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6/28/15

SAUDADE AFRICANA - Manuel Coutinho Nogueira Borges

EM MEMÓRIA DE UM AMIGO QUE PARTIU HÁ 3 ANOS
Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012. Extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória":
Onde está a África da minha saudade que conheci quando ainda não sabia que o futuro nunca é o que sonhamos?

África tão longe e tão longa que a recordação parece não ter contornos e o tempo passado permanece em cada dia que a mágoa nos aleija a alma. Acarto comigo um fardo de angústia que me isola no meio de muita gente, aquela solidão feita da repugnância do que se ouve e vê, da ingratidão que não se merece, da violência dos gestos e das palavras, da profanização sacralizada como se, na vida, só valesse o exponencial de todas as manhas.

É na invocação africana que se me diluem a podridão envolvente, a incapacidade da rotina, os olhares mal encarados, a indiferença das bocas fechadas.

Onde está a África dos meus clamores, das lágrimas escondidas nas sombras das noites de escuta?

África da surpresa por amigos esventrados, estendidos nas caixas dum Unimog ou de uma Berliet, e eu, com o seu fio de ouro nas mãos, sem articular uma frase, garganta presa pela afonia, estômago à beira do vómito, a fugir de ver o sangue e os rostos desfigurados, e os camuflados cheios do esterco da morte inglória, e as botas furadas pelos restos do chumbo, e o cérebro tomado por agulhas a picarem-me por todo o lado, por tudo que é corpo e consciência, e a olhar em meu redor sem uma luz na noite a ensinar-me o caminho, sem um som no fim da terra vermelha para me provocar o andar, sem (meu Deus!) uma esperança de que os mortos inocentes pudessem renascer para o meu convívio.

Onde está a África das cantinas no esconso da selva, das trovoadas e das chuvas apanhando-me nos descampados da savana, das queimadas fantasmagóricas nas noites despertas, perscrutando as curvas e os trilhos da traição, dos luares arrebatadores contemplados por entre os mosquiteiros já gastos pelo uso de muitos rostos, os uivos das hienas, atordoadas pelo cio e pela fome, arrepiando-me todo, acelerando o coração, alagando-me de suor, puxando a G-3, aconchegando o caqui, retesando os nervos com o dedo no gatilho?

Onde está a África das manhãs de maresia nas praias de todas as bandeiras azuis, sem ventos nem garrafões ou ossos de frango nas areias; praias tão quentes e tão finas que até parecia que um homem as pisava pela primeira vez, as suas águas tinham lábios de espuma que nos beijavam sempre em ternuras sem fim, corais como conchas vivas de um sonho irrepetível; palmares enormes como naves de catedrais góticas por onde o sol entrava, coado pelos vitrais da folhagem tão fresca, resplandecente e pura como a virgindade de uma criança?

Onde está a África das presunções fardadas, das madrinhas de guerra, das filmagens da Televisão com «um Feliz Natal e um Ano Novo cheio de propriedades», dos dias de São Vapor com cubas libres e «quem me dera regressar no Pátria!», dos calendários de mulatas nuas repletos de cruzes nos dias já passados, da obrigação de atravessar rios em almadias à procura de esconderijos de armas em ilhas paradisíacas, dos Postos Administrativos onde os sipaios nos deitavam sorrisos pepsodentes, dos funerais com danças de despedida e dos bifes de antílope a enfartaram barrigas vazias de tanta ração de combate?

Onde está a África das noites estreladas num céu tão belo e tão esmagador que dava vontade de ter asas para voar para a lua redonda como uma bola de cristal; noites de ritmos endiabrados, sensuais e espasmódicos, que o sangue fervia nas veias e rejubilava nas têmporas?

Quando o dia clareava e o fogo redondo subia na terra, um feitiço nos ludibriava com a ilusão de paz na vastidão da selva.
- Porto, *M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!
*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012. Extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". 

8/31/14

O CRISTO DE PAU PRETO

(Clique na imagem para ampliar)

O hotel dos sul-africanos, rodesianos e laurentinos endinheirados regozijava na noite morna. Luzes de cenário furavam as sombras das palmeiras de luxo que as pobres estavam no mato misturadas com os cajueiros e as imbilas. Carros espelhantes entravam e saíam em ritmo de recepção oficial. Negros de libré salamalecavam de um lado para o outro. No tecto, lustres prateados desenhavam figuras de cera. Os sussurros das vozes sugeriam futilidades e alguns risos tilintavam hipocrisias. O calor desfibrava o cacimbo e o ar flutuava de lubricidade. As fardas brancas, número um, de peitos medalhados, pareciam disfarces de corso e as piscinas espelhos polidos em que se reflectia a lua.

Uma névoa de leite descia para o Índico, um cargueiro apontava a proa para o Cabo, almadias diligenciavam marisco, a cidade adormecia embrulhada na indolência.

João deixara o Norte, muito para lá do Zambeze, os fornilhos dos atalhos de pé descalço, as minas dissimuladas na terra vermelha das picadas, o estalar das culatras das armas sem religião. Os homens que combatiam tinham coração e um Deus, mas disso se esqueciam quando os indicadores puxavam os gatilhos e as balas explodiam a morte. Agora, estava ali, embasbacado diante dos portões do hotel rico, espia da curiosidade a deambular sem mapa, pensando que, enquanto uns andavam de camuflados desbotados pelo suor, o sangue e a poeira, sujeitos a levar com um tiro ou um estilhaço nos cornos, cá em baixo, na capital provincial, os que gizavam nos mapas, em gabinetes climatizados, as operações de grande envergadura, escreviam sitrepes e perintrepes, comunicados para a Imprensa e convites para repórteres vendidos, desfrutavam as delícias do requinte colonial.

A guerra parecia-lhe uma função dividida entre fazedores de lixo e os que o recolhiam, ou, para não ser tão prosaico, um jogo de xadrez em que os peões são sempre as primeiras vítimas e os bispos, na sua obliquidade, os defensores do rei, com a rainha debaixo de olho, sem descurar os saltos dos cavalos ou a rectilínea das torres.

Sentiu uma saudade desculpável, que mais não era do que um desconforto perante o fausto que o agredia. Lembrou-se das noites de petrolina, das escâncaras do céu, do silêncio falante para lá do arame farpado, do calor gorduroso a derreter-se sob a orvalhada que crescia entre as copas do matagal, da espera do grupo que, à volta de Nangololo, pediria para que as armas não gritassem; recordou o Silva, a sua alegria para sempre perdida; o medo tão físico e manifesto que se cruzava nos olhares, misturava-se com o cheiro a urina das latrinas no canto mais afastado do polígono; a angústia dosanoiteceres - porque se o dia mostrava as formas que aquietavam os espíritos, a escuridão inquietava-os - que aumentava a espera dos sitiados. Percebeu-se necessitado de alguém que lhe falasse, um abraço sem factura, um beijo de uma boca que nunca mais visse, uns olhos que não lhe lembrassem raiva, nem loucura, nem teimosia; alguém que o entendesse sem lhe perguntar quem era, donde vinha, nada lhe impusesse nem exigisse, lhe murmurasse apenas que estava ao seu lado. Não era amor que ele pedia, só fraternidade, aquela ajuda que nunca se recusa a uns olhos aflitos, aquele preenchimento do vazio do egoísmo do mundo. Olhou as luzes embaciadas da cidade numa respiração de chafurda lacustre, os guindastes do cais do Gorjão como espectros dum filme de docas secas, um ar de desamparo que lhe exagerava a clausura.

Desceu por ruas sem passeios, ornadas de árvores, absorvendo aquele odor único de humidade e catinga, com as buganvíleas trepando pelos muros das casas e os cães despertados pelos seus passos. Tentaria um machimbombo para o levar ao centro, à avenida em que desfilara pela última vez. Depois, retrocederia para o porto e, nos botequins da rua Araújo, esperaria o amanhecer.

À porta, negros, em riso de folga, balouçavam ao ritmo do rádio que um deles segurava em cima do ombro. Não seriam macondes nem ajauas, talvez senas. Ao fundo, um cocuane, de cigarro ao contrário, avivou-lhe a memória de um maconde de cabelos brancos que lhe vendera um Cristo em pau preto: «Chi! É caro cem escudo? Arranja mais barato no Lisboa? Patrão, faz favorzinho, num diz qué caro!» Comprou e deu vinte de mata-bicho.

Negras, brancas, mulatas e algumas de ascendências asiática tinham o mesmo objectivo: a venda do corpo, a chantagem das privações dos meses a armazenar esperma, o acicate das bebidas com percentagens acertadas. A música de ritmos acelerados não deixava escutar ninguém, o suor rançoso não separava perfumes, os corpos meios desnudos alvoraçavam desejos, a promiscuidade não respeitava educações, reinava a avidez pelos que ostentavam mais dinheiro, não subsistiam fronteiras, uma desordem venial acotovelava-se e apalpava-se por entre gargalhadas e tonturas de bebidas falsificadas.

