(Continuação)
Os senhorios dispunham de um número variável de escravos, que podiam atingir as três centenas, de ambos os sexos, que se repartiam por escravos de cultura ou de subsistência, e escravos domésticos: os escravos de porta ou de quintal. Todos eles, normalmente, tinham um tratamento familiar. Excepcionalmente, por necessidades económicas do senhorio ou por mau comportamento, podiam tornar-se escravos de tráfico. Face às funções que desempenhavam, a renovação daqueles escravos fazia-se, preferencialmente, pelo processo de reprodução demográfica.
Entre os escravos domésticos, as escravas de quintal desempenhavam papel relevante não só como aias, mas também como preciosas auxiliares das donas, sinharas ou sás7, ilustres senhoras pertencentes à aristocracia local, a quem prestavam uma valiosa ajuda, tanto na satisfação dos seus caprichos e vaidades pessoais, como nos banquetes e convívios familiares. Nestas ocasiões, a ama vestia e enjoiava, ricamente, as suas dedicadas escravas que deste modo procuravam mostrar, publicamente, aos convivas, o status e a riqueza dos seus senhores.
Em 1820, após os saques dos sakalava8, terminados em 1817, as terras dos prazos estavam baldias e despovoadas e os senhorios sem possibilidades de as recuperar face ao crescente aumento do tráfico esclavagista e da sua internacionalização.
Os Portugueses encontraram nas Ilhas uma economia que tinha como base a policultura associada à criação de animais, a pesca e o comércio, acrescentando-se a estas actividades, entre outras artes, a tecelagem, a ourivesaria e a construção naval. Até ao século XVII as terras emprazadas produziam, abundantemente, milho, mapira, arroz, feijão, gergelim e cocos, cujos excedentes, embora escassos, serviam para abastecer a sempre carente Ilha de Moçambique. Para além deste produtos exportavam, para aquela Praça, cauri, âmbar, tartaruga, mauna, madeiras, marfim e escravos.
Com as invasões omanistas, no último quartel do séc. XVII, o desenvolvimento da colonização europeia no continente americano, a queda de Mombaça, em 1729, e a consequente perda do domínio português em territórios litorálicos situados a norte de Cabo Delgado, a presença francesa nas costas de Moçambique e os ataques desferidos contra o território, entre 1796 e 1817, por corsários franceses, por alguns chefados makhwa vizinhos e por invasores sakalava, vindos de Madagáscar, o sector primário entrava em crescente decadência e o modo de vida dos habitantes das Ilhas iria ser profundamente alterado, cada vez mais motivados para a actividade mercantil.
O aparecimento de frequentes crises alimentares no território, como resultado da interacção dos vários factores referenciados, seriam resolvidas pela agricultura suaíli praticada a norte de Cabo Delgado, com a ajuda dos denominados Mouros da Costa, que trocavam marfim e escravos por produtos alimentares, especialmente, gado bovino e arroz.
Para a abordagem aprofundada e sistemática das trocas comerciais foi necessário conhecer o quadro de trocas comerciais internacionais onde tal comércio estava inserido e os princípios económicos vigentes impostos pelas várias potências europeias aos territórios que dominavam. Para a sua concretização, começou-se, primeiro, por examinar como se processava a articulação dos estabelecimentos comerciais costeiros da África Oriental no complexo comercial do Oceano Indico, para depois se encontrar respostas, concretas e objectivas, para um significativo número de interrogações relacionadas com:
- as estratégias, políticas e meios de acção delineadas pelas autoridades portuguesas para se introduzirem no milenário sistema comercial índico e para enfrentarem a concorrência de Árabes, Suaílis e Indianos, nem sempre cooperante e pacífica;
- a funcionalidade das estruturas impostas para alcançar tais propósitos e das suas implicações sobre as realidades sócio-culturais inseridas no dito sistema comercial, particularmente, a das Ilhas e as das terras continentais que lhes ficam geograficamente mais próximas, então, sob o domínio de autoridades políticas independentes;
- os vários tipos de comércio em que as Ilhas estavam envolvidas - marítimo costeiro e com o interior -, e relativamente, a cada um deles, o enquadramento normativo, os circuitos, os comerciantes e outros agentes intervenientes comerciais, os produtos transaccionados, os processos de troca e os meios de pagamento utilizados.
