima e as cantigas continuavam.
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
    •  *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro.
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    9/08/10

    O ARREPENDIDO

    Era uma vez um homem nascido de uma barriga de fome. A parteira da aldeia dera-lhe a primeira palmada e lavara-o num alguidar de barro. Cresceu descalço, de calções rachados no cu, comeu as azedas dos caminhos, fez saltar as pinhas na lareira, dormiu entre mantas de vindima, brincou no quelho com as galinhas, limpou o ranho às folhas das videiras, comeu cachos verdes escondido nas sombras de Agosto, aprendeu a tabuada e a escrever o nome com as mãos estendidas para a palmatória, jogou o monte e o sete e meio no adro da Igreja e chegou a tocar o sino para as missas de domingo.

    Nos socalcos, conheceu a enxada da cava, o ferro dos saibramentos, o peso dos pulverizadores, a moderação da espampa e o carrego dos cestos nas fainas de Outubro. Nos terreiros de poeira, ou de lama, namorou com os olhos e com os lábios, dançou nos leilões, embebedou-se ao desafio, mostrou a navalha de ponta e mola, gabou-se de valentias diante de lobisomens nos Quatro Caminhos e das conquistas no Socorro e nos Remédios.

    Os ralhos da Mãe e os rezingares constantes do Pai faziam-no olhar para o fundo do vale, onde a estrada, ébria de curvas, lhe sorria a evasão. Farto de brigas, da meia sardinha e um naco de pão ralão, da água-pé da cava, do pulverizador do sulfato e dos cestos atestados de uvas, abalou.

    Ainda o sol não arreganhara os dentes a uma lua mal talhada, sem mala ou embrulho, meteu-se a caminho, acalentando os passos da fuga. Na vila ribeirinha ripou os tostões do bolso e tomou o comboio que o levaria à cidade grande. Ruminou sonhos de fato novo, raparigas para apalpar e possuir em becos escuros, filmes de mamas ao  léu, Cafés de gente fina, futebol em Estádios maiores do que a sua terra, ruas compridas cheias de gente.

    O Revisor pediu-lhe o bilhete com uma voz de alicate. O rio, à sua esquerda, acompanhava-o, mas não era o mesmo que ele conhecia. O seu era manso e dava-lhe peixes para fritar; na sua borda, havia uma barraca onde, nas noites de Verão, adormecia com o seu deslizar como uma brisa de arvoredo. Mesmo nos Invernos em que ele galgava vinhas e transformava as ruas em canais, gostava de ouvir a água ali mesmo à beirinha, no cimo das rampas, sentir-lhe o cheiro a barro, aquele jogo de sobe e desce numa intimidade de risco e de estranheza. Quando ele regressava ao seu lugar, abandonando lama e entulho, partia-se-lhe o coração, desiludido com uma coisa tão linda ser capaz de deixar tanta tristeza. O rio que agora via não tinha fragas à mostra, era espesso e escuro, espremido por gargantas montanhosas e margens de lodos ondulantes; só os laranjais e o casario que trepavam até ao céu o alegravam.

    Chegado à cidade, um bruá, sem origem e sem dono, esmurrou-o de espanto. Encostou-se ao varandim exterior, defronte das portas da Estação, entreteve-se a ver as saídas e as entradas, virou-se ao contrário para se rir com tantos carros a quererem passar ao mesmo tempo, como as poedeiras da Mãe à bulha por um grão, e aventurou-se, precavido, desconfiado de uma cilada.

    A cidade do sonho era a confusão das gentes, que, de embrulhos nas mãos, corriam como se os tivessem roubado e fugissem, esbaforidas, de uma perseguição; gesticulavam, berravam, empurravam, cuspiam no chão e para o ar, gritavam de punhos erguidos ao mando de alto-falantes que esganiçavam palavras que ele nem percebia; pisavam os jardins, deitavam papeis para os pés e para os cantos. A cidade da lenda era um asilo de aleijados e cegos estendidos nos passeios, grupos de velhos encostados nas esquinas a falarem de futebol e de política ou sentados na solidão de bancos de praças despidas de árvores feitos lagartos ao sol; corpos jovens com caras gastas à espreita de carteiras distraídas; mulheres, de chumaços nos peitos, nas ruas das quinquilharias, a vomitarem palavrões de sexo estragado; rostos enfiados em máscaras a falarem sozinhos, rindo sozinhos, gesticulando sozinhos; loucos, de barbas desprezadas, a darem vivas a Reis de que nunca ouvira falar; velhas andrajosas, de cabelos encodeados, sapatos rotos e bocas sem dentes, sem um riso, sem uma mão de carícia, sem uma boca de ternura; crianças endurecidas por olhos de revolta e de escárnio, de dor e de desprezo, esticando os braços em busca de uma esmola como quem pede desculpa.

    Não precisou de se afastar muito. Bastou-lhe subir e descer duas ou três ruas, dar a uma praça com uma estátua de um cavalo de perna alçada e um homem (devia ser alguém importante) em cima a segurar a rédea, para compreender que se enganara na ilusão. Olhou para o alto: o céu pintava-se de ferro velho. Não respirava como na sua aldeia, não ouvia um choro de criança a ecoar nos montes, sentia-se preso, e lá estava a torre da Estação com o relógio a marcar o tempo. Meteu as mãos nos bolsos, contou o dinheiro, comprou um bilhete de regresso, foi a uma taberna, logo ali ao lado, comer uma posta de peixe frito, bebeu uma taça de branco e voltou aos socalcos da sua terra.
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
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    10/20/10

    O Sevilha


    O Sevilha, em serviço de carrada de feno, chegara de Leomil, havia mais de uma hora, e não abrandava a respiração. A taquicardia assustava. Suado, babando-se anormalmente, recusando a manjedoura ou o balde da água, irrequieto, o cavalo dava quase a certeza de se ir acabar. A cena amargurava-o: tonto e trémulo, a lutar aflitivamente pela sobrevivência, meneando a cabeça, o desespero nos olhos mortiços.

