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3/02/10

LURDES - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

:: Allman Ndyoco pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico" ::

Era mais um dia de trabalho. Tinha que fazer o percurso habitual: Hulene, Benfica e Cidade da Matola e usar o meio habitual – o chapa. Contudo, já havia feito o primeiro percurso e agora acomodado no acento traseiro do segundo chapa, um Toyota Hiace, branco, com uma faixa preta e escritas brancas onde no pará-brisas se lia: C.Matola / Benfica, rumava à cidade da Matola, quando na paragem da Zona Verde uma figura feminina, desmazelada, desprezível e anónima subiu para o carro e sentou-se num dos acentos centrais. A mulher tinha aparência de uns quarenta anos de idade. Trançara mirabas na cabeça que desesperadamente clamavam concerto. Trajava uma blusa larga com mangas cavas, uma capulana descorada e chinelos de banho. Trazia um bebé no colo envolto numa capulana fedorenta e um plástico preto contendo couve e alface.

Nisto, enquanto percorriamos a avenida 04 de Outubro o carro imobilizou-se na paragem do bairro T-3, onde subiram quatro jovens professores e três deles acomodaram-se no banco ocupado pela mulher desmazelada e um no acento próximo à porta. Do grupo dos docentes, três eram do sexo masculino e um feminino. A do sexo feminino era a que sentara no banco separado dos demais.

A madrugada ia ao fim. O sol no nascente espreitava altivo emitindo raios quentes de verão e deixando antever que o resto do dia seria de calor húmido e incómodo e que massa de ar quente fustigaria majestosa e impiedosamente sobre as cidades de Maputo e Matola.

- Olá, Lurdes! – Disse a docente surpresa, assim que se virou para dialogar com os colegas.
- Olá, Marta! - Replicou Lurdes, a mulher desmazelada e de bebé no colo.
- Há quanto tempo?! – Marta sorriu de alegria. Estava encantada com o encontro inesperado. – O que é feito de ti?
- Nada, Marta, senão ficar em casa.

O carro estava silenciso e apenas as duas vozes se faziam ouvir.

- Conhecem a ela? – Marta questionou os colegas.
- A cara dela não me é estranha. – Respondeu um deles.
- Para mim, – Disse um dos docentes que trazia uma bata branca ao ombro direito. – parece que conheço da Matola.
- Sim. – Marta acudiu. – Foi minha vizinha frontal e mais tarde casou-se com Todinho.
- Áh, já tou a ver… - Disse um dos docentes que trajava uma bata branca. – Mas parece-me ter “crescido” muito.
- É o que também noto nela. – Confessou Marta sem reservas. – O que está a passar-se?
- Sofrimento! – Lurdes sorriu disfarçadamente.

Lurdes expressava fluentemente a lingua do Camões e esta fluência contrastava-se com a sua aparência. O seu sotaque e domínio da lingua do colonizador era, agora, um indicativo para todos que ela havia frequentado a escola e vivera durante muito tempo num ambiente citadino. Sua expressão facial e vocal, agora, despertava mais curiosidade. Por detrás daquela mulher desmazelada, refugiada nas capulanas e conformada com o destino que a vida lhe reservara, escondia-se uma bela jovem, maltratada pelo egoismo e ciúme doentio de um homem que um dia lhe levara ao altar e que ela considerava esposo e pai de seus três filhos menores.

- O que está a acontecer? – Marta estava curiosa.
- Depois do casamento, a minha vida virou um pesadelo. Todinho proibiu-me de ir a escola, relacionar-me com meus parentes, amigos e vizinhos. Como senão bastasse, passei a viver enjaulada na minha própria casa.
- Enjaulada? – Marta parecia revoltada e a conversa começava a interessar à todos passageiros.
- Sim. Todinho tranca a porta do quintal com cadeado todos dias e leva as chaves ao serviço. Arrancou-me o telemóvel para não me comunicar com ninguém, bloqueou há já três anos os canas de televisão e proibiu as minhas amigas de frequentar a minha casa.
- É impossível! – Disse o docente que envergava a bata branca. – Conheci Todinho antes do casamento. Brincavamos juntos na Matola e era um gajo “fixe” com todos, pá!
- Virou um monstro. – Desabafou Lurdes. Depois de alguns instantes, prosseguiu. – Bate-me todos dias e quando mando recados para os meus tios eles simplesmente dizem para eu aguentar, pois, o lar exige sacrifícios.
- Sacrifícios qual que é?! – Inquiriu ironicamente um dos docentes.
- E quem faz compras para a casa? – Quis saber Marta.
- É ele.
- E as crianças não estudam? – Inquiriu uma das passageiras sentada no banco traseiro do carro.
- São ainda menores. – Lurdes quase que chorava.
- Então, vejo que esse homem faz-te de máquina de gerar filhos… - Precipitou-se a passageira a concluir,
- É o que acho também. – Disse Marta.
- Esse homem precisa de ser denunciado junto às autoridades para nunca mais maltratar mulheres indefesas. – Observou o motorista em apoio à Lurdes.

Houve silêncio. Depois de alguns segundos, o professor que trajava a bata branca quis saber:

- Como saiste de casa hoje?
- Ele autorizou-me, excepcionalmente hoje, a sair afim de comprar verduras para o almoço. Assim está em casa a minha espera, mesmo sabendo que está a atrasar no trabalho. Como demorei um pouco agora porque as vendedeiras de verduras demoraram-se a chegar, sou capaz de ser agredida verbal e fisicamente sob o pretexto não ter acatado a ordem de regressar a casa à hora.
- Não me diga que ele determinou-te o tempo para chegar a casa?! – Perguntou Marta.
- Determinou.

Nas palavras da Lurdes lia-se para qualquer um certo traumatismo psicológico que precisava urgentemente de um atendimento especializado. Parecia deprimida, conformada com a situação em que se encontrava e, aparentemente, sem forças para lutar. Parecia viver numa ilha, onde os vizinhos, amigos e parentes serviam de cenário e nada mais.

No entanto, chegamos a zona da prisão de máxima segurança da Machava e na paragem da barraca verde, Lurdes desceu despedindo-se de todos acanhadamente. Quando o carro arrancou, os passageiros olharam-a até desaparecer numa rua vizinha.

- É inacreditável que a situação daquela rapariga esteja a acontecer aqui na cidade. – Disse alguém entre os passageiros.
- Onde está a família? – Inquiriu o cobrador.
- Os pais morreram faz muito tempo e ela era filha única. Os tios, apesar de lhe terem criado, nunca ligaram para ela. – Respondeu Marta visivelmente afectada pela situação da Lurdes.
- Há que fazer alguma coisa. – Disse o professor de bata suspenso ao ombro. – Daquilo que li no semblante da rapariga, ela até é capaz de cometer algum suicídio. E se tal acontecimento ocorrer, todos que ouvimos o depoimento dela sentirémo-nos culpados de nada termos feito para ajudar aquela pobre alma.
- Isso é verdade. – Foram respondendo em cadência os demais passageiros.

Dali em diante, a conversa dominante no mini-bus era a relacionada com o que acabava-se de ouvir. Cada um contava uma história similar evidenciando o modo de conclusão. E de toda conversa surgida, foi possível notar o quão as mulheres sofrem em silêncio tumular na nossa sociedade e quão algumas pessoas ainda ignoram o tal sofrimento.

Entretanto, cheguei ao meu destino. Desci do chapa, paguei ao cobrador e caminhei para o serviço pensando na Lurdes. A sua história de vida comovera-me até as entranhas e não conseguia desembaraçar-me dela sem nada fazer. Nisto, decidi rabiscar esta linhas para fazer chegar a toda gente o grito e o marasmo da Lurdes, aquela mulher desprezível, maltratada e recolhida em si como um caracol.
- Allman Ndyoko, Moçambique, 28/02/2010.

10/24/09

A Intrusa - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)


:: Allman Ndyoco pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico" ::


É noite. O céu escuro e baixo hospeda nuvens brancas que refletem o seu clarão aos bairros menos iluminados. De longe, ouve-se dois bêbedos cantarolando numa barraca em tom alto e num outro ponto do bairro um pastor prega o evangelho, em changana, aos crentes e a sua voz melódica atravessava o bairro na boleia do vento que sopra fraco.

Um avião estrangeiro aterra na pista que fica defronte da casa do Leo. O barulho do aparelho se prolonga até junto do limiar da pista e os reactores cumprem um silêncio tumular. Junto a relva, em frente à casa, grilos cantam pausadamente preenchendo o silêncio com musicalidade natural e hábitual.

Sentado na varanda da cozinha, Leo aprecia a noite e deixa a imaginação percorrer o caminho do passado: lembra-se de momentos alegres da vida, sorrí perceptivelmente, depois puxa o ar da noite para os pulmões e no fim, liberto-o demoradamente como se os pulmões fossem duas câmaras-de-ar pequenas em pleno vazamento.

A brisa nocturna acompanha-lhe amigavelmente e pouco-a- pouco, Leo perspectiva o amanhã ordenando as ideias no meio do silêncio e do escuro da noite. De repente, uma mulher, dos seus vinte e nove anos de idade, irrompe o quintal correndo apavorada.

- Hei, onde pensa que vai? – Gritou Leo aborrecido pela invasão inesperada ao domicílio e interrupção involuntária dos seus pensamentos.

