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2/08/11

OS FRONTEIRÓMETROS - 1

Quando, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, lhe entregaram um impresso para indicar três Quartéis onde gostaria de ser colocado, depois de terminado o Curso de Oficiais Milicianos, o soldado cadete João coçou a cabeça e pediu para entregar aquele no dia seguinte. De noite, na caserna, depois da instrução nocturna, enquanto o sono não se apresentava, magicou no caso. Tinham de ser terras onde houvesse Destacamentos de Infantaria. Porto foi logo a sua prioridade. De lá tinha sido arrancado, o curso de Economia no início, e gostaria de regressar à velha cidade granítica, mesmo que por escasso tempo, pois, sabia-o, mais tarde ou mais cedo, abalaria, num barco qualquer, para uma frente da guerra colonial. Era uma circunstância sentimental, uma maneira de regressar aos velhos lugares, embora com uma farda. A segunda hipótese levou-o a Vila Real, onde, em tempos, no 13, o seu Pai cumprira a obrigatória servidão militar. Seria interessante pelo simbolismo e, como ficava a escassos quilómetros de casa, podia, até, ir e vir todos dias, excepto aqueles em que a Ordem de Serviço o colocasse na escala. Mais difícil foi acertar com a terceira opção. Excluída Lamego, não coadunável pela sua especificidade, além de não estar fadado para Ranger ou travessias de rappel, sobrou-lhe Chaves. Nesta cidade raiana, na década de sessenta, quadra em que esta narração decorre, localizava-se o Batalhão de Caçadores Especiais 10, com o epíteto de fronteiros de Chaves, sempre excelentes e valorosos, unidade com fama de dura e rigor militarista, tanto na corporação castrense como nas margens da sociedade civil que, de algum modo, lá tiveram ou tinham familiares. João, também, não o ignorava, mas devia completar o quadro das três preferências, sempre confiante que, se não lhe satisfizessem a primeira, a segunda, ao menos, não lha recusariam. Com essa esperança fez as malas e partiu para casa, mal lhe deram a bicha de Aspirante, a aguardar futura ordem de marcha. Pouquíssimos dias depois, com um indisfarçável sorriso e sem espanto – que, das coisas militares, ele já de nada se admirava - , o carteiro entregou-lhe uma carta onde vinha a convocatória do Exército para se apresentar em Chaves.

Numa reluzente manhã domingueira de Julho do ano de sessenta e seis, ao fundo de uma frondosa Avenida, em meia-lua espaçosa, viu o seu novo destino, admirando-se por, logo à primeira vista, dele ter gostado. Saiu do automóvel emprestado pelo Pai, correspondendo, ufano, à apresentação de armas do sentinela, e solicitou esclarecimentos ao Sargento da Guarda. Se pelo brilho do dia, pelo descanso da incógnita acabada, ou a frescura do edifício, foi satisfeito que estacionou o carro no parque, fez as apresentações ao Oficial de Dia, arranjou quarto, pousou a mala e percorreu, sozinho, as divisões da sua nova casa. O Quartel, reverberando ao sol, fazia-lhe esquecer a soturnidade conventual da Escola Mafrense, que, em depósito de meio ano, sempre lhe lembrara penitências de castrados fradescos, cumprindo, envoltos na escuridão, martirológios irracionais. Agora tinha, apesar da sua condição de milícia forçado, o calor e a brancura de um espaço que o aprazava. Mal ele sabia, infante ingénuo e generoso, que dentro daqueles muros, com um punhado de iguais, cozeria, no seu mais feliz período militar, o alimento puro e belo da amizade perdurável.

Em posição altaneira à cidade, como se velasse pelas suas gentes, costas defendidas pela Serra Amarela que se estendia, numa esquerda longínqua, para se grudar à cordilheira Castelhana, o Batalhão tinha uma ampla Porta de Armas, acedendo-se ao Comando e respectiva Messe de Oficiais através de uma escadaria bordejada por canteiros de verdura ou por dois curvilíneos arruamentos empedrados subindo ligeiramente. Atrás daquele, uma enorme Parada, impecavelmente limpa, com as casernas laterais, e, no cimo de uma pequena elevação cimentada, o Refeitório das Praças com a Messe de Sargentos ao lado. Depois do almoço, João desfardou-se e resolveu dar uma volta pela velha urbe onde Trajano deixara história. A apresentação ao Comandante da Unidade, dos Aspirantes esperados, seria feita na manhã seguinte, assim como a atribuição das tarefas futuras. Desceu a pé a Avenida que subira de manhã; passou no largo, onde, todos os anos, se amontoavam os feirantes da festa dos Santos; desaguou no jardim do Tabolado, em frente ao Liceu, e entrou no Aurora. Sentou-se, pediu um café, mirou e remirou o ambiente. Numa mesa do canto, escutado por uma tertúlia de catecúmenos, viu Nadir Afonso, que conhecia dos suplementos literários, de barbas grisalhas, provavelmente em vilegiatura flaviense. Reparando, descuidadamente, num jornal abandonado em cima do balcão, levantou-se, pegou-o, perguntou «Posso?», ressentou-se e, afastando a chávena, abriu-o sobre a pequena mesa redonda: era o Notícias do Tâmega. Sobre ele se debruçou, fingindo compenetrada inculca, mas reparando sempre em quem saía ou entrava. Deixou-se estar um bom bocado, pernas cruzadas, queimando cigarros. Eram bonitas as raparigas de Chaves... Depois, desceu a Rua de Santo António, virou à direita para as Termas, visitou a zona dos balneários cheia de aquistas que se amornavam nos bancos a fazer horas para a ração da água, retrocedeu para a Ponte Romana, sob a qual um Tâmega estival corria serenamente para a lonjura do mar, e reiniciou o trajecto ao contrário junto do posto da PVT. Os domingos não são bons dias para se perceber uma cidade, ausentes as rotinas, as surpresas e o nervosismo do quotidiano utilitário, mas pareceu-lhe – confirmado pelos meses seguintes - que Chaves era uma cidadezinha aconchegada, de conhecidas vizinhanças, limitada pelas faldas dos serros circundantes, onde, contudo, fervilhava um próspero comércio e um tolerado intercâmbio fronteiriço, um sopro suave e morno de fraternidade embrulhado num orgulho regionalista.

Quando regressou ao Quartel, deu, num abraço de risos e brados, com o Bandeira, seu antigo companheiro do Brotero, agora reencontrado em outra sorte. Pela noitinha, quanto viam a RTVE na sala da Messe, juntaram-se-lhes, vindos do Porto, entre outros, o Altino e o Ângelo que, feitas as apresentações, vá-se lá saber por que resultado afectivo, logo combinaram ficar no mesmo quarto de quatro camas e que tinha o número doze. João sentia necessidade de partilha, como se procurasse almas gémeas em que confiar. Boa parte da noite passou-se no desenrolar das experiências mútuas, numa pressa de conhecimento que selasse um pacto.
Continua...

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

2/02/11

AUSÊNCIA

Não sei há quantos anos - talvez desde que me conheço – que transporto uma imagem-memória sem definição.
Bem me esforço por lhe encontrar a forma, a cor e o conteúdo, mas, sempre em vão.
Nessa procura me perco sem relógio, num suor pegajoso, numa dor de impotência, numa íntima aflição.
São momentos de luta interior que tanto ocorrem numa noite de espertina ou na balbúrdia do dia, sem resposta para as minhas dúvidas, convencido de que nunca alcançarei o descanso da solução.
Umas vezes, aquela imagem surge-me num revivalismo do já experimentado, mas, quando a aprofundo, logo se me dissipa a objectivação e tudo é engano, mistura de pensamento e de lembrança no esbatimento da monotonia.
Tanto me aparece no roxo da revolta como no rubro da injustiça, no negro da ingratidão como no cinzentismo da apatia.
Tanto chora numa premência de tristeza como grita numa brevidade de alegria.
Há, porém, uma minúcia que já apreendi: o sentimento da ausência. É isso: a ausência como uma fome nunca satisfeita, uma falta insuprível, um espaço sem tempo e sem modo, continuamente à espera de quem a possa preencher.
Será a ausência de uma alma que na minha se devia encaixar? Será uma incompreensão atávica perante a frieza de um mundo que não há meio de entender?
Será uma desarmonia entre uma época sem sentido e uma consciência inadaptada?
Um vazio, aquém (e além) do nascituro, como se o corpo fosse apenas o invólucro de um nome destinado ao cumprimento de uma obrigação gerada?
Mas se, afinal, isto não se explica, por que buscar, então, no intervalo da vida e da morte, a pacificação do entendimento, essa imagem-memória, se ela é uma ausência ausente, que é o mesmo que afirmar uma incapacidade racional – não uma subjectivação incomunicável -, uma omissão que se sofre no envelhecimento de um retrato que escurece tão veloz que só damos por ele quando o espelho se fende?
Vem-me de longe essa nuvem, esse tempo sem tempo, como uma sombra dos dias, como uma angústia de exílio. Queria-a na sua substância, demorar-me na sua presença para a saber inteira, porque só assim decifraria o seu sentido no relacionamento comigo.
Bastava detê-la no meu (e no seu) conhecimento e, depois de esclarecido, largá-la definitivamente.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

1/19/11

A QUINTA DO PINHEIRO MANSO

O Dr. Fonseca - Fonsequinha para os da sua criação - quando chegou à Quinta do Pinheiro Manso – assim chamada por ter na sua extrema mais distante uma dessas gigantescas árvores pináceas - estacionou o carro ao lado da porta do armazém. Atravessou a estrada e sentou-se no muro, de costas para o pomar do Branquinho. À sua frente, a fachada de cantaria com uma varanda ao meio, ladeada por duas janelas, e uma águia real no cimo do telhado. Era uma sensação esquisita, um misto de deslumbramento pelo regresso satisfeito e saudosismo de um passado de adolescente. Lembrou-se daquela madrugada em que se sentara, com a Mãe e o irmão Armando, mais novo dois anos, no assento traseiro do velho carro de praça do Álvaro (um Ford preto, lembrava-se como se fosse ontem) com o Pai ao lado deste. Tinha quinze anos e nunca esqueceu as lágrimas da Mãe, grossas e ininterruptas por um abandono contra a vontade; o Pai, percorridos uns metros, virara-se para trás, numa despedida final, os olhos húmidos num rosto atraiçoado. Até Lisboa, foram horas de solavancos e paragens, atrás de uma velha Bedford, guiada pelo primo Zacarias, a abarrotar de móveis e trastes velhos.