    O Pedro e o Raul olhavam e pediam que aquilo parasse.

    João, contudo, veio espraiar-se na noite. A tortura, fosse de quem fosse, causava-lhe uma espécie de vómito, um remorso de impotência. Mandou um berro ao Farrusco, um « Chus! » ao Marquês, e sentou-se num degrau das escadas. Sentia-se frustrado, cheio de cansaço. Não era lá muito dado às coisas equestres, mas apreciava um passeio pelos caminhos da serra, escutando o eco do repisar dos cascos, em trote cadenciado, no asfalto da estrada. Lembrava-se do Castanho da sua meninice, que o seu Avô usava nas idas a Portelo, e de encolher-se todo a assistir à sua ferragem numa loja do cimo de Medreiros. Uma manhã, com o sol bem aberto, foi à cavalariça, mas o Castanho já lá não estava. O Avô, que aliava a diligência ao pragmatismo, vendera-o quando a paralisia lhe encurtou os caminhos e as esperanças de o voltar a montar.

    O Sevilha aparecera numa tarde inflamada de Julho, admitido em morosa caravana de ciganos, a caminho de Bagaúste. Vinham de Moimenta, um dos pousos intercalares da peregrinação que se iniciara nos campos de girassóis Bejenses em demanda de novos comércios. O bando tinha a epiderme do Sul, o remoque andaluz e o engodo colé de pespegar um estorvo. Por umas notas discutidas de comprador e valorizações aumentadas de vendedor, o Sevilha ficou perto do final da viagem e muito longe da nascença. Não fora feito para o exacto: ora gazil, ora mofino, não tinha domação. Nunca se esqueceria daquela tarde, no Paraíso, uma chuva miudinha, num contra-senso de Agosto, a bater no descampado: o Quim, teimoso e valente, à terceira ou quarta vez, monta-o em pêlo, agarra-se às crinas e chega-lhe as esporas. Rapaz!, aquele desalmado voa pelos carreiros, salta o muro da vereda, estanca como se tivesse visto uma serpente, empina-se na vertical, à moda dos seus congéneres domesticados no Circo, e o Quim, deslizando como bola em gelo, vem por ali abaixo espojar-se no chão. Furioso, volta a insistir, grita-lhe meia dúzia de pragas; o Sevilha, enraivecido, abana-o impiedosamente, ergue-se de novo e espanta-se, lamaçal fora, como se levasse o diabo no corpo, sumindo-se pelos atalhos da caruma humedecida, deixando o teimoso cavaleiro aos berros, depois de se levantar, qual Ranger liberto do charco lodoso.

    Tinha pena do animal, simpatizava com ele, com aquela insubordinação selvagem, mas, rodeava-o a uma prudente distância, que um coice dele mandaria um homem para o cemitério. De uma vez, no fundo do Caminho Velho, com os presos, pendurados nas janelas de grades abauladas, a fumarem os cigarros oferecidos, bem vira, montado no Dourado, um burro manhoso mandar uns pinotes traiçoeiros ao próprio dono que se esfalfava em elogios para melhor o mercar. O asno, logo de seguida, posto de banda o patrão agarrado à sua virilidade, arremete-se à égua do Pedro, tasquinhando-lhe o traseiro em sanha louca. Esta, tomado o freio nos dentes, desata em desenfreada correria com o burro a pisar-lhe a poeira. Transcorrido o caminho em escassos minutos, a perseguição só terminou à vista das primeiras casas do Fontão, o povoléu, aos janelos, a julgar que uma ventania se levantara da terra. João, que não morrera de susto em África, de tanto esporear o Dourado para alcançar os fugitivos, chegou ao fim tão exausto que até lhe parecia ter despertado dum sonho assombrado.

    Agora era este bicho, rude e corpulento, que agonizava. Puxou de um cigarro. A família estava diante da televisão. Era a época das praias e das curas de águas. Os que podiam, procuravam as cidades da beira-mar ou as termas das bicas e dos arvoredos. Os que ficavam, sentiam-se mais livres e a calma das noites tornava-os donos do mundo.

    O dia correra abrasador e os interlúdios de chuva, pelo fim da tarde, amansaram a febre da terra. As vinhas, aganadas, esmoreciam agora; as hortas engoliam a água das regas vesperais e um odor de fertilidade dispersava com a brisa. Estava uma lua cheia, de cor sílice, tão bonita e arrebatadora como a que o enfeitiçara nos matos africanos. Os castanheiros erguiam-se, no morro em frente, envoltos por manchas eternas. Os vinhedos, taciturnos, estendiam-se de cachos túmidos a aguardar os fins de Setembro. Um pinheiro manso, no cimo de uma lacónica elevação, lembrava, no seu aprumo, um Rei sem trono, em exílio prateado, a fingir que mandava. À direita, para os lados do pomar, um riacho lambia as margens, alargando-se um tanto depois da ponte, junto da Capela da Senhora das Neves. Mais acima, a Casa Grande, enorme e abandonada, alimentava lendas de lobisomens em madrugadas de medos. Atrás, no monte do Calvário, fronteiro ao povoado, erguiam-se as cruzes das bruxarias arcanas onde os loucos gemiam e as mulheres de porta aberta espolinhavam nos penedos.