A mulher, gorda, baixinha e trajada de uma calça e camiseta branca aproximou-lhe ofegante. Estava exausta de tanto correr. Medrosa dos seus perseguidores procurou, como se de um cão se tratasse, esconder-se ao lado do Leo olhando assustada por todos cantos da direcção por onde havia surgido. Leo olhou-a debaixo ao topo e vice-versa, e, depois quis saber:

- De quê foges, mulher?
- De polícia, tio. – Respondeu visivelmente dominada pelo medo. – Eu vinha do salão de cabeleireiro e junto ao muro do Durão avistei três policias a patrulhar o bairro.

Fez uma pausa para descansar. A mulher estava realmente exausta! A respiração ofegante dificultava a fala. Nisto, após um compasso de espera, prosseguiu:

- Fugi dos polícias com o medo de exigir-me bilhete de identidade que nem tenho.
- Achas que isso é motivo suficiente para empreender uma fuga de natureza a que agora acabas de me mostrar?
- Héeee. – Encolheu os ombros esboçando um sorriso forçado, depois, lançou o olhar a rua e acrescentou: – Fiquei com medo. É que, os homens quando me viram a fugir, perguntaram-me do que fugia, mas como tenho esse hábito de fugir autoridade, logo as pernas obedeceram ao impulso de fuga.
- Eles não te vão exigir absolutamente nada! – Sossegou-a. – Estão simplesmente a fazer seu trabalho de rotina, como forma de prevenir qualquer acção criminosa.

A mulher sob o domínio de medo ainda mantinha-se escondida nas costas do Leo, que não parava de se divertir com aquele espectáculo gratuito. Ela estava demasiadamente apavorada e o seu interlocutor achou anormal esse seu estado de espírito. Nisto, saiu para confirmar o facto. Espreitou a rua nas duas extremidades e não achou polícia algum. Deu meia volta e juntou-se novamente a mulher que agora se mantinha apeada na sombra escura da casa.

- Já devem ter ido. – Disse-lhe exibindo um leve sorriso nos lábios. – Agora penso que já podes retirar-se do meu quintal.
- Foram mesmo? – Saiu do escuro segurando chinelos nas mão para qualquer eventualidade empreender mais uma fuga espectacular. – Mas podem estar escondidos algures a minha espera.
- Não pode ser. – Atalhou. – Eles não precisam de ti e por isso se foram. E mais, hoje em dia já não é prática da polícia, em alguns pontos do país, exigir na rua e de qualquer maneira a identificação do cidadão, salvo em casos de extrema desconfiança…

Leo pareceu ter sido insuficientemente convincente com a sua argumentação, pois, em seguida, a mulher assustou-se em demasia ao avistar dois crentes de uma seita religiosa trajados de batinas brancas e azuis. A mulher riu-se perdidamente do sucedido e no final, disse:

- Não sei o que tenho ao certo com a farda policial ou militar. – Deixou cair no chão os chinelos propositadamente e calçou-os retomando no ponto onde havia interrompido. – Sempre que vejo alguém uniformizado com aquelas fardas entro em pânico. O meu desejo nesse momento é sumir do sítio.
- É estranha a sua atitude. - Observou Leo parado em frente da mulher. – Já foste presa alguma vez?
- Que isso, tio. – Fez vinco na testa e continuou. – Vira a boca p´ra lá. Shiii, deus me livre.
- Então, donde vem o seu medo por alguém fardado a polícia ou a militar?
- Não sei dizer.
- Quantos anos tens?
- Advinha.
- Vinte e dois…
- Não. – Sorriu. – Trinta e três.
- Então, viveste os tempos difíceis do país?
- E como! – Abraçou sua bolsa e iniciou a caminhada até ao limiar do quintal.

Em pouco tempo Leo percebeu o trauma da mulher e para confirmar, inquiriu:

- Nesse tempo passado terás sido submetida a uma situação embaraçosa em que no meio disso te exigiram identificação?

Atravessaram a porta do quintal que se encontrava entreaberta e já na rua iluminada, respondeu-lhe:

- Foram várias situações. Lembro-me que há muito tempo, quando voltávamos da escola a noite sempre eu e minhas colegas éramos interpeladas pela polícia, pelos militares e milicianos e exigiam-nos identificação. Quem não tivesse passava uns bons bocados.
- Como?
- Dormir na cela, limpar casas de banho das esquadras, subornar para ser liberto ou então, se for mulher, entregar as partes íntimas ao chefe ou então assistir impotente a sua própria agressão física…

Leo acompanhou a mulher até ao ponto onde dissera ter visto agentes policiais. Pararam alguns instantes e não viram nenhum polícia por ali. Retomaram a marcha conversando e andando lentamente como se se conhecessem há anos. Agora a mulher achava-se tranquila e conversava sem preocupar-se em olhar nos lados.

- Quer me parecer que você não consegue esquecer esse maldito tempo.
- Não consigo esquecer. Marcou-me prufundamente e fico aterrorizado quando vejo alguém vestido a polícia ou a militar.
- Estás traumatizada. – Balbuciou Leo extremamente comovido.

No entanto, mais adiante Leo despediu-se da mulher, encorajou-a a esquecer o passado e prometeram-se avistar mais vezes quando a oportunidade permitisse.
- Por Allman Ndyoko - 09/10/2009

10/13/09

O SUSTO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Clique na imagem para ampliar - Imagem original daqui)

:: Allman Ndyoco pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico" ::

Tinha saído da casa do Pascoal, um amigo de se tirar chapeu, fazia uns vinte minutos, se a memória não me induz ao erro, e caminhava na picada que atravessa por trás do Seminário Irmãos Maristas da Matola e se prolonga em direcção a Salina. Era uma manhã de sol e céu azul, dia próprio para um passeio a dois ou solitário.

Atravessei uma ruela que descia as quintas de grandes bastardos e continuei a marchar despreocupado e recolhido em pensamentos profundos. Ia pensando nas minhas coisas, quando de súbito vi uma Mazda 323, fechado, cor de vinho e apinhado de jovens vindo a minha frente rolando lentamente os pneus no chão da picada. Duas belas raparigas iam caminhando a minha frente, a uma distância de dois metros, e a rua achava-se deserta de gente como era de costume.

O silêncio era quase absoluto a ponto de se ouvir nitidamente o chilreio dos pássaros que vinha das espinhosas que serviam de muro na maioria das quintas daquela rua.

O carro passou lentamente ao meu lado esquerdo e cinco homens de cabeças rapadas e rostos assustadores dirigiram-me um olhar desconfiado. Todavia, continuei a caminhar. Quando fiz uns sete passos o carro parou e desceram dois homens fortes com caras de maus.

- Bróóó! – Disse um dos homens que descera do carro da porta direita.

Olhei atrás e vi os homens dirigindo-se ao meu encontro. Já no meio da distância que nos separava, o tipo que descera da porta esquerda disse, como se falasse consigo mesmo:

- Pára aí.

Parei. As raparigas que seguiam a minha frente prosseguiram a marcha sem darem em conta o que sucedia e, nesse instante, o meu coração pulou de medo. O corpo gelou imediatamente; Os olhos empalideceram e os ouvidos ficaram quase surdos. De repente, pensei sem saber porquê:

- “O criminoso não tem cara e hoje a criminalidade anda à solta por aí”.

Enquanto os homens se aproximavam deitei o olhar nas duas extremidades da rua, mas, como de costume, ela estava deserta de gente criando, assim, facilidade para a acção de qualquer malfeitor. Balbuciei umas palavras que não me recordo se era uma reza ou não e no fim, para me tranquilizar, pensei:

- “Devem ser uns forasteiros perdidos querendo saber qualquer coisa”.

Este pensamento ajudou-me de tal forma que, em tão poucos instantes, o meu coração deixou de pular e manti-me sereno e despreocupado.

- Somos polícias. – Disse um deles assim que parou ao meu lado direito. E tirando, do bolso traseiro das jeans que trajava, uma carteira para exibir, o tipo voltou a sossegar-me olhando-me como se estivesse em exposição: - Não tenhas medo, apenas queremos confirmar uma coisa.

A carteira do homem saiu do bolso com muita relutância, o dono abriu-a diante dos meus olhos e estranhamente vi um charro de maconha majestosamente deitado por cima de um cartão azul da Comissão Nacional de Eleições que o homem precipitou-se a me apresentar de raspão. Tive vontade de rir, mas contive-me. O homem guardou a carteira no bolso esboçando um rosto sério, ajeitou os óculos escuros que trazia pendurados no nariz, olhou os sulcos dos meus sapatos no chão e no fim, com uma voz rouca, quis saber:

- Posso ver a sola do seu sapato?
- À vontade! – Levantei o pé direito para trás e depois o dirigi na sua direcção.
- Não é. – Murmurou o homem abanando a cabeça negativamente.

O outro homem que se achava ao meu lado esquerdo apalpou-me a cintura e para lhe facilitar o trabalho ergui a camisete que envergava.

- Podes ir. – Anuiu o meu interlocutor enquanto o companheiro, que parecia o mais velho, olhava-me com desconfiança.

Calei-me. Dei meia volta e prossegui a caminhada com o destino ao chaveiro das Bombas de Combustíveis Madruga. Nas minhas costas o carro arrancou e continuou a andar lentamente como no inicio. Quando dobrei a esquina do muro da Direcção Provincial da Educação e Cultura e subi em direcção a paragem de João Mateus, questionei-me:

- “O que deve ser isto? Com quem me confundiram e porquê?”.

Como é lógico, não obtive respostas para os meus questionamentos. Contudo, achava muito estranha a atitude daqueles homens e não acreditava que me desembaraçara deles. Este sentimento era natural a avaliar o susto e o perigo que corria caso aqueles homens fossem assassinos no sentido real da palavra.

