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3/16/11

AS BOLINHAS

A praia está, ainda, praticamente deserta. É uma manhã limpa com um sol já acariciante e uma saborosa envolvência de maresia. Aqui também há classes: de um lado, a área concessionada; do outro, a zona dos chapéus de sol. Na primeira, estão montadas as sombrinhas com as cadeiras reclináveis alugadas por bom dinheiro; na segunda, o preço é o carrego que cada um está disposto a transportar. Escolho, nesta, um espaço que não tenha de alterar pela preia-mar, espeto o guarda-sol, espalho as toalhas a delimitar território, liberto-me dos chinelos e da camisa. Vou até à orla, viro-lhe as costas, de frente para os prédios gigantes que se erguem como insultos de ganância, e comprazo-me com a babugem da ligeira ondulação a lamber-me os pés. As construções tipo legos, de traça usurária e sem decoro, são depósitos de corpos que aqui fazem a vingança quinzenal dos nevoeiros e das nortadas; alguém lhe chamaria arquitectura dos trezentos para dar lucros de boutique de shopping.

Lentamente, o areal vai-se enchendo. Uns, arrastando sobejos de sono, estendem-se, imediatamente, como sardões mal despertados; outros, esbaforidos pelo peso das tralhas, limpam o suor e, antes de se acomodarem, distribuem tabefes pela rezinguice infantil. Há de tudo: burlescos com óculos de esquiador, tias das revistas com panons transparentes e cosméticas burundangas, maternidades deliciosas que a tudo acodem sem um azedume, cabelos brancos que ainda não desistiram de usufruir a vida e transmiti-la à descendência, leitores de escrita light e de jornais desportivos, utilizadores de telemóveis com ares de executivos imprescindíveis ou de empresários sempre a facturar, gordas sem vergonha de libertarem as coxas e opostas de linhas geométricas limpando as areias como se fossem formigas.

Num súbito, a vizinhança da minha toalha inquieta-se: soerguem, uns, os cachaços do areal, despertam, outros, para uma montra apelativa, sorriem, elas, num jeito de brejeirice a dissolver o desdém, lançam, os mais entradotes, olhares nostálgicos. A aparição justificava o sobressalto. Há mulheres tão espectaculares que chegam a ser uma ofensa à inteligência: alta, sem exageros basquetebolísticos, cabelos longos, cor de libra Vitória, espalhados e deslizantes pelos ombros como sedalina, óculos de voleibol de praia numas faces trigueiras decoradas por duas argolas ciganas, busto voluntarioso de mamilos agulheados e defendidos por uma t-shirt justa que descia até a meio das coxas torneadas a fazer de mini-saia generosa, fita vermelha no tornozelo esquerdo que lhe dava uma ar jamaicano de prospecto turístico. O seu acompanhante, de paciência na cara e peso nas mãos, arvorava uma docilidade canina, ornamentado com um bordão no peito e um relógio todo o terreno. Enquanto ela ajeitava, a tiracolo, uma carteira tipo saco de flores tropicais, ele transportava um guarda-sol, duas cadeiras e uma bolsa de lona que lhe deve ter restado da guerra colonial. A beldade esticou uma enorme toalha rosa estampada com palmeiras, sentou-se, atirou, num desafio, a cabeça para trás, retirou os óculos (os olhos cintilaram esverdeados), passou os indicadores metódicos pelas sobrancelhas, tirou a t-shirt, e os seios, como molas, estremeceram de liberdade, numa provocação ao redondel, até se deterem firmes como dois ponteagudos marmelos. «Quem me dera ser bebé!», disse uma voz, «Cala-te, palhaço!», respondeu outra. O homem, depois de arranjado o poiso, pegou no tubo do creme e, num silêncio ruminante, começou a untá-la. Ela não falava, só lhe indicava com as mãos os locais onde queria o creme: mais nos ombros e nas costas. A cara, os mamilos, os braços e as pernas foi trabalho dela, em pormenor demorado. Terminado este, ergueu-se e foi até junto da ondulação lavar as mãos na areia. O seu andar era sensual como o corpo, com tudo no sítio, sem um acrescento ou uma diminuição, um fio dental a relevar umas nádegas afoitas e seguras, a respirar sexo por todos os poros. Tinha, todavia, um aspecto de súcuba, olhar esguelhado, que acompanhava sempre com um maneio da cabeça e das mãos a fingir que tirava as madeixas dos olhos. Fumava desalmadamente, soprando, pelo canto da boca, o fumo para cima, num trejeito de rufia de esquina, retirando as areias das pernas como se catasse piolhos. Estendida, de cigarro entre os dedos, puxou o guarda-sol para lhe aumentar a sombra e retirá-la ao acompanhante que continuou impávido diante das notícias da Bola.

Ao longe, por entre o amontoado humano, nascem os pregões dos vendedores ambulantes. Trazem, em cada braço, caixas de pasteis que propalam consoante a força das suas gargantas e o seu engenho publicitário. Uns, são incisivos: «Bolinhas!»; outros, mais enfeitados: «Boliiiiiinhaaaas!»; ainda outros, mais secos: «Boli!»; e os que soletram: «Há bolinhas com creme e sem creme! Há pasteis de amêndoa!» Os rapazes, ao chamamento, pousam os caixotes e distribuem bolinhas a torto e a direito a cem escudos cada uma. O calor vai apertando. As pessoas renovam unturas, passam os jornais a pente fino, também há quem leia Cem Anos de Solidão, estudantes preparam a segunda chamada, senhoras relaxam a fazer renda, discutem-se os milhões das transferências futebolísticas, arrematam-se as últimas amêijoas junto dos barcos dos pescadores.

Um Cabo de Mar e um Polícia, num roldão de apitos e vozes alteradas, investem pela praia num despropósito que confunde toda a habitualidade. Os banhistas espantam-se, pegam nas toalhas e interrogam-se, olham para o mar a ver se alguém está em dificuldade, o que será e não será, até se perceber, depois, que perseguem um vendedor em qualquer ilegalidade. Um dos cívicos, passo ligeiro, lança: «Àquele já lhe vou tirar as bolinhas!» Uma senhora, que fazia malha há uma eternidade e queria os netos sempre à sua volta, levantou-se da sua cadeirinha picada por um alfinete, deixou cair os óculos, e exclamou anelante: «Ó Senhor Guarda! O Senhor tem coragem de tirar as bolinhas ao rapazinho?!» O Senhor Guarda olhou-a, riu-se bondoso e prosseguiu o seu caminho, deixando um magote de risos encolhidos. A Avozinha fulminou-os, atrapalhou um sorriso atenuante, sentou-se, retomou a malha e afivelou a cara da boa fé injustiçada, enquanto a aparição, de mamas ao léu, levantava a juba e desenhava um trejeito malhadiço a lembrar uma preguiça sardónica.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

2/12/11

OS FRONTEIRÓMETROS - 3


OS FRONTEIRÓMETROS - 1
OS FRONTEIRÓMETROS - 2
Continuação:

Os risos encolhidos explodiram como champanhe, mas logo o Boaventura cortou:

- Ó pá vocês não se riam nem saiam da sala, porra! Se os tipos vêem a malta a rir-se fode-se tudo!

Pouco depois, tal uma carga de cavalaria, ouviu-se um tropel de botas a descer.

- Lá vêm as cavalgaduras! – disse o Bandeira.
- Formem em fila! - mandou o Boaventura. – Para começo – olhando o relógio – não está mal! Atendendo a isso, não há flexões para ninguém. Vamos, então, dar início à vossa prova de aptidão. O nosso Aspirante Ornelas é o encarregado de orientar o primeiro teste.

Este, armado da cara mais séria que pôde arranjar, plantou-se diante deles:

- Atenção! Firme! Sé...ópe! Dá licença, meu Tenente? – fazendo tremer o braço numa continência espectacular.
- Pode mandar! No fim da aula apresentem-se neste mesmo local – ordenou o Boaventura.
- Esquerda... vooolver! Passo de corrida, em frente... marche!

Passados uns minutos, o grupo abandonou a sala, atravessou a Parada e foi assistir à sessão, disfarçado no morro sobranceiro ao campo de obstáculos, atrás de um renque arbustivo, num esforço incrível para recolher os risos com os lábios e as mãos. O Ornelas parecia que estava a dar instrução ao seu pelotão: mandou-os correr em círculo, intervalando com flexões em frente, abdominais e saltos de canguru, rastejar sob o arame farpado, saltar a vala, a paliçada e o galho, subir às cordas, ficando de fora o pórtico. Tudo num silêncio só entrecortado pelo farfalhar dos corpos e a voz autoritária daquele. Uns soldados que passavam, estranhos pelo que ouviam àquela hora, aproximavam-se curiosos, mas, sobressaltados, viram o Bandeira a afastá-los. Suados, cheios de terra e a bufar, troaram no átrio. Alguns tinham o ar de quem não cria no que lhes estava a acontecer.

- Então, nossos fronteiros, gostaram da instrução que o nosso Aspirante vos deu? Sim ou não?
- Sim, meu Tenente...
- Mais alto! Sim ou não?
- Siiim, meu Tenente!
- Porra!, parece que estão a morrer... Um caçador especial grita sempre alto, com genica e alegria! GOSTARAM OU NÃO?!
- SIIIIMMM, MEU TENENTE!!!
- Óptimo! Muito bem! Gosto de vos ver felizes... Nosso Aspirante Alves dê um passo em frente. Vou-lhe dar – entregando-a - uma ordem de patrulha que todos devem cumprir sem uma falha. Tem anexado um croqui para não haver dúvidas acerca do vosso objectivo. Nem precisam de bússola... Quero avisá-los de que até à Casa Amarela, onde se acoita o inimigo, temos informações de que há bandos terroristas dispersos que vos podem surpreender. Agora vão à Companhia da Formação, onde, na Caserna 8, o Cabo quarteleiro já está avisado para vos fornecer uma FBP a cada um. Bem vão precisar delas... Podem ir e, nunca antes nem nunca depois da meia noite, devem-se apresentar com a missão cumprida. Na Porta de Armas já estão avisados da vossa missão, o nosso Aspirante Alves só tem que comunicar ao nosso Sargento da Guarda. Sigam...