Estava de novo ali, dono, agora, do que deixara, forçado, há quase meio século. Muitos anos, tantos que os Pais já dormiam o sono de que nunca se acorda. Gostava de os ter ali, para, num minuto que fosse, substituírem as lágrimas de amargura pelas de alegria. Solteiro por opção, ou, como costumava dizer, por racionalidade - pois desistia dos namoros quando desconfiava do aproximar do ponto de não retorno -, não tinha ninguém com quem partilhar o momento. Apavorava-o sempre a perda de independência, aquela liberdade de movimentos que a comunhão selada exclui. Reajustava conquistas novas, já que, bem parecido e bolsa suficiente, a dificuldade era seleccioná-las. Sem o confessar, era um daqueles misógamos para quem uma fidelidade não passava de uma coacção dos comportamentos.

Em Lisboa, mais precisamente, na Portela, que, naquela altura, era quase um subúrbio, nas imediações de um Quartel de porta de armas em rodopio constante, instalaram-se numa casa apalaçada de família pequena que lhes alugou uma ala por recomendação de amigos comuns, donos de uma grande loja de tecidos e que ajudaram o Pai a reencontrar hábitos negociantes pelas feiras das redondezas da Capital. Ainda esperaram uma pequena quota de sociedade em homenagem às riquezas antigas, mas nem mesmo as afinidades criadas com o baptismo de um filho lhes estimulou o gesto. Com uma subvenção fixa e as comissões angariadas, Fonseca – Fonseca Maria da Silva, adiante-se desde já – ia sustentando os estudos dos filhos e a Mulher que, longe da criadagem em que fora nascida, gemia recordações num meio sem raízes. Todas as noites, a uma mesa despida de fartura, Fonsequinha, misturado em comiseração e raiva que lhe despertavam ganas de um dia poder resgatar a humilhação, ouvia o Pai mastigar o pão e a sua história.

Granjeara fortuna a vender baga de sabugueiro e volfrâmio sem saber a quem. Os de negócio igual, uns, diziam que era para os Alemães, outros, para os Ingleses. Entregava a mercadoria numa casa exportadora do Porto e pouco lhe importava o destino desde que o dinheiro – coisa sem rosto e sem fala – viesse. Comprou carros e cavalos, lameiros e consideração. Um dia, soube que a Quinta do Pinheiro Manso estava à venda. O dono, viúvo, velho e com o único filho enterrado pela pneumónica, queria-se desfazer daquilo. Homem de pormenores e feitio perfeccionista, Fonseca da Silva gastou tudo o que tinha para a transformar num brinquinho. Se já gostava dela quando ainda nem pensava em comprá-la, agora era a menina dos seus olhos. Tinha finalmente uma Quinta que, mesmo sem benefício, lhe dava estatuto de Lavrador. Quando lá se instalou, vindo da modéstia de Chãos, sentiu um prazer quase carnal.

Milhares (Felisberto de pia baptismal) era alcunha que se lhe pespegara como uma sarna, depois de herdar, de um tio brasileiro, meia dúzia de mercearias Paulistas e uma porção de cruzeiros com demorada contagem. No lado de lá do Atlântico, em requintada estadia, vendera tudo e apresentara-se em Santa Maria de Chãos, povoado vizinho de Lamaçal, num Buick amarelo descapotável com espaventosos cromados e pneus pintados de branco. Não precisou de esperar muito para se tornar, com desapiedada usura, em abastado proprietário de quintas aconchegadas. Emprestava dinheiro a juros contra a hipoteca dos bens dos aflitos. Estes, ultrapassados os prazos e exauridas as finanças, entregavam-se à frieza da Lei e do Milhares. Após algumas hesitações, o agiota fixou-se numa virada ao rio que, num donaire nunca visto, ornamentou com graciosos globos brancos, iluminando, todas as noites, os socalcos tratados a primor. Terreno sem muitas cepas, que, essas, tinha-as ele em outros lugares da Rota, era, antes, assim a modos que um símbolo heráldico de abastança desforçada, acrescida do direito de tratar uma boa dúzia de pipas em cada vindima. O povo crismou-a com o nome de Quinta das Bolas, mas, ele chamava-a de Quinta das Luzes.

Em desfavor do costume nos herdeiros colaterais, em que uma herança surge como uma lotaria inesperada, Milhares ressabiava-se por quem lhe tolhesse uma ambição. As terras do Pinheiro Manso eram um desses bocados que ele, há muito, idealizava na sua posse. Apreciava-lhe a localização, à beira de estrada, perto da Vila, com água à fartura. Tinha tanto que mandava vir das mais caras casas do Porto – por vezes, também, eram as melhores... – tudo o que necessitava ou negligenciava. Pagava ao Quim, chauffeur de sua estima, uma quantia mais ou menos correspondente à sua safra diária, e, pela noitinha, lá estava ele a descarregar a mercadoria. Se fosse dia de bom clima, Milhares pedia-lhe ajuda para meter os carros na garagem, pois, nessas alturas, ele costumava expô-los ao ar livre para que as latas não apodrecessem com a humidade e não tivesse que cegar erva nos tapetes. O Buick, tirando um ou outro domingo de festa, dormia o sono dos desaproveitados; o Dodge era feio demais e só servia para justificar a amplitude da riqueza; o Boca de Sapo, qual banheira a flutuar no alcatrão, servia-lhe para as idas ao Café ou às feiras semanais.

Dono de uma artimanha que, felinamente, conjugava com a espera paciente que lhe traria a vítima, adulou o Fonseca. Convidava-o para jantar, prendava-lhe os filhos, e, por tudo e por nada, estava sempre a dar-lhe os parabéns pela excelente compra que fizera. Visitavam-se reciprocamente e jogavam o dominó em serões de risota. O fingimento escapa sempre à boa fé, principalmente quando aquele se disfarça nos sorrisos e nos logros sem pressas. O ganho de uma confiança nunca se conjectura maculada, pois, se a pobreza gera guetos, a riqueza define natas e estas não aceitam, pelo descanso da fortuna, as hipóteses das surpresas. A Mulher - de seu nome Deolinda – dona de um faro apurado da suspeita, quantas e quantas vezes lhe dizia: «Fonseca, cuidadinho com o Milhares que ele não dá ponto sem nó!» Ora, esse tempo ainda era dos homens e as mulheres serviam para a cama, a cozinha, a criação dos filhos e todas as suas opiniões sempre cortadas pelo dizer da época: «Vê se tratas das panelas e dos filhos que já fazes muito.»

Assinado o Armistício e repartidas, como trofeus de caça, as nações derrotadas, a esperança do fim dos racionamentos e de uma paz duradoura só entusiasmou os fartos da miséria e do medo. Portugal não entrara na guerra, mas, todas as guerras, zunem por perto, mesmo aos não beligerantes. Sem armas ou bombas para sustentar, inventariadas novas prioridades e consensualizados outros desígnios, o volfrâmio deixou de interessar e as valas serranas cobriram-se de restolho. Secas as fontes dos rendimentos, muitos agregados demoraram a fazer contas. Desprevenidos, porque os que lucram com aquelas nunca pensam que elas terminem do modo inopinado como começaram, puseram-se a olhar uns para os outros a ver o que cada um fazia. Ouve quem se suicidasse por dívidas ou incapaz de imaginar penúrias; quem deixasse a nascença para esconder a vergonha na indistinção longínqua; quem se consumisse na depressão das mãos atadas, à espera de que uma luz lhe trouxesse uma esperança para ajudar a sobrevivência; quem, de algum dinheiro guardado, erguesse, nos terrenos que alimentaram as armas, pomares de macieiras, com o bravo de esmolfe em preponderância; e quem, de bolsos cheios, se preparasse para ouvir as sirenes das privações alheias.

A casa tinha um aspecto geral de desleixo. Fonsequinha notava-lhe a frontaria pincelada de nódulos negros, as portadas descoloridas, os ferros amarelecidos de ferrugem, os beirais apodrecidos e, até, a águia deixara de ser branca e o seu bico adunco. À esquerda, a antiga cavalariça, entre a casa e o muro que sinalizava o carreiro que levava aos lagares, era um montão de destroços disfarçado nas ervas. Pela amostra, os filhos do Coronel tinham deixado aquilo num estado deplorável. Não se arrependia, contudo, do cheque que lhes dera. A reparação de uma vida não tinha preço.

Os carros, ao passarem, abrandavam a marcha e as cabeças, lá dentro, viravam-se com aquela cara de quem diz: «Olha o Dr. Fonseca! Parece ele...» Ia, esporadicamente, a Lamaçal, para, a pretexto de cumprimentar os parentes afastados, se mostrar, avivando-lhes – pensava ele – velhos remorsos por nunca terem dado um passo para ajudar os seus Pais. Dava-lhe um certo prazer surgir-lhes advogado famoso, enquanto eles continuavam debruçados sobre os pomares. Algumas demandas por ali tinha resolvido e a que melhor recordava era uma questão de águas verrinosas do Manuel Francisco. Pensou em lá dar um salto, tomar um café ou comprar regueifa na padaria, mas, desistiu quando se lembrou do seu velho professor de Reais que dizia a cada passo: «A posse só é grande quando não nos altera as feições.»

Meteu a chave no portão, subiu a meia dúzia de lanços e viu-se no quintal da sua infância. O cimento substituíra a terra, a horta estava uma estrumeira de esquecimento e o tanque, coberto do piolho das laranjeiras, rodeado de frutos putrefactos pelo chão. Sentou-se nas escadinhas junto da porta de casa, puxando de um cigarro, e ali ficou a saborear o prazer com receio de o esgotar.

O Pai ainda aguentara um tempo largo as tacadas da precaridade. Constrangido, dispensou assalariados e ficou só com dois, os mais velhos e dedicados. Recorreu ao sogro que lhe abriu os braços e, depois, acossado pelos gastos, ao padrinho que, a muito custo, lhe esticou uns dedos como quem dá uma esmola. Um dia abriu-se com o Milhares. Que sim, não havia problema, só tinha que dizer quanto queria e «vamos ao Cartório fazer um documentozito, porque há viver e morrer». A Deolinda, mal soube, disse logo que não assinava. Antes comer pão e sardinha a entregar-se nas mãos daquele «safardana». Milhares, que via chegar a hora da sua desforra, ajudou ao convencimento que, valha a verdade, pouco custou, tais eram os apertos. Quando, passados uns tempos - ano e meio, mais mês, menos mês - , a nora deixou de rodar e o pão já não se cozia, Fonseca Maria da Silva entregou as chaves da Quinta do Pinheiro Manso nas mãos de Milhares e abalou com a Deolinda e os filhos para Lisboa.

