9/09/10

O HÉLIO !

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UMA CRIANÇA MORTA DEBAIXO DA ESCADA

Debaixo da escada há uma criança morta,
a mãe lhe poupou os sofrimentos pela vida afora.
Os pezinhos não andarão pra trás,
nem brincarão com os duendes
nem sonharão com sapatos,
nem correrão da polícia,
porque há uma criança morta debaixo da escada.

A luz tênue da lua cor-de-rosa
brinda com seu raio cintilante a hora da noite perdida
 enquanto num acalento de sussuros
uma mulher em negro vestido
coberta por um manto de mistério
desce a rua deserta murmurando sua desgraça
rumo à escuridão das trevas...

Nos céus da Pátria
um anjo com um facho de luz nas mãos
aponta para a escada,
e um raio desce das nuvens de prata
clareando os degraus,
mostrando o rosto pálido do menino morto
coberto por um lençol da brisa da noite.

Corpo ainda quente,
olhos entreabertos,
mãos postas em penitência
implorando debaixo da escada,
porque há uma criança morta.

Debaixo da escada há uma criança
possuída pelo nosso tempo de hoje...

Amanhã os jornais anunciarão
novas receitas de bolo
em lugar da tragédia da mãe
que não ofereceu o sangue do seu menino aos tiranos,
poupou-lhe os sofrimentos pela vida afora,
as suas mãos infantes
não serão oferecidas às palmatórias
as confissões pelos crimes não cometidos
não serão arrancadas de sua boca com as vísceras,
os testículos não serão chutados pelos coturnos,
não será pendurado no pau-de-arara,
não será levado à solitária,
não sentirá os alfinetes nos sabugos das unhas,
não conversará com o próprio cadáver,
não terá seu nome na Lista dos Desaparecidos,
não se alimentará nas latas de lixo,
não será condenado sem julgamento,
não habitará as sarjetas,
porque debaixo da escada há uma criança morta.

A mãe que impediu os seus sofrimentos
beijou-lhe as faces de anjo
debaixo da escada,
depois lhe falou nos ouvidos:

-Não queria lhe fazer isso, meu menino,
mas não quero que arraste a sua dor pelas trevas,
não quero que seja um morto-vivo
a perambular pela nossa Pátria,
me perdoa por lhe poupar de nossa tragédia,
meu menino...

A mãe em prantos embrenhou-se pela noite,
levando seus murmúrios nos lábios descarnados:

-Não sofrerá dores infames,
não morrerá sem direito a uma cruz,
não viverá sem direito à cidadania...

A mãe consola a sua própria dor,
não precisará implorar pelos tribunais
em busca de justiça,
não baterá nas lápides dos cemitérios
procurando seu menino,
não chorará lágrimas de sangue,
não carregará mais uma cruz...

A mãe que impediu os sofrimentos do seu filho
entregou-se à escuridão das trevas.

Enquanto isso debaixo da escada uma criança sonha...

O autor Maciel de Aguiar
Sebastião Maciel de Aguiar, filho de Walter Aguiar e Odete Maciel de Aguiar, nasceu no município de Conceição da Barra, no Estado do Espírito Santo, em 11/02/1952, onde fez os primeiros estudos no Colégio Joaquim Fonseca, mudando-se com a família para a vizinha cidade de São Mateus e continuando os estudos no Colégio Pio XII Viajou por Minas Gerais e morou por algum tempo no Rio de Janeiro.No final da década de 70 voltou a São Mateus, ao Vale do Cricaré, onde retomou suas pesquisas sobre o negro do tempo da escravidão e seus descendentes. Fruto de seu trabalho de 20 anos foram 30 títulos da série “História dos vencidos”. Poeta e pesquisador, foi incansável defensor das tradições populares do Vale do Cricaré.

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