OS FRONTEIRÓMETROS - 1
OS FRONTEIRÓMETROS - 2
Continuação:
Os risos encolhidos explodiram como champanhe, mas logo o Boaventura cortou:
- Ó pá vocês não se riam nem saiam da sala, porra! Se os tipos vêem a malta a rir-se fode-se tudo!
Pouco depois, tal uma carga de cavalaria, ouviu-se um tropel de botas a descer.
- Lá vêm as cavalgaduras! – disse o Bandeira.
- Formem em fila! - mandou o Boaventura. – Para começo – olhando o relógio – não está mal! Atendendo a isso, não há flexões para ninguém. Vamos, então, dar início à vossa prova de aptidão. O nosso Aspirante Ornelas é o encarregado de orientar o primeiro teste.
Este, armado da cara mais séria que pôde arranjar, plantou-se diante deles:
- Atenção! Firme! Sé...ópe! Dá licença, meu Tenente? – fazendo tremer o braço numa continência espectacular.
- Pode mandar! No fim da aula apresentem-se neste mesmo local – ordenou o Boaventura.
- Esquerda... vooolver! Passo de corrida, em frente... marche!
Passados uns minutos, o grupo abandonou a sala, atravessou a Parada e foi assistir à sessão, disfarçado no morro sobranceiro ao campo de obstáculos, atrás de um renque arbustivo, num esforço incrível para recolher os risos com os lábios e as mãos. O Ornelas parecia que estava a dar instrução ao seu pelotão: mandou-os correr em círculo, intervalando com flexões em frente, abdominais e saltos de canguru, rastejar sob o arame farpado, saltar a vala, a paliçada e o galho, subir às cordas, ficando de fora o pórtico. Tudo num silêncio só entrecortado pelo farfalhar dos corpos e a voz autoritária daquele. Uns soldados que passavam, estranhos pelo que ouviam àquela hora, aproximavam-se curiosos, mas, sobressaltados, viram o Bandeira a afastá-los. Suados, cheios de terra e a bufar, troaram no átrio. Alguns tinham o ar de quem não cria no que lhes estava a acontecer.
- Então, nossos fronteiros, gostaram da instrução que o nosso Aspirante vos deu? Sim ou não?
- Sim, meu Tenente...
- Mais alto! Sim ou não?
- Siiim, meu Tenente!
- Porra!, parece que estão a morrer... Um caçador especial grita sempre alto, com genica e alegria! GOSTARAM OU NÃO?!
- SIIIIMMM, MEU TENENTE!!!
- Óptimo! Muito bem! Gosto de vos ver felizes... Nosso Aspirante Alves dê um passo em frente. Vou-lhe dar – entregando-a - uma ordem de patrulha que todos devem cumprir sem uma falha. Tem anexado um croqui para não haver dúvidas acerca do vosso objectivo. Nem precisam de bússola... Quero avisá-los de que até à Casa Amarela, onde se acoita o inimigo, temos informações de que há bandos terroristas dispersos que vos podem surpreender. Agora vão à Companhia da Formação, onde, na Caserna 8, o Cabo quarteleiro já está avisado para vos fornecer uma FBP a cada um. Bem vão precisar delas... Podem ir e, nunca antes nem nunca depois da meia noite, devem-se apresentar com a missão cumprida. Na Porta de Armas já estão avisados da vossa missão, o nosso Aspirante Alves só tem que comunicar ao nosso Sargento da Guarda. Sigam...
Depois daqueles transporem os portões, uns deixaram-se ficar, entretidos com a televisão, a leitura, o bilhar ou a sueca, alguns foram ao Cinema e o João, o Altino e o Ãngelo, passada uma boa hora, meteram-se no carro para irem ver o movimento dos praxados, passando-os quando eles se encontravam a conversar, sentados nuns pinocos longe, ainda, da Casa Amarela...
Quando a patrulha regressou, à hora indicada, mais minuto menos minuto, já todos estavam a postos, ansiosos pelo bródio que se seguiria.
- Então nosso Aspirante, como decorreu a operação? – interrogou o Boaventura.
- Meu Tenente, mal saímos do Quartel, logo a seguir à curva do muro, como ouvimos uns ruídos esquisitos, resolvemos, para nos precavermos, montar a segurança - explicou o Alves, todo gestos.
