Ao longo da baixa do planalto makonde, para quem vai a actual aldeia Lutete, precisamente na povoação de Uavi, fica o monte Liungo. No passado muito distante, Liungo foi um lugar sagrado e procurado pelos aldeões do planalto, aventureiros swahilis e makondes de Tanzania, parentes dos makondes de Moçambique, para a realização de preces para, espantar maus espiritos, curar enfermidades, obter sorte na caça e nas viagens, alcançar a prosperidade, em fim, preces para diversos domínios da vida humana. Homens e mulheres vinham de todos cantos e subiam até ao cume da montanha, onde suplicavam e deixavam oferendas, como: pólvora, tecidos, espingardas, dinheiro, estátuas de pau-preto, máscaras feitas de madeira preciosa, ouro, pedras preciosas e diversos objectos de adorno. Todos pedidos feitos na montanha era realizados e quem prometesse algo em forma de oferta e no fim ficasse sem cumprir morria ou desaparecia simplesmente, podendo, às vezes, ser avistado deambulando pela vegetação que cobre o monte Liungo. Contudo, Liungo tinha também outras funções sociais: No fim de Outubro, por exemplo, o cimo da montanha cantava ú,ú,ú... sendo de tempo em tempo acompanhado de um vúúú..., vúúú..., vúúú...; Estes sons eram emitidos dia e noite anunciando à chegada da época da abertura de machambas e da consequente queima de mani. Assim, nos dias subsequentes era frequente avistar aldeões de várias povoações empunhando enxadas e catanas e dirigindo-se no coração da floresta. Quando o canto da montanha cessava, logo a chuva caia e a felicidade erradiava os corações dos camponeses. Este fenómeno repetiu-se gerações e gerações.
Mais tarde, com o passar dos tempos, no sopé da montanha foi construida uma povoação pequena de forma circular e habitada maioritariamente por makondes da linhagem vanamuegùa que se dedicava essencialmente a agricultura, caça, colecta de mel e artesanato. Para além destas ocupações, alguns aldeões dedicavam-se a actividade de guia levando forasteiros ao cume da montanha para a realização de preces ou entrega de oferendas aos espiritos do monte.
Reza a lenda que, uma certa noite de verão e de céu salpicado de estrelas chegou na povoação um bando de oito aventureiros swahilis carregando fardos enormes contendo panos, sal, álcool, tabaco, pólvora, espingardas e cachimbos para a venda. O bando pernoitou na povoação, onde foi tratado com civilidade e durante a conversa com os aldeões ficou a saber da existência de preciosidades na montanha. Nisto, três dias depois os aventureiros venderam as mercadorias e atarde foram despedir-se ao nkulungwa da aldeia visivelmente emocionado.
- Deus queira que a sua sábia chefia se prolongue por mais anos da sua vida e que os jovem da sua linhagem venham seguir os teus ensinamentos. – Disse de viva voz um dos aventureiros assim que entraram no quintal do nkulungwa.
- Que os corações dos jovens makondes te ouçam e que assim queiram os espiritos dos antepassados.
- Que assim seja! – Disse alguém dentre os visitantes.
O ancião serviu aos visitantes duas camas de lutandove e depois sentou-se numa cama posta no beiral da casa principal enquanto os outros emitavam-lhe o gesto.
- Muito bem. – Disse o nkulungwa com voz trémula de extrema velhice. - Em que vos posso ser útil, meus jovens?
- Vinhamos despedir. – Respondeu um dos visitantes e de seguida acrescentou. – Cumprimos integralmente as nossas intenções e para finalizar gostariamos de chegar ao monte para suplicar aos espiritos a proporcionar-nos uma viagem sem perturbações.
- Isso é muito simples. - Balbuciou o nkulungwa. – O Kwavango, um dos guias da povoaçao levar-vos-á ao monte.
- Uma vez mais agradecemos a sua bondade.
- Não têm que agradecer. – Sorriu. – Nós somos assim... hospitaleiros, mansos, bondosos, tolerantes, mas maus quando alguém provoca-nos.
Todos riram perdidamente e no fim, o nkulungwa chamou o guia; Apresentou-o aos forasteiros e depois, disse:
- Idem em paz e que os espiritos dos ancestrais venham proteger-vos.
O ancião fez uma pausa. Apoiou-se ao braço de um dos netos, fixou os pés no solo e quando certificou-se de ter pisado seguramente o solo, ergueu-se lamentando uma dor infernal na coluna vertebral. Fez uma cara feia, pegou na sua bengala e advertiu:
- Idem em paz e não deixem que a cobiça vos cegue...