    João escutava a noite, a música da água da mina, insinuando-se por entre os feijoeiros, a cair na valeta em ruído inalterável. Respirava-se uma leveza claustral, uma percepção abstracta sobre a materialidade das coisas, aquele cheiro a terra molhada, aquela força de vida que tanto nos explode em megalegoria como nos constrange em abatimento diante da grandiosidade da Criação.

    Como um soco à falsa fé, um estrondo seco, de fim rápido, fê-lo saltar. Desceu as escadas com uma dor esquisita no peito, um pressentimento de certeza antes de confirmada, e entrou de sopetão na cocheira. O que temia já não tinha remédio: estendido, inerte, em posição de mortal renúncia, o cavalo acabara o seu ciclo. João olhou o Pedro, debruçou-se na divisória de madeira e ali ficou pregado àquele cadáver gigante.

    O Sevilha era um equídeo de bela estampa, desenhado a traços precisos. A morte dera-lhe a perfeição: um focinho ósseo e geométrico, uma crina rebelde, um dorsal bem realizado em ondulação de boa estirpe a terminar numa cauda espessa e patas firmes com umas mãos que pisavam garbosamente; no conjunto era um cavalo de tom acinzentado a calhar com umas malhas brancas dispersas. O seu corpo enrijecia a pouco e pouco, as patas saídas do taipal. À violência anterior sucedia a calma-fim-de-tudo.

    - E agora? – perguntou a palidez do Pedro.

    - Temos que o enterrar, não pode ficar aqui! – exclamou o Raul, de cigarro a tremer entre os dedos.

    - E tem de ser no Paraíso, era onde ele se sentia realizado - acudiu João, acentuando as palavras. – Ao menos na morte, deve-se-lhe dar o espaço da liberdade - completou numa sensibilidade que soou excêntrica.

    Não falaram, mas pensaram. Como levá-lo dali? O Raul que, no seu estatuto de Feitor, se achava necessário para resolver os assuntos mais complicados, alvitrou o tractor do Penteado que ele conhecia bem e não recusaria o pedido, mesmo que, já deitado, tivesse que se levantar. O Pedro e o João, cultores do recato do sangue, não queriam falatório e puseram-se de acordo na utilização de um velho carro que, bem descrita a sua estória, exemplificaria uma saga familiar. Enlaçaram uma corda às patas do Sevilha, passando-a pelo resto do corpo como quem ata um embrulho, e prenderam-na ao semieixo do automóvel.

    - Isto vai rebentar tudo! Vamos ficar com o cavalo no meio do caminho e o carro desfeito! Vai ser o bonito! – esbaforiu o Raul. – Eu fujo! Não estou para levar umas troviscadas de algum maluco do Calvário! – continuou, para cá e para lá, como se andasse à procura de outra solução.

    O temor do Raul, mais faceiro que autêntico, não amenizou as preocupações. Arranjaram-se umas pás e enxadas e arrancou-se lentamente para evitar algum esticão repentino, não forçando a primeira, até se conseguir manter uma velocidade uniforme. O volume do animal impressionava; as chispas dos cascos, na estrada, assemelhavam-se a línguas de fogo em borbotão; o Pinheiro Manso, quando o passaram, dir-se-ia que teve uma súbita tremura; da casa Grande, sem uso, veio um guincho de rapina; na Capela da Senhora das Neves, de paredes sem reboco há muitos anos, o pavio da lamparina do altar tremeluziu como sob o cicio de uma prece mais intensa; e, no monte da bruxaria, só se conjecturavam indícios. Quando chegaram perto das primeiras casas aceleraram um pouco para se furtarem a hipotéticos olhares. Porém, dois aventais brancos que fumavam à porta da padaria, assim que ouviram o roncear de motor, ultrapassaram a soleira e, à visão daquilo, espantaram-se para dentro como se esgazeados por uma visão demoníaca. «Porra!, já nos viram!», desolou-se o Pedro, «Aqueles já não dizem mais nada! Ficaram tolhidos!», descansou o Raul. Alcançada a orla da mata, o chão, amaciado pela chuva da tarde, apagou as faíscas e refrescou o cadáver do Sevilha. Um bando de aves adejou, em alvoroço, por sobre o barulho, em busca de outros galhos.

    Abriram, durante horas, uma cova junto do improvisado picadeiro onde o Sevilha dera mais voltas que uma qualquer mota do Poço da Morte. Ia alta a madrugada quando o cavalo, finalmente, descansou da sua insubmissão.

    Sentaram-se os três numas pedras deslocadas debaixo do souto secular. O satélite da terra, sobre São Gregório, filtrava uma claridade de luto e uma perdiz cantou no vale da Teja. Os caminhos de Gogim esperavam o dia para levantarem a poeira e a ermida de Arícera vigiava o descampado.