À chegada das suas primeiras armadas à Índia, os Portugueses constataram, por um lado, estar a África e a Ásia, há muito, interligadas por um imbricada rede de relações comerciais servida por um conjunto de circuitos, principais e secundários, destinados a escoar, entre si, produtos de importação e de exportação. Por outro, verificaram a existência de um mercado costeiro pautado por um grande volume de trocas, servido por uma típica e multivariada navegação à vela, ritmada pelas monções, estações do ano e correntes marítimas, que assegurava os fluxos de mercadorias entre os dois continentes. Entre as principais rotas encontrava-se uma que ligava Cambaia e outros portos da Índia aos portos africanos de Mogadíshio, Mombaça, Melinde e Quiloa e uma outra que destes portos se dirigia para os portos de Aden, Zanzibar, Ilha de Moçambique, Angoxe e Sofala. Para além destas rotas existia uma rede de vias ou circuitos comerciais, de natureza secundária, onde se integravam os portos de escala do território, que serviam de base à navegação de cabotagem, essencial, à sobrevivência de centenas de povoações da costa leste de África.
Para defender os interesses da coroa portuguesa, ameaçados por outras potências coloniais europeias, em 1761, para além de reforçar a proibição do comércio a estrangeiros e se conceder a liberdade de comércio a todos os portugueses, Lisboa dá à Praça de Moçambique o estatuto de centro ou empório de todo o comércio, tanto o vindo da Ásia, como o proveniente da Europa e da América. Mas tais medidas não tiveram sucesso e levaram ao desenvolvimento de um sempre crescente comércio clandestino ou de contrabando.
As insistentes ordens para o Capitão das Ilhas, para que não se permitisse a entrada a navios estrangeiros na área da sua jurisdição, demonstram bem o significativo incremento do comércio clandestino e quanto era frágil a acção das autoridades portuguesas face às condições ecológicas existentes e aos importantes interesses dos vários intervenientes (moradores, árabes, mouros da costa e franceses e por vezes as próprias autoridades) envolvidos no complexo processo comercial, que teve como palco a parte norte do território moçambicano.
As fracas condições demográficas e a pouca eficácia das estruturas político-militares, administrativas e económico-financeiras, com que se defrontavam aquelas autoridades, conduziriam a um permanente confronto e conflito entre os agentes de duas estruturas comerciais distintas: uma, multi-secular, instalada e consolidada com as suas regras próprias, adequadas às diferentes condições ambientais e sócio-culturais e anterior ao século XVI; a outra, aquela que os responsáveis pela colonização portuguesa implantaram, com base nos circuitos existentes, impondo-lhe, contudo, algumas alterações que se relacionavam com a navegação, o pagamento de direitos aduaneiros, a restrição do número de intervenientes no processo comercial e a introdução de novos produtos.
As duas estruturas funcionariam em paralelo, cabendo à primeira o predomínio quase absoluto, sempre dominada pelos comerciantes árabes e suaílis/mouros da costa, a que se juntariam, no primeiro quartel do século XVIII, comerciantes franceses e ingleses. Os mercadores das Ilhas, onde se incluíam, por vezes, as principais autoridades civis e militares e alguns frades dominicanos, embora participassem, algumas vezes, na segunda, integravam a maioria do seu negócio no seio da primeira estrutura.
Entre todos agentes, caberia papel de relevo aos mercadores da Costa de Zanzibar e dos demais portos do norte, os denominados Mouros da Costa, que, apesar dos entraves colocados pela autoridades portuguesas, nunca deixariam de extrair das Ilhas e terras firmes, próximas do litoral e do interior, marfim, ouro e escravos, que, depois, através das principais cidades suaílis da costa leste de África, se integravam no comércio a longa distância.
Com a intensificação do tráfico esclavagista, verificada a partir da terceira década do século XVIII, no qual estavam envolvidos Árabes, Mouros da Costa, Franceses, Portugueses e Chefes africanos, acentuou-se a importância dos diversos portos, particularmente, os litorálicos desta parte norte do território de Moçambique, que continuaram a servir de entrepostos comerciais e de locais de descanso das tripulações, de elos de ligação entre o comércio marítimo - local, regional e de longo curso - e o comércio com o interior - local e a longa distância.
Através dessa rede de pequenos portos, aliás, seguros pela protecção que recebiam das ilhas adjacentes, passava toda a importação-exportação dos variados bens, de múltiplas proveniências e destinos. Além dos portos insulares da Querimba, Ibo e Matemo, merecem especial atenção os ancoradouros ou portos de Funzi, Mossimboa, Messano, Samouco, Quissanga, Arimba, Sito e Tari, situados nas terras firmes. De todos eles, as autoridades portuguesas, por falta de estruturas de apoio e de uma fiscalização efectiva e eficiente, apenas controlavam e com dificuldades, o porto do Ibo.