Depois daqueles transporem os portões, uns deixaram-se ficar, entretidos com a televisão, a leitura, o bilhar ou a sueca, alguns foram ao Cinema e o João, o Altino e o Ãngelo, passada uma boa hora, meteram-se no carro para irem ver o movimento dos praxados, passando-os quando eles se encontravam a conversar, sentados nuns pinocos longe, ainda, da Casa Amarela...

Quando a patrulha regressou, à hora indicada, mais minuto menos minuto, já todos estavam a postos, ansiosos pelo bródio que se seguiria.

- Então nosso Aspirante, como decorreu a operação? – interrogou o Boaventura.
- Meu Tenente, mal saímos do Quartel, logo a seguir à curva do muro, como ouvimos uns ruídos esquisitos, resolvemos, para nos precavermos, montar a segurança - explicou o Alves, todo gestos.
- E depois? O que viram?
- Verificámos, afinal, que eram pessoas pacíficas, moradores na zona...
- E como é que souberam? Não me diga que são bruxos?!...
- Falavam de futebol e...
- Mas que perigo, nosso Aspirante! Mas que perigo! Falar de futebol e logo à noite! Não pensou que isso podia ser uma armadilha? Então não sabe que o futebol é o ópio do povo? Vocês podiam ter sido anestesiados como criancinhas! Mas diga, diga...
- Depois continuamos a marcha - o Alves molhava os lábios para contrariar a secura da boca -, sempre guiados pelo croqui, até que, num morro, voltamos a montar a segurança para observação do terreno que ficava em baixo. Estava tudo calmo, era já numa zona desabitada...
- E bateram esse terreno, claro...
- Não vimos ninguém...
- Ai queriam que o inimigo estivesse à vossa vista, a dizer estamos aqui, fodam-nos! Mas que merda de caçadores são vocês?! Tinham que ir lá, procurá-los como furões à caça de coelhos! Mas para isso é preciso ter os colhões no sítio!...
- Mas ó meu Tenente...
- Mas ó meu Tenente o caralho!... Continue, continue...
- Deixámos - nos estar ainda um bocado a ver se havia algum movimento suspeito...
- As folhas a mexer...
- Algum vulto, algum...
- Que viesse ao vosso encontro?!... Meu Deus... Avance, nosso Aspirante, avance...
- Não vimos nada e ...
- Tiveram sorte não levarem umas fogachadas no cu...
- Tinha sempre três homens a caminhar de costas, de frente para o caminho...
- Esses, então, levavam-nas nos tomates...
- Meu Tenente, olhe que a gente...
- Olhe uma merda!... - Continue lá com a descrição...
- Quando chegámos ao cruzamento...
- Montaram a segurança...

Começava a ser difícil conter os risos. Eles ameaçavam estralejar como trovoada em noite abafada de Verão.

- O sítio era perigoso e, antes de o atravessarmos – prosseguiu o Alves, mais confiante e a entrar bem no papel -, tínhamos que ver bem como o fazer. Como mandam as regras, montámos, de facto, a segurança. Dividi a patrulha em dois grupos, um para a esquerda, outro para o direita, e atravessámos, depois, em pontos mais afastados do cruzamento. Prosseguimos a marcha e, como o pessoal estava já um pouco cansado, resolvemos descansar um pouco e montámos a segurança...
- Parou nosso Aspirante! Chega! Porra!, ainda não chegaram a meio do objectivo e quantas vezes já montaram a segurança? Andam cem metros e montam a segurança, andam mais duzentos e montam a segurança.... Foda-se! Tem que me apresentar essa PUTA da SEGURANÇA que eu, também, a quero montar!... Acabaram de chegar e já se fartaram de montar!... Vocês devem ter um tesão do caralho!...Se as catraias sabem disso não vos largam a Porta de Armas!... O que vocês precisavam era – virando-se para o aparelho de televisão – fazer a patrulha no lugar onde aqueles galgos estão a correr atrás da lebre... Sabe como se chama aquilo?...
- É uma corrida de galgos...
- Que novidade! Queria que fosse de coelhos?!... Como se chama o recinto onde eles estão a correr?... - Meu Tenente, aquilo – olhando fixamente para o televisor – é um pavilhão...
- E como se chama?...
- ...
- Diga-me uma coisa, se fossem cavalos a correr como é que lhe chamava?...
- Hipódromo...
- Então, e galgos?!...
- Não sei meu Tenente...
- Galgómetro, nosso Aspirante!... Galgómetro!...

As gargalhadas, já impossíveis de reprimir, soltaram-se como uma prateleira de cristal estilhaçada, alguns agarrando-se às barrigas, as lágrimas deslizando nas faces por um sufoco há muito controlado. Trocaram-se abraços, esvaziou-se uma garrafa de Logan, discutiram-se as peripécias da brincadeira e conheceram-se origens por entre risos intermináveis.

Ia adiantada a hora quando o João, erguendo um copo, gritou: «Malta! A partir de agora somos os fronteirómetros de Chaves!»
Final.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

2/09/11

OS FRONTEIRÓMETROS - 2


OS FRONTEIRÓMETROS - 1
Continuação:
No primeiro dia em que assumiu o comando do pelotão, João, dentro da farda de trabalho verde azeitona, sentiu o sangue a bulir e uma tremura nas pernas. Olhou aqueles rostos que lhe lembraram os seus antigos companheiros da Primária, jurou que nunca os enganaria, mas, para sua defesa, não seria fraco nem os deixaria fazer o que lhes apetecesse; sabia já que o paternalismo humilha mais do que a frontalidade. As ordens de comando e as continências encheram-no de vaidade, um orgulho contido. Recordou o seu Aspirante de Mafra, o Matos, meio careca, peito inchado, andar de Academia Militar, que parecia ter um prazer sádico sempre que, por tudo e por nada, castigava um Cadete com vinte flexões. Só lhe copiaria o que aceitara.

Calhou-lhe o segundo pelotão da terceira Companhia. Os restantes ficavam para o Ãngelo, o Ornelas, o Fonte e o Baptista. Comandava-os o Capitão Pedrosa, um minhoto bonacheiro, que se relacionava com os seus milicianos sabendo a diferença entre o voluntário e o obrigado, mas, sem esquecer regulamentos. Quando, numa reunião de gabinete, ele lhe disse «olhe que os seus homens têm o cabelo comprido além das
normas», não esteve com meias medidas. Na manhã seguinte convenceu todos a irem à máquina zero. Tiraram depois uma fotografia e mandou revelar as suficientes para dar uma a cada um. A partir daí o pelotão do João passou a chamar-se os carecas.

A Instrução, entre a teoria e a prática, era-lhe fácil e agradável. O que o haviam forçado a fazer no velho Convento-Quartel, de uma dureza que achara de um exagero dispensável, dava-lhe, agora, segurança e à vontade. Levado talvez por essa experiência – ou desculpando-se intimamente com ela - e reconhecendo nisso alguma perversão, em certos momentos forçava os limites como se experimentasse a aceitação das próprias e alheias capacidades; era a fruição da vicissitude contrária. Entre treinos de ordem unida, à disputa a ver quem marchava melhor; sessões de ginástica no campo de obstáculos com rastejares, saltos e subidas a tudo que existia e cross semanal até à Curalha; sessões de tiro e desmontares e montares de culatras e limpezas de armas; encenações de assaltos, emboscadas, cercos e nomadizações pelas serras circundantes, de dia, e variadas ocasiões de noite, a vida consumia-se na ilusão de que tudo se aprendia para uso nos matos africanos.

Ao toque de ordem, corpos lavados e civis, o grupo transpunha os portões e desandava para a cidade, o carro a abarrotar, cabendo sempre mais um, gasolina a meias. Parecia o recreio ambulante de um bando de colegiais. Ora no Aurora, ora no Sport, comia-se um bolo e bebia-se um pingo, a enganar as horas para o jantar, metiam-se com as raparigas, percorriam as ruas como pássaros fugidos da gaiola, ou iam ao Açude espreitar a fronteira, uma tosca cancela no meio da estrada. Depois do jantar, se o serão televisivo espanhol não os pregasse aos sofás, voltavam para, a pretexto de um café, cimentarem os conhecimentos femininos que as suas fardas despertavam.

Uma noite de muito calor, foram ao Alto da Forca, onde, em séculos passados, dizia a lenda e a história, se condenavam os insubmissos da ocupação Romana. Constara-lhes que lá haveria uma quermesse a que se juntou a curiosidade do lugar, ou talvez fosse apenas uma daquelas idéias que surgem por não haver outras... Puxaram a capota para trás, a brisa a acariciá-los, excitados pela originalidade. Percorreram as barracas, apostaram sem resultado nas panelas, e ficaram, depois, encostados ao carro, a música dos alto-falantes a cobrir-lhes as palavras, as luzes da cidade cintilando como reflexos das estrelas.

Quando se dispunham a descer, o Bandeira pediu para dar «uma voltinha até lá abaixo». O Ângelo e o Antão foram para o assento traseiro, enquanto ele, de fora, a acabar um cigarro, lhe indicava como funcionava a chave de ignição, as mudanças, essas coisas. Uns segundos depois, num assombro de quem não acredita no que vê, o Opel Olimpia ganha velocidade inusitada para o terreno sulcado, o Bandeira, lívido, a gritar «João!, esta merda não trava!», ele a berrar-lhe que devia estar a carregar na embraiagem, correndo monte abaixo agarrado à porta, quase arrastado (o Antão e o Ângelo já tinham, entretanto, saltado para o chão, como se o fizessem de um Unimog em andamento), o carro sempre a deslizar, «puxa o travão de mão, caralho!», «onde
é?!», «à tua direita! Não vês? Olha aí! Puxa essa merda para cima!», o carro sem comando, ele enfiando a mão para virar o volante para a esquerda a fim de cortar o sentido do declive, esbaforido, em pânico, a pedir-lhe para parar com aquilo, até que, sem explicação, o automóvel, após uns solavancos, como se fosse abaixo, quedou-se mansamente. O Ângelo e o Antão, lá em cima, um pouco distantes, riam às gargalhadas, o Bandeira, com uma palidez que nem a noite escondia, saiu e sentou-se num montículo e o João lançava carvalhadas agarrado ao volante. Estiveram assim uns instantes, sem fala, anestesiados pelo estupor. João deu ao dimarré, deixou descair um pouco e experimentou o pedal do travão. «Com que então esta merda não trava? Rais te parta, nabo do caralho! Podíamo-nos ter fodido todos lá em baixo!» Fecharam a cobertura, tal quem esconde uma vergonha, e regressaram ao Batalhão.