Cá fora, a balbúrdia não tinha tons nem modos, a rua era um esgoto de detritos, vómitos de misturas, escarros de bronquites relentadas, um metralhar de palavrões, «Estou farto deles! Só mandam vir e não fazem nada! Vou pró Puto e quero que se fodam todos!», uma náusea de sombras desconfiadas e gonorreias mal curadas. A bruma de algodão penetrava as roupas e adivinhava as formas. Era a neblina das noitesafricanas que manchava as ilusões dos poetas sem editores, feitos guerrilheiros à força  pelos facínoras do Terreiro do Paço. Os barcos, fundeados, simbolizavam rumos velhos traçados pelo leme de uma Pátria que, entre a liberdade e a mordaça, sempre andara fora de casa a engrandecer ou a desbaratar o seu futuro.

Acima do Zambeze ficariam as suas pegadas, diluir-se-iam as lágrimas das saudades dos seus mortos. Olharia de frente, sem medalhas, a sua história. Em Mafra haviam-lhe dito que «o Rei não manda chover, manda marchar!» Marchou. O Cristo de pau preto, numa mesa de cabeceira da casa onde nascera, seria o grito refreado da memória desses dias.
- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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7/26/14

GERAÇÃO ESQUECIDA

(Clique na imagem para ampliar)

O mato é verde como a esperança,
denso e forte como a paixão,
cheira a catinga e a feitiçaria,
a queimadas vermelhas na escuridão.
O mato é um céu aberto,
uma prisão com canos escondidos,
o limite de quem não se sente liberto,
um poema de gritos e gemidos.
O mato é música e sensualidade,
negra desnudada num banho de sol,
cabelo enrolado como um caracol,
a gritar e a correr em liberdade.
O mato é o medo que se escapa pelos trilhos,
a desconfiança aos camuflados que chegam,
a fera com cio vagueando desvairada,
suor da arte maconde ainda não prostituída,
O mato é o silêncio duma espera
a angústia sofredora de quem desespera,
tiroteio rasgando em carne viva.
O mato é a castanha de cajú,
água do coco e papaias do desejo,
caçadas de reis sem roque e sem reino,
armas em brasa na guerra sem leis.

E em África jovens se gastaram,
em tempo dobrado esperaram,
que não fosse preciso matar e morrer
para que os homens se entendessem.
Choravam pelos filhos que nasciam
pelos amigos que morriam,
e eles matando e sobrevivendo
e eles ferindo-se e morrendo.
Tinham na Alemanha próteses à espera,
na pele o sol e a chuva,
na alma uma fartura de mato,
nas mãos o cheiro do capim,
nos dedos os calos do gatilho,
nos olhos a lonjura da savana,
na saudade a viagem do regresso,
no coração a surpresa da cilada,
nos ouvidos os assobios das balas,
em Alcoitão cadeiras de rodas,
em Artilharia Um o desalento triste,
nos cemitérios valas já prontas,
nos pés arrastavam o cansaço,
no pensamento silenciavam PORQUÊ?
no corpo o desejo de amar da idade,
conforme o sorriso dos lábios e a vontade
de abraçar a mulher tão longe, tão distante.

Geração esquecida pelo antigo mando,
silenciada pelo novo mando,
por todos os mandos imprestáveis,
por todos os mandos sem orgulho,
sem raiva e sem mãos limpas.

Continuaremos a ser a geração
Sem diamantes nos dedos
e sem presas na arrecadação.

- M. Nogueira Borges*, Porto. Escrito em junho de 1978. Atualizado em Julho de 2014.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

1/20/14

Relendo Nogueira Borges: OS IGNORADOS

Falo-vos da África dos matos sem fim,
Dos ecos perdidos no capim,
Das picadas vermelhas mas livres,
Tão livres como a liberdade.
Em cada curva uma palmeira,
Em cada lugar uma saudade,
Em cada sorriso uma clareira
De brancura e de amizade.

Falo-vos das noites de encantamento,
Das queimadas para lá do pensamento,
Da lua a beijar a baía de Pemba,
Do batuque e das esteiras na temba
Onde o meu corpo se satisfazia
Em outro corpo que, depois, dizia:
« São cinco quinhentas, patrão! »
E eu, cá dentro, aqui onde bate o coração,
Nem sei o que sentia.
Só sei que, depois, voltava
Com mais quinhentas na mão,
Roído pelo tédio e a solidão.

Falo-vos dos poemas proibidos,
Alguns esquecidos,
Outros lembrados
E agora publicados.

Falo-vos dos loucos a berrarem no entardecer,
Das sentinelas a dispararem para a escuridão
Com o medo aos saltos, na indecisão
Da manhã que não se sabe se vai nascer.

Falo-vos dos rios em que lavei o rosto,
Matei a sede ao sol- posto,
Gritei que não queria a guerra,
Mas não desertaria da minha terra.

Falo-vos da África onde não voltarei
Para matar a fome das minhas recordações,
Abraçar os irmãos que deixei
E lamber as feridas de todas as desilusões.

Falo-vos da África dos nossos soldados,
Dos seus sorrisos e dos seus abraços,
Uns, já mortos, outros, vivos-despedaçados,
Mas, todos eles, ignorados.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".

*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google. Manuel Coutinho Nogueira Borges, foi Alferes Milº. do Comando de Agrupamento 1985 - Moçambique (Quelimane e Porto Amélia)de 1967 a 1969 e faleceu no dia 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia - Portugal.
Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustratrativa acima representa parte do Parque Tsavo no Quénia/África e foi recolhida no site "Viajologia-Época-Viajando com Haroldo Castro". 

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "ForEver PEMBA" em Janeiro de 2014. Este artigo pertence ao blogue ForEver PEMBA. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores.

12/08/13

LEMBRANÇA DE NATAL

Fixo-me nesta pedra tumular, branca-escura de quantos lustres, ervas à espreita misturadas com cera derretida e flores campestres caídas de uma jarra. Debruço-me no gradeado que delimita o jazigo e penso: “A minha geração paternal está toda aqui, com o meu Pai à frente, há mais tempo do que eu tenho de vida. Estão no silêncio da eternidade, indefesos, noites e dias sem uma Avé-Maria, sequer um ciciar dos que não esquecem. Uns, partiram, ainda jovens, sem a oportunidade de um arrependimento, um adeus; outros, velhos, cansados de tanto esperarem. O meu Pai foi sem ouvir o meu primeiro vagido (imaginou-me apenas), derrotado pela doença maldita a que chamam prolongada. Morreu sem me beijar, fazer uma festa na moleirinha, pegar-me ao colo, imaginar parecenças, mudar-me uma fralda, alvitrar um nome baptismal, embalar um sono, viver a maior seriedade amorosa da existência.

O que faz, afinal, a ilusão da vida? O que a dimensiona na escassez ou na lonjura dos anos? É a substância da dádiva e do amor, mesmo na brevidade biológica, ou o vazio desafectado no prolongamento biográfico? A vida nem ao menos tem lógica. Há quem morra sem uma ruga, com o sol e o pranto a adornar a despedida; há quem parta encolhido por remorsos velhos sem uma réstia de deixar saudades.

Morreu-me antes do tempo, sem tempo para lhe pedir um conselho, uns tostões para rebuçados ou para uma bola de futebol, para divergirmos quando não estivéssemos de acordo, para nos amarmos, sempre, até o sangue secar.

Aqui estou, só, com um sol fraquinho encoberto pelas nuvens de Dezembro a lembrar o Natal. Um Natal que nunca partilhei com ele e já nada me diz porque o transformaram numa hipocrisia, numa feira de vaidades, num símbolo pagão, materialista, sem solidariedade e sem virtude. Resta-nos as cruzes dos Cristos vivos e mortos, exemplos e memórias contra o ódio e a inveja que nos consomem. Um dia aqui estarei desde o nascimento sem ti até à morte contigo “. 

Um vento agreste varre o alto da Corredoura. O sussurro da folhagem dos eucaliptos acentua o abandono do palacete envelhecido onde brinquei em criança, diante do qual encolho um grito inominável e pergunto por que vendem os homens as histórias das suas vidas? Lá ao fundo, para os lados de Rio Bom, há uma paisagem amarelecida, desamparada, com os fumos das chaminés a acentuar o deserto dos caminhos. O Douro, esse, não morre, continua a correr, leva nostalgias, sonhos e destroços. Há muitos Meninos Jesus na encosta-presépio de Loureiro, mas eu nunca tive um Pai Natal Vivo.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

7/31/13

SEM REMORSO

Ia com os filhos pelas mãos naquela tarde limpa de Setembro. Ainda era Verão e a cidade estava uma desordem. Os carros atrapalhavam-se, as pessoas amontoavam-se, as vozes confundiam-se. Não tinha para onde ir. As praias, sem nortadas, ficavam longe. Os filhos iam-lhe pedir balões e bolas de berlim; talvez, quem sabe, legos e bonecas; ou, até, quisessem ir ver a Pantera Cor de Rosa no cinema da Praça.