O Dr. Fonseca sentiu as pernas a tremer, uma neblina nos olhos, uma friura a arrepiá-lo. Levantou-se, mas teve que se sentar logo. Apetecia-lhe gritar, qual vulcão explodindo numa fúria vermelha depois de anos e anos a fermentar. Deixou-se estar, mesmo que a pedra lhe desconfortasse as nádegas. Aspirou o ar, tentou dominar-se, expulsar aquela rolha que lhe tapava a boca, mas era mais um carpo no meio do peito. Viu-se num triciclo de madeira, para cá e para lá, saltando nas pedrinhas, a barafustar com o irmão, a água deslizando nos regos dos feijoeiros, do cebolo, das tronchas e das alfaces. Entrou na casa, mais sereno, e um cheiro a surro e a mofo empestou-lhe as narinas. Os seus passos ecoaram com aquele sobressalto que as casas abandonadas têm. À esquerda, era o quarto dos Pais com as duas janelas que tanto davam para o pomar e a largueza da serra como para a estrada que permitia ver quem vinha de Lamaçal. No soalho, pó e lixo velhos amontoavam-se como se por ali tivesse passado, há muito, um bando de assaltantes; nas paredes escorria uma humidade putre, igual a um visco cavernoso. Abriu, ao sol da tarde, as janelas laterais que davam para os lagares, por entre barulhos de gonzos, algumas de vidros partidos com pedaços de papelão esboroado. No que fora o seu quarto deu um salto para trás: uma ratazana, do tamanho de um coelho, por entre uma restolhada de cal e papéis enegrecidos, escapuliu-se por um dos buracos do chão, junto à parede onde era a sua cabeceira. Aqui conhecera a puberdade e massajara os primeiros pêlos, os desejos escondidos e masturbados a pensar nas mulheres que via; era o seu refúgio quando os Pais discutiam por razões que só mais tarde percebeu, adormecendo embalado pelo sussurro das águas. Na sala de jantar espalhavam-se restos de jornais e – pasmou-se – uma ceia de Cristo, daquelas que se compram nas feiras, dependurada na parede. Na marquise, onde, com o irmão, se entretinha nas tardes de invernia, surpreendentemente, os vidros estavam todos, mas não havia, sequer, um vaso de planta murcha. Na cozinha, uma mesa desconjuntada, em cima da lareira, e um pote imundo ao canto, os canos soltos, por cima da banca, fora das anilhas de suporte. Saiu e sentou-se, de novo, nas escadas. Percebeu-se só.

Em Lisboa, Fonsequinha licenciara-se em Leis, acabando por ficar no consultório onde estagiara, sempre à espera da primeira oportunidade de se emancipar. Quando a Mãe lhe disse adeus, o Pai demorou pouco a fazer o mesmo. A necessidade desunia-os com frequência, mas eram um daqueles casais em que, quem sobrevivesse, resistiria pouco ao vazio do outro.

Combalido, orfão de tudo, desamparado numa cidade sem coração em que a prosperidade estava sempre nos mesmos, resolveu, com alguns contos amealhados, vir para a terra das suas origens tentar saldar a sua obsessão. Foi à Farmácia, onde Armando, já casado, labutava como ajudante técnico, e propôs-lhe irem «lá para cima», repetindo-lhe a sua ideia tantas vezes confidenciada. Quando o irmão, num riso de troça, lhe disse, perguntando: «Não te passa mesmo essa ideia, pois não?!», Fonseca virou costas e partiu.

Montou banca na Régua, hospedando-se na Pensão Borges até comprar apartamento na parte alta da Vila. Ganhou nome a defender homicidas que ele transformava em contrariados matadores em legítima defesa. Bulha de navalha que desse sangue ou morte em qualquer redondeza aldeã, enchia-lhe a sala de espera do consultório. Ele ouvia, ouvia, uma pergunta aqui, outra ali, para adornar, torcia o nariz, «Senhor Doutor, gaste-se o que se gastar!», cobrava os preparos, calculando os prazos processuais, combinava a data para o adestramento das testemunhas e apontava todos os passos dados. O seu crédito alastrou a casos de heranças fartas, minadas por insanáveis disputas familiares, que abrangiam, conforme os interesses defendidos, avaliações de gordas ou magras tornas; a compras e vendas de terras de usucapião complicado e paternidades melindrosas, provocadas, em ventres de moçoilas pobres mas de boas carnes, por endinheirados de prepúcios avidamente esgaçados. Isso autorizou-lhe o capricho de comprar uma quinta no Alto Corgo, coisa de cinquenta pipas e perto de uma dúzia de benefício de letra A.

Um dia, conferindo os seus extractos bancários, resolveu que iria ser Advogado Livre, tomando conta só dos casos irrecusáveis. Tornou-se, então, negociante de vinhos a tempo inteiro. Era um sonho que o perseguia desde que soube da saga do seu Avô materno, esfalfado a trabalhar para ganhar só para o sustento, sempre aflito a implorar a venda da novidade por um preço espezinhado, à mercê das Casas Exportadoras, numa hostilidade tão gritante que, mais do que uma desigualdade negocial, era uma humilhação tão grande que até revoltava o mais sacripanta. Aprendera que a viver só do granjeio das vinhas não se saía da cepa torta e tinha pena daqueles iludidos que, por possuírem muito milheiro, se julgavam ricos.

Engendrou a teia dos seus conhecimentos, peneirou hierarquias administrativas, comprou resistências sem rosto, comissionou consciências sem doutrina, e não se importou, algumas vezes, de perder, prospectivando lucros, abdicando dos imediatos. No Porto, na margem esquerda do Douro, os descendentes da velha Albion, quando, ao princípio, lhes soaram os ecos compradores do causídico, virado negociante vinícola, não ligaram, entendendo-o como mais um lunático que resolvera distrair a fortuna numa fanfarronice propagandista. Os sinos das suas capelas só tocaram a rebate quando, em cima dos seus stocks envelhecidos, retiniu a loucura do Dr. Fonseca. Este, num lance de tremendismo comercial, comprara milhares de pipas a Adegas aflitas com os pagamentos atrasados aos seus associados e espremidas pelos juros dos empréstimo bancários. À quantidade juntou-lhe a invulgaridade do preço, triplicando o que corria no mercado e pagando a pronto. Nunca se vira uma coisa assim. As Adegas escancararam as portas às filas dos sorridentes lavradores, as agências financeiras acertaram os créditos vencidos, os tribunais arquivaram processos de dívidas, caiaram-se casais escurecidos, as lojas voltaram a vender os químicos e os pulverizadores retornaram com o remédio azul. Os velhos senhores da Região, rotinados na obediência às suas leis e ao tabelamento dos seus interesses, reuniram-se de emergência nos veludos das sua Associação. Nada decidiram, resolveram esperar, porque, se por um lado, aliavam argumentos para nem uma pipa comprarem ao preço que o Dr. Fonseca instituíra, por outro, tinham os mercados externos à espera e as existências para renovar. O tipo não possuía capacidade exportadora e seria cozinhado em lume brando. Em lume brando - sabe-o toda a gente - é como a comida é boa: não se queima e o sabor melhora. O cozinheiro era ele, tinha os géneros, o lume e a paciência. Adquirira, pelas variadas barras em que litigara, a sabença de que todos os riscos devem ter uma rede e os corporativismos não resistem a fendas, por mais sólidas que se assemelhem as irmandades. A Advocacia dera-lhe a medida exacta das coexistências possíveis, das divisões e dos aleatórios das firmezas, sendo que, frequentemente, melhor se explora uma discórdia jacente do que se ajusta um consenso simulado. Fez uma parceria secreta, - um daqueles conluios que se apregoam confidencias e toda a gente conhece - com quem lhe poderia oferecer as vias exportadoras: o Engenheiro Ramiro – estabelecido, há anos, no meio dos que haviam atravessado o Canal da Mancha em busca do eldorado dos montes agrestes -, cúmplice em causas antigas e empatias recíprocas de comuns apreciações às subserviências reinantes. Não era o filantropismo que os movia: aliavam essa aparente magnanimidade às suas vantagens e a uma estranha e avelhada dispepsia do Eng. Ramiro a ligações mal consolidadas com aqueles. Os fundos próprios, nomes e assinaturas abriram-lhes as chaves do crédito. O Dr. Fonseca explorou em Jornais, Televisões e Rádios a vitimização regionalista, aliciando serventuários mal pagos e habituados a lautas mesas, subsidiou clubes de futebol e romarias, angariou espantos e simbologias e jogou na Bolsa embalado pela euforia primaveril do Marcelismo. Quem vivia à sua sombra não o discutia, quem lhe invejava os voos caçoava-o, quem sabia e podia interpretar a vida com a distância dos solventes dividia-se: os tolerantes apreciavam-lhe o rasgo, os radicais censuravam-lhe a aventura. Na Classe, de que se afastara, chamavam-lhe Poeta. Ficaram célebres algumas defesas em que, a propósito das figuras dos réus, seus contextos familiares ou perfis psicológicos, desatava a recitar poemas em fulgurância declamativa: de António Nobre a Guerra Junqueiro, de Cesário Verde a Régio, tinha sempre na ponta da língua os versos que melhor se ajustavam ao caso julgado. Os Meritíssimos, esses, ou encaixavam um sorriso benigno ou, mais acrimoniosos, interrompiam a escusabilidade, logo obedecidos com uma frase terminal: «Tem toda a razão, Meritíssimo Juiz, para que hei-de estar a recitar o que toda a gente conhece?...» Admiravam-lhe a rapidez de raciocínio, mas, encolhiam-se perante o excesso que o acompanhava; impressionava-os o seu modo de olhar, como se lhes esquadrinhasse as entranhas a adivinhar o que pensavam. Tinha a observação de um alquimista e a generosidade inconcepta, que poderia passar, num minuto, do agrado cativante à irascibilidade que afugentava. Pelo escritório, os empregados passavam como meteoros. Alguns nem esperavam o fim do mês. Ainda mal determinara uma tarefa já estava a mandar fazer outra; nada estava bem, punha defeitos em todas as cartas, em todos os modos de atender a clientela, sempre inquieto e insatisfeito a repelir o mundo; falava aos sopetões como se atirasse injúrias. Nas fases em que acordava diferente, envolvia-se em sorrisos e atenções como quem repara erros, mas, já poucos acreditavam nessa sinceridade. Nem os colegas poupava em apreciações profissionais desprimorosas. Não escapavam, a muitos, estes desconsertos histriónicos e a dúvida de um comportamento bipolar fixou-se em alguns. Conquistou a fama tanto de intratável quanto de magnânimo. Ao ostracismo perjurativo correspondia, em porção igual, a adulação incontestável. Os que lhe percebiam o trauma, uns, suportavam-no; outros, afastavam-se para não lhe aturarem os caprichos; outros, ainda, aproveitavam-se das suas intempestivas munificências, fingindo que o estimavam.

Fonseca continuava sentado, envolto pela mornidão da tarde. Não era só os Pais que ele queria vivos, era, também, o Milhares, para o trazer ali, mostrar-lhe o que, pelos vistos, ele nunca soube: que a vida é curta e tudo se paga aqui.