Entretanto, andei uns cem metros, passei umas duas senhoras que vendiam cigarros e doces e mais adiante voltei a cair em profundas meditações.

A vida na rua corria normalmente acompanhada de um fluxo rápido de automóveis. As pessoas cruzavam os passeios num vai e vem interminável enchendo de murmúrios o ambiente.

Passei um grupo de jovens que conversava numa sombra do passeio que usava e de repente, o Mazda 323 dos homens que haviam me interpelado inicialmente parou na berma da estrada, precisamente, ao meu lado. Os mesmos homens desceram do carro e vieram a minha frente. Parei desconfiando a atitude dos tipos e de seguida, um deles disse:

- És suspeito. Tens que aguardar até que venha alguém confirmar.

Estas palavras soaram-me como um tiro e ao fim do cabo, calei-me. Abanei a cabeça em silêncio e suspirei profundamente.

- Não quisemos te deter lá para não pensares que somos assassinos ou uma coisa parecida. – Acrescentou o homem de óculos escuros.

- Fique sossegado. – Retorquiu o outro homem. – É uma questão de tirar as coisas a limpo.
- Compreendo. – Limitei-me a balbuciar.
- É que aquela rua que usaste sucedem muitos assaltos devido às condições que ela em si oferece e nós estamos, precisamente, a trabalhar para acabarmos com essa onda de criminalidade.

O motorista do Mazda ligou para alguém do telemóvel, falou uns breves instantes e quando desligou o aparelho, chamou o homem de óculos escuros. Confidenciou-lhe alguma coisa e no final, subiu para o carro, onde se acomodou a espera do confirmador que pelo visto não se encontrava muito longe daquele local. Passado algum momento, um Nissan Champion branco, dirigido por uma mulher mulata parou atrás do Mazda dos agentes. Uma rapariga que vinha ao lado da mulher, também mulata, olhou-me com manifesto interesse e o mesmo gesto foi imitado pela condutora. Nesse momento notei que estava metido num sarilho imperceptivelmente e que só escaparia por um milagre divino. O diabo em pessoa estava ao meu encalço e tudo dependeria da palavra e fé da senhora do Nissan Champion. Balbuciei rapidamente uma reza mal recitada e no fim, entreguei o meu destino a deus.

A mulher desceu do carro, chamou o agente que se encontrava ao meu lado e confidenciou-lhe algo. O homem dirigiu-se ao Mazda, onde conferenciou com os ocupantes do carro e mais tarde me chamou. Ao encontrar-se junto dele estendeu-me a mão, dei-lhe a minha e apertamo-nos efusivamente.

- Desculpa pela situação que lhe fizemos passar. A senhora confirmou-nos que não és a pessoa que precisamos.
- Não tem de quê. – Respondi-lhe desembaraçando-me da mão do homem.
- Adeus.
- Adeus.

Virei-lhe as costas e afastei-me dali andando lentamente e admirando, sobretudo, a sinceridade da senhora mulata que pelo visto os malfeitores haviam lhe assaltado há dias atrás quando metia o carro no quintal, na rua onde os agentes haviam me interpelado inicialmente.
- Por Allman Ndyoko, 07/04/2006.

- O Autor Francisco Absalão:
Nome artístico -Allman Ndyoko;
Nasceu - Em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
Residência actual - Maputo.
- Produto da nova vaga de escritores moçambicanos dos anos 90, cursou História da Literatura Portuguesa, promovido pelo Instituto Camões em parceria com a Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane. Tem textos literários publicados em antologias, como: Histórias do Mar (2005) e Esperança e Certeza II (2008). Venceu os seguintes concursos de contos: Historias do Mar (2005), Contos e Bandas Desenhadas - promovido pelo Instituto Camôes em Maputo/Moçambique (2006). Podem encontrar textos literários de sua autoria em seu blogue particular "
Contos e Poesias do Índico" e publicados em várias revistas e jornais electrónicos no Brasil, com destaque para a editora online Blocos e Recanto das Letras.
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10/02/09

As Moças - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Clique na imagem para ampliar)

:: Allman Ndyoko pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico"::

Nunes devorou com gosto o peitoral e a asa do frango e batatas fritas, à moda KFC, e com o pão integral limpou no prato uma pobre nódoa de molho de tomate e maionese e saiu do Take away rotando e transpirando. Limpou a boca com as costas da mão direita e precipitou-se a apanhar o “chapa” que lhe levaria lá para as bandas do Xiquelene, bairro periférico de Maputo. Ao acomodar-se, ao lado de uma janela, como era hábito, abriu-a até a metade para arejar.

Era fim da tarde. Tarde muito quente, de calor húmido e incómodo. Lá fora do “chapa” o barulho dos motores misturados ao murmúrio dos populares que faziam da paragem de Benfica o seu ponto de trânsito com destino aos diversos bairros suburbanos, como são os casos de: Matendene, Zimpeto, Malhazine, Magoanine, Hulene e outros, era ensurdecedor. Entretanto, o motorista fez duas acelerações absurdas para chamar atenção dos passageiros e arrancou bruscamente para que um outro “chapa” não o vedasse a passagem e parou na única e estreita saída condicionando o trânsito e provocando um mar de protestos que se manifestou por meio de de buzinadelas de outros automobilistas como se quisessem chamar à quem de direito a restaurar a ordem e paz através de repreensão daquele acto deliberado que é característica, já de barba branca, de muitos chapeiros da praça.

- Xiquelene, Xiquelene sentado! – Gritou o cobrador totalmente indiferente aos actos de protesto dos demais automobilistas que ansiavam retirar-se daquele ponto infernal de trânsito.

Despreocupados também, os passageiros iam subindo ao carro sem pressa e pouco-a-pouco os acentos lotaram e finalmente a saída ficou transitável e o cheiro da fumaça resultante da queima do diesel nos motores dos “chapas” e os protestos ensurdecedores desvaneceram. Já em anadamento, o cobrador, um jovem de uns vinte e poucos anos de idade e com aparência de um drogado, fechou a porta do Toyota Hiace arastando-a e provocando um chiado de arrepiar os dentes.

O carro deslizou veloz no asfalto e na rotunda da Missão Roque descreveu à direita obrigando os passageiros a inclinar-se para o lado direito e no fim, tomou a direcção de Magoanine.

- Estamos a pedir reduzires a velocidade, senhor motorista. - Gritou uma rapariga dos seus desaseis anos de idade sentada no último banco traseiro do “chapa” na companhia de três amigas que falavam em voz excessivamente audível. Riu animada pelo seu grito e acrescentou. - Nós outros, senhor motorista, temos ainda filhos menores por criar... veja se não incurta a nossa vida.

As raparigas riram todas satisfeitas com a advertência feita ao motorista e continuaram falando em voz excessivamente audível. Já próximo à paragem de Malhazine, uma das raparigas vociferou:

- “Quebrador”!

O jovem cobrador torceu o pescoço e inquiriu com a cabeça.

- Diz-me quantos passageiros estão neste “chapa” e quanto vão pagar.

- O que tu queres fazer com essa informação? - Quís saber o cobrador esboçando uma expressão facial de poucos amigos.

- Quero pagar-lhes o “chapa”, porque vejo que muitos deles têm cara de pobreza.

As quatro raparigas desataram a rir animadas, sabe-se lá com que raio de droga.

- Não é muito dinheiro, passageira. – Respondeu depois o cobrador brincalhão. – São apenas cem meticais... só.

- Tá bem. – Respondeu uma delas com uma voz rouca.

Uma das raparigas que parecia a mais nova, ligou um dos toques do seu Nokia 1200 e pôs-se a cantarolar algo despido de nexo. E, como combinação se tratasse, os restantes passageiros, todos mais velhos que as raparigas sem educação, voltaram-se para elas e de forma desordenada, pediram:

- Deixem-nos viajar em paz, por favor!

- Não estamos neste carro a viajar de favor. - Acrescentou um deles que ostentava uma calva tímida e uns cabelos grisalhos.

-Senhor motorista! - Gritou umas das raparigas que parecia ter uns quinze anos. – Pára o “chapa” para descer quem não aguenta viajar connosco.

Desataram novamente a rir e a assobiar cantarolando uma música do Zico.

- Esta geração, esta geração! – Lamentou o homem de calva tímida abanando a cabeça. – Muito novas e com muita vida pela frente, mas estão entregues às bebidas alcóolicas.

-É uma geração perdida. - Concluiu Nunes intimidando as meninas com um esboço facial feio.

O truque de um esboço facial feio pareceu ter dado certo, pois, temporariamente o barulho das meninas cessou. Mas, momentos depois, voltou a eclodir o barulho já com intensidade aborrecedora.

- Porra pá, Zaida, fizemos mal termos fugido aquele “kôta”. – Disse uma das raparigas denotando cansaço e ar de quem passou o dia se enchendo a cara. – Até este momento, se tivessemos ficado a “matrecar” o gajo, estariamos a beber “maningue” ampolas de cerveja.

- Viram aquela carne assada que esquecemos de levar? – Inquiriu uma das moças com lábios molhados e aparentando ter ficado com água na boca.

- A Tininha é que é culpada, porque logo que aquele senhor começou a querer as partes íntimas e a pegar-lhe torta e direita veio com a estória de fugirmos dalí.

-Não se preocupem minhas amigas. – Sossegou Tininha, pelo visto, a mais fala barato de todas. – O “kôta” pensava que ia pegar-me e molhar-me de prazer de borla, mas eu, Tininha, lhe mostrei que sou mais esperta que ele.