Costumavam, antes de se deitarem, juntar a farda e as botas da Instrução nas cadeiras ao fundo das camas, para de manhã, sempre apressados, ser mais rápido enfiá-las. O quarto, com janelas para a Parada, era amplo, mas, com poucos cómodos de arrumação. Quiçá os tivesse, eles é que não sabiam aproveitá-lo... Aquilo era sempre uma desarrumação: botas para um lado, calças e quicos para outro, às vezes tudo espalhado pelo chão, já não se sabendo a quem pertenciam as coisas, só as escovas dos dentes tinham certeza de posses. Nessa noite, ainda a imagem do carro a ir por ali abaixo, mal refeitos do susto, a tarefa estava complicada. Ao grito do Bandeira «onde estão as putas das minhas botas? », o João, procurando, também, as suas debaixo das camas todas, respondeu «estão no Alto da Forca!». Resmungo para aqui, alvoroço para acolá, demorado o acerto de par daquelas e das roupas, João berrou «esta merda não é
um quarto, mas um abarracamento!». Desde aí, por galhofeira e unânime concordância, o quarto passou a ser o abarracamento 12.

Em alguns fins de tarde gastavam o tempo, antes do jantar, a jogar futebol. Faziam-no no mini-campo de terra batida, escavado entre taludes arborizados, desfazendo-se em suores por uma bola de catechu. Eram partidas renhidas com muita canelada pelo meio e off-sides inventados para anular golos inconvenientes. Numa dessas discussões de é falta não é falta, João pareceu ver, no alto do morro, o Luís, um Aspirante da Academia que conhecera em Mafra em circunstâncias de cumplicidade e que não esquecera. Fixou o vulto, foi-se aproximando, ele acenou-lhe, e, já sem dúvidas, correu a abraçá-lo. Não havia dúvidas, no Batalhão de Caçadores 10 só tinha alegrias: criava e recebia amigos!

A meio do seu curso apareceram pela Escola de Infantaria, para tirocinarem, alguns jovens Oficiais do Quadro, acabadinhos de sair de uma fornada da Academia Militar. Olhando-os, assemelhavam-se a visionários duma juventude que acreditava num desígnio patriótico, voluntários entusiastas de uma crença forjada nos princípios da honra e da disciplina. Militares por opção, não haviam perdido, contudo, a fraternal generosidade da condição humana. Uns, forçando mais o rigor militarista que o ensino académico lhes incutira, outros, mais libertos para a tolerância que o carácter lhes pedia. O Luís era um destes. Tinha um rosto comparte que não precisava de fingir dureza para se fazer aceitar. Talvez essa a razão para a empatia que os uniu. Não eram habituais as confianças entre os Cadetes e a Oficialidade, mesmo que recente. Obrigavam as distâncias não só as inflexíveis teorias regulamentares, mas, também, o exercício de uma rotina sistemática em que se incorporava, quase instintivamente, um sentimento reactivo de defesa à confraternização com as graduações inferiores; assim o impunha a lógica militar, indiscutível nos seus fundamentos, como se de outro modo não subsistisse. Já o conhecia de muitas noites, ao recolher, se lhe apresentar com a dispensa na mão. Um fim de tarde cruzaram-se no terreiro em frente do Convento, ele fardado, o Luís à civil. Fez-lhe continência e, para sua surpresa, ouve-o: «Isso é lá dentro. Amanhã já vamos ser iguais. De onde és?» Foram os dois para a Ericeira, desfiar as suas origens vizinhas, gostos e passados, combinando futuras viagens conjuntas de fim de semana. Desde então, sempre que o via, entre muros, num daqueles medonhos corredores ou à porta de armas quando em serviço, João fazia questão, perante quem os visse, em ostentar-lhe a sua obediência militarista, formulando-lhe continências escrupulosas, trocando olhares e sorrisos coniventes.

Era esse Luís que agora reencontrava sempre igual, sempre como iguais. Com ele o grupo ganhava um novo e inseparável aliado, um companheiro inseparável.

O Boaventura, que aguardava há bastante tempo a mobilização para uma colónia, era, de entre todos do grupo, o de maior antiguidade e, como Tenente do Quadro, comandava a Companhia da Formação. Uma noite chamou-os e disse-lhes:

- Amanhã chegam meia dúzia de Aspirantezecos novos e vamos praxá-los!
- Vai ser bonito... – deu-lhe para dizer o Antão.
- Ai, vai, vai... Pedem-se sugestões...
- Mandamo-los fazer umas flexões e uns abdominais a seguir ao jantar... - alvitrou o Fonte.
- É pouco.
- Espera! - jubilou o Bandeira -, damo-lhes uma sessão de aplicação militar.
- Não me importo de ser eu a dá-la – ofereceu-se o Ornelas.
- E se fosse um quarto de sentinela? – alvitrou o João. – Falávamos com o Silveira que vai estar amanhã de Oficial de Dia e avisávamos o Sargento da Guarda.

O Altino e o Ângelo só se riam, antevendo as cenas.

- Bom, já estou a ver que não vamos a lado nenhum! Vou decidir eu como comandante desta merda e acabou-se! Preparo-lhes uma ordem de patrulha nocturna à Casa Amarela, precedida de meia hora de obstáculos, e tu – virando-se para o Ornelas – é que vais, então, com os maçaricos.

No dia seguinte, depois de jantar, procedeu-se rotineiramente. Uns tomavam café ou liam os jornais, outros viam televisão ou tomavam conta da mesa do bilhar, outros, ainda, jogavam aos dados, aparentando naturalidade, incumbindo-se de enquadrar no ambiente os, algo inibidos, recém-chegados. O Ornelas tinha ido vestir a farda de feijão verde e o Boaventura avisar o Silveira e o Piquete da Guarda do que se preparara, assim como fardar-se a rigor.

- Atenção meus Senhores! – bradou ele, voz forte, cara dura, mal entrou na sala. – Os nossos Aspirantes acabados de chegar, fazem o favor de se juntarem neste lado – apontando o espaço entre o balcão do bar e a mesa de bilhar. – Há alguém cujo nome comece por A?
- Meu Tenente, eu chamo-me Alves, não sei se...
- Já vi que não... A partir de agora o nosso Aspirante Alves passa a ser o responsável por vocês. Quantos é que são? Um... dois... três... seis! Consigo sete! Muito bem! O que é que se passa, ou antes, o que é que se vai passar? – O Fonte e o Altino mais precoces na incapacidade de suster o riso saíram. – Os nossos Aspirantes – prosseguiu o Boaventura - acabam de ingressar numa Unidade de elite... É costume, sempre que aqui se apresentam Aspirantes Milicianos ou do Quadro, testá-los na sua resistência e sofrimento para ver até que ponto têm, ou não, capacidade para pertencerem e dignificarem a história deste Batalhão, cuja divisa é fronteiros de Chaves sempre excelentes e valorosos. Além de que isto não é para copos de leite ou azeiteiros! – Fez uma pausa a observá-los. - Assim, como o podem atestar os Aspirantes mais antigos que, também, já passaram pelo mesmo (era mentira...), a prova de resistência consta de duas partes: uma interna e outra externa. A primeira é uma sessão, breve mas exigente, de aplicação militar e a segunda, mais demorada, um patrulhamento a um dos alvos mais perigosos das inóspitas redondezas. Têm dez minutos para irem aos vossos quartos vestir as fardas de instrução e apresentarem-se lá fora no átrio. – Os sete puzeram-se a olhar, incrédulos, uns para os outros. – Está a contar o tempo! O último a chegar paga vinte flexões! – berrou, ríspido, já eles, em corrida, subiam as escadas.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

2/08/11

OS FRONTEIRÓMETROS - 1

Quando, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, lhe entregaram um impresso para indicar três Quartéis onde gostaria de ser colocado, depois de terminado o Curso de Oficiais Milicianos, o soldado cadete João coçou a cabeça e pediu para entregar aquele no dia seguinte. De noite, na caserna, depois da instrução nocturna, enquanto o sono não se apresentava, magicou no caso. Tinham de ser terras onde houvesse Destacamentos de Infantaria. Porto foi logo a sua prioridade. De lá tinha sido arrancado, o curso de Economia no início, e gostaria de regressar à velha cidade granítica, mesmo que por escasso tempo, pois, sabia-o, mais tarde ou mais cedo, abalaria, num barco qualquer, para uma frente da guerra colonial. Era uma circunstância sentimental, uma maneira de regressar aos velhos lugares, embora com uma farda. A segunda hipótese levou-o a Vila Real, onde, em tempos, no 13, o seu Pai cumprira a obrigatória servidão militar. Seria interessante pelo simbolismo e, como ficava a escassos quilómetros de casa, podia, até, ir e vir todos dias, excepto aqueles em que a Ordem de Serviço o colocasse na escala. Mais difícil foi acertar com a terceira opção. Excluída Lamego, não coadunável pela sua especificidade, além de não estar fadado para Ranger ou travessias de rappel, sobrou-lhe Chaves. Nesta cidade raiana, na década de sessenta, quadra em que esta narração decorre, localizava-se o Batalhão de Caçadores Especiais 10, com o epíteto de fronteiros de Chaves, sempre excelentes e valorosos, unidade com fama de dura e rigor militarista, tanto na corporação castrense como nas margens da sociedade civil que, de algum modo, lá tiveram ou tinham familiares. João, também, não o ignorava, mas devia completar o quadro das três preferências, sempre confiante que, se não lhe satisfizessem a primeira, a segunda, ao menos, não lha recusariam. Com essa esperança fez as malas e partiu para casa, mal lhe deram a bicha de Aspirante, a aguardar futura ordem de marcha. Pouquíssimos dias depois, com um indisfarçável sorriso e sem espanto – que, das coisas militares, ele já de nada se admirava - , o carteiro entregou-lhe uma carta onde vinha a convocatória do Exército para se apresentar em Chaves.