    Quando abandonavam o lugar, João ainda viu o Sevilha, de focinho levantado e crinas ao vento, zunindo pelos castanheiros num vendaval de liberdade.
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O lagar da Memória"
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

    5/25/13

    O DESERTOR

    Saíra de Pargal, com os Pais, ainda o orvalho vestia os montes. Almoçaram em Coimbra, num restaurante para os lados de Santa Clara, com as ruas repletas de capas a caminho do Municipal. Teve vontade de dizer-lhes que ficava ali, que não ia para Quartel nenhum, porque o seu tempo era de fogo e não de cinza.

    Engoliu o bife que o estômago pedia numa necessidade animal, mas, lá fora, estava a alegria que lhe saciava todas as fomes. Quando recomeçaram a viagem, qual penitência sem pecado, os ecos estudantis soaram-lhe como um desaforo na imensidão do seu descontentamento.

    Aqueles não se localizavam ali, mas na Baixa Portuense, nos Cafés Piolho, Diu ou Estrela, na Cedofeita das meninas das sapatarias ou na Santa Catarina dos discos e do Majestic. Eram, porém, iguais, porque o desafio da liberdade amordaçada não tinha cores nem diferenças.

    Durante a viagem, o Pai, apagado funcionário público na Repartição Concelhia, preleccionava sobre o brio e a honra de servir a Pátria. A Mãe, Professora Primária na aldeia da sua nascença, cansada de berrar às impertinências da canalhada, geria o silêncio como se poupasse a voz para a obrigação profissional. De vez em quando, num hífen de abrandamento, lá aconchegava: «Há-de correr tudo bem, meu Filho. Vais ver...», num tom de resignação. Ele ia calado, encostado ao vidro, com o braço apoiado no bordo do assento traseiro, a mão no queixo, olhando lá para fora, a chuva a ameaçar, pensando para si. O que lhe apetecia não o deveria dizer; fora criado numa natural tradição familiar que é, muitas vezes, um filicídio ético mas sempre imaculado, pois nenhum dolo ou aversão cabem no amor do sangue. Filho único, educado em Colégios Jesuíticos e frequência interrompida na Faculdade de Economia do Porto, aprendera que a filiação, mais do que uma circunstância, é uma procedência e uma mercê. Para os Pais, sem bens ao luar ou cofre de segredo, Silvestre fora o seu sonho e a sua razão que, com a soma de ordenados parcos, lhe exemplificavam a generosidade sem preço. Mais que reverência, devia-lhes gratidão que é um afecto dobrado. Abdicara, por eles, de uma deserção aventureira sem data de regresso e o Povo, grosseiro, a atirar-lhes com o ferrete: «Olha os Pais do cagão!»

    O jantar, na Ponderosa, foi despachado e silencioso. Compraram um pão de ló húmido, imagem de marca da casa, para lhe adoçar as primeiras horas. Aproximava-se o fim da viagem, Torres Vedras estava perto, e ele até pedia que a estrada não tivesse fim.

    À entrada de Mafra, no cruzamento para a Ericeira, recebeu-os uma chuva tão impiedosa, forte e perversa, que nunca mais esqueceu aquela noite de domingo: 11 de Janeiro de 1966. A força da água, com um barulho ensurdecedor, fazia temer pela capota do velho Opel. O nevoeiro, que aquela levantava no Largo da Vila, mal deixava ver os contornos da ostentação de El-Rei D. João V. Só as luzes de dois cafés-restaurantes, do lado contrário, esbatidas pelas montras vaporadas, davam sinal de vida.

    Contornaram o terreiro, virando à esquerda na direcção da Porta de Armas, e encostaram na confiança de que a bátega amainasse. Numa porta lateral frinchava uma luz morrediça de velório. Soube que era por ali que teria de entrar quando um táxi se lhes encostou para largar um rapaz de mala na mão. Devia-se apresentar até à meianoite; não tinha vontade nenhuma de se apressar, mas, quando a chuva passou a morrinha, despediu-se dos Pais, pegou na mala, “se tem de ser que seja!“ , correu para a porta, deu-lhe um pontapé, ficou um instante a dizer adeus, e fechou-a com o calcanhar. Deparou-se-lhe, num cheiro de gruta bafienta, uma encenação farsista: do tecto, alto e arqueado, pendiam redes mosquiteiras; no chão, de lajes polidas por muitas botas, grupos de mauzers ensarilhadas com capacetes que vira nos filmes da segunda guerra mundial; pelas paredes escorria uma humidade sórdida, exsudando salitre e desolação. O Sargento que o recebeu tinha uma cara de cera e uma barriga de momo.

    Entregou-lhe a guia e o bilhete de identidade, assinou uns papéis e ouviu: «A partir de agora passa a ser o soldado cadete 779 barra 66! Escutou bem o que lhe disse ou esses cabelos tapam-lhe as orelhas?! Ó pá! – virando-se para um soldado - leva aqui o nosso cadete à caserna 8!» Silvestre, sem pronunciar uma letra, olhou-o bem, leu-lhe o nome escrito no dólmen, pegou na mala e seguiu o soldado como um perdigueiro, percorrendo corredores e subindo escadas de catacumba, de luzes tão mortiças que pareciam morrões, enquanto repetia o nome do Sargento até o fixar: Franklim. Quando entrou no dormitório, de beliches alinhados, a varanda estava escancarada e o frio da noite misturava-se com os restos de lixívia. Enfiou o malão debaixo da cama, depois de tirar o pijama, perguntou se alguém se opunha a que fechasse as portadas, pendurou a roupa numa maçaneta do beliche, disse um «Boa noite, malta!», a aparentar desinibição, e deitou-se. Os lençóis tinham a tesura do gelo e o colchão o ruído e o cheiro da palha. O parceiro de cima não parava de se mexer e receou que aquela geringonça de ferro lhe desabasse em cima. Fechou os olhos e as lágrimas salgaram-lhe as olheiras. Desde aquela noite que Silvestre soube que nada, mesmo nada, seria como dantes.