A cidade era uma serra cimentada, de sobe e desce, muitos ruídos e cheiros. As mãos suavam. Havia carros que chispavam a arrancarem com ódio nos pneus. Por isso suava; o medo faz suar. As montras tinham saldos, coisas desejadas por quem anda sempre com a mesma roupa e a mesma fome das coisas. Estava calor, os filhos pediram água. Entraram num snack-bar e sentaram-se num canto. A filha bateu-lhe com a mão: «Já viste aquela mulher com as pernas à mostra?»; «Já.», abreviou. Pediu dois refrigerantes para os três. Contou o troco, contava sempre o troco. «Não quereis um bolo?», perguntou; «Então, tu é que sabes.», responderam. Comprou dois bolos com os trocos, o maldito tanto vem como vai. Cá fora as pessoas espionavam-se. Os gigolos encostavam-se às portas das boutiques, despiam as mulheres, mastigavam pastilha elástica ou fumavam para o ar. Não era uma cidade americana ou talvez fosse. As cidades já não têm personalidade. Pedintes, com as próteses ao sol, choramingavam esmolas; cegos tocavam acordeon e batiam no chão com as bengalas metálicas. Não era uma cidade africana ou talvez fosse. As cidades são, cada vez mais, o fim do mundo, por isso elas se povoam, à noite, de fantasmas, que os que trabalham de dia escondem-se nos dormitórios das periferias. Vendedores de banha da cobra impingiam tudo, desde fios de ouro a duzentos escudos a espremedores de laranjas a dez. Não era uma cidade persa ou talvez fosse. Todas as cidades têm a confusão institucionalizada. Às paredes colavam-se palavras de raiva com símbolos em volta, carros, com altifalantes, cuspiam frases sem sentido, voavam pelas ruas com asas de bandeiras coloridas; havia quem acenasse ou fizesse manguitos. Um pouco à frente, as pessoas esmurravam-se, não sabiam em quem batiam, nelas próprias ou no rancor que as dilacerava. Os filhos quiseram saber o que era aquilo. «È a falta de amor.», filosofou; «Mas eles não se conhecem....», contrapôs o filho; «Pois não, se se conhecessem abraçavam-se.», enfatizou.

Era uma cidade de ruas compridas como rectos gigantes, estômagos de úlceras em movimento, úteros rasgados pela violência da pressa, labirintos de vigaristas e proxenetas. As ruas da cidade são a revolta de quem trabalha, o tédio do desempregado, o ócio dos desocupados; são os consultórios das doenças, os escarros da bronquite e da má educação, a sujeira da demagogia.

(Se tu fosses vivo, meu Avô, os meus filhos andariam contigo. Não precisarias de bengala. Eles seriam a tua esperança para te agarrares à vida. Seriam a minha gratidão por te lembrares de mim e, portanto, deles. Recordo-te, meu Avô inesquecível, com os meus filhos presos às minhas mãos, aquelas mãos que tu agarravas sem poderes falar, mal adivinhaste a morte naquele dia em que caíste à cama para nunca mais te levantares. Recordo-te pelas vindimas com as rogas a cantarem e a dançarem a chula, as concertinas pelos caminhos da nossa aldeia, os ferrinhos e os bombos nas pousas da meia noite. As vindimas agora são de empreitada como quem ajusta um muro de pedra, uma pintadela de oca nas paredes da casa, um esmalte no portão; não têm alegria nem cheiro, morreram contigo; os lagares servem para guardar tralha que se não usa mas não se deita fora, que, apesar de tudo, ainda há os sabem que quem guarda tem. Por que me deixaste tão cedo? Não viveste até à minha primeira barba? Lembro-me da tua serenidade à vaidade alheia e da tua firmeza ao desperdício; da tua quinta enorme como um convento de ordem religiosa com aqueles pomares, aquelas matas e aquelas vinhas, aqueles tanques e aquelas fontes, aquela taça repleta de peixes de várias cores, aquelas tílias com troncos de séculos e aqueles estábulos de estrume. Recordo-me de tudo porque eras tu que me davas o espaço e o tempo. Deixaste-me nesta balbúrdia em que conto um outro espaço e um diferente tempo para chegar junto de ti).

«Que tens nos olhos?...», notou-lhe a filha; «São as lentes que não devem estar bem, o sol é forte e põe-me os olhos vermelhos.», desenvencilhou-se. Comprou dois balões, encheu-os até à saliva, largou-os. Subiram à altura dos prédios, para cima deles, para o desaparecimento. As pessoas iam e vinham num ió-ió mole e denso. Um ídolo de futebol antigo despertou a curiosidade: nos olhos um vazio de aplausos, no andar o jeito arqueado que lhe ficou das fintas dominicais, no rosto as rugas da velhice sem exercício; no seu todo uma frustração de quem só presta para publicidade. Os bancos já estavam encerrados, o sol enfraquecera, as paragens dos autocarros amontoavam-se de bocas mudas.

Ia com os filhos pelas mãos certo de que um dia eles se desprenderiam como os balões, se esqueceriam dele, arquivando-o num Lar qualquer para morrer de velho e de solidão. Talvez, mas o remorso não seria seu.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado em 12 de Março de 2011 (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Convite e informações aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012. A imagem ilustrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada para este blogue e poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

6/08/13

SAUDADE AFRICANA

Onde está a África da minha saudade que conheci quando ainda não sabia que o futuro nunca é o que sonhamos?

África tão longe e tão longa que a recordação parece não ter contornos e o tempo passado permanece em cada dia que a mágoa nos aleija a alma. Acarto comigo um fardo de angústia que me isola no meio de muita gente, aquela solidão feita da repugnância do que se ouve e vê, da ingratidão que não se merece, da violência dos gestos e das palavras, da profanização sacralizada como se, na vida, só valesse o exponencial de todas as manhas.

É na invocação africana que se me diluem a podridão envolvente, a incapacidade da rotina, os olhares mal encarados, a indiferença das bocas fechadas.

Onde está a África dos meus clamores, das lágrimas escondidas nas sombras das noites de escuta?

África da surpresa por amigos esventrados, estendidos nas caixas dum Unimog ou de uma Berliet, e eu, com o seu fio de ouro nas mãos, sem articular uma frase, garganta presa pela afonia, estômago à beira do vómito, a fugir de ver o sangue e os rostos desfigurados, e os camuflados cheios do esterco da morte inglória, e as botas furadas pelos restos do chumbo, e o cérebro tomado por agulhas a picarem-me por todo o lado, por tudo que é corpo e consciência, e a olhar em meu redor sem uma luz na noite a ensinar-me o caminho, sem um som no fim da terra vermelha para me provocar o andar, sem (meu Deus!) uma esperança de que os mortos inocentes pudessem renascer para o meu convívio.

Onde está a África das cantinas no esconso da selva, das trovoadas e das chuvas apanhando-me nos descampados da savana, das queimadas fantasmagóricas nas noites despertas, perscrutando as curvas e os trilhos da traição, dos luares arrebatadores contemplados por entre os mosquiteiros já gastos pelo uso de muitos rostos, os uivos das hienas, atordoadas pelo cio e pela fome, arrepiando-me todo, acelerando o coração, alagando-me de suor, puxando a G-3, aconchegando o caqui, retesando os nervos com o dedo no gatilho?

Onde está a África das manhãs de maresia nas praias de todas as bandeiras azuis, sem ventos nem garrafões ou ossos de frango nas areias; praias tão quentes e tão finas que até parecia que um homem as pisava pela primeira vez, as suas águas tinham lábios de espuma que nos beijavam sempre em ternuras sem fim, corais como conchas vivas de um sonho irrepetível; palmares enormes como naves de catedrais góticas por onde o sol entrava, coado pelos vitrais da folhagem tão fresca, resplandecente e pura como a virgindade de uma criança?

Onde está a África das presunções fardadas, das madrinhas de guerra, das filmagens da Televisão com «um Feliz Natal e um Ano Novo cheio de propriedades», dos dias de São Vapor com cubas libres e «quem me dera regressar no Pátria!», dos calendários de mulatas nuas repletos de cruzes nos dias já passados, da obrigação de atravessar rios em almadias à procura de esconderijos de armas em ilhas paradisíacas, dos Postos Administrativos onde os sipaios nos deitavam sorrisos pepsodentes, dos funerais com danças de despedida e dos bifes de antílope a enfartaram barrigas vazias de tanta ração de combate?

Onde está a África das noites estreladas num céu tão belo e tão esmagador que dava vontade de ter asas para voar para a lua redonda como uma bola de cristal; noites de ritmos endiabrados, sensuais e espasmódicos, que o sangue fervia nas veias e rejubilava nas têmporas?

Quando o dia clareava e o fogo redondo subia na terra, um feitiço nos ludibriava com a ilusão de paz na vastidão da selva.
- Porto, *M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
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*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012. Extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". 

Clique  na imagem acima para ampliar. Edição e atualização de J. L. Gabão para o blogue "ForEver PEMBA" em Junho de 2013. Publicação inicial em 25 de Fevereiro de 2010. Em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

5/25/13

O DESERTOR

Saíra de Pargal, com os Pais, ainda o orvalho vestia os montes. Almoçaram em Coimbra, num restaurante para os lados de Santa Clara, com as ruas repletas de capas a caminho do Municipal. Teve vontade de dizer-lhes que ficava ali, que não ia para Quartel nenhum, porque o seu tempo era de fogo e não de cinza.