Do conjunto de homens de negócio que integrava esta vasta teia de relações comerciais, faziam parte os mercadores das Ilhas, cuja actividade se estendia à Macuana. As longas distâncias, as condições ecológicas adversas e as restrições na circulação de pessoas e bens impostas pelas autoridades políticas africanas de cada região, eram obstáculos a vencer por todos os que pretendiam mercadejar nas terras do sertão africano.
Estes mercadores, com a ajuda do seu prestígio social, proveniente da ascendência familiar e dos cargos que desempenhavam, sempre propiciadores de grandes benefícios materiais e sociais e aproveitando, ainda, a dupla herança cultural que eram portadores (afro-suaíli e europeia), conseguiam, através de alianças de parentesco e de clientela, introduzir-se, com alguma facilidade, no seio dos diferentes sistemas sócio-políticos e económicos, onde tinham necessidade de exercer a sua actividade, que, deste modo, se estendia até às terras do interior, servindo de elemento de ligação entre as sociedades costeiras e as sociedades africanas do interior. Este seu comportamento levou a permanentes situações de conflito com as autoridades portuguesas que não aceitavam de bom grado situações de ambiguidade: ser autoridade, civil ou militar e ao mesmo tempo prestar ajuda e negociar com mercadores estrangeiros que praticavam o contrabando (Árabes, Mouros da Costa e Franceses).
No comércio Ilhas/interior/Ilhas, que ganhou relevância com o crescente aumento da economia esclavagista, participavam os mouros da costa, os moradores do território, ajudados pelos adimos e escravos e os régulos independentes da Macuana, directamente ou através dos seus enviados.
Dado o significado das mercadorias - fazendas, armas, escravos, ouro e marfim -, que circulavam em tão vasto e diversificado espaço - na investigação levada a cabo procurou-se dar respostas a múltiplas e pertinentes interrogações: Quem eram os responsáveis pela circulação das mercadorias entre o litoral e o interior? Qual o papel de cada um dos agentes intervenientes no processo? Onde, com quem, o quê e como se trocava? Com que estruturas e meios e em que épocas do ano se realizavam as trocas? Por que processos se obtinham os produtos vindos do interior? Como procediam os comerciantes que do interior vinham comerciar no litoral? Pacificamente ou pela violência? Que problemas se colocavam, no processo, aos comerciantes que do litoral se dirigiam para o interior e tinham de atravessar territórios de formações políticas independentes do domínio português? Que soluções encontravam para os resolver? Qual a intervenção das autoridades portuguesas nas trocas comerciais com o interior? Que impacto tiveram estas trocas sobre as diferentes realidades sócio-culturais intervenientes no processo?
Era com a ajuda dos moradores negociantes e dos comerciantes mouros da costa e árabes que as mercadorias desembarcadas nos portos do território passavam às terras continentais adjacentes. Os Franceses estavam menos envolvidos nessa tarefa, limitando-se o seu comércio, quase exclusivamente, às povoações da costa, especialmente, às insulares.
Ao invés do que acontecia com os dois mais importantes e próximos - Moçambique e Quiloa -, os diferentes portos das Ilhas não eram servidos, directamente, por qualquer rota de comércio internacional a longa distância. A falta de uma estrutura de tal envergadura, comprovada pelos estudos realizados, até ao presente, sobre o comércio do interior da África Central e Oriental e o seu litoral, iria influenciar o modo de comerciar e o fluxo de mercadorias circulantes entre o litoral e o interior desta parte do território africano, balizados pelos rios Lúrio e o Rovuma.
Os vários agentes envolvidos no tráfico de homens procuravam, em primeiro lugar, obter o máximo de proveitos nos seus negócios, expectativas, que nem sempre eram concretizadas. Múltiplos factores, em interacção, pesavam sobre os resultados finais da actividade de cada mercador, destacando-se entre outros:
- o preço de compra dos escravos, que dependia das leis da oferta e da procura, do sexo, da idade, da sua etnia e do seu estado físico;
- as distâncias a percorrer entre os locais de compra e os locais de destino;
- as múltiplas dificuldades que se colocavam durante e ao longo desse percurso, nomeadamente, autorizações para se abrirem caminhos, fugas, roubos e outras violências;
- o tempo de demora nos portos a aguardar compradores; e
- a alimentação, vestuário e outros bens destinados a manter a vida, a saúde e o estado físico dos escravos, indispensáveis para valorizar a oferta na altura da sua venda nos portos de destino.