Numa reluzente manhã domingueira de Julho do ano de sessenta e seis, ao fundo de uma frondosa Avenida, em meia-lua espaçosa, viu o seu novo destino, admirando-se por, logo à primeira vista, dele ter gostado. Saiu do automóvel emprestado pelo Pai, correspondendo, ufano, à apresentação de armas do sentinela, e solicitou esclarecimentos ao Sargento da Guarda. Se pelo brilho do dia, pelo descanso da incógnita acabada, ou a frescura do edifício, foi satisfeito que estacionou o carro no parque, fez as apresentações ao Oficial de Dia, arranjou quarto, pousou a mala e percorreu, sozinho, as divisões da sua nova casa. O Quartel, reverberando ao sol, fazia-lhe esquecer a soturnidade conventual da Escola Mafrense, que, em depósito de meio ano, sempre lhe lembrara penitências de castrados fradescos, cumprindo, envoltos na escuridão, martirológios irracionais. Agora tinha, apesar da sua condição de milícia forçado, o calor e a brancura de um espaço que o aprazava. Mal ele sabia, infante ingénuo e generoso, que dentro daqueles muros, com um punhado de iguais, cozeria, no seu mais feliz período militar, o alimento puro e belo da amizade perdurável.

Em posição altaneira à cidade, como se velasse pelas suas gentes, costas defendidas pela Serra Amarela que se estendia, numa esquerda longínqua, para se grudar à cordilheira Castelhana, o Batalhão tinha uma ampla Porta de Armas, acedendo-se ao Comando e respectiva Messe de Oficiais através de uma escadaria bordejada por canteiros de verdura ou por dois curvilíneos arruamentos empedrados subindo ligeiramente. Atrás daquele, uma enorme Parada, impecavelmente limpa, com as casernas laterais, e, no cimo de uma pequena elevação cimentada, o Refeitório das Praças com a Messe de Sargentos ao lado. Depois do almoço, João desfardou-se e resolveu dar uma volta pela velha urbe onde Trajano deixara história. A apresentação ao Comandante da Unidade, dos Aspirantes esperados, seria feita na manhã seguinte, assim como a atribuição das tarefas futuras. Desceu a pé a Avenida que subira de manhã; passou no largo, onde, todos os anos, se amontoavam os feirantes da festa dos Santos; desaguou no jardim do Tabolado, em frente ao Liceu, e entrou no Aurora. Sentou-se, pediu um café, mirou e remirou o ambiente. Numa mesa do canto, escutado por uma tertúlia de catecúmenos, viu Nadir Afonso, que conhecia dos suplementos literários, de barbas grisalhas, provavelmente em vilegiatura flaviense. Reparando, descuidadamente, num jornal abandonado em cima do balcão, levantou-se, pegou-o, perguntou «Posso?», ressentou-se e, afastando a chávena, abriu-o sobre a pequena mesa redonda: era o Notícias do Tâmega. Sobre ele se debruçou, fingindo compenetrada inculca, mas reparando sempre em quem saía ou entrava. Deixou-se estar um bom bocado, pernas cruzadas, queimando cigarros. Eram bonitas as raparigas de Chaves... Depois, desceu a Rua de Santo António, virou à direita para as Termas, visitou a zona dos balneários cheia de aquistas que se amornavam nos bancos a fazer horas para a ração da água, retrocedeu para a Ponte Romana, sob a qual um Tâmega estival corria serenamente para a lonjura do mar, e reiniciou o trajecto ao contrário junto do posto da PVT. Os domingos não são bons dias para se perceber uma cidade, ausentes as rotinas, as surpresas e o nervosismo do quotidiano utilitário, mas pareceu-lhe – confirmado pelos meses seguintes - que Chaves era uma cidadezinha aconchegada, de conhecidas vizinhanças, limitada pelas faldas dos serros circundantes, onde, contudo, fervilhava um próspero comércio e um tolerado intercâmbio fronteiriço, um sopro suave e morno de fraternidade embrulhado num orgulho regionalista.

Quando regressou ao Quartel, deu, num abraço de risos e brados, com o Bandeira, seu antigo companheiro do Brotero, agora reencontrado em outra sorte. Pela noitinha, quanto viam a RTVE na sala da Messe, juntaram-se-lhes, vindos do Porto, entre outros, o Altino e o Ângelo que, feitas as apresentações, vá-se lá saber por que resultado afectivo, logo combinaram ficar no mesmo quarto de quatro camas e que tinha o número doze. João sentia necessidade de partilha, como se procurasse almas gémeas em que confiar. Boa parte da noite passou-se no desenrolar das experiências mútuas, numa pressa de conhecimento que selasse um pacto.
Continua...

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

2/02/11

AUSÊNCIA

Não sei há quantos anos - talvez desde que me conheço – que transporto uma imagem-memória sem definição.
Bem me esforço por lhe encontrar a forma, a cor e o conteúdo, mas, sempre em vão.
Nessa procura me perco sem relógio, num suor pegajoso, numa dor de impotência, numa íntima aflição.
São momentos de luta interior que tanto ocorrem numa noite de espertina ou na balbúrdia do dia, sem resposta para as minhas dúvidas, convencido de que nunca alcançarei o descanso da solução.
Umas vezes, aquela imagem surge-me num revivalismo do já experimentado, mas, quando a aprofundo, logo se me dissipa a objectivação e tudo é engano, mistura de pensamento e de lembrança no esbatimento da monotonia.
Tanto me aparece no roxo da revolta como no rubro da injustiça, no negro da ingratidão como no cinzentismo da apatia.
Tanto chora numa premência de tristeza como grita numa brevidade de alegria.
Há, porém, uma minúcia que já apreendi: o sentimento da ausência. É isso: a ausência como uma fome nunca satisfeita, uma falta insuprível, um espaço sem tempo e sem modo, continuamente à espera de quem a possa preencher.
Será a ausência de uma alma que na minha se devia encaixar? Será uma incompreensão atávica perante a frieza de um mundo que não há meio de entender?
Será uma desarmonia entre uma época sem sentido e uma consciência inadaptada?
Um vazio, aquém (e além) do nascituro, como se o corpo fosse apenas o invólucro de um nome destinado ao cumprimento de uma obrigação gerada?
Mas se, afinal, isto não se explica, por que buscar, então, no intervalo da vida e da morte, a pacificação do entendimento, essa imagem-memória, se ela é uma ausência ausente, que é o mesmo que afirmar uma incapacidade racional – não uma subjectivação incomunicável -, uma omissão que se sofre no envelhecimento de um retrato que escurece tão veloz que só damos por ele quando o espelho se fende?
Vem-me de longe essa nuvem, esse tempo sem tempo, como uma sombra dos dias, como uma angústia de exílio. Queria-a na sua substância, demorar-me na sua presença para a saber inteira, porque só assim decifraria o seu sentido no relacionamento comigo.
Bastava detê-la no meu (e no seu) conhecimento e, depois de esclarecido, largá-la definitivamente.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
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1/05/11

GERAÇÂO ESQUECIDA - II

África das manhãs morenas,
Dos risos nas areias molhadas,
Das noites suadas e serenas,
Fora dos tiros das emboscadas.

Beijei a tua boca em Porto Amélia,
Acariciei os teus seios em Quelimane,
Fiz amor contigo em Lourenço Marques
E chorei por quem ficava,
Do outro lado do mar,
A contar os dias da chegada.

África tão longe
E tão longa,
Corpos ao léu
Em camas de céu,
Amor às claras,
Fremente de vida,
Carne despida
De falsos pudores.

África das anharas,
Dos caminhos da coragem,
Das horas a sonhar
O regresso da viagem;
Negra risonha ao amanhecer,
Mulata dolente ao anoitecer,
Branca namorada de um Maio a nascer.
Terra de fogo, de sangue e de gritos,
Inúteis mortos e feridos,
O sol a ver
Um homem a morrer:

Adeus até ao meu regresso,
Sou este que me despeço.
Fui corpo e, agora, sou alma.
Uma bala me levou.
Finalmente tenho a calma
Que a guerra me roubou.

Recados de condenados,
Bocas espumas de sangue,
Corpos destroçados
Que viveram um instante.
Nacala, Nampula, Molocué, Quelimane,
Namacurra, Mocuba, Chire, Pebane,
Porto Amélia, Mocímboa, Beira,
Mueda, lá em cima, e Macomia perto.
Madrugadas sem eira nem beira,
Olhos de sono, mas sempre desperto.

Que é feito das cruzes enegrecidas,
Símbolos de uma geração sacrificada?
Estão todas desfeitas, esquecidas
A bem da Nação libertada?

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
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12/27/10

O SORRISO DO PIRES - parte 2 (final)

(Clique na imagem para ampliar)

Continuação daqui (1ª. parte).

- Tá triste, alfere...

- Conheces a serra Mapé, Gabriel? Sobe tanto que até parece a Estrela do puto, que não sabes onde é. Morreu lá um amigo meu. Mataram-no quando descia, todo contente, com aqueles com quem brincara nas férias de Verão, nos terreiros dos montes ensolarados, nos campos de girassóis, entre fardos de palha, uma volúpia de luz e calor a turvar a planície, os ecos da terra ressequida a findarem no infinito, o beijo da namorada na ilusão de um destino. Era meu amigo e tinha um permanente sorriso. Deixou-me o relógio e o fio de ouro para, «se lhe acontecesse alguma coisa» eu entregar à família.