Engoliu o bife que o estômago pedia numa necessidade animal, mas, lá fora, estava a alegria que lhe saciava todas as fomes. Quando recomeçaram a viagem, qual penitência sem pecado, os ecos estudantis soaram-lhe como um desaforo na imensidão do seu descontentamento.

Aqueles não se localizavam ali, mas na Baixa Portuense, nos Cafés Piolho, Diu ou Estrela, na Cedofeita das meninas das sapatarias ou na Santa Catarina dos discos e do Majestic. Eram, porém, iguais, porque o desafio da liberdade amordaçada não tinha cores nem diferenças.

Durante a viagem, o Pai, apagado funcionário público na Repartição Concelhia, preleccionava sobre o brio e a honra de servir a Pátria. A Mãe, Professora Primária na aldeia da sua nascença, cansada de berrar às impertinências da canalhada, geria o silêncio como se poupasse a voz para a obrigação profissional. De vez em quando, num hífen de abrandamento, lá aconchegava: «Há-de correr tudo bem, meu Filho. Vais ver...», num tom de resignação. Ele ia calado, encostado ao vidro, com o braço apoiado no bordo do assento traseiro, a mão no queixo, olhando lá para fora, a chuva a ameaçar, pensando para si. O que lhe apetecia não o deveria dizer; fora criado numa natural tradição familiar que é, muitas vezes, um filicídio ético mas sempre imaculado, pois nenhum dolo ou aversão cabem no amor do sangue. Filho único, educado em Colégios Jesuíticos e frequência interrompida na Faculdade de Economia do Porto, aprendera que a filiação, mais do que uma circunstância, é uma procedência e uma mercê. Para os Pais, sem bens ao luar ou cofre de segredo, Silvestre fora o seu sonho e a sua razão que, com a soma de ordenados parcos, lhe exemplificavam a generosidade sem preço. Mais que reverência, devia-lhes gratidão que é um afecto dobrado. Abdicara, por eles, de uma deserção aventureira sem data de regresso e o Povo, grosseiro, a atirar-lhes com o ferrete: «Olha os Pais do cagão!»

O jantar, na Ponderosa, foi despachado e silencioso. Compraram um pão de ló húmido, imagem de marca da casa, para lhe adoçar as primeiras horas. Aproximava-se o fim da viagem, Torres Vedras estava perto, e ele até pedia que a estrada não tivesse fim.

À entrada de Mafra, no cruzamento para a Ericeira, recebeu-os uma chuva tão impiedosa, forte e perversa, que nunca mais esqueceu aquela noite de domingo: 11 de Janeiro de 1966. A força da água, com um barulho ensurdecedor, fazia temer pela capota do velho Opel. O nevoeiro, que aquela levantava no Largo da Vila, mal deixava ver os contornos da ostentação de El-Rei D. João V. Só as luzes de dois cafés-restaurantes, do lado contrário, esbatidas pelas montras vaporadas, davam sinal de vida.

Contornaram o terreiro, virando à esquerda na direcção da Porta de Armas, e encostaram na confiança de que a bátega amainasse. Numa porta lateral frinchava uma luz morrediça de velório. Soube que era por ali que teria de entrar quando um táxi se lhes encostou para largar um rapaz de mala na mão. Devia-se apresentar até à meianoite; não tinha vontade nenhuma de se apressar, mas, quando a chuva passou a morrinha, despediu-se dos Pais, pegou na mala, “se tem de ser que seja!“ , correu para a porta, deu-lhe um pontapé, ficou um instante a dizer adeus, e fechou-a com o calcanhar. Deparou-se-lhe, num cheiro de gruta bafienta, uma encenação farsista: do tecto, alto e arqueado, pendiam redes mosquiteiras; no chão, de lajes polidas por muitas botas, grupos de mauzers ensarilhadas com capacetes que vira nos filmes da segunda guerra mundial; pelas paredes escorria uma humidade sórdida, exsudando salitre e desolação. O Sargento que o recebeu tinha uma cara de cera e uma barriga de momo.

Entregou-lhe a guia e o bilhete de identidade, assinou uns papéis e ouviu: «A partir de agora passa a ser o soldado cadete 779 barra 66! Escutou bem o que lhe disse ou esses cabelos tapam-lhe as orelhas?! Ó pá! – virando-se para um soldado - leva aqui o nosso cadete à caserna 8!» Silvestre, sem pronunciar uma letra, olhou-o bem, leu-lhe o nome escrito no dólmen, pegou na mala e seguiu o soldado como um perdigueiro, percorrendo corredores e subindo escadas de catacumba, de luzes tão mortiças que pareciam morrões, enquanto repetia o nome do Sargento até o fixar: Franklim. Quando entrou no dormitório, de beliches alinhados, a varanda estava escancarada e o frio da noite misturava-se com os restos de lixívia. Enfiou o malão debaixo da cama, depois de tirar o pijama, perguntou se alguém se opunha a que fechasse as portadas, pendurou a roupa numa maçaneta do beliche, disse um «Boa noite, malta!», a aparentar desinibição, e deitou-se. Os lençóis tinham a tesura do gelo e o colchão o ruído e o cheiro da palha. O parceiro de cima não parava de se mexer e receou que aquela geringonça de ferro lhe desabasse em cima. Fechou os olhos e as lágrimas salgaram-lhe as olheiras. Desde aquela noite que Silvestre soube que nada, mesmo nada, seria como dantes.

No final de Junho, aprovado no Curso de Oficiais Milicianos, deram-lhe uma bicha de Aspirante e uma guia de marcha para ir, no Regimento de Infantaria 13, em Vila Real, ensinar recrutas com o que aprendera. Antes de partir, foi à Secretaria despedir-se do Sargento Franklim. «Felicidades! », disse-lhe. «Falta o cumprimento militar!», retorquiu Silvestre. Quando o Sargento, de sorriso trocista, lhe bateu a continência, correspondeu cheio de formalismo, deu meia volta e nunca mais lhe veria a cara nos seus anos de forçado.

Entre a Instrução e o toque de ordem o tempo passava célere que, bem vistas as coisas, comandar jovens obedientes e retardados entusiasmava e não crescia tempo para pensamentos reversivos. Depois, entre a Gomes, a Toca da Raposa e o Liceu Camilo Castelo Branco, era o deslizar dos flirts e das banalidades conversadas. Quando a discussão se atrevia por atalhos de mais leituras e contendas de alguma inteireza, o cansaço matava a vontade e desprezava a curiosidade. Silvestre, a pouco e pouco, dando-se conta mas sem fuga possível, engordurou a polidez, deixando-se arrastar para a vulgaridade reinante. Aos fins de semana, tirando aqueles em que a escala de serviço lhe impunha a clausura, metia-se na Cabanelas ou aproveitava a boleia do NSU do Quim, que, de gasolina dividida, não se importava de andar mais dez quilómetros para o deixar à porta de casa. Era a sua vingança. Dormia até lhe apetecer, comia o que a Mãe já sabia que ele gostava, lia o que ficara a meio, pensava e era feliz no silêncio da aldeia, deserta aos domingos. Às segundas feiras acordava de madrugada para, às oito, se apresentar, diante do Comandante da Companhia, com o pelotão alinhado.

Quando já pensava que se tinham esquecido dele, deram-lhe uns galões de Alferes e outra guia de marcha para se apresentar na Amadora, apeadeiro da viagem para Angola.

Esteve lá três meses a formar Companhia, com muita Ordem Unida para cimentar o espírito de corpo, umas sessões de tiro na Fonte da Telha, duas semanas de nomadização na Carregueira, uns crosses à volta da Reboleira e muita vadiagem no Cais do Sodré e pelo dédalo do Bairro Alto. Numa madrugada de Março, a parada encheu-se de Berlietes, atiraram lá para dentro com os trastes que restavam - os maiores já tinha ido, na noite anterior, para os porões do Pátria – e, cheios de café com leite a cheirar a mentol e pães com planta, foram em bando para o embarque.

Em Luanda mandaram-nos para o Grafanil e, ao fim de duas semanas, estava a caminho de Carmona.

Uma poeira vermelha envolvia a coluna que avançava sob um barulheira infernal de motores, os rostos dos homens mascarados por películas de espanto e de medo. Costas com costas, as coronhas das armas apoiadas nos beirais dos bancos corridos, colados às caixas das viaturas, todos sentiam que agora era a sério; os treinos e as teorias estavam enterradas no outro lado do mar. Sem divisas nem galões, despidos de carimbos graduados, o mando e a obediência eram feitos de nomes, conhecimentos antigos e, acima de tudo, de responsabilidades assumidas. Silvestre ia na cabina descoberta de um Unimog, perdido no meio da coluna, farolando o capim e a floresta de mistérios ocultos.

A restolhada das aves e os guinchos dos chimpazés disfarçavam a gelidez vertebral que lhe acrescentava um enjoo de agoniado; estava borrado de medo naquele corredor ocre e verde; olhou para trás e só o Cubano lhe piscou o olho num rosto de menino apreensivo.