-Hemmmm? – Inquiriram as amigas visivelmente felizes,

-“Bati-lhe” quinhentos “paus”, minhas “sister’s” e temos “taco” para chupar tantas cervejas que quisermos.

- Por falar nisso, agora tou a lembrar-me que na minha bolsa – Zaida ergueu uma bolsa preta e agitou-a. – ainda temos meia garrafa de whisky.

O “chapa” parou na paragem da primeira rua. Nunes desceu e o carro arrancou enquanto as raparigas continuavam em alvoroço provocando com palavrões qualquer automobilista que, naquele momento, ousasse ultrapassar o “chapa” que transportava as raparigas mal-educadas. Parou na margem direita do asfalto e esperou que uma fila enorme de carros interrompesse a marcha, e quando assim aconteceu, atravessou o asfalto com prudência e mergulhou-se no meio das primeiras casas de Hulene “B” pensando na situação de vulnerabilidade ao alcóol e a infecção por doenças sexualmente transmissíveis em que aquelas adolescentes se expunham, achando que tudo o que faziam era o melhor pra as suas jovens vidas, ignorando visivelmente todos perigos que aquele estilo de vida podia transportar.
- Allman Ndyoko, 21/09/2009.

- Vocabulário:
Kota - Pessoa mais velha, que pode ser pai, mãe, tia, etc.
Chapa - Autocarro de transporte semi-colectivo de passageiros.
KFC - Loja de origem estadunidense com filiais na África do Sul, especializada em venda de frangos confeccionados.
Matrecar - Enganar, aldrabar...
Maningue - É um termo moçambicano que quer dizer muito.
Bater - Levar algo sem o consentimento do proprietário, roubar...
Sister’s - Irmãs ou amigas, isto no contexto moçambicano.
Take away - Local onde se confeccionam comidas rápidas.
Quebrador - É a forma pejorativa de denominar o cobrador dos transportes semi-colectivos.
Paus – É um calão usado com frequência pelos jovens moçambicanos para quantificar o dinheiro (metical) ao invés de chamá-lo pelo nome.
Taco – Dinheiro. É também um calão usado pela juventude moçambicana.

- O Autor Francisco Absalão:
Nome artístico -Allman Ndyoko;
Nasceu - Em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
Residência actual - Maputo.
- Produto da nova vaga de escritores moçambicanos dos anos 90, cursou História da Literatura Portuguesa, promovido pelo Instituto Camões em parceria com a Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane. Tem textos literários publicados em antologias, como: Histórias do Mar (2005) e Esperança e Certeza II (2008). Venceu os seguintes concursos de contos: Historias do Mar (2005), Contos e Bandas Desenhadas - promovido pelo Instituto Camôes em Maputo/Moçambique (2006). Podem encontrar textos literários de sua autoria em seu blogue particular "Contos e Poesias do Índico" e publicados em várias revistas e jornais electrónicos no Brasil, com destaque para a editora online Blocos e Recanto das Letras.

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9/23/09

Nostalgia - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Fotografia original realizada em praia de Fortaleza-Ceará-Brasil por Gotael - Clique na imagem para ampliar)

Hoje passei na rua do avô Buanamele na zona de Kumilamba, no histórico bairro de Paquitequete. A sua cadeira de descanso e de movimento ondulante e contínuo balançava na varanda de macuti a sós e ao sabor do vento, inspirando aos transeuntes a melancolia e incredulidade no que sucedera ao fiel companheiro das sextas-feiras à tarde.

A cadeira balançava continuamente no meio da brisa do mar, do murmúrio dos habitantes e das palmeiras bailantes, do grasnar pausado e melódico dos corvos, dos vôos rasantes e atrevidos dos milhafres, do rufar persistente de batuques de tufo, da pacífica convivência do islamismo e cristianismo, da beleza singular das mulheres, do sol abrasador de Setembro, enfim, no meio da doce melodia das linguas kimuane e macua entrelaçados coniventemente ao longo dos séculos.

Na varanda onde sempre avô descansava recitando o alcorão, vestido de túnica branca de neve e cofió com bordados multicolores, simbolo do islamismo, o ambiente era lúgubre; Já não se ouvia mais salama e alihandolilahè ditos de viva voz e nem gargalhadas animadas como era hábito.

No interior da casa, que é de pau-à-pique, rebocada de matope e coberta de macuti, só o miar agudo e insistente de gatos marcava a presença preenchendo o vazio como se reivindicassem a morte do avô ou reclamassem a solidão e o silêncio incómodo que se instalara alí desde que o mar, fiel companheiro do avô, traira-lhe roubando-o a vida e escondendo o corpo nas profundezas verdes das suas águas, numa manhã prateada, de céu acinzentado, chuvoso e de tempestade repentina.

Incrédulo, parei defronte da casa e imperceptivelmente o meu olhar perdeu-se no movimento contínuo da cadeira.

Os transeuntes olhavam a cadeira com curiosidade aguçada que se confundia com medo e respeito e relembravam o avô, certamente, sentado alí com o olhar perdido no horizonte e recolhido em seus pensamentos, numa sexta-feira qualquer após a sua habitual reza na mesquita, próxima à casa do sô Ruela, e depois de uma semana intensa de labuta no mar, balançando o corpo de frente para atrás num embalo profundo, de quando em vez, acompanhado de um recital melódico do alcorão aprendido na mocidade distante numa das inúmeras madrassas do Paquite.

O vento soprou suavemente. Pestanejei vezes sem conta e caí na emoção. Dois fios grossos de lágrimas desceram dos cantos dos olhos e precipitaram-se à boca abaixo. Suspirei profundamente. Enchi os pulmões de ar e no instante seguinte libertei-o. Manti-me alí parado como estátua se tratasse e de repente, após um ligeiro redomoinho estranho, ví avô Buanamele sentado na sua cadeira e acenando-me a mão. Tinha um olhar sereno e alegre. Seus lábios cor de mulala tremiam de emoção, deixando à vista os seus únicos quatro dentes incisivos. Tinha bochechas chupadas, olhos perdidos no fundo da órbita, corpo esquelético, pele cansada e profundas rugas na testa. Balançava na cadeira de frente para atrás trajado de túnica, cofió e chinelos de banho, seus vestes habituais às sextas-feira.

Fiz movimento para caminhar. Curiosamente as pernas cederam sem relutância e de seguida caminhei ao seu encontro. Quando me encontrei junto dele, acomodei-me medroso e atentamente na borda da varanda, sem muro, e bem próximo dele.

- Estás com medo? – Inquiriu o avô olhando-me de esguelha.

- Medo? Eu? – Sorri para disfarçar o meu real estado de espírito. – Não, avô.

- Sei que estás... – Sua voz era serena. Tinha aspecto facial descontraido, olhar meio ausente e um sentimento nostálgico. – Mas fique sossegado. Sou inofensivo.

- Obrigado. – Balbuciei.

- Ainda estou de viagem. – Comunicou ele evitando olhar pra mim. – Apenas quís vir reviver os momentos alegres que passei nesta varanda.

Mantive-me calado e com os ouvidos à sua disposição.

- Momentos que ficaram para atrás e na poeira do tempo. – Acrescentou o avô após uma breve pausa. – Anos em que pescadores com caixotes transbordantes de peixes à cabeça passavam de rua-à-rua e beco-à-beco deste bairro gritando de viva voz hopa, hopa, hopa – peixe, peixe, peixe. - e em seguida as mulheres todas lindas, vestidas de blusas de mangas compridas e curtas e capulanas multicolores amarradas à cintura, muitas delas com mussiro no rosto e lábios pintados de mulala, interrompiam os gritos dos pobres pescadores comprando o peixe, polvo e mexilhão que eram medidos aos montes modestos e justos que davam para alimentar meia dúzia de bocas sem grandes sobressaltos.

O avô fez uma pausa, durante o qual pareceu ordenar as suas ideias e depois, prosseguiu:

- Eram momentos em que o mar e os homens viviam em harmonia. Momentos em que o mar obedecia aos homens e os seus recursos pertenciam a todos. – Sorriu feliz com os olhos pregados no céu. Quando baixou-os, acrescentou: - Eram tempos em que os pescadores com os remos atravessados ao ombro e cestos de peixes suspensos na ponta do remo, distribuiam sorrisos à toda gente de tanta satisfação, gabavam-se do ofício que exerciam e viviam dele exclusivamente.

- São, com certeza, momentos que jamais voltarão! – Acrescentei com um tom de voz carregado de profunda tristeza.

- Sem dúvida! – Respondeu-me também com um tom de voz triste.

- Mas acho que nem tudo se perdeu na poeira do tempo.

- Com certeza! – Animou a sua face sulcada de profundas rugas e continuou. – Há coisas que o tempo não apaga! Por exemplo: o rubro que as acácias se revestem de Novembro à Janeiro; o simpático bailar das palmeiras gigantes; o vivo grasnar dos corvos; o azul do mar; a areia branca, macia e solta da praia; o cheiro do mar; as madrugadas prateadas; o pôr do sol silencioso; o bailar espectacular das casquinhas na crista das ondas; o verde do fundo do mar; enfim.

Calou-se. Olhou-me silencioso e depois, disse:

- Tenho que partir. – Arregalou os olhos erguendo as pestanas, encolheu os lábios e de seguida, prosseguiu: - Devem estar a minha espera para a viagem sem retorno.