Quando o Milhares morreu, sem descendentes, falha que, aliás, nunca se amofinou por suprir, a D. Lucinda, viúva consolável (já que em casada fora sempre inconsolável), ainda aguentou uns bons anos o Pinheiro Manso, ríspida com os trabalhadores e a contabilidade caseira. Podia, finalmente, berrar sozinha para as paredes e para os gatos que lhe povoavam a solidão: «A miséria desta casa que nem benefício tem para, ao menos, ajudar a pagar o sulfato!» Não faltava cabimento a D. Lucinda, cara de coruja e peitos marsupiais caídos em desuso. Quando ficaram com a quinta do Fonseca, como paga do empréstimo, bem azucrinara os ouvidos do marido: «Mais do que o gozares a vida, ganancias-te na ambição! Só tens dinheiro! O resto falta-te tudo! Vais com ele para a sepultura!» Milhares aparava a agressividade, sem qualquer resposta ou esboço, com um silêncio de mocho desconfiado da sua fertilidade.

Dinheiro não levou Milhares quando morreu, porque a fortuna dele eram terras e para a terra foi ele. No cofre estava um monte de notas que, bem feitos os cálculos, daria para um granjeio. A viúva tratou de vender o que entendeu supérfluo, incluindo os carros no rol, “para que preciso eu deles se nem sei guiar?!“, fez constar que a Quinta estava à venda e deu ordens ao João, velho caseiro de há mais de vinte e cinco anos, para que, ao primeiro interessado, lhe telefonasse. Mudou-se para a Quinta das Luzes, nunca as acendendo; ao menos aqui tinha direito a alguma litragem, esse milagre histórico salvador de inglórios lavradores.

D. Lucinda chegara à idade em que não se contam os anos porque eles deslizam tão depressa que já não se notam ou não se desejam lembrar. Visitava-a, agora, muito, um sobrinho do Porto, filho que a irmã Florinda parira num engano de menopausa de que já se arrependera vezes sem conto. Estabelecera-se, há muito, com o Esdrúbal, seu marido, numa mercearia próspera na zona da Lapa do velho burgo tripeiro. António – assim se chamava o engano – não fora bafejado nem pela beleza nem pelo resto. Era mesmo o espelho de um trágico erro uterino. De uma esperteza de chico ordinário, falava com perdigotos e ria-se desbragadamente. Mal aprendera a ler e a escrever, à custa de palmatoadas e porrada de criar bicho, mas empedava-se que sabia o suficiente para contar as notas. “Cá para mim, estás à espera que eu morra “, falava consigo a D.Lucinda quando o via chegar do Porto. Recebia-o bem, fazia de conta que aceitava  aquele «venho fazer companhia à tia», perguntava pelos pais e dava-lhe o que tinha à mão, não consumindo a Isabel, criada que envelhecera com ela e que a acompanharia até à morte, deixando-lhe, como prova de gratidão, umas leiras nos arrabaldes de Lamaçal.

Quando o caseiro telefonou a dar recado de que o Senhor Coronel do lugar do Alto queria falar com ela sobre a Quinta, mandou-o transmitir-lhe que, como andava muita ocupada com a cava, ela o contactaria para combinar uma data. Bem lhe custou a patranha, mas, tinha que usá-la não fosse ele pensar – o que não deixava de ser verdade - que a apanhava com sofreguidão de venda.

O Coronel Silveira, mais conhecido pelo nome do eremitério onde residia, sito num desvio da estrada de Goudalim, era um velho militar reformado que passava por ali grandes temporadas, principalmente quando o tempo começava a aquecer. Não se notava muito, de parcas falas, praticando uma vida anódina e distante. Só o carro, estacionado junto à porta da casa, anunciava a estada. Vivia em Lisboa, onde servira em altos cargos, constando que passara pela Índia. Tinha dois filhos, ambos economistas, que pouco ligavam à casa do Alto, a não ser por Agosto sempre embasbacados diante das urzes.

Um dia, passava Silveira pela estrada de Lamaçal, viu aquele casarão desconsolado e, parando o carro, inquiriu a um homem, sentado no muro, a quem pertencia. Quem lhe falou foi, precisamente, o caseiro que lhe papagueou as instruções de D. Lucinda. «Gostaria muito de falar com ela, podia-me interessar.», abreviou o velho Oficial.

Quando se encontraram por entre salamaleques cerimoniais e uma vistoria prolongada à casa e pertenças rústicas, o preço foi acordado e, ao outro dia, formalizada a escritura. O Coronel do Alto, espantado com a rapidez do negócio – ele que, como militar, estava habituado a dilações solertes -, fez questão, com a aquiescência de D. Lucinda, de convencer o João a manter-se à frente da Quinta. Pouco depois, dando-lhe umas breves instruções, que o regresso seria rápido, rumou à Sede do Império para combinar com os filhos a divisão das canseiras.

O Dr. Fonseca, antes que anoitecesse, resolveu dar uma volta pelos terrenos do Pinheiro Manso. Passou pela mina onde caçara lesmas com o irmão, deu ao caminho que separava a Vinha de Cima da Vinha de Baixo, observou os escombros do que fora, no seu tempo, a casa do Feitor e chegou, depois de uma ligeira subida, ao velho soito que dava castanhas tão boas que até as assadeiras de domingo as compravam ao Pai. Se as vinhas tinham o aspecto de gastas antes do tempo, aquele só o era porque, acima das ervas, das silvas e do entulho, se erguiam as copas dos castanheiros. Regressou à casa enublado de recordações que vinham duma distância perdida. Ouvia a voz do Pai, em cima do muro, chapéu de palha na cabeça, a controlar o pessoal, enquanto ele, de sachola nas mãos, fazia que redrava e os filhos do feitor corriam atrás das galinhas, debaixo dos ralhos da Mãe que tinha uns olhos tão verdes que até pareciam falsos. Os sinais eram os mesmos: aquele cheiro a terra como um perfume de nascença, o murmúrio das folhas das cepas convergente com a brisa dos castanheiros e dos sabugueiros que orlavam as estremas. Afastara-se dos Tribunais e das safadezas dos homens à custa dos quais, afinal, amontoara a fortuna que lhe permitia a permuta, longe dos julgamentos sociais, do fica mal e do parece bem. Ali poderia ser ele, adquirir a dimensão real de todo o ser humano: “pequenino, um átomo na grandeza do Universo, do que conhecemos, não do que existe para além da nossa ignorância, um pedaço de carne em que se aceitou a alma como uma exclusividade sem dimensão”, divagou com os olhos na copa do pinheiro manso. Acendeu um cigarro, queria ver morrer o sol na serra em frente, do outro lado da estrada. Lembrou-se do modo como voltara ali.

Num fim de manhã, na rua dos Camilos da Capital Vinhateira, chegava ele esfrangalhado de uma reunião com o Engenheiro Ramiro em que desfizeram a parceria secreta, entrando no Nacional para tomar um café, deu, de caras, com o Manuel Francisco que vinha à manifestação contra a posse administrativa da Casa do Douro por um alado grupo militar nascido das ramificações revolucionárias do 25 de Abril. No meio da conversa, aquele contou-lhe que a Quinta do Pinheiro Manso estava à venda. O Coronel, pouco após a Revolução, morrera, de repente, em Lisboa. Dizia-se que o desgosto fora tanto que o coração não aguentara. O Dr. Fonseca sobressaltou-se. Um júbilo repentino inundou-lhe o peito, só em pensar “e se eu a comprasse?!“. A altura era má. A sua carteira de títulos, que chegou a impressionar administrações bancárias e seguradoras, ficara, a seguir às nacionalizações, num zero. Dinheiro tinha algum, mas, as responsabilidades, talvez – talvez, porque nunca fizera grandes contabilidades –, o ultrapassassem. De qualquer modo, encarregou o Manuel Francisco de saber quanto pediam os herdeiros por ela. O que ganhara investira na Bolsa. Em todos os aumentos de capital das Empresas subscrevia acções, apostando alto para não correr o risco de os rateios o excluírem. Quando os seus meios não chegavam, a Banca financiava-o de bom agrado. O 16 de Março fora um aviso, embora já tardio, mas a jugulação do golpe convenceu-o da infalibilidade do regime.

Vivia-se um tempo de ajustes, uma daquelas ocasiões em que aos homens duas escolhas se colocam: serem verticais ou camaleões. Fonseca sentia-se acossado e, simultaneamente, moído pela tentação de se ajustar aos novos tempos. Sabia que, se se embrenhasse no jogo das contradições, poderia inverter os efeitos e disso retirar vantagens, aproveitando a reputação e as conivências. A nacionalização da Banca, com o arrasto das empresas agregadas, deixara-o num desespero. A Revolução fora a sua guilhotina. De um momento para o outro, como num assalto nocturno, ficara sem causa de vida; a parceria secreta desfizera-se sobre a coacção dos acontecimentos e dos sortilégios que as sociedades, esgotados os fins, desfiguram. Para o Dr Fonseca acabara um ciclo, vivia a época errada e a disforia amotinara-lhe a consciência. Nunca mais foi o mesmo. Enfiou-se em casa, alimentava-se mal, fumava, o que só complicava a sua arritmia, e esgotava-se a pensar como se deixara chegar ali. Em certas alturas o seu pensar convertia-se num tropel de incoerências que amedrontava. A Marquinhas bem lhe acicatava o apetite, cozinhando-lhe o que ela sabia ser do seu agrado, mas só esgotava pacotes de leite, desconfiado do que lhe punha na mesa. Quem o visitava, alguns cumprindo gratidões e estimulando-lhe euforias antigas, outros pedindo uma opinião e propondo-lhe negócios de recurso, encontravam-no de olhos parados e calado como se um susto lhe tivesse travado a língua.

Quando, do lado de lá do fio, o Manuel Francisco lhe comunicou o preço da venda da Quinta disse logo que sim. Era, pressentiu-o, o último desejo da sua vida: retornar ao chão onde nascera, reparar a expiação paterna e voltar costas à devastação dos seus sonhos.

Quando o sol se foi o Dr. Fonseca deu uma derradeira olhadela ao soito e desceu pela Vinha de Baixo. Meteu-se no Mercedes, cor de café com leite, a caminho do Alto Corgo, a noite já definida. Descendo pela estrada de curvas, recapitulava a decisão que interiormente se consolidara. Não voltaria a dormir naquela casa. Recusava misturar a recordação da sua infância com os fantasmas de gerações estranhas, os resíduos de memórias de vidas que não admirava, cheirar aquelas sobras de almas extraviadas.