Num sopapo, lá à frente – pareceu-lhe ser na cabeça da coluna -, ouve-se um estrondo de terra esventrada, as pernas dos que iam adiante saltaram para as bermas da picada, ele, pulando do assento, fez o mesmo e atulhou-se no meio de corpos em que o terror e o suor se confundiam. As rajadas para o desconhecido cessaram como quem refreia uma precipitação; uma serenidade absurda paralisou o lugar e um acre de pólvora elevou-se do chão. Silvestre não contou as horas que demoraram a reajustar o rebenta-minas, enquanto os enfermeiros cuidavam das pernas dos dois sorteados, nem da penetração na espessura da mata, mais cautelosa que ofensiva. O que Silvestre aprendeu, nessa tarde, foi que só há futuro quando se tem consciência da morte.

Em Março de 1969, novamente em Luanda, iniciou, no Vera Cruz, a viagem de regresso. Surpreendentemente, já nem sabia se ir ou ficar. A saudade do sangue misturava-se com um apelo insólito de aventura, uma paradoxal tentação de abismo, só dubiamente explicada pela rotina da violência e que dominou com as expectativas de uma vida para viver. Para trás ficava um passado que se lhe afigurou desnecessário, de mortos e feridos contabilizados para a estatística da guerra. Safara-se da vergonha desertora e das curvas de um mau fim. Sentia-se aliviado, mas, uma urgência de dúvida entristecia-lhe o olhar. Talvez fosse uma premonição ou um constrangimento de encarar o tal futuro que confiscara na sua intimidade.

No Porto, ainda voltou à Faculdade, mas ele já se deixara vencer pela servidão repetida, o desvanecimento dos olhos vidrados e o sangue coalhado dos corpos mutilados. Diante daquela verdura de generosa rebeldia, sentia-se fora de cena, envelhecido precocemente, invejoso, até, por recusarem o que ele aceitara. Por vezes, tinha vontade de esbofetear aquelas caras de magma que lhe davam a aparência de uma traição; outras, apetecia-lhe pegar num megafone, subir para os estrados e incendiar de malignidade tanta desorganização que criava ídolos de anfiteatros mas dispersava propósitos. Faltava-lhe a frequência do meio que se alimenta do que vem de trás, sem anciloses de experiências diferentes; sentia-se evitado pelos que lhe conheciam a condição como se ele pudesse ser um delator infiltrado em tamanha comunhão libertária.

Quando, numa manhã de Maio, abraçou, diante da porta da Faculdade, o Capitão que comandava a Polícia de Choque, seu amigo guerrilheiro de Angola, percebeu que o seu relógio se atrasara definitivamente. O coro de assobios e impropérios que ouviu, deram-lhe o golpe final. Silvestre entendeu que, mesmo na grandeza solidária, há inocentes agrilhoados.

Foi colaborador desportivo de um Jornal que o mandava, aos domingos de manhã, fazer reportagens de Atletismo e, à tarde, nos fins dos jogos, ouvir aquelas declarações patéticas dos futebolistas e treinadores num ambiente de vapor de água e óleos de aquecer músculos; revisor de provas num Editora especializada em livros vermelhos e publicitário sem jeito para vender detergentes. Concorreu, então, ao totobola bancário,
inscrevendo-se em todos os Bancos da Praça. Bateu, em vão, a algumas portas e gabinetes, de muitos galões em cima dos ombros, a que acedia por interposições de menor graduação. Quando o Pai se convenceu de que a desistência académica não era uma birra, falou com um seu antigo Chefe, agora colocado em Repartição Distrital, irmão de Administrador Financeiro. Ao fim de oito dias, feitos os exames psicotécnicos, entrava, de fato e gravata, no Banco. Silvestre ficou a saber que, num empenho, vale mais a sobriedade certeira do que o alarde disperso.

Deram-lhe uma secretária, um telefone, uma máquina de escrever e puseram-no a fazer débitos de letras. As teclas caíam no papel com tanta força que cortavam os químicos, parecia que tinha chumbo nos dedos. Na Agência, sem grande espaço, localizada numa zona de forte implantação industrial, havia dias em que uma longa fila se estendia, na rua, diante da porta. Quando ajudava ao balcão, o seu sorriso não se esforçava, antes se expandia numa satisfação recém-profissional. Conhecia pessoas e feitios, abastanças e dificuldades, modéstias e soberbas. Era espantoso observar o modo diferente como se lhe dirigiam os endinheirados e os desprovidos. Os primeiros, julgando-se donos do Banco, queriam logo tudo numa truculência de trato que raiava a humilhação; os segundos, como se pedintes dele, exageravam numa candura que o desajeitava. Quantas vezes, sem o distinguir, se achava entronizado de um poder que a gerência de dinheiro alheio intruja. Sentia-se pertença de uma casta respeitável que amarujava a especulação e a carência, simbiose que permite a coroação do mandato, a conjectura de que, além de útil, se é importante.

Um dia, a Luísa tomou-lhe o coração. Vinha de uma Agência de província em que muitas assinaturas eram feitas com a tinta dos carimbos nos dedos e «a menina não se importa de me preencher a livrança que eu mal sei assinar o nome?». Cegou-se com aqueles olhos de tranquilidade, duas evidências cerúleas que lhe lembraram os entardeceres sobre as águas calmas da baía de Luanda, quando, aproveitando todos os motivos, se safava à depressão de lá de cima. Calhou que ela se sentasse na sua frente e tivesse que lhe dar a conhecer as rotinas da função. Os seus olhares, sem cuidados de esconder franquezas, colaram-se na recíproca contemplação: o coup de foudre decidia-lhes as vidas. Encerradas as portas ao público, por entre pressas do fecho da Caixa e o adianto do expediente acumulado, deleitavam-se num jogo de sedução com ela a não conseguir disfarçar um rubor que para, Silvestre, era uma senha de docilidade e uma contra-senha de abrasamento. Começaram por almoçar juntos, ir e vir no mesmo autocarro, escolher os filmes mais condizentes com a paixão em crescendo, enriquecer a Companhia Telefónica com telefonemas de tempo esquecido e as gasolineiras com passeios de fim de semana em que o único rumo era um recato para matar a sede de um ardor sufocante.

Casaram-se, a um sábado de Agosto, numa Igreja Românica mais afamada pelos reptos paroquiais que pela memória das pedras. Cumpriram os lusitanos costumes e as práticas religiosas. Convidaram familiares e amigos de um lado e do outro; transmitiram felicidade – ela de véu e grinalda, ele de gravata de seda e fato preto quase smoking - a quem veio e a quem via; esgotaram-se rolos de fotógrafos; consumiu-se a cascata de marisco nos primeiros cinco minutos da boda; esticaram-se as horas nas apresentações e nas danças de salão. Quando, para lá das janelas, a noite se anunciou, escapuliram-se, legalizados que estavam perante o mundo, e só mudaram de roupas num hotel coimbrão. Viveram no calor da terra e do mar algarvios a realização do sonho, amaram-se até ao tutano e trocaram juras de amor eterno.

Regressaram às lides do Banco como dois guerreiros reconciliados no armistício de uma refrega carnal.

Durante algum tempo compartilharam o mesmo espaço, mas, tiveram que aceitar a transferência de um deles - a Luísa escolheu – para outro poiso, que a simultaneidade conjugal e funcional não era – disse-lhes quem mandava - boa conselheira nas apreciações hierárquicas. Silvestre retirou outro ensinamento: nada vence a frieza da lógica empresarial.

Quando o filho lhes nasceu já tinha nome, escolhido nos conciliábulos da espera: Júlio. Acorreram todas as ascendências e parentelas mais chegadas para palpitarem parecenças e aconselharem procedimentos num entusiasmo que só os nados conseguem juntar. Júlio cresceu, durante os primeiros anos, na alternância de uns avós que competiam na melopeia dos enlevos e lhe disputavam a afeição. Os Pais via-os de manhã sempre cheios de pressa e à noite sempre fartos de cansaço. O quarto, a abarrotar de brinquedos, era um hiato no seu trajecto dividido pelas casas avoengas. Para onde quer que fosse, encontrava sempre um novo mimo como uma aliciação que ele não racionalizava, mas, chantagiava em perrices sempre contentadas.

Chegada a idade escolar foi para um Colégio que o levava e trazia numa carrinha. Por lá andou até os primeiros pêlos lhe despontarem na cara. Exigiu roupas de marca e serviram-nas; pediu moto e teve-a; desejou férias de Páscoa nas discotecas algarvias e foi; pediu vezes sem conta dinheiro e deram-lho, desrespeitou horas de chegada nos sábados da Ribeira, da Foz ou da Via Norte e ninguém se atreveu a lembrá-lo; havia manhãs de domingo em que a cama estava intacta e quando os Pais almoçavam ele ia dormir.