- Viagem sem retorno? – Inquiri curioso torcendo o pescoço para o avô.

- Sim. – Sussurou inspencionando a nossa volta com os olhos arregalados e com um incómodo sentimento de medo.

- Schh, avô! Como assim? – Incentivei-o a continuar. – Diga-me, por favor, como se faz essa viagem?

Avô manteve-se calado e cabisbaixo. No entanto, baixei os olhos procurando perceber a maldita viagem sem retorno e quando ergui-os, a cadeira do avô balançava à sós. Levantei-me boquiaberto. Revistei o local em vão e rapidamente tratei de sumir dalí com o espírito dominado pelo medo e o corpo repleto de um calafrio estranho que deixava os cabelos tesos.
- Allman Ndioko, 23/08/2009.

- Vocabulário:

Macuti – Palha muito abundante no litoral da zona norte de Moçambique e usado para a cobertura de casa e fabrico de objectos de uso doméstico e pessoal (cestos, chapéus, leques, etç).

Tufo – Dança de mulheres kimuane acompanhada de batuques executados pelos homens.

Salama – Significa como estás? Normalmente usa-se quando se quer saber o estado de saúde doutro. Esta expressão provem do kiswahil e é usada em todas linguas de Cabo Delgado.

Alihandolilahè – Significa graças à Deus. A palavra deriva do Árabe.

Mussiro ou simplesmente n’siro – Pó derivado da fricção de um pedaço de uma árvore muito abundante no norte de Moçambique e usa-se para acrescer a beleza nas mulheres.

Mulala ou n’lala – Escova natural que usado pinta os lábios de um tom alaranjado.

Hópa ou Ihópa – Peixe.

Madrassa – Escola islámica onde aprende-se o alcorão.


- O Autor:
Francisco Absalão;
Nome artístico -Allman Ndyoko;
Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
Residência actual - Maputo.

Produto da nova vaga de escritores moçambicanos dos anos 90, cursou História da Literatura Portuguesa, promovido pelo Instituto Camões em parceria com a Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane. Tem textos literários publicados em antologias, como: Histórias do Mar (2005) e Esperança e Certeza II (2008). Venceu os seguintes concursos de contos: Historias do Mar (2005), Contos e Bandas Desenhadas - promovido pelo Instituto Camôes em Maputo/Moçambique (2006). Podem-se encontrar textos literários de sua autoria publicados em várias revistas e jornais electrónicos no Brasil, com destaque para a editora online Blocos e Recanto das Letras.


Este conto e anteriores publicados neste blogue são colaboração direta de Francisco Absalão para o ForEver PEMBA. Contos anteriores de Francisco Absalão publicados no ForEver PEMBA:

  • "Muaziza" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 17 de Maio de 2009 - Aqui!
  • "Os Leões do Diabo" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 18 de Abril de 2009 - Aqui!
  • "O Navio Ensombrado" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 13 de Fevereiro de 2009 - Aqui!
  • "O Incêndio" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 23 de Janeiro de 2009 - Aqui!
  • "O Suicídio" - Um conto de de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 02 de Junho de 2008 - Aqui!
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !

5/18/09

MUAZIZA - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Clique na imagem para ampliar - Imagem do ForEver PEMBA criada a partir da composição de gravuras recolhidas na net)

Era meia noite e época de jejum dos maometanos. A noite estava muito escura e no céu, coberto de nuvens negras, os relâmpagos festejavam ao som do trovão coriscando-o e enchendo o ambiente de uma incrível e espectacular luminosidade.

Bacar, jovem mestiço, alto, respeitoso e muito dado à religião, seguia na mota no meio da chuva grossa que teimava cair oblíquamente sobre a cidade. Enquanto seguia a estrada asfaltada, serpenteante e quase infindável, e que divide o grande e o histórico bairro Paquitequete e Ingonane, e, conduz a zona de Kumilamba, a Honda ia expelindo do escape uma fumaça esbranquiçada que pouco-à-pouco diluia-se na escuridão da noite. No entanto, a estrada achava-se deserta de gente e do foco da luz da motorizada, via-se uma infinidade de pingo de chuva que velozmente atravessavam os raios do farol cabando por desfazer depois no asfalto, já há muito tempo cossado, donde erguia o cheiro intenso de poeira molhada que impiedosamente invadia as narinas dos transeuntes. Contudo, num movimento contínuo e barulhento a motorizada ia andando desafiando a chuva teimosa do verão, quando de súbito, um vulto fez sinal de boleia debaixo de um embondeiro à beira da estrada. O jovem abrandou a velocidade e parou assim que se aproximou. Lançou a vista para o vulto no meio da chuva e descobriu tratar-se de uma rapariga dos seus vinte anos de idade.

- Peço boleia, por favor. – Disse a rapariga na maior naturalidade.

- Para onde? – Questionou Bacar em voz alta obrigado pelo roncar ensurdecedora da mota.

- Vou a Kumissete.

- Eu vou a Kuparata, mas não faz mal. – Sossegou-a Bacar e prosseguiu. – O que um jovem como eu não pode fazer para um “foguete” de mulher como tu?

A rapariga sorriu, ergueu a capulana que trazia amarada ao corpo e apoiando-se ao ombro do Bacar, subiu para a motorizada. Ela tinha o corpo totalmente molhado. Tremia de frio e dir-se-ia tratar-se de um pássaro molhado. Ela vestia uma blusa de manga comprida, lenço à cabeça, duas capulanas multicolor e chinelos de banho. Tinha ainda um par brincos de ouro nas orelhas e um brinco no nariz. Os dois braços ostentavam meia dezena de pulseiras metálicas que soavam “tlintlim” sempre que fizesse algum movimento nos braços.

- Toma o meu casaco e veste antes que apanhes gripe. – Disse Bacar tirando um casaco preto de leda que trazia trajado.

- Não. Obrigada. – Atalhou a rapariga amavelmente. – Seria demais...

- Por quê?

- Basta a boleia que me deste.

- Não concordo. – Protestou docemente Bacar como se aquela rapariga conhecesse-a há muito tempo. – Se amanhã caires doente eu me sentirei culpado, por isso, se quiseres realmente a minha boleia, por favor, aceite a minha oferta.

- Tudo bem. - Respondeu a rapariga suspirando e depois de uma breve hesitação. – Eu aceito já que insistes...

Recebeu o casaco, passou-o nas costas e vestiu-se. Bacar virou-se para observa-la. Ela tinha um trato delicado, gesto carinhoso, olhar contagiante e apaixonante. Entratanto, a rapariga abotoou o casaco em silêncio e exibindo sua dentadura branca cor de marfim, passou os braços na cintura do seu interlocutor abraçando-o calorosamente e, no fim, vagarosamente pousou a cabeça nas costas. Bacar sentiu o contacto de seio túrgidos; Um ligeiro arrepio correu-lhe o corpo abaixo, partindo da ponta dos cabelos até aos pés. Igonorou o sinal e com uma atitude ingénua, quis saber:

- Podemos ir?

- À vontade. – Respondeu a rapariga com uma voz enrouquecida.

A mota avançou e pouco-à-pouco a chuva abrandou. O trovão já ouvia-se longe e o coriscar do relâmpago via-se entre as nuvens escuras no horizonte longínquo.

- Desculpa pelo atrevimento. – Disse Bacar em “kimuane” meio embaraçado pela beleza excepcional da rapariga. – Como te chama?

- Muaziza.

- Belo nome...

- Obrigada.

- Moras em Kumissete há muito tempo?

- Acho que sim, pois, é há sensivelmente dez anos.

- Já é muito tempo.

- Pode ser.

- Gostei muito de ti. – Confessou Bacar “despido” de qualquer jeito romântico, atordoante e “cambaleante” à que muitos “patetas” nos habituaram.

A rapariga riu comovida pelas palavras do seu interlocutor; Fechou os olhos e abraçou forte o motociclista. Bacar sorriu feliz pelo sinal e continuou a acelerar a motorizada seguindo o asfalto. Passaram a zona do velho Ruela, atravessaram Kuparata, deixaram Kumilamba e na ponte da estrada da zona do Seabra e que parte do Mercado Municipal e termina em Kumissete, a rapariga questionou:

- Tu gostas de qualquer mulher que vês e apanhas na rua?

- Não. – Riu. – Só que tu não és qualquer...

- O que te garante isso?

- Não sei... mas dentro de mim algo me diz que não és qualquer mulher.

- Em que sentido, mais ou menos?

- Falo em termos de beleza.

- Ahããã...

- Que tinhas pensado?

- Nada!

- E quanto ao que te falei?

- Acho melhor deixarmos para amanhã.

- Posso ficar sossegado que a resposta será positiva?

- Penso que sim. E mais, de momento estou só e sinto que preciso de alguém especial... e se calhar és tu.

Os dois riram-se perdidamente e no fim, Bacar disse:

- Fico muito feliz em ouvir isso.

A rapariga não respondeu e Bacar continuou a conduzir a mota. Depois, em frente à um pequeno mercado, mesmo à entrada das primeiras casas de Kumissete, a mota parou e o jovem quis saber:

- Para que lado te levo?

- Óh, por aqui. – Apontou para um beco escuro que conduzia ao coração do bairro. Em seguida, acrescentou. – Estava tão distraida e que me esqueci de tudo.

A mota fumegou, a cremalheira reclamou e numa aceleração suave, arrancou enternando-se no bairro. Já no bairro as ruas estava desertas, o silêncio era incómodo e a chuva tinha parado, ficando apenas o gotejar lento e paulatino dos telhados de “macuti”. De vez enquando, ouvia-se do alto dos coqueiros um fraco grasnido de corvos espantados pelo vento.