- Frelimo, alfere?

- Sim, foi a Frelimo, mas não fales, não digas coisas que não sentes, não gostava que fingisses, é melhor assim, continuamos amigos. Tu não és desta guerra. Sabes por que estou aqui? Mandaram-me e eu vim. Não discuti nem fugi. Não quero matar, mas, também, não quero morrer. Podíamos ser todos amigos se quem governa falasse, mas os rancores não se falam. Qualquer lugar é um pedaço do mundo que não merece uma morte. Tudo se reparte, até a História, a felicidade ou a ausência dela.

- Num fala assim alfere... Num entende nada...

- Entendes, entendes. E não vai demorar muito tempo para compreenderes muito mais. Só te peço é que, quando chegar a hora de interrogares o teu futuro, não te esqueças desta noite. De todas as noites em que duas raças, no intervalo do amor, se degladiaram como numa guerra civil entre filhos da mesma pátria. Nós somos filhos do mesmo Mundo, que é grande ou pequeno conforme o imaginamos. Vais-te lembrar de mim, Gabriel, e eu de ti. Os homens são todos iguais, quem serve anseia ser servido, o escravo sonha dominar escravos, o bom de hoje transformar-se-á no mau de amanhã; a liberdade é, muitas vezes, um sofisma na encenação que a representa.

- Por favor, alfere, explica melhor, assim não...

- Gabriel, fuma mais um cigarro comigo. Só tenho LM, que tanto pode querer dizer Lourenço Marques, luz do mar, luta militar, linda mulata. Ris-te? Vês como me percebes? O teu riso é como as letras que se juntam por quem busca a ferocidade ou a beleza, o parêntesis ou o fim do caminho, a sombra ou a luz, a invisibilidade de uma emoção ou a aspereza de um instinto maligno. As letras são os tons da nossa alma, da nossa força ou da nossa fraqueza, o retrato do nosso berço, do nosso sangue. Como aqueles sons atrás de nós, ali na temba do Farol. Não ouves? Repara na sua linguagem: lentos como quem amacia uma pelugem; rápidos como quem acende uma fogueira num descampado ventoso; acelerados, quase desesperados, como quem sabe que um prazer vai acabar, ou alguém, que amamos, parte sem nós. E se fôssemos ver o batuque? Contigo a meu lado não haveria receios nem paragens de olhos desconfiados, continuariam a rufar como se a lua fosse um sol.

- Chi!, família espantar feitiço... Num pode...

- Respeitemos, então, as intimidades, Gabriel.O batuque é como fazer amor: tem leveza e fúria, suor e gritos, satisfação e cansaço. Vou-te deixar dormir. Prometo – devolvendo-lhe o dolmen – que cedo não te aborreço.

- Deixa mais um cigarro, deixa alfere...

Deu-lhe o maço e partiu picada fora. Ao fundo, à sua direita, viam-se as luzes da Intendência e dos Fuzos. As palmeira, os cajueiros e o capim alto orvalhavam, ressuando do calor do dia. Antes de entregar o Land-Rover e de se enfiar na “flat”, passou pelo barracão a fazer de morgue. Sobre a tampa do caixão viu o sorriso do Pires.
- Por M. Nogueira Borges, Porto, 15/6/10.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    O SORRISO DO PIRES

     (Clique na imagem para ampliar)

    No arredor de Porto Amélia, na confluência da picada para Montepuez, ficava o polígono do Exército, que, nesse ano de 68, juntava, entre outros, o comando do sector e a companhia de caçadores com guarnição metropolitana e provincial.

    O pessoal, depois do jantar, juntava-se, na esplanada da messe, a conversar, a jogar o xadrez, as damas, a sueca ou os dados. Muitos davam uma volta à Jerónimo Romero para bebericar umas cervejas frescas nos seus dois ou três bares. Esta era a maneira de fugir àquele ambiente soturno, qual plataforma de logística bélica, com chegadas e partidas de Unimogues, Berlietes e Jipes despejando camuflados poeirentos. Vinham do mato com a pressa de um banho e de um prato quente numa mesa, debaixo da qual pudessem meter as pernas. Traziam olhares esgazeados, como se fugissem de um susto; rugas precoces de cansaço repisado, como se toda a angústia do mundo lhes encolhesse a pele. Havia noites em que a sala tinha mais comensais forasteiros que residentes. Era vê-los, estômagos compostos, a dirigirem-se para os terreiros das tembas ou para as cubas-livres e uísques na sala do barco, se fosse dia de S.Vapor, e que, acostado no minúsculo cais, noite fora, carregaria algodão. Os que regressavam aos seus destacamentos disfarçavam a contrariedade com gargalhadas desvirtuadas ou afivelavam o rosto, tentando esconder a interrogação futura – os seus olhares tinham a sombra da dúvida, a antecipação do sofrimento.

    João, daquela vez, ia sozinho. Não lhe apetecia trocar palavra. Sentia-se sem préstimo. A fala era consigo, num turbilhão silencioso. A informação chegara por mensagem relâmpago e secreta, mas, instantes passados, já todo o sector a conhecia. O Pires morrera na Serra Mapé quando descia para Macomia, fuzileiros já incorporados após nomadização. Ficaram a olhar uns para os outros, à espera de que alguém contestasse a notícia. Então ele oferecera-se, todo contente, para ir buscar alguns dos seus amigos de infância, e morrera? Assim: «Comunica-se a morte em combate do...». Como? Em combate? Mas ele fora só ali abraçar os seus antigos companheiros de escola, que não via há muitos meses, e vinha já. Tocava-o um aturdimento sem compreensão, uma amarga irracionalidade, qual mudez do pensamento. Quando, ao escurecer,a patrulha regressou, com o furriel alentejano enfiado num saco de dormir, as lágrimas saltaram como balas de revolta, bocas fechadas nas caras de cera. Uns devem ter pensado «Olha do que me safei.», outros «Que porcaria de destino este.». O comandante, habituado, ou fingindo que sim, chamou o soldado cangalheiro para transformar o Pires num soldadinho de chumbo à espera de um barco ou avião.

    Atravessou a avenida com passeios de terra vermelha, fumando LM, sem se perceber. Subiu à esquerda, passou pelo palácio do governador com dois sipaios, envoltos em capas de lona, pasmados à entrada. Um pouco acima, debaixo de mangueiras gigantes, ficava a casa do inspector da pide, lendo, talvez, sob a luz coada de um candeeiro de pau preto, os relatórios da subversão; ao fundo, rodeada de acácias rubras, a casa do seu conterrâneo Jaime, onde matava a fome da comida das suas terras. Desceu, encurtando caminho pelas escadas, que ligavam a alta à baixa da pequena urbe, e no Pólo Sul pediu uma laurentina.Como era possível morrer quando a vida mal começava, sem pai nem mãe saberem, uma razão a justificar a imolação? Levantou-se, descendo a Rampa, passou pelo barracão dos monhés, anunciando uma fita indiana, e parou no muro sobranceiro ao Índico, que reflectia a prata da lua. À sua direita, numa restinga, o caniço do Paquitequete preparava-se para fazer de lupanar nocturno.

    Subindo, agora, as dezenas de escadas, avizinhou-se dos edifícios administrativos, ouviu os ecos dos futebolistas a treinarem, no Desportivo, sob uns holofotes, lançando mais sombras que luz, foi falar com o Eustácio do Niassa, pediu-lhe o Land-Rover e desarvorou para a praia. A balalaica cacimbada, com o andamento, acentuava-lhe a friura. Era em Setembro e as noites enovoavam de humidade. O Pires não riria mais consigo. Contava-lhe anedotas alentejanas, vingando sempre o escárneo tradicional. Estacou junto à casa em que, aos domingos, a oficialidade se juntava. Buzinou e clamou pelo Gabriel Mazumbo. Pediu-lhe umas barbatanas e uma toalha. «Chi!, alfere, vai nadar,gora?!...» Sim o alferes era doido, estava “apanhado”, ia lavar a alma nas águas salgadas; ia purificar-se do nojo do mundo que só vomitava o sangue da morte, dos grandes sacanas que usavam o mando para chantagiar a obediência, era uma raça maldita de eunucos que discutia as fardas sem nunca as ter vestido. «Patrão, n´guenta frio!...» Parece-te, irmão negro. Tu também aguentas tudo, até as maluquices de um militar branco que não te deixa dormir e desinquieta-te da sonolência da fogueira de capim. Estou a ferver, meu amigo, uma caldeira queimando-me a consciência de que existo, mas sou um cobarde que não sai do rebanho, a ver se nenhuma vergastada do “pastor“ me quebra os ossos, me leva ao açougue.

    Agasalhado por um dolmen, que o mainato retirou de um prego da parede, assentou-se num degrau. Fez-lhe sinal para vir para a sua beira. Ofereceu-lhe um cigarro e puseram-se os dois a fumar. Era tão serena aquela baía, desenhada em meia lua, as espumas das ondas como carícias de sensualidade! Ao longe não se erguiam adamastores tétricos ou gritos de afogados. Como eram belas as noites de África! Como era obsceno morrer-se num palco assim! Por que não tinha a terra condições para se transformar num céu? A natureza conversava entre murmúrios de amor, namorando-se e amando-se na concretização das paixões eternas, ciciando juras que só ela entendia.
    Continua...
    - Por M. Nogueira Borges*, Porto, 15/6/10.
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    9/25/10

    A CASA

    (Clique na imagem para ampliar)

    Todos, uns mais que outros, estamos ligados às casas onde morámos. As peripécias da existência levam-nos, muitas vezes, a geografias diferentes das que conhecemos na nascença. São as condições do destino, contrariando a vontade ou os desejos de mudança para a concretização (ou não) de um sonho. As casas são o canto das confidências ou o altifalante dos destemperos, a alcofa do amor ou o antro da repulsa, o espelho da harmonia ou da truculência, o retrato da ternura ou do gelo, a redoma das inocências ou o estilhaçar das más criações.