Silvestre, a pouco e pouco, sentiu-se atraiçoado como se uma navalha lhe dilacerasse a boa fé. Virava-se para a mulher a berrar que o tinham estragado, mas, esta, como se um fanatismo lhe impedisse o discernimento, recriminava-o pelo exagero e até fazia por esquecer a falta de umas peças em ouro que nunca mais voltavam à sua cómoda. Silvestre fingia normalidade. Os hábitos de fim de semana, porém, transformaram-se nos dias todos. O Júlio chegava a casa macerado, inquieto, enfermiço, de olhar turvo e longínquo, escudando a recusa de comer com a abundância de um lanche tardio, uma dor de cabeça destemperada, um namoro desfeito, uma necessidade de estar só. Quando o alarme tocou, deram-se conta de que haviam acordado tarde. Da caixa do correio retirou uma carta colegial em que lhe eram comunicadas as repetidas faltas do filho. No dia seguinte, telefonou para a Agência a dizer que estava doente, estava mesmo, e seguiu os passos do Júlio. Desabafou com o Director Escolar as suas perplexidades, aliviou-se um pouco quando lhe confirmou a presença do filho nas aulas, mas, entendeu as palavras entremeadas daquele.

Sentou-se no Café da esquina a observar os passantes e atento ao relógio. O Júlio transpôs os portões no fim da manhã, confundido no turbilhão das correrias e dos risos. Apartado, num grupo de mais três, tinha o ar de quem não pertencia ali. Subitamente, Silvestre viu-se no meio de muitas sirenes e campainhas de que desconhecia o som, gelado e a transpirar como quando o paludismo o prostrou, sem forças, numa cama africana, em delíquio nunca esquecido; julgou-se a correr para o filho, arrancar-lhe aquele cigarro, mas ele continuava colado à cadeira, sem reacção, estupidificado, uma confusão de gritos a rebentar-lhe na cabeça e no peito. Aquele cigarro do filho não era como os que ele fumava, o papel parecia uma tira ressequida, mal embrulhada, e o fumo, que lhe saía da boca e das narinas, meio azulado. Reparou que o grupo se desviou para um esconso do muro, que dava para um descampado de silvas, faziam gestos de trocas, que não conseguiu ver, e metiam as mãos nos bolsos.

Mal a Luísa chegou, ao fim da tarde, comunicou-lhe, depois das explicações do que vira, que iria afrontar o filho. A algazarra foi só dele. Ela, calada e chorosa, o filho, fechado e ausente, ouviram um Silvestre desesperado, que tanto esganiçava o seu ódio à sorte como implorava o amor do Júlio, até se deixar cair no sofá, enrodilhado em pranto. «Pai, quero-me tratar...», balbuciou ele, passados uns instantes, numa naturalidade tão seca que parecia uma decisão antiga, muitas vezes adiada e, finalmente, assumida. Uma interrupção de síncope esmagou a sala; eles incrédulos e mudos, o Júlio de olhos perdidos na alcatifa. O tempo parou dentro daquelas quatro paredes; ouviram-se os estalos da madeira como se os móveis se esticassem; a televisão, de som cortado, mostrava uma bulha de galos. Silvestre, recuperando do sufoco, ganhara uma esperança, mas, perdera a ilusão de que, afinal, tudo fosse mentira. Bem lá no fundo, misturada
com a desconfiança, ele ansiava por uma réstia que lhe mostrasse o seu engano; aquele «Pai, quero-me tratar...» era a confirmação do seu temor.

Recorreram a Médicos amigos e desconhecidos afamados, gastaram o que tinham e empenharam-se para o internar nos Centros mais díspares e caros. Correram para lá durante meses em calvário já encarado numa irremediabilidade. Era como se fossem visitá-lo a uma Cadeia. A Luísa, com o passar dos dias, perdia o seu olhar marinho que umas olheiras, de covas fundas, ajudavam a enegrecer; arranjava-se já não só por
hábito, mas, acima de tudo, para aparentar normalidade. Não gostava que lhe tocassem no assunto e, nos mais chegados, vertia todo o fel do seu infortúnio. Lembrava muito os seus tempos de infância feitos de bonecas de pano que a Mãe lhe fazia nas tardes mortas, dos passeios pelos caminhos da serra e das gargalhadas do Pai. Parecia-lhe que a vida passara depressa, abreviando-lhe a felicidade numa morte anunciada. Sobre Silvestre desabara o peso da cisma, a cólera que lhe consumia as entranhas, o ódio – um
ódio terrível – que lhe sustentava uma gana de desforço. Foi a um acampamento cigano comprar uma pistola e guardou-a por detrás de uma prateleira de livros. Esperaria a hora, o instante que só o Júlio podia ditar: se se erguesse ainda podia perdoar, se a decadência não tivesse solução iria a qualquer covil, dos muitos que já ouvira falar, onde se traficava a mistela, e atiraria sem ver, de olhos fechados, só pedindo que nem um tiro falhasse para não ir para a prisão com remorsos de deixar algum vivo. Faltaram-lhe as palavras, tinha dias em que só lhe apetecia ficar na cama, o pior era que não dormia, de nada lhe serviam os comprimidos que o Psiquiatra lhe receitara, a travesseira encharcava-se de choro como uma baba demencial.

Entre Silvestre e Luísa, sozinhos, numa casa que mais se assemelhava a uma capela mortuária, instalou-se um surdo desencanto que uma inútil troca de acusações fez crescer. Esmiuçavam facilitismos e encobrimentos antigos num passar de culpas mútuas; travavam discussões de uma inaudita violência verbal, sem um arrependimento, como se fossem escapes para os fumos das suas amarguras; às vezes, tentavam salvar a relação que nascera com tanto ardor e felicidade, mas esse esforço era, em si mesmo, já um sinal de termo.

Suportavam-se, cada um à espera que o outro desistisse porta fora, a paixão e o amor eterno estilhaçados nos muros dos seus mutismos. Não se desejavam e as noites eram uma frivolidade penosa. Silvestre nunca pensara que a desgraça de um filho afastasse quem o gerara, fosse possível o desfazer de tantas ilusões, e nenhum futuro – nem mesmo o mais natural e lógico – estivesse certo nos projectos de vida.

Trabalhavam porque o Júlio existia e existiam pela esperança da sua cura.

O telefone da sua secretária tocava tantas vezes ao dia que o seu atendimento se tornara maquinal. Quando reconheceu, do outro lado da linha, a voz do Médico que orientava o Centro onde o filho desintoxicava, estremeceu, pensando que a libertação chegara. Mas não, aumentara o cativeiro: o Júlio fugira, já o haviam procurado, mas, sem êxito. Levantou-se como um furacão, o João gritou-lhe «Olha a carteira!», voltou
atrás, e desapareceu diante da compaixão dos colegas.

Iria ao sítio onde o filho estoirara as mesadas e os acrescentos familiares. Antes, porém, pegaria na arma para solucionar, de vez, a sua alienação. Num dos cruzamentos da longa avenida onde morava, na bicha que aguardava o fim de um semáforo vermelho, viu o Júlio, desfigurado, dobrado, sonâmbulo, mal vestido, um farrapo, a estender a mão às esmolas dos carros. Enlouquecido, vergastado pelo lume da vergonha, esmigalhado nas derradeiras nervuras da sua resistência, arrancou louco, deixando atrás de si um coro de buzinadelas, não viu as cores nem as passadeiras, meteu o carro na garagem, não correspondeu à saudação do vizinho do quarto esquerdo e mandou o elevador para o sétimo frente. Sentou-se no velho sofá que a Mãe lhe oferecera quando fizera trinta anos, onde costumava ler e escrever para o boletim da comissão fabriqueira da sua paróquia aldeã. Não ouvia o eco dos carros, os apitos agressivos, a chiadeira das travagens, o grito lancinante de uma ambulância a querer romper a confusão, a algazarra das crianças no infantário das traseiras do prédio. Não tinha uma lágrima, nem uma lembrança, nem uma vontade, não tinha nada, nem se tinha a si, nem sequer a certeza de que o destino pode ser adiado. Silvestre esqueceu a parabellum, pegou num papel e escreveu: «Não merecia isto. Vou desertar.» Colocou-o na credência do hall de entrada, abriu a janela e deixou-se cair como um pássaro chumbado.


- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustratrativa acima foi recolhida da internet livre e editada. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012.
Clique  na imagem acima para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "ForEver PEMBA" em Julho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Atualização em Maio de 2013 Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

10/23/12

UM HOMEM

Aqueles doze dias que me deram, antes do embarque, pareceram a satisfação da última vontade de um condenado. Para dizer a verdade, só o sono me descansou. De dia contava o tempo, olhava o fundo do vale, com o Douro ao fundo, e nunca a estrada me foi tão curta e tão detestada; chegava a pedir o impossível: que ela desaparecesse do mapa. Era uma dor que nunca soube definir: a barriga em espasmos, uma vertigem no olhar, mas o que me custava mais era uma ardência no lado esquerdo do peito; acho, até, que era a angústia transformada em revolta, que, como sabemos, não mata mas dói. Cheguei a pedir que os dias saltassem para me ir embora depressa, acabava-se com aquilo, abandonada, há muito, a ideia de me escapar com o Artur para Paris. Ficava meio mundo a falar que eu me “cortara”, e sei lá se o Salazar não era eterno e nunca mais eu cá voltaria. Minha mãe, sabe Deus como, lá ia aguentando, e havia ali, entre nós, um penoso jogo de disfarçar sentimentos, que chegava a ser desumano.