    No final de Junho, aprovado no Curso de Oficiais Milicianos, deram-lhe uma bicha de Aspirante e uma guia de marcha para ir, no Regimento de Infantaria 13, em Vila Real, ensinar recrutas com o que aprendera. Antes de partir, foi à Secretaria despedir-se do Sargento Franklim. «Felicidades! », disse-lhe. «Falta o cumprimento militar!», retorquiu Silvestre. Quando o Sargento, de sorriso trocista, lhe bateu a continência, correspondeu cheio de formalismo, deu meia volta e nunca mais lhe veria a cara nos seus anos de forçado.

    Entre a Instrução e o toque de ordem o tempo passava célere que, bem vistas as coisas, comandar jovens obedientes e retardados entusiasmava e não crescia tempo para pensamentos reversivos. Depois, entre a Gomes, a Toca da Raposa e o Liceu Camilo Castelo Branco, era o deslizar dos flirts e das banalidades conversadas. Quando a discussão se atrevia por atalhos de mais leituras e contendas de alguma inteireza, o cansaço matava a vontade e desprezava a curiosidade. Silvestre, a pouco e pouco, dando-se conta mas sem fuga possível, engordurou a polidez, deixando-se arrastar para a vulgaridade reinante. Aos fins de semana, tirando aqueles em que a escala de serviço lhe impunha a clausura, metia-se na Cabanelas ou aproveitava a boleia do NSU do Quim, que, de gasolina dividida, não se importava de andar mais dez quilómetros para o deixar à porta de casa. Era a sua vingança. Dormia até lhe apetecer, comia o que a Mãe já sabia que ele gostava, lia o que ficara a meio, pensava e era feliz no silêncio da aldeia, deserta aos domingos. Às segundas feiras acordava de madrugada para, às oito, se apresentar, diante do Comandante da Companhia, com o pelotão alinhado.

    Quando já pensava que se tinham esquecido dele, deram-lhe uns galões de Alferes e outra guia de marcha para se apresentar na Amadora, apeadeiro da viagem para Angola.

    Esteve lá três meses a formar Companhia, com muita Ordem Unida para cimentar o espírito de corpo, umas sessões de tiro na Fonte da Telha, duas semanas de nomadização na Carregueira, uns crosses à volta da Reboleira e muita vadiagem no Cais do Sodré e pelo dédalo do Bairro Alto. Numa madrugada de Março, a parada encheu-se de Berlietes, atiraram lá para dentro com os trastes que restavam - os maiores já tinha ido, na noite anterior, para os porões do Pátria – e, cheios de café com leite a cheirar a mentol e pães com planta, foram em bando para o embarque.

    Em Luanda mandaram-nos para o Grafanil e, ao fim de duas semanas, estava a caminho de Carmona.

    Uma poeira vermelha envolvia a coluna que avançava sob um barulheira infernal de motores, os rostos dos homens mascarados por películas de espanto e de medo. Costas com costas, as coronhas das armas apoiadas nos beirais dos bancos corridos, colados às caixas das viaturas, todos sentiam que agora era a sério; os treinos e as teorias estavam enterradas no outro lado do mar. Sem divisas nem galões, despidos de carimbos graduados, o mando e a obediência eram feitos de nomes, conhecimentos antigos e, acima de tudo, de responsabilidades assumidas. Silvestre ia na cabina descoberta de um Unimog, perdido no meio da coluna, farolando o capim e a floresta de mistérios ocultos.

    A restolhada das aves e os guinchos dos chimpazés disfarçavam a gelidez vertebral que lhe acrescentava um enjoo de agoniado; estava borrado de medo naquele corredor ocre e verde; olhou para trás e só o Cubano lhe piscou o olho num rosto de menino apreensivo.

    Num sopapo, lá à frente – pareceu-lhe ser na cabeça da coluna -, ouve-se um estrondo de terra esventrada, as pernas dos que iam adiante saltaram para as bermas da picada, ele, pulando do assento, fez o mesmo e atulhou-se no meio de corpos em que o terror e o suor se confundiam. As rajadas para o desconhecido cessaram como quem refreia uma precipitação; uma serenidade absurda paralisou o lugar e um acre de pólvora elevou-se do chão. Silvestre não contou as horas que demoraram a reajustar o rebenta-minas, enquanto os enfermeiros cuidavam das pernas dos dois sorteados, nem da penetração na espessura da mata, mais cautelosa que ofensiva. O que Silvestre aprendeu, nessa tarde, foi que só há futuro quando se tem consciência da morte.

    Em Março de 1969, novamente em Luanda, iniciou, no Vera Cruz, a viagem de regresso. Surpreendentemente, já nem sabia se ir ou ficar. A saudade do sangue misturava-se com um apelo insólito de aventura, uma paradoxal tentação de abismo, só dubiamente explicada pela rotina da violência e que dominou com as expectativas de uma vida para viver. Para trás ficava um passado que se lhe afigurou desnecessário, de mortos e feridos contabilizados para a estatística da guerra. Safara-se da vergonha desertora e das curvas de um mau fim. Sentia-se aliviado, mas, uma urgência de dúvida entristecia-lhe o olhar. Talvez fosse uma premonição ou um constrangimento de encarar o tal futuro que confiscara na sua intimidade.