    As casas são pedaços da nossa memória povoada de risos e de choros, de zangas e de perdões, de vida e de luto, de realizações inesquecíveis e injustiças traumatizantes, de brincadeiras e de recriminações, de opulência e de escassez, de grandezas e misérias – de tudo, afinal, de que é feita a roda da vida.

    Quantas vezes uma casa é a referência de uma cronologia, o antes ou o depois de uma casualidade, a justificação de uma luta, o renascer de uma afirmação, o hiato de uma dificuldade, a certeza de uma vida inteira. As casas são sempre a moldura de uma época, figurantes imóveis da mobilidade do nosso filme.

    Há dias, vi, na longa avenida onde moro, uma dessas casas, por onde passei, ser demolida como quem esmaga uma inutilidade. Subia-se por uma escada em cotovelo, que dava a um longo corredor, marginado por quartos, até terminar numa pequena cozinha aproveitada numa reentrância da sala de jantar, frente à qual se estendia uma frondosa ramada que, todos os anos, dava alguns almudes de vinho americano, e onde, à sombra dela, as crianças faziam tropelias diante da complacência de uma bondosa avó. Foi ali que escutei, enquanto o sono não vinha, o ruído dos eléctricos nas suas correrias nocturnas, no tempo em que passear à noite ainda era uma liberdade; que, surpreso, ouvi sagas africanas de esplendor e de debandada, contos de honra e de abdicação; que ri com satisfação e me silenciei nas preocupações; afaguei nascidos e chorei por quem abandonava o mundo; que confirmei o ensinamento da minha meninice aldeã: a partilha do pão tanto pode ser por dois como por quatro.

    Quando o mastodonte de tijolos e cimento parar de crescer para o céu, vou pedir ao novo dono que ponha uma bandeira, lá no alto, com um coração desenhado. É A ÚNICA MANEIRA DE EU VOLTAR A OLHAR PARA LÁ.
    - Texto de M. Nogueira Borges*, Porto, Setembro de 2010.
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

    8/24/10

    A Pousa

    Quando, no lagar, as uvas chegavam ao ponto em que a prática de muitos anos o considerava cheio, antecipando cálculos de altura depois da pisa, os homens, ceados, arregaçavam as calças ou despiam-nas, substituindo-as por calções feitos de propósito, alguns ficavam mesmo em cuecas, e entravam naquele aos berros de calafrios. Em fila unida, enlaçados pelos ombros ou pela cintura, levantavam e baixavam as pernas sob o comando de uma voz «Esquerda! Direita! Um! Dois!» que, quase sempre, pertencia ao de uma das extremidades. Os esgares estampavam o esforço, mas os olhos tinham o ar triunfal de quem vence uma contrariedade. Aquelas pernas, raiadas de vermelho, que até pareciam de veias laceradas quando se erguiam (se as uvas eram brancas assemelhavam-se a troncos de pinheiros engordurados de resina), esmagavam o resultado de muitas canseiras, noites mal dormidas a espreitar o alto, farejando prenúncios, inventando aritméticas para chegarem para o sulfato, as folhas do pessoal e as bocas familiares. O dinheiro era contado, porém, farta a alegria. As horas escorriam sem pressas porque a vida se confinava à dimensão delas. As pousas espelhavam esses anos, pacientes e pormenorizados, com as fainas a fazerem-se no respeito sagrado pela terra e o seu fruto a invocar cerimoniais idólatras. Para cá e para lá, como se os pés mastigassem a lama de um brejo, os homens escreviam uma saga que a história narraria. Na época sobre a qual se escreve, não havia roladores eléctricos, nem a parafernália industrial que sintetiza funções mas não as deixa conhecer. Os bagos espalmavam-se devagar e os pedúnculos dos cachos, mesmo amolecidos, entorpeciam os pés.

    Nos quinteiros, enquanto os homens espremiam as uvas, as mulheres dançavam umas com as outras e poucas cediam aos galanteios dos visitantes sem trabalho nocturno. Quando alguma se atrevia numa espreitadela ao lagar, logo uma voz rude lhe cortava a curiosidade. A pousa era macha e recatada de olhares fêmeos; tinha fins tardios que elas bem queriam aguardar. Quando os bagulhos subiam à tona, os homens despegavam-se e exigiam a concertina e os ferrinhos para se esquecerem do poço. Os mais aflitos, virando-se para a parede, aliviavam-se na lata estrategicamente colocada num canto; dividiam-se fatias de presunto com pão e canecas; um maço de Três Vintes dava para todos; cantavam-se, à desgarrada, piadas acintosas com gargalhadas de escárnio, os mais calados numa ânsia de acabar. Uma pousa durava três horas que, para uns, era uma eternidade e, para outros, um sacrifício que a necessidade pedia. Pagas à parte e a preço melhorado, os pés ganhavam o que os braços e os ombros de alguns muitas vezes não podiam ou não queriam.

    Quando a rotina preguiçava os corpos e o sono era um apelo irredutível, o jogo da cabra-cega excitava os minutos finais. Lançava-se a sorte para o primeiro a ser vendado, atava-se-lhe um lenço à volta da cabeça, de nagalho bem apertado na nuca, obtinha-se a certeza de que ele nada via e, então, punha-se à roda a levar palmadas no rabo até agarrar o acertante, enquanto um, considerado excluído do jogo, se postava junto da prensa para evitar que o toutiço do supliciado não se esquinasse nela. Alguns, por desfastio, confinavam-se a leves raspões, mas outros - a maioria -, repentinamente atiçados por um sadismo encoberto, esticavam as manápulas e batiam sem dó nem piedade. Era uma algazarra que ultrapassava as portas, estilhaçando-se na quietude da noite e incitando bisbilhotices de quem passava no caminho. O homem, cego pela venda, voltava-se como um felino, agitando as mãos na procura dos agressores, descurando assim o traseiro onde saraivavam palmadas histéricas. Quando, porém, pilhava um, entregando-lhe o lenço, esfregava as mãos com quanto cuspe tinha e exercia a vingança numa ira de alienado. Por vezes, a sanha era tal que a película do vinho fazia ondas com os saltos e as fugas dos homens, possessos pelo acinte da desforra; quando algum, no meio de uma troça delirante, caía no mosto, a pousa concluía-se por entre juras de pagas na noite seguinte.

    O lagar sossegava lentamente, esboçando a manta; os homens lavavam-se na torneira do tanque ou no vasilhame que estivesse livre; o fartum evolava-se e a lua, de mármore polido, brilhava de honestidade.
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
    • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro
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    8/18/10

    A BRUXA DE AVÕES

    Vinham de todos os lados onde houvesse um sofrimento e uma última esperança por sepultar. Os do fundo do vale subiam e os dos montes em redor desciam à Corredoura. Os primeiros puxavam os carregos de desalentos, os segundos escorregavam com eles. Uns e outros juntavam-se no largo fronteiro ao casarão, esperando que as portas se abrissem para entrarem no corredor que levava a uma enorme sala, mais rectangular que quadrada, onde, no canto mais distante, num elevado de madeira, se sentava a Santa de Avões toda de branco. Dir-se-ia que as misérias do mundo, os maus destinos da condição humana, desaguavam ali, feitos detritos de um rio de desgraças.

    Quando Jorge acordou, pressentiu uma inabitualidade, um bulício de segredo, uma preocupação de disfarce que lhe exagerou a atenção. Ele estava na idade em que não se analogiam os factos, mas, se repara na alteração das rotinas. As crianças são as fatais denunciadoras dos adultos e dos seus casos. Têm um conhecimento despido dos nódulos da experiência e essa virginalidade dá-lhes a percepção isolada das coisas. A Mãe bem se esforçava por o distrair, mas, numa altura em que a Alda lhe perguntou o que havia de fazer para o almoço, raspou-se para a porta a espreitar aquele borbulhar de excepção. Ficou travado de espanto: paralíticos, em cadeiras de rodas, rostos redondos, olhos esbugalhados, bocas espumadas, aconchegados por mulheres de xailes pretos; homens, com uma só perna, amparados a muletas; aleijadinhos, colados ao chão por mãozeiras de madeira seguras por fitas de solas, joelhos dobrados e pés para cima; cabeças mexendo-se incessantemente, para um e outro lado, como metrómenos; e, ao fundo, com a bengala em descanso, o seu Avô sentado ao lado de uma mulher vestida de neve. Desatou a fugir pelo corredor fora, desceu a escadaria e correu ao quintal onde os dióspiros continuavam a amadurecer. Andou por lá, indefinido, a pontapear as pedrinhas que ele revolvia na terra ainda fresca; foi ao patamar da sineta e puxou pelo arame com tanta força e duração como se quisesse interromper a continuidade do tempo ou sobressaltar comportamentos contrários às suas regras.

    - Jorginho, anda tomar o leite! Que andas tu a fazer?! – admoestou-o a Mãe da janela, assim que ouviu o som do bronze.

    Quando estava quase no fim da chávena e a meio do pão com manteiga, voltou-se na cadeira e perguntou:

    - Mãe, o que é aquilo?
    - Aquilo o quê?
    - Aquela gente toda aleijadinha no salão?
    - Estão a rezar para ver se se curam, mas os meninos não podem lá entrar.
    - Mas eu já lá fui, vi meninos a babarem-se ao colo das Mães, a olharem para o tecto.
    - Mas não devias ter ido... São doentinhos e tu não és...