Chegado ao local do interior mais vantajoso, escolhido com todo o cuidado, o mercador contactava com o chefe da povoação e, em breve, começavam a chegar os vendedores com os seus escravos. Iniciava-se, então, um processo moroso com um exame minucioso da mercadoria relacionado com o sexo, a idade, cor da pele, defeitos e estado de saúde.
Salvo raras excepções, a escolha dos escravos ficava limitada a faixas etárias muito específicas, que deviam englobar, tão somente, indivíduos sadios, capazes de fornecer uma força de trabalho vigorosa e lucrativa.
Depois de observados, com todo o rigor, os escravos expostos no mercado, seguia-se o demorado negócio, muito fraseado, tipificado por padrões muito próprios, em que o tempo-horário tinha pouco ou nenhum significado económico. Concluída a transacção e depois de colocadas gargaleiras a quase todos os escravos, para evitar fugas, iniciava-se, por etapas diárias, a viagem de regresso a casa. Após aqui chegarem, recebiam cuidados especiais para melhorar os seu estado físico e serem vendidos por preços mais elevados. Os principais compradores destes escravos eram os comerciantes franceses que, quase sempre, clandestinamente, e em aberta colaboração com as autoridades locais, terão, entre 1742 e 1822, adquirido nos portos das Ilhas, em troca de arroz, patacas, armas e pólvora, para cima de 70 000 escravos, que terão transportado para as ilhas Maurícias, em cerca de 300 embarcações e pelos quais terão pago mais de um milhão de patacas. Estima-se, por outro lado, que os mercadores árabes e mouros da costa terão carregado, no mesmo período, nas 5 dezenas de pangaios ou dalos cerca de 500 escravos/ano, com destino à Ilha de Moçambique e aos portos índicos situados a norte e a leste de Cabo Delgado.
Os preços de cada escravo foram variáveis ao longo do tempo, dependendo não só das leis da oferta e da procura, mas também das categorias e das características dos escravos relacionadas com o sexo, a idade, a compleição física, a etnia, a religião e a ocupação. Até 1780, o custo de cada escravo adquirido para embarque oscilava entre os 24 e 100 cruzados, subindo depois para preços compreendidos entre os 100 e 300 cruzados. Um mercador podia comprar, no interior, um escravo "cafre" por 40 cruzados e depois vendê-lo, nas Ilhas, aos comerciantes franceses por 80 ou 90.
As patacas provenientes, sobretudo, das Maurícias dadas em troca de escravos não permaneciam, durante muito tempo, nas mãos dos mercadores do território, pois, com elas, compravam panos/fazendas e velório que vinham da Índia e produtos alimentares em Moçambique e aos Árabes e Mouros da Costa. Esta moeda metálica espanhola, que valia 6 cruzados, fazia parte de um sistema triangular que englobava as Maurícias( Maurícia e Reunião), os portos de escala Ilhas que exportavam escravos, cauri e marfim e a Índia( Bengala, Surrate, Goa Damão e Diu) donde provinham as fazendas sortidas, o velório sorteado de várias cores e outras bugigangas, com as quais se trocavam escravos, ouro e marfim, nas terras do interior.
O crescente aumento do tráfico esclavagista, em que os chefes africanos tiveram papel preponderante, esteve na génese de algumas pequenas chefados ou chefaturas, sediadas nas terras firmes próximas dos prazos do coroa estabelecidos entre o rio Rovuma e a grandiosa baía de Pemba, como os de Maroro, Mutuga, Malela e Marihé. E mais para o interior o de Mugabo. Os seus chefes controlavam comerciantes e fazendas, marfim e armas, além de outros bens de prestígio, que circulavam pelas terras da sua jurisdição.
Para apoiar os seus desígnios coloniais e a defender os seus interesses económicos ameaçados por mercadores estranhos às Ilhas, as autoridades portuguesas criaram várias estruturas político-administrativas:
- uma capitania-mor e a nomeação regular dos seus titulares;
- o reforço da guarnição militar;
- um corpo auxiliar de milícias;
- três fortificações militares: S José, S.João Baptista e Santo António;
- um corpo de autoridades administrativas auxiliares; e
- uma vila com câmara e tribunal.