    No Porto, ainda voltou à Faculdade, mas ele já se deixara vencer pela servidão repetida, o desvanecimento dos olhos vidrados e o sangue coalhado dos corpos mutilados. Diante daquela verdura de generosa rebeldia, sentia-se fora de cena, envelhecido precocemente, invejoso, até, por recusarem o que ele aceitara. Por vezes, tinha vontade de esbofetear aquelas caras de magma que lhe davam a aparência de uma traição; outras, apetecia-lhe pegar num megafone, subir para os estrados e incendiar de malignidade tanta desorganização que criava ídolos de anfiteatros mas dispersava propósitos. Faltava-lhe a frequência do meio que se alimenta do que vem de trás, sem anciloses de experiências diferentes; sentia-se evitado pelos que lhe conheciam a condição como se ele pudesse ser um delator infiltrado em tamanha comunhão libertária.

    Quando, numa manhã de Maio, abraçou, diante da porta da Faculdade, o Capitão que comandava a Polícia de Choque, seu amigo guerrilheiro de Angola, percebeu que o seu relógio se atrasara definitivamente. O coro de assobios e impropérios que ouviu, deram-lhe o golpe final. Silvestre entendeu que, mesmo na grandeza solidária, há inocentes agrilhoados.

    Foi colaborador desportivo de um Jornal que o mandava, aos domingos de manhã, fazer reportagens de Atletismo e, à tarde, nos fins dos jogos, ouvir aquelas declarações patéticas dos futebolistas e treinadores num ambiente de vapor de água e óleos de aquecer músculos; revisor de provas num Editora especializada em livros vermelhos e publicitário sem jeito para vender detergentes. Concorreu, então, ao totobola bancário,
    inscrevendo-se em todos os Bancos da Praça. Bateu, em vão, a algumas portas e gabinetes, de muitos galões em cima dos ombros, a que acedia por interposições de menor graduação. Quando o Pai se convenceu de que a desistência académica não era uma birra, falou com um seu antigo Chefe, agora colocado em Repartição Distrital, irmão de Administrador Financeiro. Ao fim de oito dias, feitos os exames psicotécnicos, entrava, de fato e gravata, no Banco. Silvestre ficou a saber que, num empenho, vale mais a sobriedade certeira do que o alarde disperso.

    Deram-lhe uma secretária, um telefone, uma máquina de escrever e puseram-no a fazer débitos de letras. As teclas caíam no papel com tanta força que cortavam os químicos, parecia que tinha chumbo nos dedos. Na Agência, sem grande espaço, localizada numa zona de forte implantação industrial, havia dias em que uma longa fila se estendia, na rua, diante da porta. Quando ajudava ao balcão, o seu sorriso não se esforçava, antes se expandia numa satisfação recém-profissional. Conhecia pessoas e feitios, abastanças e dificuldades, modéstias e soberbas. Era espantoso observar o modo diferente como se lhe dirigiam os endinheirados e os desprovidos. Os primeiros, julgando-se donos do Banco, queriam logo tudo numa truculência de trato que raiava a humilhação; os segundos, como se pedintes dele, exageravam numa candura que o desajeitava. Quantas vezes, sem o distinguir, se achava entronizado de um poder que a gerência de dinheiro alheio intruja. Sentia-se pertença de uma casta respeitável que amarujava a especulação e a carência, simbiose que permite a coroação do mandato, a conjectura de que, além de útil, se é importante.

    Um dia, a Luísa tomou-lhe o coração. Vinha de uma Agência de província em que muitas assinaturas eram feitas com a tinta dos carimbos nos dedos e «a menina não se importa de me preencher a livrança que eu mal sei assinar o nome?». Cegou-se com aqueles olhos de tranquilidade, duas evidências cerúleas que lhe lembraram os entardeceres sobre as águas calmas da baía de Luanda, quando, aproveitando todos os motivos, se safava à depressão de lá de cima. Calhou que ela se sentasse na sua frente e tivesse que lhe dar a conhecer as rotinas da função. Os seus olhares, sem cuidados de esconder franquezas, colaram-se na recíproca contemplação: o coup de foudre decidia-lhes as vidas. Encerradas as portas ao público, por entre pressas do fecho da Caixa e o adianto do expediente acumulado, deleitavam-se num jogo de sedução com ela a não conseguir disfarçar um rubor que para, Silvestre, era uma senha de docilidade e uma contra-senha de abrasamento. Começaram por almoçar juntos, ir e vir no mesmo autocarro, escolher os filmes mais condizentes com a paixão em crescendo, enriquecer a Companhia Telefónica com telefonemas de tempo esquecido e as gasolineiras com passeios de fim de semana em que o único rumo era um recato para matar a sede de um ardor sufocante.

    Casaram-se, a um sábado de Agosto, numa Igreja Românica mais afamada pelos reptos paroquiais que pela memória das pedras. Cumpriram os lusitanos costumes e as práticas religiosas. Convidaram familiares e amigos de um lado e do outro; transmitiram felicidade – ela de véu e grinalda, ele de gravata de seda e fato preto quase smoking - a quem veio e a quem via; esgotaram-se rolos de fotógrafos; consumiu-se a cascata de marisco nos primeiros cinco minutos da boda; esticaram-se as horas nas apresentações e nas danças de salão. Quando, para lá das janelas, a noite se anunciou, escapuliram-se, legalizados que estavam perante o mundo, e só mudaram de roupas num hotel coimbrão. Viveram no calor da terra e do mar algarvios a realização do sonho, amaram-se até ao tutano e trocaram juras de amor eterno.