    Jorge pediu licença para ir ver o Mouco às Águas. Guardando as sombras, certificando-se de que ninguém o via, empurrou a porta; um clamor abafado estalou-lhe na cara. Havia quem gemesse como moribundos; se agitasse como peixes fora da água; se esforçasse por se libertar das cadeiras, presos por colas invencíveis; quem quisesse falar e as bocas entupiam-se; estremecesse como molas largadas, repentinamente, por mãos ocultas, depois de muito tempo esticadas; uivasse como lobos desesperados de fome. Pasmado, no meio daquele arquejo, procurou, por entre pernas e braços, o Avô. Lá estava ele: o rosto inundado numa convulsão patética e, pareceu-lhe, infeliz. Viu-o tentar levantar-se sem a bengala, esboçar um passo, numa máscara heróica, para logo se deixar cair, pesadamente, na cadeira. Teve um impulso de furar aquela mole miseranda, substituir-se à sua perna e traze-lo para o sol, a sombra do diospireiro, o balouço dos lilases, a sineta da sua tentação, o pomar das laranjas de umbigo, os bardos da touriga preta ou da malvasia branca, a mata das mimosas, a fonte da água que sarava os ossos. Saiu seco, cheio de raiva, incapaz como uma inutilidade, espreitando todos os cantos que lhe pudessem denunciar a mentira da sua visita ao Mouco.

    Foi até o muro da ramada, diante do qual se plantava o cemitério numa solidão corpórea. Tocou-lhe com o olhar e sentiu no peito um fio a queimá-lo, igual ao da sopa muito quente julgando-a já morna. Viu-se mergulhado por veios salgados que o obrigavam a soluços compassados iguais àquele dia em que lhe desapareceu a camioneta de madeira mercada numa tenda do Socorro. Chorava, mas não fundamentava a causa. Seria uma reacção de instinto dos vivos ou a fatalidade dos mortos? Ele ainda não sabia que o que a infância nos dá no futuro se repercute, que somos sempre, mas sempre, pendências para os que nos criam.

    O seu Avô, desistente da Ciência que não o recuperava, descia à cova feiticeira, confundia-se com o mais padecido desespero que é aquele que nenhum dinheiro apaga porque nasce nas chagas do corpo e espalha-se nas dores da alma. Impressionava-o aquela mistura, magoava-o a constatação de que, afinal, o seu Avô tinha a mesma condição dos que ele via, feitos eunucos locomotivos, arrastando restos de corpos. Isso queria dizer que o seu Pai Velho, viúvo de Mulher sem grinalda e duas vezes Pai - porque tinha uma filha e um neto na preocupação das horas -, enchia alguns toneis de vinho mas não comprava a saúde, que a sua perna se arrastaria até morrer e que a bengala era mais ágil do que ele.

    Esperou, apesar de tudo, acordar um dia com o Avô a desafiá-lo para uma corrida à volta da taça ou adormecer sem escutar o bater do maldito bastão no corredor. O ataque que lhe dificultava os passos, tolhendo-lhe a natureza, transformara-o num quase inválido, numa memória das caminhadas pelos socalcos ou pelas estradas das carregações do vinho. Não era justo. Crescia entre a escuridão de uma orfandade e uma inquietude que lhe devorava os frutos compensadores de carinhos perdidos. Não, não era justo. Uma criança não deve nascer com estigmas de morte nem criar-se com maus presságios de vida.

    Jorge crescia, assim, sem aviso de que viera a uma raridade em que há destinos que são como roletas que param onde nunca devem. Ninguém conhece onde se materializam aqueles porque o nascer não é uma negação nem um remorso; nasce-se por um amor ou um desejo que, mesmo quando passageiros, não apagam o instante em que eles se concretizam. Se ele viera ao sol e à sombra é porque tinha uma existência para cumprir e não seria a vulnerabilidade de mortes prematuras que lhe impediriam a jornada. Dessa ideia, numa transparência amniótica, nunca se livrou. Daí, talvez uma certa frieza perante os equívocos; estava vacinado, desde o seu início, contra as quezílias do mundo; conhecera a morte desconhecida, que é a pior maneira de a sentir, e far-se-ia homem com essa memória como uma armadura que lhe permitiria entristecer-se com a as lutas fúteis e dar-lhes todo o espaço e todo o tempo porque (sabê-lo-ia já?), mais breve do que demora a dize-lo, os anúncios do fim surgem e repetem-se tão rápidos que só as noites as amortalham e os dias as lembram.

    Seria portador de um silêncio desesperado e despertado – uns chamavam-lhe subtileza, outros comodismo -, uma repulsa à precipitação, uma vigilância ao amor. Distante das vulgaridades de orgulho, faria da economia dos gestos e da fala não uma originalidade de casta, antes um comportamento conforme a sua índole. Mais do que uma separação dos outros, um ditame cromossomático. Não conseguiria ser de outro modo como se, impossibilitado de comparações, só tivesse um termo para uma questão. A vida lhe daria, contudo, a alternância dos cépticos, essa capacidade de inventar eflúvios como sobremesas oníricas de banquetes esbanjados mas tristes, ou como um sol de Inverno que rasga, repentino e esplendoroso, o cinzentismo das nuvens. Haveria quem o desconhecesse, julgando conhecê-lo; lhe tirasse um retrato que depois alterava conforme os momentos em que o encontravam. Não fixaria uma impressão, daria uma imagem, não se consumiria pela ofensa, perdoá-la-ia não a esquecendo, sabedor que todos os termos se cumprem e a paciência duplica o prazer quando acaba o motivo que aquela origina. Aprendeu cedo – cedo de mais - a esterilidade do confronto sem préstimo, esse sadismo humano dos maus génios que, quando levantam a voz, arranham o mundo todo, esgotam corpos e aniquilam espíritos. Soube, antes do tempo, que toda a fúria traz, a seguir, o remorso do desperdício.

    Esse desperdício o marcou na infância e prolongou-se-lhe vida fora. Mais do que uma parcimónia, era o sentido de perda irreparável de uma pessoa que se pode amar, de um gasto que se pode evitar, o luto de uma necessidade que é sempre uma falta futura, o desbaratar de frivolidades que nunca se emendam. Não era um capricho, sim um cunho que não conseguia alterar. Gostaria de ser misturável com todos, mas, dava-se mais com os menores que sempre percebeu seus iguais. Era um filho da memória sem nunca ter professado o sacrifício de qualquer amor de substituição. Por vezes, enredava-se num labirinto sem atinar com a saída, rodeado de vozes que o chamavam de longe num jogo de escondidas. Absorto, deixava-se ir até parar, como quem (re)encontra uma convicção, espera a oportunidade.

    Naquele dia, Jorge esteve quase para perguntar ao Pai da sua Mãe por que escancarara a casa àqueles defeituosos todos. Foi quando, empoleirando-se no portão dos fundos, os viu sair como restos varridos por uma vassoura gigante de giestas, enxotados pelo engano, mais desistentes do que entraram. Foi dar com ele, pensativo, a passar a língua por uma mortalha com tabaco de onça, sentado num cesto vindimo à entrada do casarão.

    - Pai, vamos aos ninhos?...
    - Logo, meu menino, estou muito cansado – respondeu-lhe por responder, dando uma baforada. – Soergueu-se, custosamente, fincando-se na bengala, acariciou-lhe os caracóis e deu-lhe a mão.

    – Vamos lá ...– sorrindo, cúmplice, a satisfazer-lhe o pedido. - Queres ver o do melro, é?...

    Mas tinha uma cara de malogro, os olhos retocados de tristeza, a pele, quiçá, mais frouxa. Observava-lhe a perna para ver se ela já não se arrastava tanto. Reganhou a esperança - aquela esperança de que se conta pouco, mas, com que sempre se sonha - de que, uma dia, ao acordar, numa qualquer manhã, Deus Nosso Senhor lhe concedesse a Graça de o deixar brincar com o Pai-Avô.

    Nascido num berço sem precisão mas de essencialidade contada, herdaria dele o horror à ostentação; ao ter sem poder, ou fingindo que se tem e que se pode; ao só arriscar até onde ia a sua sombra, preferindo a decência permanente aos solavancos aflitos entre o muito e o nada. Mais do que um equilíbrio de borrão, era a intolerância pelo gasto sem uso e de consumo esquecido num canto qualquer, aquilo a que alguns chamam a ganância dos olhos. Havia quem associasse isso a uma contradição inibitória que o enformava no relacionamento e, em muitas ocasiões, fora dele, se soltava numa defesa para esconder aquela.

    Nem quando visitava os seus Avós paternos se lhe dispersavam os conceitos.

    Viviam no Côto, entre vinhas, a que se acedia por umas escadinhas íngremes que ligavam os socalcos. Era um ermo alto para onde se exilaram, abandonando um comércio próspero, destroçados pelas mortes fulminantes, intervaladas de meses, de dois filhos em quem sonharam depositar o futuro. A casa sem enfeites, a condizer com o desterro dos donos: soalho lavado com sabão amarelo, limpa como os puritanos o são, mobília franciscana, a sobreloja ocupada por um lagar e três toneis sem uso porque as uvas iam directamente para a Adega em cada vindima triste e apressada. As tardes domingueiras de Verão gastavam-se sob uma ramada, junto do poço, com as cadeiras de lona a amortecerem sonolências despertadas pela vontade de acertar conversas e os altofalantes cruzando modas pelos desfiladeiros e serros. A grande riqueza daquele sítio estava nas delícias do olhar: ao fundo, o vale de Abraão espraiava o romantismo na margem esquerda do rio que, na direita, corria a recta do Salgueiral e, em paralelo, o comboio do Porto; ao longe, o declive de Loureiro, vestindo um organdi de virgem, sonhava com noivados reguenses; mais arriba, ainda, nas curvas da estrada de Santa Marta, Lobrigos e São Gonçalo um conforto de espera na casa onde nascera.