- Podes parar alí! – Disse repentinamente Muaziza apontando para uma casa caiada.

A mota parou em frente da casa indicada. A rapariga desceu e Bacar desligou o motor questionando:

- É aqui onde moras?

- Sim.

- Com quem?

- Meus pais e dois irmãos mais novos.

Fez-se silêncio. Mas depois, Bacar quis saber:

- E quanto ao dia de amanhã, o que deverei fazer para te chamar?

- Não é amanhã é hoje.

- Sim, tinha me esquecido que é madrugada. – Sorriu levando as mãos à testa.

- Chegas aqui aceleras a mota três vezes e toca a buzina também as mesmas vezes.

- Tu vais sair?

- Sem problema.

- Teus pais não são... como direi, “chatos”?

- Não.

- Então, vejo-te amanhã as sete da noite.

- Tudo bem. – Muaziza sorriu tentando olhar o jovem nos olhos no meio da escuridão.

Bacar pôs a funcionar a mota. Muaziza deu dois passos atrás e de braços cruzados no peito esperou que o jovem avançasse. Acelerou a mota duas vezes, virou o volante e ao engatar a primeira mudança para avançar, o motor desligou-se.

- Estava me esquecendo de entregar-te o casaco. – Disse Muaziza fezendo movimentos para despir o casaco.

- Não precisa. – Apressou-se Bacar a dizer. – Podes ficar com ele agora e quando eu vier mais logo levo-o de volta.

- Não vai te fazer falta?

- Não, minha flor!

- Se tens certeza, então eu fico com o casaco e assim aproveito sentir o seu calor e cheiro durante o tempo que resta para amanhecer.

- Posso pedir-te alguma coisa? – Quis saber Bacar visivelmente excitado.

- À vontade, meu bem.

- Peço um beijo para certificar-me que não estou a sonhar.

- Não, não, não. – Disse a rapariga passando levemente o dedo indicador pelos lábios do Bacar. – Só depois quando me falares das tuas reais intenções...

- Não tem de quê! – Bacar encolheu os ombros e disse. - Concordo plenamente contigo, penso que mais logo é o momento ideal.

Pôs a mota a funcionar novamente, fez duas acelerações suaves e, despedindo-se da rapariga com um aceno de mão, arrancou mergulhando-se no escuro.

No entanto, ao amanhecer, Bacar foi a pesca na zona de Mussanja na companhia de amigos. Enquanto pescava, o jovem manteve-se meditativo durante muito tempo e cada vez que mergulhava nas profundezas dos seus pensamentos, lembrava-se da Muaziza: seus olhos esbugalhados, lábios vermelhos de “mulala”, sua face redonda e cheia, suas ancas e pernas fartas, seu jeito carinhoso, olhar contagiante e apaixonante. E assim foi até ao entardecer daquele dia.

Ao anoitecer, Bacar parou a mota à hora combinada em frente da casa caiada. Acelerou e buzinou as três vezes combinadas e depois, manteu-se a espera da saida da rapariga. Desligou o motor, apagou o farol e os farolins. Aguardou ansiosamente durante muito tempo e ninguém saiu. Os nervos subira-lhe à cabeça e lembrou-se do casaco. Buscou a coragem para entrar na casa e perguntar, mas logo hesitou. Desceu da mota e pôs-se a observar um casal de jovens que passava a sua frente. Esperou alguns minutos para ver se alguém saia da casa, mas nada! Reparou nas duas janelas da casa e viu a luz do cadeeiro e algumas sombras de pessoas desenhadas nas cortinas. Pensou rapidamente e institivamente deu dois passos à caminho da porta do quintal da casa. Nesse momento, uma rapariga, dos seus treze anos de idade, apareceu na porta e parou. Bacar aproximou-a e quase gaguejando, quis saber:

- É aqui onde vive Muaziza?

A rapariga assustou-se. Deu dois passos levando os braços ao peito e tropeçando no chão, saiu correndo para o quintal chorando aos berros. Admirado, Bacar voltou junto a motorizada. Tentou ligar o motor, mas logo a rapariga reapareceu acompanhada de um senhor que o interpelou.

- Sim. – Disse o senhor ofegante. – Em que lhe posso ser útil.

- Desejava falar com Muaziza. – Respondeu Bacar tremendo de medo.

- Estás a gozar connosco?

- Não, senhor.

O senhor suspirou, abanou a cabeça e questionou:

- Quem é o senhor?

- Um amigo da Muaziza.

Houve silêncio e dos quintais das casas vizinhas começaram a sair curiosos ávidos de inteirar-se das reais razões dos berros da rapariga. Depois de alguns instantes de silêncio tumular, o senhor prosseguiu cerimoniosamente:

- Ela morreu faz um ano e enterramos no cemitério familiar em Maringanha.

- É impossível! – Disse Bacar levando as mãos à cabeça. – Eu estive com ela ontem e lhe trouxe aqui.

- É impossível! – Repetiu o homem muito sereno. – Eu enterrei-a com estas minhas mãos. Ela adoeceu muito e morreu sete dias depois.

- Não acredito!

- Essa é que é a verdade, meu caro jovem.

Bacar girou pelos calcanhares e indagou-se:

- E o meu casaco?

- Que casaco? – Interrogou o homem que não devia ter mais do que sessenta anos de idade.

- Deixei-lhe o meu casaco porque me pareceu que estava com frio.

- Bom, talvez seja outra pessoa.

- Não pode ser outra pessoa. – Contradisse o jovem visivelmente transtornado. – Ela não tinha razões para me enganar...

- Diga-me, por favor, como era essa tal Muaziza que tanto falas. – Disse o homem pacientemente.

Rápidamente, Bacar pôs-se a descrever a rapariga e os vestes que trazia.

- É muito grave o que acabas de dizer. – Concluiu o homem. – A descrição é perfeita e os veste são os que a nossa Muaziza vestia no dia do enterro.

Houve novamente um silêncio. Depois, ouviu-se, nas varandas das casas vizinhas, o sussurar de vozes de curiosos admirando, sobretudo, o que Bacar acabara de narrar.

- Meu jovem! – Disse o homem olhando o interlocutor que se achava cabisbaixo e com ar meditativo. – Para deciparmos às dúvidas, o melhor é amanhã dirigirmo-nos à campa da nossa Muaziza...

- Concordo, plenamente.

Bacar arrancou a mota e mergulhou-se na escuridão da noite ausente de si. E já no dia seguinte, logo de manhã, os dois foram a campa da Muaziza e, curiosamente, Bacar, viu o seu casaco pousado no sepulcro e, sem mais, nem menos, caiu desmaiado.
- Allman Ndyoko (Francisco Absalão), 14/05/2009.

O Autor:

  • Francisco Absalão;
  • Nome artístico -Allman Ndyoko;
  • Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
  • Residência actual - Maputo.

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Leia também:

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4/18/09

OS LEÕES DO DIABO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão).

(Clique na imagem para ampliar - Imagem original do ForEver PEMBA)

Era madrugada. Uma chuva miúda caía obliqua e desinteressada sobre a vasta e densa floresta de Ninga. O vento soprava levemente enquanto os pássaros encolhidos nos ninhos, construídos nos galhos de árvores frondosas e seculares, chilreavam anunciando o alvorecer. As sombras da noite desapareciam lenta e pausadamente como se despedissem do ambiente, rumo ao outro lado do mundo.

Algum tempo depois, os aldeões de Ninga acordaram, pausadamente e um de cada vez, como é lógico, todos ressacados pelo terror de um casal de leões que decidira, há sensivelmente um mês, atormentar a pacata aldeia em protesto a actos pouco toleráveis para os felinos, uma vez que, vezes sem conta estes viam seus rastos seguidos pelos aldeões sempre que abatessem uma presa, e, como consequência era-lhes roubada a carne comprometendo assim a sua subsistência. Sem alternativa, os felinos viam-se atentados a atacar os seres humanos, principalmente, as mulheres que passavam a maior parte do dia no campo cultivando com os filhos às costas. Já viciados pela carne humana, os felinos viam o retrocesso dificultado, uma vez que, consideravam o Homem uma presa fácil. Daí que, dia-após-dia, vários casos mortais causados por ataques de leões eram reportados na aldeia semeando o terror entre os aldeões.

No entanto, naquela manhã de chuva miúda Cosme acordou sobressaltado. O coração batia-lhe forte e a respiração tornava-se cada vez mais arquejante. Sentou-se a beira da cama ainda perplexo e incrédulo correu os olhos à volta do aposento, como se procurasse algo misterioso que vira há escassos momentos, e no fim, passou a palma da mão esquerda na face limpando o suor que lhe escorria pela face abaixo. Suspirou profundamente como se com o suspiro quisesse manifestar o alívio de se ver salvo de um perigo real; Acordou a mulher que dormia profundamente abraçada ao bebé e quando sentou-se no meio da cama abraçou-a expansivamente. Admirada, a mulher limitou-se a olha-lo como se este estivesse em exposição. Cosme olhou a mulher nos olhos no meio da penumbra e no final, com a voz enrouquecida, disse:

- Tive um mau sonho. - Calou-se. Pareceu ordenar as ideias e depois prosseguiu. - Vi um homem correndo na floresta apavorado. Passou por mim dizendo algo imperceptível e mais adiante, próximo a uma clareira foi subitamente atacado por dois leopardos e caiu no chão inerte. De seguida, arrastaram-no para o coração da floresta olhando-me nos olhos como se quisesse me dizer algo. Dali, um estranho redemoinho fez-se presente no meio da clareira levantando para o céu tudo quanto havia solto no chão e do nada ouviu-se o pranto de um bebé e acordei assustado.