    Regressaram às lides do Banco como dois guerreiros reconciliados no armistício de uma refrega carnal.

    Durante algum tempo compartilharam o mesmo espaço, mas, tiveram que aceitar a transferência de um deles - a Luísa escolheu – para outro poiso, que a simultaneidade conjugal e funcional não era – disse-lhes quem mandava - boa conselheira nas apreciações hierárquicas. Silvestre retirou outro ensinamento: nada vence a frieza da lógica empresarial.

    Quando o filho lhes nasceu já tinha nome, escolhido nos conciliábulos da espera: Júlio. Acorreram todas as ascendências e parentelas mais chegadas para palpitarem parecenças e aconselharem procedimentos num entusiasmo que só os nados conseguem juntar. Júlio cresceu, durante os primeiros anos, na alternância de uns avós que competiam na melopeia dos enlevos e lhe disputavam a afeição. Os Pais via-os de manhã sempre cheios de pressa e à noite sempre fartos de cansaço. O quarto, a abarrotar de brinquedos, era um hiato no seu trajecto dividido pelas casas avoengas. Para onde quer que fosse, encontrava sempre um novo mimo como uma aliciação que ele não racionalizava, mas, chantagiava em perrices sempre contentadas.

    Chegada a idade escolar foi para um Colégio que o levava e trazia numa carrinha. Por lá andou até os primeiros pêlos lhe despontarem na cara. Exigiu roupas de marca e serviram-nas; pediu moto e teve-a; desejou férias de Páscoa nas discotecas algarvias e foi; pediu vezes sem conta dinheiro e deram-lho, desrespeitou horas de chegada nos sábados da Ribeira, da Foz ou da Via Norte e ninguém se atreveu a lembrá-lo; havia manhãs de domingo em que a cama estava intacta e quando os Pais almoçavam ele ia dormir.

    Silvestre, a pouco e pouco, sentiu-se atraiçoado como se uma navalha lhe dilacerasse a boa fé. Virava-se para a mulher a berrar que o tinham estragado, mas, esta, como se um fanatismo lhe impedisse o discernimento, recriminava-o pelo exagero e até fazia por esquecer a falta de umas peças em ouro que nunca mais voltavam à sua cómoda. Silvestre fingia normalidade. Os hábitos de fim de semana, porém, transformaram-se nos dias todos. O Júlio chegava a casa macerado, inquieto, enfermiço, de olhar turvo e longínquo, escudando a recusa de comer com a abundância de um lanche tardio, uma dor de cabeça destemperada, um namoro desfeito, uma necessidade de estar só. Quando o alarme tocou, deram-se conta de que haviam acordado tarde. Da caixa do correio retirou uma carta colegial em que lhe eram comunicadas as repetidas faltas do filho. No dia seguinte, telefonou para a Agência a dizer que estava doente, estava mesmo, e seguiu os passos do Júlio. Desabafou com o Director Escolar as suas perplexidades, aliviou-se um pouco quando lhe confirmou a presença do filho nas aulas, mas, entendeu as palavras entremeadas daquele.

    Sentou-se no Café da esquina a observar os passantes e atento ao relógio. O Júlio transpôs os portões no fim da manhã, confundido no turbilhão das correrias e dos risos. Apartado, num grupo de mais três, tinha o ar de quem não pertencia ali. Subitamente, Silvestre viu-se no meio de muitas sirenes e campainhas de que desconhecia o som, gelado e a transpirar como quando o paludismo o prostrou, sem forças, numa cama africana, em delíquio nunca esquecido; julgou-se a correr para o filho, arrancar-lhe aquele cigarro, mas ele continuava colado à cadeira, sem reacção, estupidificado, uma confusão de gritos a rebentar-lhe na cabeça e no peito. Aquele cigarro do filho não era como os que ele fumava, o papel parecia uma tira ressequida, mal embrulhada, e o fumo, que lhe saía da boca e das narinas, meio azulado. Reparou que o grupo se desviou para um esconso do muro, que dava para um descampado de silvas, faziam gestos de trocas, que não conseguiu ver, e metiam as mãos nos bolsos.

    Mal a Luísa chegou, ao fim da tarde, comunicou-lhe, depois das explicações do que vira, que iria afrontar o filho. A algazarra foi só dele. Ela, calada e chorosa, o filho, fechado e ausente, ouviram um Silvestre desesperado, que tanto esganiçava o seu ódio à sorte como implorava o amor do Júlio, até se deixar cair no sofá, enrodilhado em pranto. «Pai, quero-me tratar...», balbuciou ele, passados uns instantes, numa naturalidade tão seca que parecia uma decisão antiga, muitas vezes adiada e, finalmente, assumida. Uma interrupção de síncope esmagou a sala; eles incrédulos e mudos, o Júlio de olhos perdidos na alcatifa. O tempo parou dentro daquelas quatro paredes; ouviram-se os estalos da madeira como se os móveis se esticassem; a televisão, de som cortado, mostrava uma bulha de galos. Silvestre, recuperando do sufoco, ganhara uma esperança, mas, perdera a ilusão de que, afinal, tudo fosse mentira. Bem lá no fundo, misturada
    com a desconfiança, ele ansiava por uma réstia que lhe mostrasse o seu engano; aquele «Pai, quero-me tratar...» era a confirmação do seu temor.