Mandou desbravar o soito, ampliando-lhe a vista e o espaço, e transformou-o no lugar do seu arbítrio. Chamou-lhe O Silêncio. O Manuel Francisco arranjou-lhe pedreiro, trolha, mestre de obras, ou lá o que fosse, para lhe levantar, naquele ermo, um arremedo de casa. Não regateou dinheiro para lhe apressarem as licenças e as obras que não queria requintadas, apenas práticas, com o mínimo indispensável. Passados uns escassos dois meses tinha no Silêncio uma cozinha, um quarto com banheiro, uma sala com fogão e uma estante enorme, a toda a largura da parede, com os seus livros. A deslado, amanhara um canil e uma cavalariça. A água vinha do poço inesgotável, à beira da antiga casa do feitor; a electricidade, enquanto não lhe fizeram a ligação, roubou-a a um poste. Ainda pensou trazer a Marquinhas, mas arranjou outra cozinheira, a Zulmira, rogada ao Manuel Francisco, uma viúva antiga que criava os netos de um casamento estragado, a quem entregou um duplicado das chaves. Àquele obrigou-o, num contrato verbal de arrendamento, a granjear-lhe os bardos mediante uma renda simbólica de cem contos anuais que seriam pagos no início de cada ano civil.

As rolas e as pegas traziam-lhe as cantigas do céu. Ao fundo, um precipício de fragas e tojo acabava numa ribeira sem cartografia. Punha-se ali a escutar o canto das perdizes e chamava-as com as mãos em concha. Encontrara o lugar para se retirar dos barulhos do mundo. Homem de crenças, mas, sem grandes metafísicas, importava-lhe o momento que “o futuro é o que nos sobrevive“. Deixou crescer a barba e o cabelo que já nem se sabia onde acabava aquela e começava este. Só os olhos de lince brilhavam naquele negrão. Pedia sempre, a quem o visitava, que lhe arranjasse um cão para, dizia ele, sentir a companhia dos guardadores das almas, o que fez com que, às tantas, gastasse mais dinheiro com eles do que consigo. A uma caravana de ciganos, que avistou no fundo da estrada, ajustou um alazão de traços arábios e trote distinto.

Começaram, então, a vê-lo, com um chapéu de abas largas, colete no Verão e capote no Inverno, pelos atalhos de São Gregório ou pela calçada de Santo António de Chãos, etéreo mas sempre respeitoso a quem o saudava. Todos os dias, horas a fio, como se cumprisse um fado, o Dr. Fonseca desembocava nos povoados depois de se meter nos atalhos mais esconsos da serra. Quando parava na taberna de Lamaçal, perdia-se, com quem estivesse, num copo puxado por um naco de presunto com broa. Pagava as rodadas, cumprimentava a afastada parentela, contavam-se anedotas e sueltos de escárnio político no meio de gargalhadas que estilhaçavam a quietude.

Envolvia-o a auréola que a província costuma recriar, uma voz do povo contada e acrescentada numa necessidade de inventar mitos. Quando ele não estava no Silêncio a ausência aumentava-lhe a alegoria, quando regressava, reavivam-na num pretexto de falatório que ajudava a alterar a rotina.

Admiravam-se de se apresentar numa modéstia de quase mendigo: as botas sempre as mesmas, embora, se percebesse, de boa sola; o casacão de couro castanho – via-se que custara bom preço -, coçado e dobra gordurosa; as calças de cotim rasca, para além do uso, tinham rasgões que lhe escancaravam alguma pelugem; o camisolão, de gola gasta pendente num vinco de surro. A aparência geral era decrépita, dizendo alguns que vestia assim num descuido estudado. Quando lhe perguntavam, numa confiança popular, se precisava de dinheiro para comprar roupa, desatava em risadas sonoras que coravam o perguntante, a mais que os olhos lhe saltavam das órbitas e se enchiam de lágrimas. Quem se costumava meter com ele era o Zé do Mato, assim chamado porque, depois de dois anos nas bolanhas da Guiné, ficara meio maluco e, onde entrasse ou a quem fosse apresentado, dizia sempre: «Apresenta-se o Zé do Mato!», acompanhado de continências apalermadas. Numa manhã em que o Dr. Fonseca passou, num galope de vento, sem lhe dizer nada e a gritar ao cavalo, sentenciou para quem o quis ouvir: «O Dr. está apanhado, mas não é Zé do Mato!»

Se surgia distante e frio, repelindo tentativas de conversa, as pessoas respeitavam-lhe a cala, fingindo que não entendiam. Assim que virava costas, sem cumprimentar ninguém, punham-se a olhar uns para os outros e encolhiam os ombros. Decorriam temporadas sem ir ao casario, refugiado no morro do Silêncio, percorrendo os caminhos com os cães atrás dele, latindo à desolação dos montes; chegava a metê-los numa carrinha azul - que arrematara num cemitério de sucata - e ir, com eles, tomar café à Vila. Era um reboliço com a canzoada cá fora a desafiar os internados que, para não ficarem atrás, ladravam em dobro e arranhavam os vidros, enraivecidos pela clausura. Ele, então, perante o espanto que o espectáculo provocava nos circunstantes, dava grandes gargalhadas que, ecoando na pacovice do Largo, a uns, soavam sinceras e, a outros, despropositadas. Mas havia verdade nelas, porque o riso era-lhe uma conformidade da natureza. Vinha à porta a bata branca do empregado da Farmácia com o x-acto, feito bisturi de comparticipações, no bolso; a do enfermeiro do Posto de Saúde assomava à janela com a agulha da injecção suspensa nas mãos; os reformados do Caminho de Ferro, surpresos, erguiam-se dos bancos do mini-jardim como se uma locomotiva descarrilasse por ali; os funcionários da Caixa Agrícola deixavam de contar o dinheiro dos outros e suspendiam o preenchimento das livranças; os piquetes da Guarda compunham-se como se para uma contingência; os pagadores de décimas aceleravam o dobrar dos recibos; e a criançada pedia-lhe rebuçados que, às mãos cheias, ele tirava dos bolsos. Depois, reenfiava-se na carrinha, o ladrido a amainar, os animais a lamberem-lhe os cabelos (ou a barba?), o pescoço, a gola do casacão, as mãos – todo. Arrancava de sorriso aberto, dizendo-lhes meiguices. Os que o viam, alguns riam de escárnio, mas, muitos mais, comoviam-se.

Gostava de atar uma corda à cabeçada do Cigano - assim se chamava o equídeo – e, de varinha na mão, estar com ele à volta, estimulando-lhe o trote, alegrando-o quando pisava como ele queria, enquanto a matilha, inquieta no canil – para não perturbar o Cigano -, lhe implorava a libertação. O cavalo resfolegava, atirava a cabeça como se quisesse soltar-se, até parar exausto. Fonseca dava-lhe um cubo de açúcar, agarrava-se a ele, festejava-lhe o pescoço e lavava-o com tal carinho que mais parecia um pai a dar banho a um filho; a seguir, enchia-lhe a manjedoura de palha e um balde com água.

Nas noites de Verão, a aragem dos pinheiros a mitigar a brasa do dia, Fonseca escancarava a porta aos cães, sentava-se numa cadeira de verga, assobiava-lhes; eles corriam a desafiar os vultos da escuridão e regressavam, língua de fora, para lhe saltarem para o peito. Com as visitas, as horas perdiam-se em desabafos, recordações de negócios em que ninguém acreditava, traições inesperadas, oportunidades perdidas. Era a sua fase de paragem, em que recuperava o entendimento da realidade, mas que, contraditoriamente, o deixava indiferente perante qualquer possibilidade de regresso. Tinha uma calma estranha para quem lhe conhecia a exuberância, um tédio de tudo como se nada mais lhe interessasse. O Dr. Fernando, seu Médico e amigo de sempre, que ia a Goudalim, a casa dos sogros, nos passeios de domingo, aproveitava, algumas vezes, para lhe dar um abraço enquanto a Mulher desfiava conversas com os pais.
- Fonseca, quando deixas este cu do mundo?!...
- Olha que não cheira mal...
- Há quanto tempo não vês esse coração e esse colesterol? Não te desleixes... O teu irmão está bom?
- Ora... Ora... Diz que jurou nunca mais pôr os pés na terra de que fomos corridos. Estou farto de lhe mandar recados. Aquele tipo não regula bem...

Ficavam esquecidos, a rememorar os tempos de Mafra, de Estremoz e da Fazenda Tentativa, em Angola, a descolonização servida num prato de hotel algarvio, o rumo do País, o virar de casacas de alguns conhecidos. Trincavam uns biscoitos acompanhados de vinho fino, diante das habilidades do Cigano, e separavam-se com promessas de reencontro.

Vivia num tempo descontextualizado e de referências esbatidas. As malhas sociais, aqueles fios que determinam as regras, cortava-as sem esforço porque, bem vistas as coisas, não existiam nos distúrbios da sua consciência; estavam fora da compreensão, aquém ou além da decepção que lhe destruíra os projectos.

Quando os compromissos bancários lhe chegaram pelo correio ou pelos recados dos seus antigos cúmplices, vendeu, sem um arrependimento, a Quinta do Alto Corgo a preço banalizado pela confusão política vivida. Calava de vez os que ontem lhe facilitavam tudo e hoje se preocupavam em disfarçar as cicatrizes do compadrio. Restava-lhe viver a sua pré-história, não odiava, só pedia que não lhe aumentassem o nojo, um asco que lhe subia à garganta e o inundava de pruridos que lhe queimavam as entranhas. Tivera uma vida cheia, tocara o zinco e a platina, pisara a lama e o veludo, experimentara a mesquinhez e a distinção, descera ao opróbrio e subira ao esplendor, conhecera falsos e leais, perdera e ganhara, detestara e amara, afastara e cativara. Podia ter sido sempre grande, adulado e levado em ombros, mas nascera para o incompatível. Há destinos assim: ficam na história como exemplos mal aproveitados. A morte era-lhe uma prescrição da vida; que viesse sem a sentir. Apavorava-o o sofrimento que mastiga a sua chegada. Pragmático até à medula, encolhia os ombros às subtilezas transcendentais e apartava as dúvidas místicas.

No Inverno, passava o tempo no Silêncio, entorpecido pela humidade e pelo frio que castigava o outeiro. Lia muito, com o velho Nordmende sintonizado, baixinho, na estação de música clássica e a ITT que trouxera de Lisboa sempre desligada: a televisão trazia-lhe os ecos de que fugira. Devorava biografias onde procurava retratos de si mesmo; a amargura de outras vidas minorava a da sua. Era um idólatra do judeu austríaco Stefan Zweig de quem já repetira as leituras de Maria Antonieta ou Maria Stuart, Confusão dos Sentimentos ou o Coração Inquieto. Falava sempre dele, e da sua Mulher Frederica, com uma comiseração glorificadora: «Eles não se suicidaram! Naquele ano de quarenta e dois, em Petrópolis, mandaram à merda o desencanto do mundo e do destino!», exclamava para os mais chegados e literatos. Dormia muito, acalentado pelo crepitar das achas na lareira e pela cadência da chuva. Deprimido, esquecia-se até dos animais, e só quando o sol despertava, em clareiras permanentes, se lembrava deles.