Cosme calou-se. Baixou os olhos, manteu-se pensativo e visivelmente dominado pelo sonho.

- Penso que é normal. - Sossegou a esposa. - Deve ser o reflexo da situação que vivemos na aldeia nos dias que correm.

- Não. - Atalhou meneando a cabeça. - Isto não vem atoa... deve ser algum aviso dos antepassados.

- Como?

- Algo estranho vai acontecer nos próximos dias com alguém da nossa família.

- Deus me livre! - Disse a mulher amarrando a capulana à parte superior dos seios. - Bate a boca... Isso é besteira e nada disso vai acontecer, salvo se fôr obra de feiticeiro.

- Está bem! - Cosme ergueu-se da cama. Vestiu-se rapidamente e fez movimento para caminhar em direcção ao quintal. - Façamos de conta que é definitivamente uma bobagem; Mas cá por mim, o caso é sério...

A mulher abanou a cabeça, abandonou a cama e começou a preparar-se para a nova jornada do dia na machamba.

Já no quintal, Cosme alimentou os porcos, patos e as galinhas. Afiou a catana, juntou os instrumentos da machamba e sentou-se num tronco acendendo o tabaco com um pedaço de lenha acesa, que ao longo da noite resistira à intempérie no meio da cinza da fogueira, feita na varanda da palhota.

Pouco depois, Cosme vociferou:

- Óh, mulher vamos embora. Está ficando tarde...

- Já vou, pai de Nené. - Respondeu a mulher na palhota e continuou. - Estou a separar o milho para a sementeira...

- Seja rápida. O tempo não espera à ninguém.

Dito isto, Cosme continuou a fumar o tabaco enrolado no papel caquí. De quando em vez, aspirava voluptuosamente o fumo envadindo temporariamente o espaço em que se achava acomodado e, noutras vezes, tirava a fumaça pelas narinas e, imprimindo uma dose de pressão, a fumaça esbranquiçada formava duas linhas grossas que se diluiam lentamente no espaço.

No entanto, tossiu duas vezes e, finalmente, a mulher apareceu na porta com o bebé às costas e uma enorme peneira sobre a cabeça. Atravessou a porta fechando-a nas costas; Já no meio do quintal tomou a enxada e caminhou colocando-a no ombro. Em silêncio, Cosme ergueu-se, apagou o tabaco na areia e emitando o gesto da mulher, levou uma catana na mão e armou-se de arco e flecha.

No limiar da aldeia, o casal parou para saudar uma família amiga que se dirigia à machamba que ficava no lado sul da aldeia.

- Óh, Cosme! Como vai a família? - Quis saber um idoso de barbas desleixadas que vinha também na companhia da família.

- De saúde estamos bem. Os porcos, as galinhas, os patos e outros animais lá de casa estão de saúde graças aquele - Apontou no céu num ponto impreciso e acrescentou - que nos fez e criou...

- Isso alegra-nos ouvir. - Disse uma mulher que parecia esposa do velhote de barbas desleixadas.

- A porca pariu quatro crias e a família alargou. - Informou Cosme visivelmente emocionado.

- A notícia é confortante... - Retorquiu o velhote pousando uma trouxa no chão.

- Acompanhou a notícia de ontem à tarde? - Inquiriu a mulher que vinha com o velhote.

- Não. - Atalhou Cosme aguçado pela curiosidade. - O que sucedeu desta vez nesta nossa linda aldeia?

- Ontem às seis da noite, nas casas próximas ao terreiro, uma mulher de meia idade foi atacada por um casal de leões ao afastar-se da palhota para fazer necessidade menor. O marido, que se encontrava sentado na varanda da palhota, apenas ouviu um grito de aflição e quando acudiu era tarde! O homem apenas apanhou um pedaço de lenço que a mulher trazia na cabeça e todo estava ensanguentado!

- E os vizinhos? Que fizeram nesse momento?

- Quando os vizinhos acudiram puseram-se imediatamente ao encalço do rasto no meio da escuridão já pesada e no bosque próximo ao velho cemitério, no meio do capim, acharam a cabeça e o braço da mulher e logo presumiram que os leões haviam arrastado o resto do corpo. De manhã só apanharam algumas peças insignificantes do corpo.

- Isso é triste e incrível se tivermos em conta que a zona há um tempo atrás era aparentemente despida de situações similares e de um momento para o outro, como vindo do nada, aparece-nos situações de leões...

- Este cenário não é normal, caro Cosme! - Concluiu o ancião consternado. - Creio que estes leões são movidos por um feiticeiro que tem problema com um familiar ou alguém qualquer. Esse feiticeiro transforma-se em leão juntamente com outra pessoa de sexo feminino, que pode até ser esposa, afim de atacar seus inimigos.

- Até que isso pode ser verdade! - Observou Cosme. - Pois, os leões de Deus não atacam pessoas.

- Mas que fazer?! - Inquiriu o ancião erguendo sua trouxa e fazendo movimento para caminhar.

- Os aldeões devem reunir-se para estudar esta situação... - Respondeu Cosme.

- Adeus, Cosme.

- Adeus, meu velho.

O ancião iniciou a caminhada juntamente com a família que lhe aguardava pacientemente a beira do caminho, entre capim verde e seco.

- Tenha um bom dia de trabalho e veja se regressas cedo a casa!

- Não se preocupe, meu velho. Eu estou já preparado para o que vier. Eu é que surpreenderei os leões antes deles pensarem em fazer o que fôr comigo ou com a minha família.

- Deus te ouça. - Gritou o velhote de costas viradas para o seu interlocutor.

As famílias separaram-se e o casal mergulhou-se na floresta com destino a machamba que distava há cinco centenas de metros da povoação. Enquanto caminhava no meio da floresta densa seguindo um caminho serpenteante que se perdia pela mata adentro e que se cruzava com outras tantas que conduziam à diversos destinos dentro da floresta, Cosme e sua companheira iam ouvindo o chilreio dos pássaros, o trautear incessante das cigarras, o barulho de macacos empoleirados nos galhos das árvores e as vozes entrecortadas dos aldeões que se entregavam ao labor nos campos distantes e verdejantes.

Volvidos alguns momentos, chegaram a machamba. A mulher pousou no centro do campo a peneira que trazia à cabeça. Enclinou o corpo para afrente, desamarrou o bebé no colo e voltou a amarra-lo com tenacidade. De seguida, começou a trabalhar a terra cantarolando feliz com a vida. Em silêncio, Cosme afastou-se da machamba enternando-se na floresta afim de arranjar algumas estaca para concertar o curral de porcos na sua casa.

Passado algum momento, Cosme ouviu um forte grito de aflição e saiu da floresta correndo a sete pés para acudir. Ao chegar na machamba deparou-se somente com a capulana ensanguentada e o bebé a chorar no chão, todo coberto de lama. Tomou o bebé e com a catana no punho precipitou-se a seguir os rastos com vingança na alma.

- Floraaaaa! - Cosme soltou um grito rouco de raiva e continuou. - Floraaaa! Cadê você!...

Vinte metros da machamba e próximo a um arbusto, parou repentinamente: um casal de leões disputava o pescoço da Flora abocanhando-a vezes sem conta e sem vida. Ao aperceber a presença do homem, o macho parou e rosnando fez frente ao estranho exibindo seus dentes afiados e olhos amarelos.

- Daqui não saio sem a minha Flora. - Disse Cosme em voz alta e segurando firmemente a catana com a mão direita. - Sei que vocês não são leões de Deus e por isso, daqui não saio sem o que é meu...

O leão continuou a rosnar procurando amedrontar o homem e reduzindo paulatinamente a distância que lhes separava. Com um movimento lento e atento, Cosme recuou alguns passos procurando controlar os ânimos do felino. De repente, a fêmea desapareceu pelo mato arrastando o corpo morto da mulher, e, vendo esta atitude, o macho seguiu-a desaparecendo ambos pela mata densa. Inconformado, Cosme seguiu-os novamente, como um búfalo ferido, varrendo com a catana tudo quanto era obstâculo à sua frente e próximo a um riacho viu os felinos galgando uma pequena elevação sem a presa. Apercebendo-se disso, Cosme procurou avistar o corpo e de súbito viu-o preso nos espinhos de duas árvores tombadas à beira do rio e do lado onde se achava. Correu desesperado até junto ao corpo, onde desamarrou uma das capulanas que ainda restava e, ensanguentada, serviu-se para amarrar nas costas o bebé que não parava de chorar. Atento a tudo, ergueu o corpo tombado; Calmamente, rodou pelos calcanhares e procurou voltar a aldeia com o cadáver nos braços.

Caminhou durante muito tempo olhando para atrás e às vezes parando desconfiando ser seguido. Já próximo ao limiar da aldeia parou para descansar. Nesse momento, deitou a vista em redor e há uma centena de metros viu o casal de leões atravessando o caminho em diagonal, dirigindo-se lentamente ao lado sul da povoação muito atento ao homem e a presa. Desconfiado, Cosme retomou a marcha e nas primeiras casas da povoação foi recebido por homens e mulheres no meio de gritos de espanto e pavor.
- Allman Ndyoko (Francisco Absalão), Abril 2009 - Extrato do livro Contos de Infância Distante.