Mas, quando chegou a hora de me despedir, o mundo desmoronou-se. Julguei mesmo que se encerraria o sofrimento: ficaríamos esticados pelo fatalismo da síncope e o Niassa rumaria a Angola com menos um camuflado. Penso ter escutado o comboio – é melhor usarmos a ironia porque, às vezes, nestas coisas de contos, não se sabe como encurtar a volta a situações intoleráveis –, e lá me despeguei para o carro de praça, que me esperava. Não ouvi mais nada, ou não quiz ouvir. Quando ia na recta, antes da curva que tapava a vista da casa onde nasci, olhei para trás, dei um grito e chamei nomes do piorio aos donos da Nação; o chaufer riu-se, disse-me que , com ele, quando foi para a Guiné, tiveram que o ir buscar ao café, e rematou: « Sr. Gilberto, deixe lá; o senhor vai como oficial, eu fui como soldado. » De repente, não entendi onde estava a vantagem, mas conversar era o que menos me apetecia.

Eu estava habituado a viajar, de comboio, da Régua para o Porto, e vice-versa, mas daquela vez o pouca-terra parecia nunca mais chegar. Pedi a todos os santos para que o Gualter estivesse à minha espera no Embaixador, e abri a mala para tirar um livro dos que levava, juntamente com alguma roupa. Calhou-me o Fio da Navalha. A primeira coisa que li foi a citação introdutória: «DIFÍCIL É ANDAR SOBRE O AGUÇADO FIO DE UMA NAVALHA; É ÁRDUO, DIZEM OS SÁBIOS, É O CAMINHO DA SALVAÇÃO.» Havia de saber quem era o Katha – Upanishad, mas só quando, e se, acabasse a comissão. Foi mais o tempo em que espraiei os olhos pela paisagem do que pelo romance de Maugham, o que me agravou o estado de alma. Imaginei minha mãe, vestida de luto, deitada sobre a cama, com a Laurinda a confortá-la; a minha aldeia, de caminhos e casas sem água e sem luz, com a fome à espreita nos cardenhos dos cavadores, as crianças sem culpa da injustiça dos adultos. Deixaria o meu país sem uma pinga de progresso, triste e desolado, cheio de bufos.- até , se calhar, o velho que se sentava ao meu lado -, uma terra sem uma disparidade na côr, tudo cinzento, até as palavras eram sempre as mesmas, o único contrário era a morte. Lembro-me que enxuguei os olhos, na paragem em Penafiel, quando vi, à janela, uma velhinha, de lenço preto na cabeça, subir com dificuldade para uma carruagem das traseiras. Ali ia eu, adolescente feito à pressa atirador de infantaria, para uma guerra que a teimosia de um ditador velho e de falsete, sem filhos e sem carinhos, transformara em destino patriótico. Os campos, ao longe, cumpriam, na nostalgia do abandono, o calendário primaveril: os rebentos pascais, com as maias em saliência.

Mal o comboio parou em S. Bento, corri como um desalmado, de mala na mão, fazendo uso dos quinze meses de tropa, receoso que o meu amigo já tivesse ido com o pai para Lisboa. Pedi ao engraxador que guardasse a mala, com a promessa de que depois me limparia os sapatos, subi as escadas para o primeiro andar, onde alguma  gente já comia, e só nos bilhares é que o encontrei, encostado a uma janela a ver uma partida de snooker. Fazíamos a festa do costume, quando ele me atirou: «Consegui uma baixa no Hospital Militar. Vou para lá amanhã.» Levei um murro na boca do estômago; aquilo soube-me a traição. Toda a gente se tentava safar, inventando pés chatos ou úlceras repentinas, até água gelada deitavam nos ouvidos para criar ou agravar uma otite, mas isso era mais naqueles que pagavam bons cabritos; ignorava que ele fizesse parte desse esquema, e, para disfarçar, pedi-lhe que me arranjasse uma baixa também. Fomos comer umas tripas à Flor do Congregados, contou-me como o pai se mexera e das esperanças que tinha de ir para os Serviços Auxiliares. Ficou de me escrever ou telefonar para contar como lhe correra a patranha.

No Foguete, a pensar no golpe do Gualter, dei por mim a inebriar-me com o meu heroísmo e, para ser franco,perpassou por mim uma excitação de bandeira ao vento. Por meados de Aveiro, adormeci, ajudado pelo feijão e pelo fino. Em Santa Apolónia, consultadas as horas, hesitei entre ir para o Cais do Sodré ou para a Amadora. A mala das primeiras necessidades determinou a minha recolha decente, matando o tempo na conversa de sala numa messe quase vazia , com a televisão a repetir o Aqui há fantasmas e a emissora nacional a transmitir um Serão para trabalhadores.

Passadas que foram três semanas, já só de ordem unida para reforçar o espírito de corpo, o batalhão estava na Rocha do Conde de Óbidos, disperso com os familiares, numa algazarra ensurdecedora, enquanto não recebia ordem para formar. Eu fazia parte dos que não tinha compromissos desses, assim o pedira. Sem dormir e cheio de café queria que o embarque acelerasse para aproveitar o balanço do Niassa; resolveria dois problemas: não assistiria à despedida dos lenços, e dos gritos, e dos gemidos, e dos desmaios e o sono ficaria em dia ou em noite. Estava a conversar, já não me recordo com quem, quando me baterem nas costas. Virei-me, repentinamente, não fosse o capitão da minha companhia, quando caí nos braços do Gualter. Reparei que, ou estava com uma bebedeira ou louco, as lágrimas cobriam-lhe as faces, «Gilberto, parto daqui a oito dias para a Guiné. Aqueles filhos ...», balbuciou, sempre agarrado a mim. Percebi, então, que a armadura por mim inventada para aquela ocasião estava a derreter-se, provocando-me queimaduras de muitos graus. Toques de clarim e vozes de comando repercutiram no bruá reinante que, a pouco, se esbatia. Sem saber como proceder, apertei-o mais, apressadamente, os diques rebentaram-me, e senti-me verdadeiramente UM HOMEM.
- M. Nogueira Borges*, Porto 23/7/10, para ForEver PEMBA/Escritos do Douro 2010. Atualizado em Outubro de 2012.
  • M. Nogueira Borges no "Escritos do Douro" e no "ForEver PEMBA"
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

9/23/12

OS IGNORADOS

Falo-vos da África dos matos sem fim,
Dos ecos perdidos no capim,
Das picadas vermelhas mas livres,
Tão livres como a liberdade.
Em cada curva uma palmeira,
Em cada lugar uma saudade,
Em cada sorriso uma clareira
De brancura e de amizade.

Falo-vos das noites de encantamento,
Das queimadas para lá do pensamento,
Da lua a beijar a baía de Pemba,
Do batuque e das esteiras na temba
Onde o meu corpo se satisfazia
Em outro corpo que, depois, dizia:
« São cinco quinhentas, patrão! »
E eu, cá dentro, aqui onde bate o coração,
Nem sei o que sentia.
Só sei que, depois, voltava
Com mais quinhentas na mão,
Roído pelo tédio e a solidão.

Falo-vos dos poemas proibidos,
Alguns esquecidos,
Outros lembrados
E agora publicados.

Falo-vos dos loucos a berrarem no entardecer,
Das sentinelas a dispararem para a escuridão
Com o medo aos saltos, na indecisão
Da manhã que não se sabe se vai nascer.

Falo-vos dos rios em que lavei o rosto,
Matei a sede ao sol- posto,
Gritei que não queria a guerra,
Mas não desertaria da minha terra.

Falo-vos da África onde não voltarei
Para matar a fome das minhas recordações,
Abraçar os irmãos que deixei
E lamber as feridas de todas as desilusões.

Falo-vos da África dos nossos soldados,
Dos seus sorrisos e dos seus abraços,
Uns, já mortos, outros, vivos-despedaçados,
Mas, todos eles, ignorados.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima representa parte do Parque Tsavo no Quénia/África e foi recolhida no site "Viajologia-Época-Viajando com Haroldo Castro". Composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

7/02/12

Em conversa com Nogueira Borges... REVOLTA!

Fosse mais novo e sem responsabilidades familiares, quem emigrava era eu. Não para um outro país desta Europa desigual e dependente de soberbas geográficas e políticas, dos cafés e dos bares – como diz George Steiner - , mas para a África onde a pobreza tem sol, e alimento no mato, e água nos rios, e serenidade nas madrugadas das buganvíleas, e espelho no mar azul dos corais, e silêncio nas sombras dos palmares, e emoção num embondeiro perdido na imensidão da savana, e amor na contemplação das estrelas nas noites de arrebatamento.

Fugir desta Europa falida, levada à desgraça por homens e mulheres que atraiçoaram o voto da democracia, servindo-se da crença popular para se encharcarem no enriquecimento, cozinheiros de ementas para os banquetes sequazes; dirigentes de branqueamento intelectual e sem estofo e sem exemplo, mentirosos no limite do desaforo, a pensarem só neles e nos mais chegados, sem letra e sem lei, nomes e caras que só de lembrar ou ver nos revoltam as entranhas. Chegamos à miséria total, a da bolsa e a da alma, onde tudo o que é canalha triunfa, ao ponto em que só nos destinam a tristeza e a solidão, em que temos que aceitar tudo, mesmo o inaudito!