Mal a Primavera despontava no rejuvenescer das árvores e no chilreio da passarada, com uns afagos a lembrar que o Verão estava para chegar, recuperava a energia - uma sensação de bem- estar que o convencia de ser dono da terra - e readquiria os hábitos. Um dia decidiu converter o terreno, em volta do Silêncio, num campo de milho. O Manuel Francisco, que o ia cumprimentar quase todas as manhãs, bem o desaconselhou: «Olhe que isto não é terra para milho, doutor!». Ele riu e teimou. Depois de o Casimiro andar lá um dia inteiro, com o tractor, a revolver a terra, espalhou, sozinho, como um semeador bíblico, os grãos numa satisfação que assombrava os passantes. Esgotou tanques de água que espalhava com grossos tubos de plástico. Até de noite calava as cigarras com a rega. Quando acordava, inebriava-se com os rebentos, não se apercebendo – ou não queria aperceber-se - que eram as ervas que lhe fomentavam a ilusão. Nunca de lá colheu uma espiga, mas o importante era a miragem que o alimentava.

De modo contrário ao que viveu, serenamente morreu. Supõe-se que assim fosse porque, naquela manhã de uma quarta-feira de fim de Outubro do ano da graça de 1980, Zulmira, quando subiu ao alto para as lides costumeiras, deparou com um sossego na casa que não era habitual. Os cães ladraram, nervosos, quando a viram, bateu à porta e ninguém lhe respondeu. Pensando em todas as ausências menos na da vida, foi à volta, meteu a chave na porta da cozinha e deu com ele estendido na cadeira-sofá da saleta com um livro aberto no peito sem um arfar, imóvel e cerado. Esticou um grito, deitou as mãos à cabeça e chamou-o naquele derradeiro instinto de que não seja verdade o que se vê. Correu, com o coração aos pulos, para o talude sobranceiro à Vinha de Cima, onde o Manuel Francisco e meia dúzia de homens cortavam os últimos cachos, e pôs-se a gritar por socorro. «Que se passa mulher?! O que é que foi?!», bradou, intrigado. «O Senhor Doutor morreu! O Senhor Doutor morreu! Ai valha-nos Deus Nosso Senhor! Coitadinho dele!!!» Entraram na sala, o Francisco retirou-lhe o livro (era o Coração Aflito), levaram-no para a cama e completaram-lhe o fecho dos olhos. Correu a casa, “a mania deste homem nunca ter querido telefone!”, chamou o Dr. Fernando e avisou o Armando.

Transpunha o esquife a porta do cemitério de Lamaçal, aproximou-se um latir de cães. Impedidos de entrar no campo santo, ergueram os focinhos e desataram a uivar num queixume animalesco, os sinos a dobrarem no campanário. Os que não choravam desfizeram-se em pranto, e aqueles, como que estimulados, arranhavam o portão, esganiçando-se quais lobos endoidecidos pela fome.

Armando tartamudeou ao Manuel Francisco que continuasse a honrar o arrendamento, descontando, no preço deste, as despesas com o Cigano e os cães, e que lhe comunicasse para Lisboa se soubesse de alguém interessado na Quinta. Despediu-se de toda a gente presente e meteu-se no carro sem lá pôr os pés ou, sequer, a olhar.

A Quinta do Pinheiro Manso lá continua. Ninguém a disputa. Só o abandono lhe marca a memória. O Manuel Francisco é que já pensou em ir ao Banco empenhar-se e, depois, telefonar ao Armando. A Mulher, porém, diz-lhe sempre que as almas não se compram.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

1/12/11

A SESTA

As amendoeiras estão secas, as favas-ricas espalham-se no chão, as buganvílias resplandecem nos jardins e os chorões beijam a relva. Os pinheiros mansos, oliveiras e raras acácias protegem os carros de latas escaldantes sob o calor do meio-dia.

Caminho por entre alas de arbustos, administrando as sombras, derreado com os sacos de praia engordados de toalhas, calções e cremes anti-solares. A petizada chilreia em volta da piscina, as Mães, com pratos de cerelac, imploram-lhes as bocas; anafados passeiam cães de marca, deixando-se levar pelo esticar das correias; mulheres de ondulantes proeminências derretem, sem precauções, a sua celulite; as esplanadas enchem-se de estrangeiros a enfardar batatas fritas com canecas de cerveja que mais parecem cubas, numa algazarra que a desinibição em terra estranha facilita. Respira-se uma mistura de cheiros a cloro, ambre solaire, perfumes franceses, sardinhas assadas e febras grelhadas.

Vim por aí abaixo, numa noite sem sono, para fugir ao calor e às bichas de esmigalhar paciências. Atirei-me, mal arrumadas as tralhas, à liberdade de um mar sereno e à vastidão dum areal que me imaginei, há muitos anos atrás, naquelas imensidões africanas com as palmeiras franjando o Índico. Quem me visse, tão criança, esbracejando como quem afasta repressões, julgar-me-ia fugido de algumas grades, mas, apenas abandonara as neblinas do litoral nortenho que, sem possibilidades de se virar o mapa ao contrário, se vingam aqui.

Ao longe, depois de uma ponte pênsil sobre o rio Gilão e ramificações da Ria Formosa, um comboiozinho artesanal ronrona tão lento – em estirar de mamba - que parece ali andar desde o exórdio do mundo. Vai e vem sempre esgotado, levando e trazendo banhistas, entusiasmados na ida, arrastando-se na vinda.

Os toldos amontoam-se ao pé de um antigo abrigo de pescadores em que restaurantes ocasionais gananciam em três meses pelo que não facturam em nove. A praia, de areias açucaradas, beijada por uma irresistível mansidão líquida, estende-se até os confins do olhar. Por ela se dispersa, num mosaico complacente, uma fauna de muitos lugares, condições, espécies e maneiras: há seios ao léu aprumados como setas, outros descaídos como moncos de peru, fios dentais a fazerem de conta que tapam sexos rapados, barrigas de maternidades, banhas de abafar, securas de espantar, esculturas de ébano, remedeios matrimoniais, cabelos loiros deslizando água, carecas sem um pêlo para flutuar, palhaços fora do circo a fazerem o pino para as palmas de senhoras que falseiam júbilos, vendedores de bolos cozidos pelo sol, sorveteiros esganiçados com
arcas a tiracolo, rostos felinando as ancas e os traseiros que passam, velas de windsurf que enfunam como barbatanas de tubarões, figuras televisivas que escondem, sob óculos de escuro espesso, a autenticidade que não é igual à que dá a sala da caracterização, iates atulhados de nudistas a cortar as águas junto à costa, pantominas de motos espirrando jactos como baleias, mamas em carne viva e besuntadas com guinchinhos de chamar a atenção. No meio disto tudo, um velhote, vestido à marinheiro com botas de montanha, chama os netos com um apito de ajuntar cães, observo-lhe a cara, os olhos alienados, e penso que deve ser triste conviver com a loucura. Deixo, com alívio, essa ontologia diversificada, morto por um chuveiro que me limpe as areias e a aspereza salina.

Quando o almoço acaba e a sonolência chega, a sesta é um prazer antes do gozo. Adormeço com um búzio nos ouvidos, numa leveza anestésica, já mal escutando o passar distante do comboio de Faro.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

1/05/11

GERAÇÂO ESQUECIDA - II

África das manhãs morenas,
Dos risos nas areias molhadas,
Das noites suadas e serenas,
Fora dos tiros das emboscadas.

Beijei a tua boca em Porto Amélia,
Acariciei os teus seios em Quelimane,
Fiz amor contigo em Lourenço Marques
E chorei por quem ficava,
Do outro lado do mar,
A contar os dias da chegada.

África tão longe
E tão longa,
Corpos ao léu
Em camas de céu,
Amor às claras,
Fremente de vida,
Carne despida
De falsos pudores.

África das anharas,
Dos caminhos da coragem,
Das horas a sonhar
O regresso da viagem;
Negra risonha ao amanhecer,
Mulata dolente ao anoitecer,
Branca namorada de um Maio a nascer.
Terra de fogo, de sangue e de gritos,
Inúteis mortos e feridos,
O sol a ver
Um homem a morrer:

Adeus até ao meu regresso,
Sou este que me despeço.
Fui corpo e, agora, sou alma.
Uma bala me levou.
Finalmente tenho a calma
Que a guerra me roubou.

Recados de condenados,
Bocas espumas de sangue,
Corpos destroçados
Que viveram um instante.
Nacala, Nampula, Molocué, Quelimane,
Namacurra, Mocuba, Chire, Pebane,
Porto Amélia, Mocímboa, Beira,
Mueda, lá em cima, e Macomia perto.
Madrugadas sem eira nem beira,
Olhos de sono, mas sempre desperto.

Que é feito das cruzes enegrecidas,
Símbolos de uma geração sacrificada?
Estão todas desfeitas, esquecidas
A bem da Nação libertada?

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

12/30/10

A SENHORA DAS DORES

Caminho sem relógio, procurando as sombras, turvado pela mornaça e um cheiro de flora que me lembra o caril. As vivendas, com avisos de empresas de segurança e grades nas janelas, têm as persianas semi-cerradas por onde escapa o ressonar das sestas. Os carros, de marcas alemãs e suecas de não sei quantos turbos, também dormem embrulhados em lonas escurecidas de pó, pintalgadas por cagadelas de pássaros e folhas ressequidas. Vê-se que é uma zona chique onde o dinheiro não tem ideologia, de tanto nem se conta, ou, então, de pouco se disfarça em muito. Ao lado, na Estrada da Mata que leva a Vila Real de Santo António, o parque de campismo diz-me que talvez haja quem viva com mais gosto, sem medo de assaltos, a cheirar o restolho, os pinheiros bravos e as sardinhas assadas. Percorro a longa avenida Vasco da Gama, de esplanadas vazias, onde destila um ou outro loiro ariano a atestar o depósito com enormes canecas de cerveja que só de olhar metem impressão. No vasto areal continuam os fanáticos do bronze grudados às areias a derreterem os cremes e a celulite. O chão escalda como piche, desvio-me para a zona pedonal, evito o largo das carroças à espera do fim do dia para os passeios turísticos, entoando chocalhos e empestando o ar com as necessidades cavalares. Um grupo de peruanos (ou bolivianos?) montam, já, a aparelhagem para o espectáculo nocturno de música andina; algumas bocas lambuzam-se de gelados num ritual de lábios e de línguas que envergonha os atrevidos quanto mais os pudicos. Mostruários de jornais e revistas do jet-set, raquetes e bolas, camisetas berrantes e óculos de sol, fios dentais e calções de banho, isqueiros e pilhas, cremes e preservativos, colchões de plástico e remos do mesmo, cadeirinhas e guarda-sóis, toalhas e almofadas, chinelos para meter entre o polegar e o indicador e sandálias para as unhas pintadas, bóias e flutuadores infantis - tudo o que cabe num armazém de chinas. Os restaurantes, pegados uns aos outros, atravancados de preçários, esplanadas de cadeiras e reclamos de visas e american express, não dão uma folga para as pessoas passarem.