As novas estruturas contribuiriam, especialmente, para fortalecer o prestígio e o poder da elite local, cujos membros, a partir do último quartel do séc. XVIII, passariam a intervir, mais activamente, nos diversos domínios da administração colonial, ocupando os seus mais elevados cargos.
Estas novas formas organizativas vieram acentuar a clivagem social existente na situação colonial entre as diversas categorias de indivíduos. Neste processo de diferenciação social, um pequeno grupo de habitantes, que podemos denominar de elite - a maior parte deles filhos da terra -, cada vez com mais poder social e político, passou a monopolizar as recompensas ou vantagens que a situação colonial oferecia, ficando a restante população maioritária delas carente.
Na parte inferior da pirâmide social encontravam-se os escravos, seguindo-se-lhes, em plano superior, os colonos, designadamente, os adimos que estavam ligados à exploração da terra, mas dependentes dos foreiros. Vinham depois os artesãos, os pequenos mercadores, os empregados civis e militares das categorias mais baixas da cadeia hierárquica e as autoridades mouriscas e os dignatários islâmicos. A um nível mais alto estavam situados os médios e grandes comerciantes, os oficiais inferiores da Guarnição Militar, oficiais do Regimento de Milícias menos graduados, sargentos-mores e escrivães da Feitoria e da Câmara. De imediato os oficiais superiores com menos graduação e oficiais do Regimento de Milícias mais graduados e foreiros sem outros desempenhos, e oficiais da Câmara. Nas posições seguintes estavam situados os capitães-mores das terras firmes, os foreiros que simultaneamente desempenhavam funções de oficiais superiores do referido Regimento, os oficiais mais graduados da Guarnição, o feitor, o juiz e presidente da Câmara e o mestre de campo. E, finalmente, no topo da pirâmide social encontrava-se o Governador, símbolo da soberania real e do domínio português nas Ilhas.
A implantação de novas estruturas político-administrativas destinada a consolidar o domínio colonial português geraria, aqui e ali, situações conflituosas de alguma gravidade e agravaria as relações entre os detentores do poder político e as autoridades religiosas- os frades Dominicanos -, encarregadas da missionação do território. Os conflitos de jurisdição eram frequentes e alguns frades, pelas suas práticas desviantes, tornaram-se indesejáveis no território.
As autoridades coloniais portuguesas também tiveram que se confrontar com as rebeldias, desobediências e "alevantamentos" dos filhos da terra, designadamente foreiros e mercadores, que reconheciam a autoridade dos governadores e dos seus auxiliares, apenas nos casos em que as suas ordens não contrariassem os seus negócios e interesses.
Mas situação colonial, não só teve de enfrentar os vários problemas de natureza interna, como também outros de natureza externa consubstanciados nos ataques desferidos contra o território e sua população pelos corsários franceses, pelos vizinhos Makhwa e pelos invasores Sakalava de Madagáscar.
Pelo seu impacto interno e externo, são de salientar os prejuízos humanos, morais e materiais causados pelos Sakalava que atingiram uma dimensão muito difícil de calcular. Segundo dados das fontes documentais portuguesas admite-se que entre 1500 e 2000 pessoas (livres e escravas), terão sido feitas prisioneiras e embarcadas para Madagáscar. Os animais domésticos - gado bovino e caprino - roubado terá atingido os dois milhares e os mantimentos centenas de toneladas.
A presença intercalada dos Sakalava, durante cerca de 17 anos, teve fortes implicações na demografia, cultura, organização social e economia do território, especialmente, no sector primário e no relacionamento, quer entre os seus diferentes grupos étnicos , quer com as várias autoridades suaílis das Ilhas índicas suas vizinhas e as autoridades Makhwa das terras firmes, que, algumas vezes, puseram de lado, as suas rebeldias e desobediências e, momentaneamente, cooperaram com as autoridades portuguesas.
As incursões malgaxes vieram realçar as contradições existentes no seio da situação colonial, destacar as forças antagónicas que se agitavam no seu interior e as dificuldades sentidas pelas autoridades portuguesas para imporem o seu poder político-administrativo e económico e para fazerem cumprir, por parte da sociedade civil, as suas normas.
Terminados os ditos conflitos armados, que causaram profundas alterações na estrutura e no funcionamento das instituições coloniais, a situação no território caracterizava-se, em 1822, por:
- uma fraca densidade populacional;
- uma distribuição espacial irregular da população, concentrada especialmente na ilha do Ibo;
- uma economia que assentava basicamente no comércio clandestino de escravos e de produtos alimentares dominado pelos Mouros da Costa, que a partir da saída dos Franceses de cena e da paralisação parcial da rede administrativa colonial do território, passariam a controlar toda a actividade comercial e a difundir os seus valores religiosos com grande à vontade entre as populações das terras contactadas, tanto do litoral como do interior.