    Os Avós envelheciam mais depressa do que a idade. Tinham os ombros caídos de quem há muito esperava que, do chão, regressassem os filhos roubados. Rezavam e meditavam porque era esse o seu último arrimo. Quando o Avô lhe abria as dúvidas da Fé, acicatadas pela amargura, logo a Avó, numa voz de lâmina, as decepava num ríspido: «O teu Avô enlouqueceu! Cala-te, homem, não se diz isso a um neto! Pede perdão pelos filhos!» Revoltado, perguntava para dentro – que nesse tempo havia o respeito de não contrariar os que nos ascendiam – por que motivo haveria perdão para os que tinham sido sugados à vida, quando, a bem dizer, a barba mal crescera e os filhos que não conheceram esperavam que as águas rebentassem. A Avó fazia-lhe chá namuli e torradas com manteiga, ou uma omolete direitinha como se desenhada num molde rectangular, tudo saboreado lentamente para demorar o gosto. Tinha uns olhos negros de choros repetidos, húmidos e vermelhos à menor afloração recordativa; dava uns suspiros longos que pareciam alívios de carregos insuportáveis, e se, raramente, sorria, era breve como uma lâmpada que se acende por engano e logo se apaga. Já o Avô fixava-se num ponto indeterminado, olhando sem ver, dizendo que a sobrevivência estava na capacidade de esquecermos os desgostos. Junto daqueles velhos - ele chamava-lhes velhinhos – Jorge interiorizou a existência da alma, pois só ela podia dar força a um ser humano para aguentar as dores mais inacreditáveis. Exemplificaram-lhe a resignação como um dique à loucura, a certeza de que o sossego não contradiz a evolução.

    Andado por muitos lugares e conviva de raças diferentes, nunca conseguiu separar-se das imagens da infância cheias do silêncio dos montes separados por carreiros e várzeas, bóias salvadoras diante dos que lhe infernizavam a quietude. Vira já que as zangas apressadas não dão felicidade, que o prazer é uma molécula numa célula de sofrimento e que a diversão não altera as desconfianças.

    Envolvia-se, quando passava naqueles lugares que lhe calcularam o futuro, num conflito sem saber de que lado se havia de pôr, invólucro de um espírito (in)conformado, envelhecendo como se o presente fosse sempre passado, desconhecendo o futuro que nunca resiste à linearidade que se desfaz na volúpia dos contratos sociais. Se era o ódio que fadava os humanos – custou-lhe a acreditar que o ódio existisse – e o amor um colorido de ilusões, então a honra dispensaria a paixão e a disputa humana não passava, assim, de uma feroz luta de ciúmes amantizada de invejas. Do cimo do seu refúgio resistia às podridões e aos desatinos, amargando o desalento de fazer um mundo à sua semelhança. Renunciava não por cobardia - que só o é quando o desafio é vencível e dele se desiste -, mas por uma definitiva certeza de que a existência é um faz-de-conta. Devia esforçar-se por ser como os outros, cultivar a ambição, esmagar os princípios, fingir o riso e a alegria, não se demitir da animalidade, pregar a teimosia e a vingança até cair para o lado e ter uma caixão coberto de flores e lágrimas de ocasião? Talvez a bruxa de Avões lhe alterasse o caminho e o carácter? Mas ela já morrera amortalhada com os panos da mentira. Se não fizera o seu Avô materno dispensar a bengala e os seus Avós paternos desforrarem os filhos perdidos, ele acabaria manco e órfão do mundo, desprezando todos os fabuladores.
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
    • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro
    • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

    8/04/10

    A ROGA

    (Clique na imagem para ampliar)

    Em Setembro despertava-se da moleza de Agosto. Os que haviam debandado para banhos regressavam com as preocupações recobradas e os que tinham ficado esqueciam as sestas. Os casais iniciavam os preparativos da novidade: consertavam-se os cestos e soldavam-se as latas fundeiras; lavavam-se os lagares e as prensas; varriam-se os quintais, mesmo sabendo que eles ficariam imundos em poucos dias; verificava-se o estado dos toneis depois do dessarro e da mechagem; oleavam-se as tesouras, areavamse os potes e arejavam-se os armazéns e os cardenhos.

    Com a esfolha feita os lavradores vistoriavam as vinhas, afligiam-se com um ou outro podre, faziam figas aos agouros de chuvas temporãs - às vezes desejavam-nas perante a secura da polpa dos bagos -, escutavam os feitores, consensualizavam o início das vindimas e mandavam vir as Rogas que, ajustadas com o pessoal diário da terra, seriam os intérpretes da harmonia final de um solfejo tecido só Deus sabia com que receios.

    Eram os serranos. Vinham das terras de Baião, ali na fronteira do maduro e do verde, ou das cercanias beirãs em que os migalhos de cepas se perdiam nos fraguedos sem benefício. Juntavam-se por afinidades familiares, de amizade, ou pelos empenhos aos rogadores. Desciam ao Douro certos de uma jorna aumentada com que cultivariam os seus bocados ou reporiam os gastos com as vestimentas das festas de Verão. Cantando e dançando a chula ou o malhão ao som das concertinas, dos bombos, dos ferrinhos, das harmónicas de boca e, em alguns casos, das violas braguesas, chegavam cansados mas alegres. Roga que não exibisse este instrumental não era roga, porém, um ajuntamento despersonalizado sem hipóteses de renovação assalariada, a não ser que, no ano seguinte, se incorporasse em outros grupos de merecimento. Enchiam as estradas e os caminhos rumo às Quintas, onde, durante longos dias, cortariam as uvas, transportando-as até os lagares que, depois, pisariam em noites de pousa, quantas vezes prolongadas em incubações urgentes.

    Eu via-as a meio do Caminho Velho que dá de Remostias a S. Gonçalo. Traziam, penduradas nos bordões, as trouxas para acartarem os cestos, alguma roupa extra para maliciar em bailaricos e, nos rostos congestionados, um entusiasmo festivo. Alcançado o alto sobranceiro ao vale vinhateiro - a quem os antigos chamavam Poço do Vinho de Feitoria - que se estende até os muros do Peso, os homens e as mulheres da Roga cumprimentavam efusivamente os já conhecidos de vindimas anteriores. Os novatos, medrosos e rituais, de olhar esquivo, insinuavam-se no agrupamento até se igualarem na confraternização. Combinavam-se rodadas de quartilhos e enrubescidos bailaricos. Os patrões desciam as escadas que ligavam a cozinha ao terreiro, as reverências prodigalizavam-se no contágio da euforia, e havia quem distinguisse a dona da casa: «Vindo eu daqui tão longe/ Sem pôr os pés na calçada/ Venho dar os parabéns/ À senhora esposada.» O som da concertina e dos ferrinhos alegrava os corações que se esvaziavam de diferenças. Quando a noite se anunciava, a ceia retemperava esforços e espevitava vigores. O Feitor aconselhava o deitar cedo; os homens e as mulheres escolhiam os lugares em cardenhos separados, à mistura com pilhérias libidinosas.

    O dia começava cedo com dejejum de bagaço, broa e uma lasca de bacalhuço; a meio da manhã, serviam-se batatas com sardinha de barrica. O retinir das tesouras, pelos anfiteatros do gigantesco Coliseu Duriense, confundia-se com as cantigas e os chistes. Todos, novos e velhos, isentavam-se de pudores, mas, não chegavam ao destempero. Os novos arquitectavam namoricos e muitos beijos se roubavam a coberto da folhagem dos bardos. Os velhos, de nostálgicas sensualidades, instigavam-nas como num remorso por tempos de pouco proveito... As mulheres cortavam os cachos com a preocupação de não deixarem respigo ou bagos pelo chão, e gritavam «cesta!» para que o rapaz mais próximo a levasse para os cestos vindimos. Os homens aproveitavam para descansar, limpavam o suor, esvaziavam o garrafão e fumavam um cigarro; quando a fiada se completava, punham as trouxas nos ombros que fixavam nas testas com tiras de couro ou pano de saco. Subiam dos côncavos profundos, desciam as encostas arriscadas, arrastavam-se pelas estradas de asfalto escaldante, poisando, a intervalos, os carregos nos muros, para prosseguirem, depois, ao compasso da concertina ou da gaita de beiços do primeiro da fila, até alijarem a carga, com bufos de alívio, nos lagares.

    Terminado o trabalho do dia, as mulheres e os homens aperaltavam-se – mais elas do que eles -, misturavam-se aromas de perfume Tabu, os rostos recuperavam  serenidade. No fim da ceia juntavam-se os instrumentos, afinavam-se modas e dançava-se sob a luz mortiça. Acudiam aos portões trabalhadores de outras vindimas, pediam licença, o quinteiro transformava-se num palco de gente saltitante, requebrada, envolvente, com o malhão no corpo, a chula na alma, a satisfação nos olhos, o riso nos lábios, o fogo no sangue e a disputa concupiscente das raparigas mais bonitas.

    O rogador (como me lembro!) era um tipo alto, pescoço de bisonte, ombros hercúleos, mas – contraste humilhante - , mancando desajeitadamente; quando andava, a sua perna direita parecia que enxotava cães que se lhe tivessem filado. Chegava-se à Micas, mulher de muitos homens, e berrava-lhe, julgando que cantava: «Ai anda cá ó cantadeira/ Vem p´ra minha beira/ Anda cá p’ró pé de mim/ Ai quando estás à minha beira/ Querida cantadeira/ Ai para mim é um jardim.» A Micas, de olhar malhadiço, respondia-lhe: «Já te ouvi querido cantador/ Estou agora a chegar/ Aqui estou à tua beira/ Ouve lá ó cantador/ P´ra contigo dançar.» Depois, num repente, descabreavam pelo meio dos outros, que se afastavam a entusiasmá-los com palmas, num vira e revira incrível. Ele agarrava-a, soltava-a, recuperava-a, sempre a abanar com a perna, e a Micas, agitada num riso de gralha, a deixar-se levar com o descaro da experiência. Acabada a música, ficavam à espera da seguinte, enlaçados, a arfar, de olhos desassossegados.

    Quando as estrelas iam altas e a lua se pousava no Cume, o Feitor ordenava o recolher. Apagavam-se as luzes, fechavam-se os lagares e os portões, os cães ladravam, a gataria reatava o cio, os bêbedos esborrachavam-se contra as paredes, arremessando asneiradas e desafios de navalhas, a brisa de S. Pedro amaciava frémitos e o sono vinha pesado que, ao outro dia, a vindima e as cantigas continuavam.
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
    •  *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro.
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