Deixo o Monte Gordo cosmopolita, dos prédios altos como pinocos, ilhas verticais de camas-sofás, e meto-me pelas ruelas estreitas da povoação antiga, pertença da genitura piscatória, com casinhas renteadas aos passeios. É a zona dos cafés-tipo-tasca ao custo do Norte, dos pratinhos de tremoços e amendoins a acompanhar imperiais, do frango de churrasco, do bezugo nas brasas, dos idosos desfiando o tempo em cadeiras de lona às riscas, das crianças gincanando por entre os carros estacionados, das mulheres de crepes vitalícias.

Entro na pequenina Igreja semelhante a um adereço de presépio, de suave frescura, simples como tudo o que, em nome de Deus, devia ser. Custa-me a adaptar os olhos à penumbra. Vejo uma Senhora de Fátima num nicho à direita do Altar. Todas as Senhoras de Fátima são assim: rosto plácido, olhar terno, boca sem ofensas, mãos delicadas segurando um terço com as contas dos pecados do mundo. À esquerda, um Senhor dos Passos, transportando uma cruz, tem um rosto de sofrimento mas os olhos sem rancor. Um arranjo floral, mistura de gladíolos vermelhos e gerberas amarelas, está aos pés de uma Imagem ornamentada com um cónico manto roxo até aos pés. Aproximo-me para melhor A ver e paro, surpreso, com a presença de uma velhinha, cabelos todos branquinhos, vestido negro, um ciciar de Padre Nossos tão leve que nem a notara, sentada a um canto junto à porta da sacristia. Fiquei especado, sem me mexer, transportado aos vultos da minha infância. Esboçou um sorriso e disse-me: «É a Senhora das Dores... É linda não é?...» Sorri-lhe, também, agradecido, e respondi com os olhos afogueados: «É linda como a Senhora que me fez lembrar a minha Avó!...» A velhinha, então, num farfalho de saias, levantou-se, abriu-me os braços, beijou-me, e acrescentou: «Deus Nosso Senhor o acompanhe!»

Quando abri a porta, à saída, por entre o ranger das dobradiças, ouvi (ou foi um eco da memória?):  «Deus Nosso Senhor te acompanhe, Meu Filho!» Era a voz da minha Avó que vinha das profundezas da terra, ou das alturas do céu, e se manifestava à rutilância do sol.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

12/07/10

CRISTO E A MENINA

Era o tempo dos sonhos sem limites. Os risos das pessoas pareciam sinceros. Não havia ambição, nem inveja, nem ódio; a vida não se projectava no calculismo. O medo, esse, estampava-se nos dois retratos pendurados na parede da Escola, por cima do quadro preto; estavam em Lisboa e viam tudo, feitos mando e obediência, deuses e donos intocáveis da Pátria. No fim da tabuada e da redacção, estrada fora, de sacola às costas, a algazarra reconquistava a liberdade. Só as Avé-Marias, na torre da Igreja, pediam recato, olhando os adultos que se descobriam. Nas vinhas cavava-se a terra à procura de tesouros; no céu, com chuva ou com sol, Deus vigiava o Mundo. Havia quem arrastasse as grilhetas do destino de pés descalços e roupas esfiapadas, mas Ele assim o queria...

Com a chegada do Verão guardavam-se as samarras e brincava-se até à noite. Os montes pintavam-se de alegria e o Alto de São Pedro tinha silvas para desbravar, ninhos para descobrir, fisgas para apontar a ilusões e guardadores para vigiar.

O menino crescia para ser um grande homem. Todos os meninos crescem para serem grandes homens. Quando começava a vindima, o bulício das gentes, a música das concertinas e o fartum inebriavam-lhe os sentidos e permitiam-lhe os espaços pela atenção dispersada.

Um dia, ainda a corta não acabara, disseram-lhe que tinha de ir estudar para um Colégio. O menino parou de brincar e, sem entender bem o que lhe ordenavam, disse que sim, porque nada lhe adiantaria dizer que não. Dentro ou fora das famílias obedecia-se à imagem e semelhança do Chefe que, em Lisboa, de fato e botas pretas, mandava em tudo, até no que desconhecia.

Quando o deixaram à porta, num final de domingo de princípios de Outubro, não quis entrar, agarrou-se ao carro, do lado em que estava a Mãe, e gritou tanto que mais parecia um inocente a ser metido num cárcere. Nessa noite, os grandes – como se chamavam os alunos mais antigos -, arvorados em velhacos, abriram-lhe as pernas e, como uma forquilha, humilharam-no contra o tronco de uma árvore. Chorou, gritou e cuspiu-lhes, mas em vão que a risota deles encobriu tudo.

Era um casarão de três pisos por onde se espalhavam as salas de aula, os salões de estudo, o refeitório, a Capela e os dormitórios. À volta, as vinhas, já amarelecidas, davam alguma brandura àquela secura arquitectónica. O recreio, com duas balizas nas extremidades, enchia-se de vozes nos intervalos das aulas e desgastava-se o calçado a dar pontapés numa bola. Ele ia para a balaustrada contemplar os caminhos que levavam à sua terra e o casario da cidade, lá ao fundo, esmagado entre Igrejas antigas. Uma cidade medieval, tristonha, enregelada no Inverno, as pessoas embrulhadas em roupas como cobertores, sonolenta no Verão, o calor a flagelar os telhados em que dormiam os gatos como efebos quadrúpedes. Dir-se-ia um bispado recolhido em claustros secretos, memória hagiográfica perpetuada em gerações acomodadas por lendas de reconquistas visigóticas. As mulheres rezavam nas Igrejas e os homens falavam nos Cafés de vidas sem sentido, enquanto - sombrias visões - as sotainas passavam. Cidade fingidamente austera, espreitando, libidinosamente, os joelhos das raparigas que se sentavam, aos domingos, nos bancos de azulejos com cenas de santos, longe dos becos de casas com janelas de guilhotina sombreadas por uma torre de menagem que escutara, em tempos idos, os gemidos de fadas e mouras encantadas, perdidas de amor, nas noites de luar, por cavaleiros que as possuíam nas alcáçovas do desejo.

O tempo arrastava-se na rotina das almas domesticadas. Vivia num silêncio injusto e desnecessário. Um silêncio de vestes negras deslocando-se nas penumbras dos dias ou na escuridão das noites, por entre cicios, missangas contadas por lábios gélidos, olhos sempre despertos para as curvas da mínima infracção dos meninos que não baixavam os olhos. Cá dentro, onde nasce o desconforto, corriam as lágrimas que ninguém via, uma dor a entupir a garganta, a esmagar, absurdamente, a individualidade. Distantes, como choros de saudades, os sinos davam as horas e os clarins do Quartel tocavam a recolher.

As luzes, vaga-lumes fosforescentes, desenhavam as ruas de toponímia mediévica. Num recolhimento cavo, o vento, como sopro em gargalo vazio, assustava a noite; a folhagem dava muitas voltas até o sono tomar conta dos sonhos e da respiração que os alimentava com um intenso cheiro a barrela grudado nos lençóis.

Aos domingos, os meninos não acordavam às sete mas às oito. Alegravam-se por os vincos das calças ficarem nítidos depois de uma noite debaixo do travesseiro, lavavam a cara, untavam o cabelo com brylcreem, vestiam camisa, engravatavam-se, e iam para o refeitório. Após um intervalo curto, o salão durava até à hora da Missa, solenizada com o canto gregoriano, de estômagos ansiosos pelo bife com batatas fritas. Depois, em fila, como presidiários, desciam a rampa que levava à cidade. Distribuíam-se pela avenida das Tílias com o Salão de Chá a chamar os de hábitos citadinos ou pelos cafés-quasetascas onde os rurícolas mastigavam sandes de presunto acompanhadas por canadadrys e gasosas de pirolitos. Com o relato do futebol em fundo, os viciados do bilhar exibiam os seus dotes; alguns, nas mesas ao lado, desafiavam-se para as damas e, outros, de escondido do Padre-Prefeito, iam à entrada do Cinema ver as meninas do costume para à noite, pensando nelas, se masturbarem.

Mas o passeio de que mais gostava era o de subir a escadaria do Santuário e, mais ou menos a meio, já na protecção das torres do velho Templo, ficar por ali, num terreiro amplo, a beber uma larangina C no quiosque verde, dar umas remadas nos barcos do lago ou sentar-se num banco à espera da sua menina do Colégio Feminino.

Naquele domingo de Março, as férias da Páscoa à porta, viu-a no costumado vestido-farda-azul com uma gola branca e os cabelos compridos a sensualizarem a figura. Quando os olhares se cruzaram, o coração passou-lhe para a boca e, disfarçando o nervoso, esboçou um sorriso que ela retribuiu numa reciprocidade clandestina. Como era bom aquele diálogo sem palavras, as faces ruborizadas e o sangue incendiado! Não sabia o seu nome, chegava-lhe a imagem. Era isso que importava, o satisfazia e lhe espevitava a dimensão humana. Queria gritar-lhe que a amava, que sonhava passear com ela de mãos dadas pelas ruas da cidade como os namorados adultos, beijá-la sob uma varanda ou correr atrás dela até aos confins. Mas ficava preso, tolhido na sua timidez, apavorado pela opacidade do Prefeito. Era um inibido, um cobarde que não correspondia àquele sorriso, àquela dádiva sem nada em troca.

Ainda o dia seria dia, quando uma freira sorumbática, de olhos céreos, bateu as palmas para o reagrupar do rebanho. Foram bofetadas que o acordaram daquela ponderação, um chicote a vergastá-lo, um insulto à sua paixão. O sorriso da menina desapareceu, tal se o sol morresse diante de uma traição, e o seus olhos entristeceram por um brinquedo roubado. O último olhar deixou-o com um grito entalado num remorso sofrido. Perdera mais uma oportunidade de lhe falar, dizer qualquer coisa que lhe retribuísse aquele sorriso, um gesto heróico que o elevasse diante dela, que matasse o medo das figuras sinistras que os vigiavam, esmagasse de vez o acanhamento que o asfixiava numa luta suada entre o tiritar dos lábios e o cavalgar do coração. Não demorou que outras palmas, mais ásperas e rápidas, calassem a alegria dos meninos.