    Recorreram a Médicos amigos e desconhecidos afamados, gastaram o que tinham e empenharam-se para o internar nos Centros mais díspares e caros. Correram para lá durante meses em calvário já encarado numa irremediabilidade. Era como se fossem visitá-lo a uma Cadeia. A Luísa, com o passar dos dias, perdia o seu olhar marinho que umas olheiras, de covas fundas, ajudavam a enegrecer; arranjava-se já não só por
    hábito, mas, acima de tudo, para aparentar normalidade. Não gostava que lhe tocassem no assunto e, nos mais chegados, vertia todo o fel do seu infortúnio. Lembrava muito os seus tempos de infância feitos de bonecas de pano que a Mãe lhe fazia nas tardes mortas, dos passeios pelos caminhos da serra e das gargalhadas do Pai. Parecia-lhe que a vida passara depressa, abreviando-lhe a felicidade numa morte anunciada. Sobre Silvestre desabara o peso da cisma, a cólera que lhe consumia as entranhas, o ódio – um
    ódio terrível – que lhe sustentava uma gana de desforço. Foi a um acampamento cigano comprar uma pistola e guardou-a por detrás de uma prateleira de livros. Esperaria a hora, o instante que só o Júlio podia ditar: se se erguesse ainda podia perdoar, se a decadência não tivesse solução iria a qualquer covil, dos muitos que já ouvira falar, onde se traficava a mistela, e atiraria sem ver, de olhos fechados, só pedindo que nem um tiro falhasse para não ir para a prisão com remorsos de deixar algum vivo. Faltaram-lhe as palavras, tinha dias em que só lhe apetecia ficar na cama, o pior era que não dormia, de nada lhe serviam os comprimidos que o Psiquiatra lhe receitara, a travesseira encharcava-se de choro como uma baba demencial.

    Entre Silvestre e Luísa, sozinhos, numa casa que mais se assemelhava a uma capela mortuária, instalou-se um surdo desencanto que uma inútil troca de acusações fez crescer. Esmiuçavam facilitismos e encobrimentos antigos num passar de culpas mútuas; travavam discussões de uma inaudita violência verbal, sem um arrependimento, como se fossem escapes para os fumos das suas amarguras; às vezes, tentavam salvar a relação que nascera com tanto ardor e felicidade, mas esse esforço era, em si mesmo, já um sinal de termo.

    Suportavam-se, cada um à espera que o outro desistisse porta fora, a paixão e o amor eterno estilhaçados nos muros dos seus mutismos. Não se desejavam e as noites eram uma frivolidade penosa. Silvestre nunca pensara que a desgraça de um filho afastasse quem o gerara, fosse possível o desfazer de tantas ilusões, e nenhum futuro – nem mesmo o mais natural e lógico – estivesse certo nos projectos de vida.

    Trabalhavam porque o Júlio existia e existiam pela esperança da sua cura.

    O telefone da sua secretária tocava tantas vezes ao dia que o seu atendimento se tornara maquinal. Quando reconheceu, do outro lado da linha, a voz do Médico que orientava o Centro onde o filho desintoxicava, estremeceu, pensando que a libertação chegara. Mas não, aumentara o cativeiro: o Júlio fugira, já o haviam procurado, mas, sem êxito. Levantou-se como um furacão, o João gritou-lhe «Olha a carteira!», voltou
    atrás, e desapareceu diante da compaixão dos colegas.

    Iria ao sítio onde o filho estoirara as mesadas e os acrescentos familiares. Antes, porém, pegaria na arma para solucionar, de vez, a sua alienação. Num dos cruzamentos da longa avenida onde morava, na bicha que aguardava o fim de um semáforo vermelho, viu o Júlio, desfigurado, dobrado, sonâmbulo, mal vestido, um farrapo, a estender a mão às esmolas dos carros. Enlouquecido, vergastado pelo lume da vergonha, esmigalhado nas derradeiras nervuras da sua resistência, arrancou louco, deixando atrás de si um coro de buzinadelas, não viu as cores nem as passadeiras, meteu o carro na garagem, não correspondeu à saudação do vizinho do quarto esquerdo e mandou o elevador para o sétimo frente. Sentou-se no velho sofá que a Mãe lhe oferecera quando fizera trinta anos, onde costumava ler e escrever para o boletim da comissão fabriqueira da sua paróquia aldeã. Não ouvia o eco dos carros, os apitos agressivos, a chiadeira das travagens, o grito lancinante de uma ambulância a querer romper a confusão, a algazarra das crianças no infantário das traseiras do prédio. Não tinha uma lágrima, nem uma lembrança, nem uma vontade, não tinha nada, nem se tinha a si, nem sequer a certeza de que o destino pode ser adiado. Silvestre esqueceu a parabellum, pegou num papel e escreveu: «Não merecia isto. Vou desertar.» Colocou-o na credência do hall de entrada, abriu a janela e deixou-se cair como um pássaro chumbado.


    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustratrativa acima foi recolhida da internet livre e editada. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
    • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012.
    Clique  na imagem acima para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "ForEver PEMBA" em Julho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Atualização em Maio de 2013 Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.