- E depois? O que viram?
- Verificámos, afinal, que eram pessoas pacíficas, moradores na zona...
- E como é que souberam? Não me diga que são bruxos?!...
- Falavam de futebol e...
- Mas que perigo, nosso Aspirante! Mas que perigo! Falar de futebol e logo à noite! Não pensou que isso podia ser uma armadilha? Então não sabe que o futebol é o ópio do povo? Vocês podiam ter sido anestesiados como criancinhas! Mas diga, diga...
- Depois continuamos a marcha - o Alves molhava os lábios para contrariar a secura da boca -, sempre guiados pelo croqui, até que, num morro, voltamos a montar a segurança para observação do terreno que ficava em baixo. Estava tudo calmo, era já numa zona desabitada...
- E bateram esse terreno, claro...
- Não vimos ninguém...
- Ai queriam que o inimigo estivesse à vossa vista, a dizer estamos aqui, fodam-nos! Mas que merda de caçadores são vocês?! Tinham que ir lá, procurá-los como furões à caça de coelhos! Mas para isso é preciso ter os colhões no sítio!...
- Mas ó meu Tenente...
- Mas ó meu Tenente o caralho!... Continue, continue...
- Deixámos - nos estar ainda um bocado a ver se havia algum movimento suspeito...
- As folhas a mexer...
- Algum vulto, algum...
- Que viesse ao vosso encontro?!... Meu Deus... Avance, nosso Aspirante, avance...
- Não vimos nada e ...
- Tiveram sorte não levarem umas fogachadas no cu...
- Tinha sempre três homens a caminhar de costas, de frente para o caminho...
- Esses, então, levavam-nas nos tomates...
- Meu Tenente, olhe que a gente...
- Olhe uma merda!... - Continue lá com a descrição...
- Quando chegámos ao cruzamento...
- Montaram a segurança...
Começava a ser difícil conter os risos. Eles ameaçavam estralejar como trovoada em noite abafada de Verão.
- O sítio era perigoso e, antes de o atravessarmos – prosseguiu o Alves, mais confiante e a entrar bem no papel -, tínhamos que ver bem como o fazer. Como mandam as regras, montámos, de facto, a segurança. Dividi a patrulha em dois grupos, um para a esquerda, outro para o direita, e atravessámos, depois, em pontos mais afastados do cruzamento. Prosseguimos a marcha e, como o pessoal estava já um pouco cansado, resolvemos descansar um pouco e montámos a segurança...
- Parou nosso Aspirante! Chega! Porra!, ainda não chegaram a meio do objectivo e quantas vezes já montaram a segurança? Andam cem metros e montam a segurança, andam mais duzentos e montam a segurança.... Foda-se! Tem que me apresentar essa PUTA da SEGURANÇA que eu, também, a quero montar!... Acabaram de chegar e já se fartaram de montar!... Vocês devem ter um tesão do caralho!...Se as catraias sabem disso não vos largam a Porta de Armas!... O que vocês precisavam era – virando-se para o aparelho de televisão – fazer a patrulha no lugar onde aqueles galgos estão a correr atrás da lebre... Sabe como se chama aquilo?...
- É uma corrida de galgos...
- Que novidade! Queria que fosse de coelhos?!... Como se chama o recinto onde eles estão a correr?... - Meu Tenente, aquilo – olhando fixamente para o televisor – é um pavilhão...
- E como se chama?...
- ...
- Diga-me uma coisa, se fossem cavalos a correr como é que lhe chamava?...
- Hipódromo...
- Então, e galgos?!...
- Não sei meu Tenente...
- Galgómetro, nosso Aspirante!... Galgómetro!...
As gargalhadas, já impossíveis de reprimir, soltaram-se como uma prateleira de cristal estilhaçada, alguns agarrando-se às barrigas, as lágrimas deslizando nas faces por um sufoco há muito controlado. Trocaram-se abraços, esvaziou-se uma garrafa de Logan, discutiram-se as peripécias da brincadeira e conheceram-se origens por entre risos intermináveis.
Ia adiantada a hora quando o João, erguendo um copo, gritou: «Malta! A partir de agora somos os fronteirómetros de Chaves!»
Final.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
- Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.
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