Estava tudo combinado, tudo igual, as horas marcadas, a vida também. Começaram a descer, em filas desconsoladas, com os vestidos das meninas a aparecerem e a desaparecerem por entre o arvoredo.

Naquela noite, no salão de estudo, tirou da carteira os Lusíadas e colocou-os em cima da tampa. Dissimulou, à frente deles, o caderno diário para rabiscar versos em que amor rimava com dor e paixão com coração. O esguio e escuro espectro em cima do alçado de madeira, no meio da vasta sala, espiava, para um lado e para o outro, como os gatos fazem quando vêem uma ave indefesa. Na parede, em frente, um enorme Cristo pendia mudo no seu suplício. O menino, pela janela aberta, olhava a noite a anunciar os cheiros da terra, das flores e do Verão que Junho daria; a ramagem a murmurar lembranças frescas. Ao longe, num declive montanhoso, ecoou o toque de clarim numa persecução aviltante a dilacerar a quietude. Mais abaixo, no meio de palacetes brasonados de fidalguias insolventes, o Colégio da menina tinha as luzes acesas e, nas vidraças, manchas difusas moviam-se como visões. Absorto, indefeso na sua inocência, saltou da carteira com o cachaço. Olhou o rosto congestionado da vertical negritude, enquanto umas mãos macilentas, numa fúria escusada, lhe rasgavam os versos. Depois, a boca estremecida, debaixo de uns olhos congestionados, vomitou-lhe: «O menino vai para o fundo do salão e fica lá, de joelhos, até acabar o estudo!» Não entremostrou um gesto de defesa, um esgar de revolta, uma palavra, uma simples interjeição. Lívido, percebendo, em seu redor, olhares amedrontados ou escarnecidos, absurdamente calmo, levantou-se, com o livro nas mãos, e foi, sob um silêncio de gruta, para a parede fundeira. Ajoelhou, sentiu umas alfinetadas de vidro esfarolado, fez que interpretava as estrofes, ergueu os olhos para a Cruz e viu que Cristo, de cabeça pendente e resignado, lhe sorria... Quando baixou os olhos, as letras embaciaram-se sob uma bátega de lágrimas grossas. Então, virando-se para trás, apanhou o tétrico semblante de costas, cabeça curvada para o breviário, e riu-se para os colegas que não fizeram caso, encolhidos de terror. Só Cristo lhe sorria... Mal soou a campainha, levantou-se sem pressas, limpou os joelhos das calças e as olheiras de sal, fitou aquele rosto coroado de espinhos, mas, quem lá estava, era já a menina com o seu sorriso imaculado... Reencontrou esse sorriso, alguns anos depois, numa cidade de colinas separadas por um rio alcunhado de bazófias; uma Coimbra trovadoresca, de cantigas de amigo e de alba, memórias de cancioneiros, ecos de segréis, amores para uma vida ou para um instante.

Já não eram meninos, mas continuavam naturais. Percorriam o dédalo das ruelas da Alta, feitos passarinhos esquivos em busca de poisos aconchegados, capas traçadas como se albergassem segredos. Das janelas da rua da Matemática, a voz de Adriano Correia de Oliveira cantava a Trova do Vento que Passa e do Palácio da Loucura ecoava a de José Afonso com as Cantigas de Maio; era a fraternidade dos sublevados contra os chacais e os pederastas das decadências ideológicas; as pedras das ruas libertavam saudades de Menano e de Bettencourt; na Porta Férrea formavam-se trupes. Eles ouviam e viam, ansiavam derrubar a intolerância e esmagar o arbítrio, para, no seu lugar, (re)construir o amor, um amor que não se misturava na aguadilha da languidez, antes no sangue perturbado que acalenta as ideias justas. Já se morria nas bolanhas da Guiné, nos mangais Angolanos ou no planalto dos Macondes Moçambicanos. Essa realidade os magoava e essa perspectiva os consumia.

Era uma cidade de mito e de romance, de orgulho e de raiva, de tristeza mesmo triste e alegria mesmo alegre, proibido fingir, expressamente proibido concordar com a ignomínia. Davam cigarros ao Teixeira, liam o Kalinas na Brasileira, iam às sessões do Avenida, passavam pela Torre D’Anto à procura do fantasma desesperado de António Nobre e beijavam-se nos bancos do Penedo da Saudade com os poemas escritos entre as heras. Nas manhãs de aulas, nos Gerais, depois da chamada do Bedel, trocavam de lugares para ficarem juntos e juntos anotavam as dicas dos Mestres que as sebentas eram caras. Nas tardes de sol, na praça da República, discutiam a Vértice, no Mandarim ou na Clepsidra trocavam esboços de comunicados, nas Escadarias cruzavam pressas ou códigos e, na Associação, comiam por cinco crôas.

Naquela noite cearam no Aeminium, beberam um café no Internacional, arrastaram os passos pelo Parque Manuel Braga, a automotora da Lousã a sugerir despedidas de cais e o Mondego a levar para a Figueira desejos de praia. Iniciaram, pelo Arco de Almedina, a subida para os seus refúgios. No Largo da Sé Velha, sentados nos degraus onde começam todas as Queimas, conversaram sobre o futuro. Ele guardava uma guia de marcha e ela a determinação antiga, mas, o menino, já feito carne para canhão, agora, recusava-a. Combinaram que ela acabaria o curso e ele retomá-lo-ia no regresso. Então, sem mácula, só por estímulo, ela chamou-lhe cobarde. Por que não fugiam para as terras do salto? Como fizeram alguns: o Jaime e a Joana, por exemplo. Seguira-lhe as ideias e juntos haviam percorrido o caminho do desafio, mesmo ignorando o que alcançariam.

Achava-o mudado, orgulhoso do que antes criticava raivosamente. Mandara-lhe, de Mafra, fotografias com cara de mau e a arma apontada a fingir-se de combatente; até a convidara para ir ao juramento de bandeira, sabendo que ela detestava braços e mãos estendidas. Tinham-lhe lavado o cérebro, aquele cérebro que ela conhecera rebelde na doçura de uma alma terna. Podia lá ser! « Eu vou contigo para o fim do mundo, mas não vás para a guerra! Fugimos os dois! », gritou-lhe lavada em lágrimas. Ele, calado, deu-lhe um beijo como quem se desculpa. «Promete que esperas por mim...», pediu-lhe, envolto em submissão. Acariciou-lhe o cabelo cortado, ele que o usara sempre comprido, e murmurou-lhe que sim.

Esperou.

Esperou-o numa tarde de Novembro, fria e enevoada, junto da capela da casa onde ele nascera. Acompanhou a aldeia no funeral do seu menino. Enquanto uma fila de militares disparava para o céu, a urna descia para a terra. Foi, então, que ela deitou a pasta negra, com fitas vermelhas como rasgos de sangue, para cima do caixão, deu um grito que gelou, ainda mais, o cemitério, e desapareceu. Dizem, os que a viram mais de perto, que os seus olhos faiscavam de loucura.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

11/30/10

A MÃE DE TODOS

Alice deixou um dia a aldeia entre as montanhas durienses para servir na casa de um Senhor Doutor do Porto, levando consigo a ilusão de um sonho. Ainda foi à terra, duas ou três vezes, mostrar a roupa da cidade e os brincos que a patroa lhe oferecera. Hoje, porém, talvez já nem saiba como se toma o comboio. Enterrada a Mãe, que o Pai nem conhecera, vendida a leirita de uns almudes, fez um risco no calendário da sua recordação. Gastava as tardes domingueiras no jardim diante da casa onde fazia a comida e as camas, aspirava a alcatifa e sacudia as carpetes, limpava as pratas e entretinha adolescentes rabugentos, até achar o companheiro da sua sina. Afeiçoou-se por um mecânico e foi viver para uma casita mal alevantada dos subúrbios.

Começou cedo a criação; enquanto as marés sobem e descem, viu-se com uma ranchada de filhos. Dava umas horas como mulher-a-dias com a sogra na guarda da canalha. Passava muito tempo no hospital, nas consultas de pediatria, e dava-se, por isso, com enfermeiras e médicos com o à vontade consentido de tantas idas e vindas numa preocupação aflitiva por quem levava ao colo e pelos que deixava sob o olhar da segunda Mãe. Já nem precisava de papel ou de espera, todos lhe toleravam a prioridade, que a uma Mãe procriadora não é só o respeito a mandar, mas, também, uma admiração condoída. Vinha do fim da cidade onde a auto-estrada se estende numa fita preta que se perde, ao longe, com os carros disparados a afundarem-se nas lombas.

O rosto de Alice mostrava canseira, envelhecido antes da razão; as pregas nos olhos e nos cantos da boca traduziam embaraços e noites mal dormidas. Quase que não tinha peitos, chupados pelas bocas da inocência sem culpa de terem nascido a eito. Contudo, por cima desse espelho de privações, um sorriso bonito, muito bonito, tornava-a simpática e afável; era um daqueles sorrisos de quem logo se gosta por não enfatizar as desgraças. Acarinhava os filhos sem pieguices ou obsessões. Sempre «lavadinhos e arranjadinhos», não se escusava de, em pleno átrio, desnudar um seio mirrado para o meter na boca de um mais apressado pela hora do sustento.

Joaquim sujava-se na oficina e em biscates de fim-de-semana para sustentar a prole. Não era gastador nem seroava nos Cafés. Viciado, só no tabaco e no futebol, mas, até nestes, se moderava: fumava Definitivos e o seu clube militava numa distrital sem nome nos jornais de segunda feira. Ia sempre como um fuso para casa, sem o fastio dos casamentos arrastados. Quando a mulher se demorava, esperava sempre que a porta se abrisse. Os vizinhos da ilha não lhe ouviam um ralho ou uma descompostura e, como «casal que não se insulta não se ama», julgavam que apenas se toleravam.

Um dia, porém, as horas passavam e a Alice não chegava. Sabia-a numa consulta com «o mais novinho, de seis mesinhos». Combinou com a Mãe a continuação da vigília e meteu-se a caminho. Encontrou a Mulher na paragem do autocarro, diante do hospital, com dois bebés, um em cada braço.

- Então o autocarro não vem, é?... Estás à espera do 99 como o Samora?!... – troçou.

- Quantos já passaram!... – retorquiu a Alice.

- Espera – espantou-se -, de quem é esse bebé?!

- Foi uma senhora que me encontrou à saída e pediu-me para lhe ficar com ele.

Disse que era só tempo de ir ali, não sei onde, fazer umas compras, já lá vão mais de duas horas e não aparece. Estou preocupada...

- Oh! Mulher... Ela não volta mais! Não vês que o abandonou?!... Deixa lá!... Quem cria nove também cria dez! Vamos embora!

E lá foram, cada um com o seu filho, no autocarro apinhado, a caminho da casita mal erguida nos confins da cidade para continuarem a servir o futuro do mundo.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.