Deu costa os visitantes com muita dificuldade e lentamente caminhou parando em cada três passos para repousar. Ele era muito velho. Tinha a face tatuada e cheia de rugas. A boca era desdentada e chupada.Tinha um corpo magro e curvado.
Quando o nkulungwa entrou numa das palhotas, os visitantes deixaram o quintal rumando à montanha guiados pelo Kwavango. Andaram muito tempo num caminho estreito ladeado de capim alto e mais tarde iniciaram a subida da montanha esquivando pedras soltas postas ao longo do caminho.
Entretanto, subiram seguindo um atalho alcantilado que circundava o monte numa subida quase infindável. Já no meio do monte começaram a sentir o ar fresco e a visualizar a enorme floresta que se estendia de todos lados até ao horizonte. Pararam por alguns instantes para descansar. Era já atarde. O sol luminoso de Junho derramava os raios sobre o planalto. No entanto, prosseguiram a marcha caminhando lentamente ao lado da ravina que circundava o monte. Após algumas horas os visitantes alcançaram com muita dificuldade o cume da montanha. Deixaram as trouxas no chão, descansaram algum momento e de seguida, prepararam-se para entrar no local sagrado...
O local era uma gruta com um enorme alta natural, onde podia-se vislumbrar diversos objectos preciosos ofertados por gente de todos cantos. Todas aquelas relíquias eram protegidas pelos espiritos, sendo impossível a sua retirada da caverna, pese embora o seu valor cultural e comercial.
Nisto, os visitantes ao entrar no interior da gruta e quando lá se encontraram ficaram estupefactos com a presença de objectos valiosos naquele lugar. Um dos visitantes aproximou-se a um punhal de ouro puro, olhou-o com manifesto interesse e no fim, fez movimento para tocar. Nesse momento o guia gritou:
- Não! Não toques no objecto. Ele é sagrado e quem tocar será amaldiçoado.
O visitante hesitou, mas depois encorajado pela cobiça tomou o objecto e começou a troçar o guia em swahil. Kwavango afastou-se da gruta todo medroso e fugiu a sete pés, tendo em seguida escorregado e caido na ravina. No entanto, na gruta os visitantes pilharam os objectos sagrados e sairam para iniciar a descida da montanha. Próximo a gruta prepararam pequenos fardos, carregaram nas costas e desceram o monte. Enquanto desciam, o céu ficou vermelho e nuvens coloridas aproximaram o monte cautelosamente. Um bando de aves cruzaram o céu piando deseperadamente e de súbito, uma trovoada ensurdecedora rasgou o céu quatro vezes e os homens que desciam o monte desapareceram misteriosamente. A aldeia ficou apavorada. No monte uma nuvem vermelha cobriu o cume durante algum momento.
Dias depois, no monte passaram a acontecer coisas estranhas e de arrepiar os cabelos. Ao anoitecer ouvia-se gritos fortes de homens clamando deseperadamente por um socorro. Ouvia-se também sons de correntes metálicas e chicotadas. Meses depois, seres estranhos e acorrentados nos pés e braços desciam da montanha no meio das noites enluaradas e faziam passeatas na povoação semeando terror e mal estar nos aldeões.
Após um trabalho árduo de expulsão de espiritos perversos e protecção da povoação por meio da magia negra, a vida voltou à normalidade.
No entanto, passadas duas gerações fenómenos estranhos voltaram a manifestar-se na montanha. Nas manhãs no cume do monte eram avistadas roupas brancas lavadas recentemente e estendidas nos ramais dos arbustos próximos à gruta. Quando chovesse as roupas estendidas desapareciam misteriosamente voltando a se avistar assim que precipitação cessasse. Nas noites o cume era iluminado por enorme linguas de fogo que se estinguiam ao alvorecer. Entretanto, o local foi proibido e os fenómenos estranhos e arrepiantes continuaram até os dias que correm.
- Allman Ndyoko, Moçambique, 17/11/2009.
Glossário:
Lutandove – Cama composta de base de estacas e atravessada com cordas tecidas compalha;
Nkulungwa – Chefe da povoação;
Swahil – Lingua falada na Tanzania;
Mani – Ramais de árvores abatidos na abertura de machambas;
Vanamuengùa – Linhagem Namuengùa.
Oi Jaime ...
ResponderEliminaradorei o conto ...
transportou-me a outros tempos ...
beijinhos e que esteja tudo bem contigo
isabel