1/12/11

A SESTA

As amendoeiras estão secas, as favas-ricas espalham-se no chão, as buganvílias resplandecem nos jardins e os chorões beijam a relva. Os pinheiros mansos, oliveiras e raras acácias protegem os carros de latas escaldantes sob o calor do meio-dia.

Caminho por entre alas de arbustos, administrando as sombras, derreado com os sacos de praia engordados de toalhas, calções e cremes anti-solares. A petizada chilreia em volta da piscina, as Mães, com pratos de cerelac, imploram-lhes as bocas; anafados passeiam cães de marca, deixando-se levar pelo esticar das correias; mulheres de ondulantes proeminências derretem, sem precauções, a sua celulite; as esplanadas enchem-se de estrangeiros a enfardar batatas fritas com canecas de cerveja que mais parecem cubas, numa algazarra que a desinibição em terra estranha facilita. Respira-se uma mistura de cheiros a cloro, ambre solaire, perfumes franceses, sardinhas assadas e febras grelhadas.

Vim por aí abaixo, numa noite sem sono, para fugir ao calor e às bichas de esmigalhar paciências. Atirei-me, mal arrumadas as tralhas, à liberdade de um mar sereno e à vastidão dum areal que me imaginei, há muitos anos atrás, naquelas imensidões africanas com as palmeiras franjando o Índico. Quem me visse, tão criança, esbracejando como quem afasta repressões, julgar-me-ia fugido de algumas grades, mas, apenas abandonara as neblinas do litoral nortenho que, sem possibilidades de se virar o mapa ao contrário, se vingam aqui.

Ao longe, depois de uma ponte pênsil sobre o rio Gilão e ramificações da Ria Formosa, um comboiozinho artesanal ronrona tão lento – em estirar de mamba - que parece ali andar desde o exórdio do mundo. Vai e vem sempre esgotado, levando e trazendo banhistas, entusiasmados na ida, arrastando-se na vinda.

Os toldos amontoam-se ao pé de um antigo abrigo de pescadores em que restaurantes ocasionais gananciam em três meses pelo que não facturam em nove. A praia, de areias açucaradas, beijada por uma irresistível mansidão líquida, estende-se até os confins do olhar. Por ela se dispersa, num mosaico complacente, uma fauna de muitos lugares, condições, espécies e maneiras: há seios ao léu aprumados como setas, outros descaídos como moncos de peru, fios dentais a fazerem de conta que tapam sexos rapados, barrigas de maternidades, banhas de abafar, securas de espantar, esculturas de ébano, remedeios matrimoniais, cabelos loiros deslizando água, carecas sem um pêlo para flutuar, palhaços fora do circo a fazerem o pino para as palmas de senhoras que falseiam júbilos, vendedores de bolos cozidos pelo sol, sorveteiros esganiçados com
arcas a tiracolo, rostos felinando as ancas e os traseiros que passam, velas de windsurf que enfunam como barbatanas de tubarões, figuras televisivas que escondem, sob óculos de escuro espesso, a autenticidade que não é igual à que dá a sala da caracterização, iates atulhados de nudistas a cortar as águas junto à costa, pantominas de motos espirrando jactos como baleias, mamas em carne viva e besuntadas com guinchinhos de chamar a atenção. No meio disto tudo, um velhote, vestido à marinheiro com botas de montanha, chama os netos com um apito de ajuntar cães, observo-lhe a cara, os olhos alienados, e penso que deve ser triste conviver com a loucura. Deixo, com alívio, essa ontologia diversificada, morto por um chuveiro que me limpe as areias e a aspereza salina.

Quando o almoço acaba e a sonolência chega, a sesta é um prazer antes do gozo. Adormeço com um búzio nos ouvidos, numa leveza anestésica, já mal escutando o passar distante do comboio de Faro.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

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