Criou-se a pior violência social: a silenciosa! Um povo infeliz, em que, como dizia o poeta, nos roubaram Deus e a humanidade! Uma Nação de duas classes: os desgraçados e os ricos cada vez mais frios, descarados e milionários.

Em África escolheria o mato das machambas e das palhotas, cultivaria a cana e o caju, escutaria os ecos dos meus gritos nas ”terras do fim do mundo”, andaria descalço nas picadas vermelhas, usaria uma catana só para abrir o coco que matasse a sede, rir-me-ia dos entretidos que dizem que o voto é a arma do povo, revoltar-me-ia contra os que sabem usar gravata e jogam ao poker eleitoral. Longe deles não seria tentado a fazer o que pede o coração.

Pôr-me a milhas deste continente, que criou uma civilização e se deixou afundar por calaceiros e falsos; corruptos sem classificação, que, em nome da Democracia, desempregam trabalhadores aos milhões, arruínam as finanças das pátrias, desviam réditos incontáveis para as latrinas do capitalismo, enquanto apregoam ideais igualitários e se afirmam defensores das doutrinas repartidoras.

Na África recôndita, sem cheiros de perfumes das alcofas de alperce, de tiques dos entendidos serventuários do sistema, dos que jogam e se vendem nos casinos do euro, afastado de toda a súcia desta desacreditada democracia, viveria feliz mesmo com o chirriar da coruja ou o uivo das hienas; é que a verdade é suportável, o fingimento sofrido.

Assim, não tenho outro modo senão partilhar o sofrimento…
- M. Nogueira Borges, 11 de Abril de 2012
Clique  na imagem para ampliar. Imagem original não editada recolhida da net livre. Edição de J. L. Gabão para os blogues "Escritos do Douro" e "ForEver PEMBA" em Julho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.

6/30/12

Em conversa com Nogueira Borges...

"... palavras sobre o homem amigo e o escritor nascido em S. João de Lobrigos, terra simples e de vinhos, para que sua grandeza humanista continue a brilhar no Douro. Uma vez me disse com um espanto infantil: "CARAMBA!!! ISTO É MESMO LINDO!!!!!!...
Hoje, ao anoitecer, fiz estas fotos a ele dedicadas, enquadradas no Céu do Douro lembrando-me que só pode está lá em cima a dizer-me: "CARAMBA!!! ISTO É MESMO LINDO!!!!!!"
- Jasa, Peso da Régua, 29 de Junho de 2012
A MINHA CIDADE
A minha cidade
Tem o visco da saudade
E o nevoeiro do futuro.
A minha cidade
Tem a tristeza do escuro,
Mas, sobretudo,
O brilho da verdade.
- M. Nogueira Borges in "O Lagar da Memória" -
O tempo que passa não passa depressa. O que passa depressa é o tempo que passou.
- Vergílio Ferreira
(Desligue o player da LM Rádio localizado no final do menu lateral deste blogue para escutar o video)
Clique  nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "ForEver PEMBA" em Junho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo contém colaboração de José Alfredo Almeida e pertence ao blogue ForEver PEMBA. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

6/29/12

Um adeus sentido a MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES

Nota - O dia correcto de nascimento de M. Nogueira Borges é o de 05 de Outubro de 1943. A data na foto (12 de Outubro) é apenas a que consta na conservatória. Contava sempre que tal se devia ao facto de no ano de 1943 ser por vezes normal o registo ter a data do mesmo e não a real - Ricardo Nogueira em 2JUL2012)


De MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES:
Acreditem-me ou não, o que escrevi SINTO-O. Sabes, a vida é feita por NÓS, "OS SIMPLES", OS QUE ANDAM AQUI COM UMA LUZ NO CORAÇÃO.  SÓ TEMOS QUE FAZER UMA "COISA": AGRADECER A QUEM NOS DEU ESSA FELICIDADE!
Escrito por Manuel Coutinho Nogueira Borges em 7 de Fevereiro de 2012.

A notícia chegou assim:

Armando Figueiredo ->Jaime Gabao
há 4 horas
Amigos,
Anuncio-vos com muito pesar que Manuel Coutinho Nogueira Borges faleceu ontem por enfarte do miocárdio. O que parecia ser uma pequena indisposição foi infelizmente um ataque fatal. O seu corpo repousa hoje, deposto em câmara ardente, na Capela de Sto Ovídio (Bairro dos Cedros) e segue daí amanhã pelas 15 horas para a Igreja de Mafamude, onde será celebrada a missa de corpo presente. Divulgue por favor.
From: José Alfredo Almeida
Sent: Thursday, June 28, 2012 6:24 AM
To: Jaimel
Subject: Morreu... Nogueira Borges

Ola Jaime,
Bom dia..
Soube agora mesmo e nem sei como começar... mas é uma má e triste noticia para si e para mim...
Ontem morreu o Nogueira Borges...
Não sei que dizer, estou abalado com a perda do amigo, do homem bom que Deus nos colocou no caminho.
Nao sei que lhe dizer... a tristeza cai nestes montes e rio que ele também amou.
Abraço,
JASA
Jaime Gabao 28JUN2012 15H05 - Não me esqueço do último abraço que lhe dei há poucas semanas, no Porto, quando me despedi dele à porta do SAMS, onde ia marcar um exame ao coração. Parece que adivinhava. Agarrou-se a mim com lágrimas nos olhos como se fosse a última vez... Que SAUDADE já tenho de ti, "velho" companheiro de tantos anos, MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES.
Manuel Coutinho Nogueira Borges, escritor e poeta do Douro em Portugal nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial miliciano e enveredou pela profissão de bancário. Colaborou em diversos jornais, nomeadamente: Diário (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
ÚLTIMA VONTADE
Quando eu morrer,
Que seja em Agosto
Com toda a gente de férias.
Quero morrer sem desgosto,
Sem dor e sem aborrecer,
Envolto na brancura de um lençol,
Só um padre, a família e os amigos,
Sem mais ninguém saber.
Quero morrer sem choros, sem gritos
E sem anúncio no jornal.
Morrer não é o fim,
E quem me diz a mim
Que a minha vida, afinal,
Não se renovará num caminho
De amor e carinho,
De risos verdadeiros,
Todos os dias renovados
Como se fossem os primeiros?
Quando eu morrer,
Lavem-me com a lágrima do adeus
Que quem morre sempre deita,
Não com pena de morrer,
Mas triste pelos que ficam,
Mais tristes e abandonados,
Sem saberem o que os espera:
Se a disputa de uma herança
Ou o fim de uma esperança.
Quando eu morrer,
Metam-me num jazigo
Com uma ampla janela
Para ver, através dela,
O sol de cada domingo.
Ponham-me flores e uma vela,
Uma cruz e um poema
Que aqui deixo escrito:
Nasceu sem saber porquê,
Viveu sem que o entendessem.
Morreu sabendo para quê:
Para que na ausência o lembrassem.
Basta para dizer tudo,
O que foi o meu mundo
Em criança e em adulto.
Atravessei mares e continentes,
Chorei nas noites de abandono,
Amei raças diferentes
E não sei se matei por engano.
Quando eu morrer,
Não quero ir para a terra;
Em vez de morrer uma vez,
Morreria, então, duas vezes.
Concordem que não o merecerei
E, se o fizerem, garanto-vos,
Nunca o esquecerei.
Afinal, quem vive com os remorsos
De uma última vontade não cumprida,
Naquele instante de amargura e despedida
Em que o sangue se esvai,
No grito intolerável que a vida dá,
Até se esbater cansado num ai
Que até parece que, depois dele, nada mais há?
Quando eu morrer,
As andorinhas farão ninhos
No beiral da casa onde nasci,
Cantando de mansinho
Para que não me interrompam o fim.
Apanhem uma que seja dócil e bela,
Prendam-na às minhas mãos
E deixem-me ir assim com ela,
Caixão aberto e o sol a brilhar,
As pessoas espantadas a olhar
Para um funeral nunca visto.
Batam palmas devagarinho,
Não se importem de parecer mal,
Não falem durante o caminho,
E vejam se vou a voar.
Quando eu morrer,
Se calhar, não terei tempo de dizer
O que sempre calei em vida:
Que amei tanto os outros
E alguns não me mereceram,
Que chorei por loucos
E por quem não devia,
Que encolhi silêncios
Pelos que nunca me lembraram
E alguns até se afastaram.
Quando eu morrer
Vai ser penoso ir-me embora,
Deitado, estrada fora,
Sem me mexer,
Sem poder beijar os frutos da minha felicidade,
Virtudes e defeitos do meu ser,
Os seus rostos mais lindos do que o sol a nascer
E sorrir-lhes, então, até à eternidade.

- De M. Nogueira Borges extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima é formada/editada por diversas fotos recolhidas da internet livre. Clique nas imagens para ampliar.
Clique  nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "ForEver PEMBA" em Junho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo pertence ao blogue ForEver PEMBA. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.