A natureza insular do território, factor mais de repulsão do que de atracção e de desenvolvimento, as fracas possibilidades de sobrevivência - assentes basicamente no comércio - e a falta de horizontes e perspectivas futuras, levariam ao êxodo dos filhos da terra menos aventureiros e com mais posses económicas. Ao longo do tempo foram, com as famílias, abandonando as suas terras, fixando-se em locais mais seguros e promissores, como a ilha de Moçambique, outras vilas da Capitania-Geral, a Índia e o Reino. Os mais ousados e menos afortunados ficaram e continuaram a ajudar os Portugueses a permanecer e a perpetuar o seu domínio colonial, graças a uma política concreta, espontânea, de miscigenação, adaptação, integração e convívio pluri-étnico, respeitadora dos diferentes valores humanos das sociedades afectadas pelo fenómeno da colonização.
O estudo realizado vem confirmar que as políticas de contemporização, acomodação, coabitação e miscigenação, postas em prática, mais do que o resultado de acções planeadas pelo poder político colonial, constituíram uma superior adaptação ao meio, uma criação original de solidariedade comunitária, um produto da necessidade de sobrevivência e resolução, em comum, dos problemas que enfrentavam colonizadores e colonizados, embora os antagonismos e os conflitos dos respectivos interesses. Concretamente, a prática conjugada de tais políticas teve como resultado a manutenção da situação colonial, mesmo nos períodos mais críticos, designadamente durante os golpes desferidos do exterior, a qual, a partir do 2º quartel do século XVIII, iria servir de suporte ao intenso tráfico esclavagista que se desenvolveu em Moçambique e em toda a costa índica de África, no qual as Ilhas e terras firmas e os seus moradores tiveram uma participação muito activa.
Durante os cerca de 80 anos, tal o tempo que abarca a tese apresentada, continuou, embora mais atenuadamente, relativamente a períodos anteriores, o processo de interpenetração e de síntese das culturas em presença (suaíli, mwani, makhwa, makonde, yao, portuguesa e francesa), com trocas recíprocas entre elas, embora menos profundas em relação à cultura europeia/portuguesa.
A concretização do projecto de investigação levado a cabo vem confirmar, por um lado, as potencialidades e a fecundidade da informação oferecida pela documentação escrita, quando articulada com os dados recolhidos directamente no terreno sempre que se pretende compreender e interpretar, em termos de processos ecológicos e sócio-antropológicos, o sentido dos factos sociais de um determinado período histórico e a riqueza, diversidade e o significado da vida humana em diferentes contextos e as suas vicissitudes temporais e espaciais. Por outro lado, realça, apesar das diferenças sócio-culturais, económicas e religiosas existentes, e das situações de conflito e de violência, por vezes geradas em tais situações, o convívio, a solidariedade e a coabitação, no mesmo espaço, entre os membros dos diversos grupos étnicos, com modos de vida e credos religiosos diferenciados e até antagónicos, que integravam a realidade humana, constituída pelas Ilhas e terras adjacentes.
Finalmente, o estudo concretizado, para além do contributo que possa representar para o aprofundamento do conhecimento sobre estas formas específicas de vida em comum e as inter-relações que se estabeleceram entre a África e a Europa e o papel que neles teve o Oceano Indico, constitui uma preciosa achega não só para desmistificar as ideias-fantasma relacionadas com os processos de colonização e descolonização, como também para ultrapassar o sentimento de culpa ainda persistente entre os europeus relativamente aos seus antigos domínios coloniais, ideias que em nada ajudam o novo relacionamento entre as antigas metrópoles e os novos países independentes libertados da situação colonial.
7 -Mulheres mestiças da elite local, de rara beleza, ficando conhecidas por brancas do Ibo. Para mais pormenores vidé BENTO, op, cit. p. 77.
8 - Povos de Madagascar que, entre 1800 e 1817, saquearam, por várias vezes o território.Ver BENTO, op. cit. II Vol. pp 592 e seguintes que faz uma análise profunda sobre as várias invasões e sobre as suas implicações na situação colonial.
9 -BENTO, op.cit. p.575 e segts, Vol II.
- Post's anteriores com trabalhos do Dr. Carlos Lopes Bento sobre o mesmo tema
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