O Autor:

  • Francisco Absalão;
  • Nome artístico -Allman Ndyoko;
  • Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
  • Residência actual - Maputo;

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Leia também:

  • "O Navio Ensombrado" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 13 de Fevereiro de 2009 - Aqui!
  • "O Incêndio" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 23 de Janeiro de 2009 - Aqui!
  • "O Suicídio" - Um conto de de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 02 de Junho de 2008 - Aqui!
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !

2/13/09

O NAVIO ENSOMBRADO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Clique na imagem para ampliar - Imagem ilustrativa original do ForEver PEMBA baseada na mixagem de diversas fotos)

Não havia em toda baia de Pemba a praia mais preferida pela minha malta, para a actividade lúdica, do que a Praia da Marinha. Ela ficava por trás do Quartel da Base Naval da Marinha e era muito calma e menos frequentado por banhistas por ter características impróprias ou menos atractivas para um merecido mergulho. Tinha águas quentes e cristalinas e um chão rochoso coberto por um tapete verde de algas e outras ervas marinhas. Aqui e acolá, quando a maré fosse baixa, via-se pequenas poças de água, onde peixes minúsculos e carangueijos vermelhos aguardavam a maré cheia. Já na orla marítima, o cenário era desolador: Búzios, areia grossa, montes de algas secas, ramais, folhas de árvores e frutos silvestres trazidos pela força das águas, da outra margem da cidade, no silêncio da noite, faziam parte do cenário oferecido naquele ponto da baia.

Para além disso, era frequente avistar grupos de mulheres pintados de mussiro e com lenços na cabeça pescando cardumes minúsculos com recurso às redes finas e outras apanhando ameijoas, ostras, carangueijos e caracóis marinhos que guardavam em bacias metálicas e floreadas cobertas de peneiras. Era igualmente frequente cruzar-se com pescadores simpáticos e humildes subindo e descendo às encostas da praia descalços, de tronco nú, trajando calções rotos pela acção contínua das águas do mar, chapéus de palha e empunhando remos, fios e redes de pesca, boías e, por vezes, o pescado.

De longe, ouvia-se o marulhar das ondas, via-se barcos à motor sulcando o mar e casquinhas à vela balançando e cortando impetuosamente as águas com os remos dos pescadores servindo de leme.

Já na parte superior da orla, desenhava-se um cenário diferente e belo, um tanto quanto, esverdeado e acinzentado composto por ervas, arbustos e plantas indêmicas que davam flores fechados e inchados, cor de rosa, que precionados estoiravam produzindo um barulho ligeiro muito apreciado pelos adolescentes da baia. Uma estrada asfaltada serpenteava a orla maritima ligando Paquitequete (rocha mãe da cidade de Pemba), Ingonane, Natite, Cariacó e Wimbe. Frontalmente ao mar, a natureza oferecia uma vista espectacular em que podia-se sentir o cheiro intenso do mar e vislumbrar, na outra margem da baia, as florestas de Ulonto, Bandari e um pouco de Metuge, para além de uma cadeia de pequenos montes no horizonte longínquo que desenhava-se horizontalmente desde à entrada da baia passando por Miéze e chegando a findar no cais local.

Como dizia, a preferência pela Praia da Marinha por parte da minha "legião" não se devia simplesmente à existência de inúmeras poças de agúa por onde podia-se soltar casquinhas de brinquedo artesanal e nem ao cenário oferecido do alto da estrada, mas sim à existência na margem daquela praia de uma flotilha da marinha de guerra avariada, desactivada e com o casco quase a cair de podre.

Este navio servia de sobremesa das nossas brincadeiras e era nele que aconteciam as nossas derradeiras brincadeiras, subindo ao convés, correndo por entre os corredores dos camarotes, acenando na claraboia, descendo à casa das máquinas, correndo com a mão passando na borda do navio e saltando do barlavento para o chão de areia grossa e branca como a neve, onde depois voltavamos a entrar para a casa das máquinas através de um pequeno orifício feito pelas águas do mar no casco da flotilha bem junto à hélice bronzeada que há muito resistia às investidas nocturnas do mar.

Uma certa tarde de Dezembro, após às nossas brincadeiras no mar, uma camada espessa de nuvens escuras cobriu inesperadamente o sol quando lentamente caia no horizonte colorindo o ambiente de um tom alaranjado. O céu ficou sinistro e rugiu vezes sem conta, como se do alto lançassem inúmeros tambores vazios que rolando rapidamente precipitavam-se para o outro lado da baia num percurso quase infindável.

- Vamos ao navio! – Disse Amur visivelmente dominado pelo medo do fenómeno que ocorria.
- Não. – Atalhou Saide e continuou. – Melhor é corrermos para casa...

Mal disse estas palavras, ouviu-se um forte ribombar do trovão acompanhado de um relâmpago assustador que corriscou os céus emitindo faíscas vivas que acabaram se lançando rapidamente na imensidão do azul do mar. Molhados pelas águas do mar da ponta dos pés aos cabelos, saímos correndo atrapalhados ao encontro de um abrigo no navio amigo. Entramos pela abertura junto à hélice, alcançamos a casa das máquinas e no meio da penumbra subimos ao convés passando por dois camarotes trancados. Já no convés, a chuva despenhou-se em catadupa sobre a baia criando má visibilidade no mar e na terra firme.

- Estamos tramados! – Disse alguém entre nós.
- Não se preocupem! – Disse-lhes em jeito de encorajamento. – Isto é simplesmente uma nuvem passageira.
- Espero que realmente as tuas palavras sejam reais. – Desabafou Saide encolhido nos seus vestes molhados.

A chuva caiu todo fim da tarde acompanhado de relâmpagos e rugidos de trovão. Longe da chuva abrandar-se, a noite fez-se presente com as trevas envolvendo lentamente o ambiente. O silêncio no navio tornou-se incómodo e a escuridão pesadíssima. De quando em vez, ouvia-se o ranger das portas dos camarotes e o bater constante e suave de uma chapa na zona entre a popa e a proa.

De súbito, ouviu-se um forte sapatear no corredor dos camarotes acompanhado de vozes imperceptíveis que se confundiam com humanas e animais de tipo gato selvagem. Ficamos atentos com os ouvidos apurados e muito medrosos sem saber o que fazer. De repente, o sapatear infinito e as vozes imperceptíveis cessaram e lá fora a chuva abrandou e a trovoada começou a ouvir-se longe.

- Vamos embora, gente. – Sugeriu Nuro sussurando. – Isto não é normal.
- Mas donde sairemos? – Quis saber Saide medrica.
- Há uma pequena escada no princípio do corredor que leva aos camarotes que sobe até ao mastro. – Respondi-lhe sussurando e mais ou menos tranquilo.
- Então o que esperamos? – Amur briu as mãos reforçando as palavras e prosseguiu. – Vamos devagar e sem barulho.

Iniciamos a marcha pé-ante-pé e instantes depois ouviu-se o som de arrasto de correntes metálicas no corredor acompanhado de uivos e gritos humanos de desespero. Paramos e dirigimo-nos à claraboia. Os sons metálicos, os uivos e os gritos prosseguiram já com muita intensidade seguido de um outro som de abrir e fechar a porta com impetuosidade. Ficamos com os corpos e cabelos arrepiados e no meio do escuro vimos vultos altos vestidos de branco movendo-se vagarosamente em nossa direcção. Num impulso imperceptível, Nuro forçou uma das vidraças da claraboia e caiu quebrada no chão do lado frontal do navio. Pendurou-se na abertura e com pouco esforço, devido ao seu tamanho, lançou-se à borda lateral esquerdo do navio, onde caiu e sentou-se contorcendo-se de dor. Rapidamente, todos emitamos desesperadamente a proeza do Nuro e já fora do convés saltamos em conjunto para o chão profundo e arenoso, onde em seguida saimos correndo em debandada subindo a encosta da praia e mergulhando no escuro através de um pequeno e cansativo atalho tortuoso que conduzia à estrada que serpenteava o litoral. Assim que alcançamos o asfalto todos ofegantes, imediatamente, atravessamos a estrada e sem olhar para atrás, corremos desesperados debaixo da chuva que não parava de pancadear-nos com os seus pingos doces que, atingindo-nos à cabeça, escorriam involuntariamente até a boca, onde eram imperceptivelmente sorvidos com gosto no meio daquela corrida involuntária. Entretanto, atravessamos o Quartel da Marinha correndo em diagonal e, com a velocidade quase de uma estrela candente, deixamos para atrás espaços baldios e arborizados e, sem dar em conta, derrubamos arbustos e capim alto. Contudo, transcorrido algum momento desembocamos, sãos e salvos, na estrada que separa os bairros de Ingonane e Paquitequete, onde paramos no meio da luz de um poste de iluminação pública e deitamos em conjunto os olhares para atrás todos exaustos e com a respiração arquejante.
- Allman Ndyoko, 05/02/2009.
- Extrato do livro: Contos de Infância Distante.

O Autor:

  • -Francisco Absalão;
  • -Nome artístico -Allman Ndyoko;
  • -Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
  • -Residência actual - Maputo;
  • Breve biografia - Nasceu em Pemba no não muito longinquo ano de 1977. De pais originários do sul de Moçambique, residiu em Pemba de 1977 a 1990 quando foi residir para Maputo onde trabalha e tenta prosseguir os estudos (ciências sociais).

Leia também:

  • "O Incêndio" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 23 de Janeiro de 2009 - Aqui!
  • "O Suicídio" - Um conto de de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 02 de Junho de 2008 - Aqui!
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !