9/13/05

João Sabadino Portugal: Mascote ilegal...Fora da Lei...!!!



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Nasceu em 1962.
O dia e o mês ninguém sabe.
Nem o nome original.
Aos cinco anos roubaram-lhe o colo materno.
Dois anos depois veio para Portugal com um grupo de Fuzileiros de quem era mascote.
Anos mais tarde descobriu que estava ilegal.

- MOÇAMBIQUE, JUNHO DE 1967
Um Destacamento de Fuzileiros Especiais portugueses veste o camuflado e arranca para a primeira operação na zona de Mocimboa da Praia, Cabo Delgado. Devidamente artilhados, os soldados entranham-se mato adentro à procura de presença inimiga. Alguns passos adiante deparam-se com um grupo de mulheres indígenas. Seguem-lhes o rasto, discretamente, até à aldeia mais próxima. Logo que se apercebem da chegada de militares, os locais começam a fugir, apavorados. Procuram por um abrigo, arranjam uma forma de escapar à chacina. Enquanto isso, um dos fuzileiros tenta impedir a sua fuga com disparos contínuos e ensurdecedores de metralhadora. Findo o carregador faz-se silêncio, e um manto de capim ruma ao céu, deixando a descoberto uma aldeia sem vivalma. Deserta. Por instantes, pensou-se que todos estivessem mortos. Puro engano. Um buraco estrategicamente cavado na terra serviu-lhes de escudo. Escapam à morte, mas não de serem capturados e, posteriormente, entregues ao cuidado dos serviços competentes, em Porto Amélia (Pemba). Durante o regresso, os militares aproveitam uma curta paragem para se refrescarem no mar. Os indígenas, que nunca tinham vislumbrado tamanha imensidão de água ficam perplexos. Eufóricos. Durante breves momentos a aflição cede lugar à descompressão. A uma felicidade que parece não ter fim. O brilho espelhado no olhar de uma das crianças, que corre despreocupadamente pelo areal, desperta a atenção do grupo de fuzileiros. E como naquela época era comum os Destacamentos terem uma mascote, um dos militares , por impulso, coloca a hipótese de o adoptar. Assim foi. João Sabadino Portugal. Foi desta forma que se passou a chamar o petiz. João, porque era dia 24, o mesmo em que se comemora o S. João – passando a ser também esse o dia em que comemora o seu aniversário. Sabadino, porque era sábado. Portugal, porque, afinal, tratava-se de um Destacamento de Fuzileiros Especiais portugueses. Com a autorização da mãe, o rapaz foi viver para o quartel dos soldados. O petiz tinha a própria camarata, o próprio armário e uma farda igual à dos seus novos compinchas. Durante dois anos foi a coqueluche dos militares. Em 1969, quando a Comissão chegou ao fim, aos 70 oficiais que se preparavam para regressar a Portugal, juntou-se o pequeno João, à responsabilidade de um Oficial Imediato. Tinha sete anos. E uma vida pela frente. Agora, em Portugal. João guarda poucas recordações desses tempos. "Lembro-me do quartel, de um macaco, de quem tinha muito medo, mas que estava sempre a atiçar, recordo-me de andar vestido com uma farda que me fazia sentir muito importante, e de ser bem tratado por todos eles", confidencia. "Os maus tratos vieram depois ", deixa escapar acompanhando as palavras com um ligeiro abanar de cabeça. Prenúncio de um sentimento mal resolvido.
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- CASCAIS, JUNHO DE 1969
Meia dúzia de dias após a chegada a Portugal, João foi entregue aos cuidados da mãe do Oficial Imediato que o adoptou: "Foi ela que me criou e educou, a ele só via ao fim-de-semana", começa por contar. "Mas ela era muito mazinha comigo", acrescenta, sem disfarçar um nervoso miudinho, que se acentua quando recorda a dura vida que levou ainda muito novo. "Sabem o que é ter que aspirar, lavar loiça, coisas que não me competiam Era como se eu lhes tivesse que dar algo em troca da educação, da comida Era um escravo", conclui, inconformado. A gota de água foi quando, já após a morte da senhora, João levou uma violenta tareia de mangueira do pai adoptivo que lhe deixou marcas que ficarão para sempre gravadas na cabeça. E no corpo. Sempre que se vê ao espelho, a antiga mascote tem de enfrentar duas enormes cicatrizes nas costas que lhe trazem à memória lembranças que luta para esquecer. "É verdade que fiz uma coisa estúpida na escola, algo que agora não posso estar aqui a dizer, mas ", começa por revelar. " Só sei que foi a primeira e a última vez que me bateram assim".Revoltado, João fugiu de casa. Mas logo que o encontrou, e para que o episódio não se repetisse, o Oficial decidiu mandá-lo para casa de familiares, nos Açores. "Fui para lá estudar e trabalhar na pesca. Mas se nós saíamos para o trabalho à noite, como é que eu ia conseguir acordar de manhã para ir para a escola!?", interroga. Com a ajuda dos companheiros de pesca conseguiu arranjar dinheiro para comprar um bilhete de regresso ao Continente. Apanhou o primeiro avião e mal desembarcou em Lisboa foi bater a casa do pai adoptivo. Este, sem dó nem piedade, virou-lhe as costas. João fez-se à estrada, sozinho, com vinte escudos no bolso. "Estava com uma raiva tão grande dele que comecei a andar, a andar. Fui de Carcavelos até Lisboa, precisava de gastar toda a energia que tinha no corpo. Cheguei à Rua das Flores e parei porque estava cansado. Depois, passei a viver ali. Batia à porta de casa das pessoas para pedir comida. Dormia perto dos bombeiros, no jardim ou em carros abandonados", recorda sobre os sete anos como sem-abrigo.
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- LISBOA, DE 1979 EM DIANTE
Durante esses tempos, João Sabadino Portugal fez amizades de ocasião, outras que, apesar das curvas e contracurvas da vida, mantém. Tentou o amor. "Éramos amigos, depois apaixonámo-nos, mas aquilo deu azar." Arranjou biscates em troca de comida. E, como a vida não lhe corria de feição, deixou-se enveredar por caminhos mais sinuosos. Meteu-se na droga. "Fumei uns charros, mais nada." Esteve preso. "Eu não sabia para o que é que ia, fui com eles, e olha, assaltámos um café." Conseguiu sobreviver a tudo. No meio do turbilhão de emoções, certo dia, para piorar as coisas, João perdeu o Bilhete de Identidade. Naturalmente, tratou rapidamente de obter a segunda via. "Fui a Alvaiázere, onde estava registado, buscar a minha certidão de nascimento, preenchi a papelada, meti lá o dedo para impressão digital e disseram-me para ir levantá-lo dali a uma semana." Quando lá voltou disseram-lhe que tinha de se dirigir aos registos centrais. Foi o que fez. Preencheu mais uma série de papéis, sem perceber muito bem para o que é que rabiscava, e ficou a saber que para receber o novo B.I. tinha que arranjar comprovativos dos locais onde tinha vivido e trabalhado nos últimos anos. Uma missão quase impossível para alguém com uma vida desregrada. "Tentei explicar-lhes, mas parece que ninguém me ouviu". Entretanto, passaram-se vinte e sete anos. João Sabadino Portugal continua fora da lei. Todos estes anos, trabalhou esporadicamente através de empresas de cedência de pessoal, fez os devidos descontos para a Segurança Social, uma vez que tem cartão de contribuinte. No que respeita a saúde, nunca necessitou de cuidados médicos que justificassem a apresentação de um cartão de identificação. E a polícia nunca o abordou. É caso para dizer que, no meio de tanto azar, tem tido alguma sorte. Mas esta não é uma situação confortável. "Preocupa-me muito, se um dia quero ir a algum lado, dar uma volta maior, não posso. Se eu tenho registo, para quê tudo isto!? Estou baralhado, estou baralhado", diz repetidamente, em alto e bom som, como quem se esforça por se fazer ouvir. Mas a burocracia tem orelhas moucas. No seu caso, a dificuldade na obtenção de um novo B.I. prende-se com o Decreto Lei 308-A/75 de 24 o Junho, que regulamenta a legalização dos oriundos das ex-colónias. Ou seja: se o João Sabadino tivesse chegado a Lisboa antes de 25 de Abril de 1969 não haveria problema, mas como só chegou em Junho não pode ser considerado português, sendo que também não é moçambicano. O problema só foi detectado porque, entretanto, perdeu o Bilhete de Identidade. “Parece que antes de sair a dita lei davam B.I. a todos, mas depois, para se nacionalizarem, teriam que preencher determinados requisitos, como casar com um portuguêsa, estar cá há mais de cinco anos...”, explica.
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- SEIXAL, JULHO DE 2005
Quis o destino que em Maio deste ano João Sabadino Portugal se cruzasse com um dos fuzileiros que o trouxeram para a então Metrópole. Há trinta anos que João Serra o procurava. "Após o regresso de Moçambique, ainda mantivemos o contacto. Tinha uma banda de música, os 'The Tigers', e costumava ir buscá-lo aos fins-de-semana para participar nos espectáculos." Mas a determinada altura, a coisa mudou de figura. "Um dia liguei para casa da senhora que tomava conta dele e ela disse que eu só estava a prejudicá-lo, a desencaminhá-lo. Então deixei de o fazer", revela João Serra, que, a partir daí, perdeu o rasto ao pequeno João. Nunca o esqueceu. Anos depois, o ex-fuzileiro iniciou uma busca incansável pelo menino traquina que fez as delícias do Destacamento de Fuzileiros. "É incrível ter sido tão difícil dar com ele. Afinal, andou todo este tempo por Lisboa", reflecte João Serra que não descansou enquanto não soube do paradeiro da 'pequena mascote'. "Abordei pessoas na rua, procurei em circos, andei por conservatórias. Ele era como se fosse um filho para mim. Nunca perdi a esperança." Esperança é a palavra que melhor descreve aquilo que João Sabadino Portugal voltou a sentir depois de reencontrar João Serra. Já não se recordava dele, mas assim que soube de quem se tratava foi incapaz de conter as lágrimas. "Era como se estivesse em frente a alguém da minha família", explica. Após o encontro com o velho militar, a vida de João Sabadino Portugal deu uma volta de 180 graus. Foi viver para a outra margem do rio Tejo, arranjou um novo trabalho e até fez novas amizades. "Estava cansado. Queria um futuro melhor. Tinha lá pessoas de quem gostava, mas nem sequer pensei duas vezes quando ele me fez o convite. Precisava de sair dali, tinha que fazer alguma coisa para fugir daquele ambiente", explica a antiga mascote. Agora, a prioridade máxima de João Serra é ver a situação deste homem legalizada – a última tentativa para resolver esta “novela de difícil solução”, como lhe chama, foi redigir uma carta ao cuidado do Ministério da Administração Interna – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Até à data, ainda não obteve qualquer resposta.Por seu lado, João Sabadino Portugal vive a aguardar por dias mais felizes. Para contrariar os ponteiros do relógio, quando não está a trabalhar – e para não pensar muito –, este homem, pouco sociável, fechado, aproveita o difícil passar das horas para ler e ver televisão. "Leio tudo o que me passam para a mão. Na televisão, gosto de ver documentários, filmes e futebol, pelo menos quando é o meu Benfica", conta, folheando nervosamente o 'Baudolino' de Umberto Eco. "Já o li duas vezes, foi o meu afilhado – filho da mulher com quem vivi – que me ofereceu", diz, cabisbaixo. Para João Sabadino Portugal – assim como para muitos de nós, a ficção é a melhor forma de fugir a uma triste realidade.
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- HÁ VIDA DEPOIS DO SOFRIMENTO
João Sabadino Portugal está a viver uma segunda vida. Passado o pesadelo reaprende a sorrir. E o culpado por esta metamorfose é João Serra. O antigo soldado do Destacamento de Fuzileiros Especiais portugueses em Mocimboa da Praia deu-lhe a mão que precisava para tentar dar um novo rumo à sua vida. É um esforço desmedido, uma luta de todos os dias. Mas ele não desiste, apesar de saber que a caminhada não será fácil. João Serra tem feito tudo o que está ao seu alcance para que este homem consiga reencontrar a felicidade. Desde casa, a trabalho, o ex-fuzileiro tem-lhe proporcionado momentos únicos em família. Momentos que nunca teve, uma família que nunca teve. Aos fins-de-semana, João Serra leva a antiga mascote para sua casa, junto da mulher, filhos e amigos. Juntos passam agradáveis momentos de convívio. “Acho que lhe devemos isso, quando o trouxemos de Moçambique, ele era como um filho para todos nós”,sublinha. Dito isto conclui: ”Ao longo de todos estes anos, nunca o esqueci, apesar do afastamento. Agora, sinto que tenho que fazer algo por ele, e faço-o de boa vontade.”
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- EM BUSCA DA FAMÍLIA PERDIDA
O reencontro com João Serra trouxe a João Sabadino Portugal nova luz. A antiga mascote descobriu que, ao contrário do que sempre lhe foi dito, afinal a mãe pode estar viva. "Achei que era impossível. Sempre me disseram que a minha família tinha morrido", conta,emocionado. E confidencia que apesar de ter acreditado nessa realidade, nem sempre a aceitou. “Houve alturas em que chorava pelos cantos, sentia-me sozinho, sentia a falta de uma mãe", acrescenta. Encontrá-la é agora a sua prioridade. O seu grande sonho. "Tirava-me este peso todo que tenho cá dentro, esta mágoa. Seria uma alegria." Com o auxílio de João Serra, até já enviou um email para a televisão de Nampula a expor a situação. Enquanto não há novidades, contempla a mãe, com saudade, através da fotografia que registou o momento da despedida em Moçambique. A imagem foi-lhe oferecida por João Serra e agora vive numa moldura pregada na parede do seu novo quarto.
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- E-MAIL PARA A TV DE NAMPULA
Data: Quinta-feira, 30 de Junho de 2005
Assunto: PROCURA-SE FAMILIARES
Ex.mos Senhores,
Peço a vossa ajuda com o objectivo de João Sabadino Portugal, hoje com 43 anos, saber se tem família em Moçambique.
Em 1968, foi adoptado por uma unidade militar portuguesa, que o trouxe para Portugal em Junho de 1969.
Até ao momento, desconhecia a possibilidade de existência de familiares, devido a informações deturpadas que lhe foram transmitidas.
Agora, foi confrontado com fotografias que lhe foram mostradas por um antigo militar da unidade.
A sua família vivia na zona de Mocimboa da Praia e pensa-se que mais tarde se deslocaram para Porto Amélia.
Agradecendo a atenção dispensada para esta acção humanitária, apresento os meus melhores cumprimentos,
João Serra.
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-MOÇAMBIQUE - DATAS COM HISTÓRIA
-25 de Setembro de 64 - Início, em Mueda, da luta de libertação nacional.
-25 de Abril de 74 - Golpe militar em Portugal abre caminho para a independência do território.
-25 de Junho de 75 - É proclamada a independência. Samora Machel torna-se no primeiro presidente do país.
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Se porventura tiver informações que possam ajudar este cidadão contacte: João Serra, antigo fuzileiro Telemóvel: 93 51 00 952
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Dois comentários:
Segunda-feira, 12 Setembro
- benfirox7
Boa Sorte na busca dos familiares.
O que aconteceu a esta pessoa poderia ter acontecido a qualquer um, e caberia a um governo sério, corrigir os erros da guerra como este.
Milhares morreram, milhares ficaram com marcas para toda a vida, mas estes senhores saídos das universidades directamente para a rua sem experiência de vida alguma, continuam a governar como se nada tivesse acontecido.
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Domingo, 11 Setembro
- Filomena
Louvo a atitude do ex-fuzileiro João Serra, felizmente ainda se encontram almas boas, mas eu gostava muito que tivessem mencionado o nome de quem tão mal tratou a mascote da companhia, possivelmente um nome sonante da nossa sociedade.
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Poderá também ler esta reportagem do Correio da Manhã na Home Pemba - Imagens 3

9/12/05

Mocimboa da Praia...ainda ! - III

A razão não basta

LUÍS LOFORTE - Falando objectivamente, o problema chama-se luta pela hegemonia entre mwanis e macondes.(...) A população pode estar a servir-se da força política liderada por Afonso Dhlakama para atingir os seus dirigentes políticos históricos.

Só doze anos depois de ter pisado pela primeira vez o solo de Cabo Delgado tive o prazer de conhecer o distrito setentrional de Mocímboa da Praia.
De facto, estávamos em meados de 1980 quando, na companhia de dois colegas, o Carlos e o João, para lá nos dirigimos destacados pela Universidade Eduardo Mondlane para o Recenseamento Geral da População, por sinal o primeiro do país independente.
Foi por aquelas bandas, recordo-me, que vi nascer a nova moeda nacional – o metical.
Depois do censo, mais duas vezes nos anos oitenta para Mocímboa haveria de voltar, mas em mero passeio.
Não vejo Mocímboa, porém, desde 1994, quando para lá fui destacado com vista a desenvolver a campanha eleitoral pelo meu partido de então – a FUMO.
Dois meses e meio de trabalho intenso no senso e convívio gratificante com as populações locais permitiram-me tomar pulso de alguns problemas que podem explicar algumas diatribes que se vivem hoje em Mocímboa da Praia, embora não deixasse de acreditar que muitos deles seriam com o tempo resolvidos pelas autoridades, empenhadas que estavam e muito legitimamente em estabilizar política, social e economicamente o país recentemente libertado do jugo colonial.
No senso de 1980, pude aferir a grande pujança política da FRELIMO.
Sabia disso, mas não tinha a sua real dimensão.
Escusado será dizer que aquela zona foi de grande envolvimento na guerra de libertação.
Posso dizer com toda a segurança que aquele senso, feito com quase absoluta falta de meios e de dinheiro, jamais teria sido bem sucedido sem o profundo enraizamento de uma força política no seio das populações.
Num dia saímos logo pela manhã para, ao longo da costa, percorrermos o Sul ou o Norte vimos muçulmanos e mwanis tomando o pequeno almoço em Luciete, em Nazimodja, em Nakidunga ou em Naquitengue, para depois trabalharmos em Marere, a aldeia mais distante, onde, enquanto almoçávamos precariamente, nos iam contando interessantes histórias da guerra de libertação, com as dos leões e hienas de permeio.
Foi, aliás, em Marere onde vi uma das maiores madrassas (escola do Alcorão?) de Moçambique. No dia seguinte, lá estávamos nós visitando e aferindo os problemas das aldeias macondes do interior, como M’panga, Nambudi, Mbau ou Magaia, em Diaca, a caminho de Mueda.
Comíamos do celeiro pobre da população e dormíamos no melhor que ela podia oferecer, bastando-lhe apenas a garantia de que o fazia obedecendo aos desígnios da FRELIMO, o que quer dizer que não recebia qualquer contrapartida do Estado pela sua total disponibilidade.
Era como se a luta de libertação ainda estivesse em marcha.
Vi o que eram os centros educacionais, como, por exemplo, o de Januário Pedro, do qual, aliás, aproveitaríamos a maior parte dos agentes de recenseamento.
Em todos os locais por onde passássemos, notava que toda aquela gente, desde os mais jovens aos mais adultos, particularmente estes, sabia o sentido do seu sacrifício, mas também se notava algum ar de cansaço, expresso nalguma ansiedade por qualquer coisa que me parecia ser uma compensação que esperava um dia vir a receber por aqueles sacrifícios.
Como?
Se calhar, nem eles próprios sabiam decifrar, o que quer dizer que cabia e cabe ainda à FRELIMO estudar profundamente as soluções.
Os mwanis, concentrados ao longo da costa e particularmente em Mocímboa da Praia, já diziam que os frutos da Independência só se destinavam aos macondes e que eles eram sempre relegados a um plano secundário.
Lembro-me que, na preparação do comício da campanha, fomos logo advertidos para o perigo de buscarmos uma tradução em maconde.
A advertência fez-me logo lembrar os apupos em surdina que o administrador distrital dos anos oitenta recebeu ao pretender fazer-se traduzir em maconde, em comício realizado em Milamba, sede do “fundamentalismo” mwani.
Como lhe ouvira um dia falar em kimwani em sua casa com alguém, apesar de ele ser maconde, sugeri-lhe que se dirigisse alternadamente em português e naquela língua.
Pessoa de bom senso que era o meu saudoso amigo Jonas Cosme N’tave (que Deus o tenha em boas mãos), aceitou a proposta e as coisas correram mais ou menos de feição.
Mas parece-me que ainda hoje a lição está por aprender, pois, segundo sei, as reuniões públicas em Mocímboa da Praia decorrem em português, com tradução em maconde, como se de uma questão de honra se tratasse para quem as orienta.
Porquê, não sei, mas não me restam dúvidas de que isso é apenas a “ponta do iceberg” de um problema real existente em Mocímboa da Praia, o qual tem de ser resolvido pelos políticos, não lhes servindo para nada o tapar o sol com a peneira, tentando fazer crer às pessoas que os problemas lá existentes se prendem, exclusivamente, com as incidências dos pleitos eleitorais, o que não quer que não os há.
Falando objectivamente, o problema chama-se luta pela hegemonia entre mwanis e macondes.
Em 1994, praticamente vinte anos depois da Independência, pareceu-me que os problemas da falta de uma resposta aos sacrifícios consentidos na luta armada não só persistiam como, em alguns casos, até se haviam agravado.
Começava a ficar cada vez mais claro para as populações que não era a exploração desenfreada dos recursos naturais (em particular a madeira) que resolveria os problemas de uma população cada vez mais pobre.
Pior ainda, a população via os seus dirigentes históricos da guerra de libertação associados com a devastação dos seus recursos naturais e sem reflexo no seu desenvolvimento.
Para a população, o dirigente (nomeado ou eleito) parece ser aquele que servirá os interesses da fonte e não a solução dos seus problemas.
Começavam, então, a desenhar-se algumas reivindicações em surdina, mas quase todas elas encapadas, como parece ser esta que se vive agora em Mocímboa da Praia.
Quer dizer, o que se diz não parece ser o verdadeiro problema.
Por isso, não acredito no apoio político genuíno na RENAMO.
A população pode estar a servir-se da força política liderada por Afonso Dhlakama para atingir os seus dirigentes políticos históricos.
Mas a grande questão é saber se a FRELIMO saberá que este não é um problema que se resolve com o ter ou não ter razão.
Há muita vida para além da razão.
Aliás, em Moçambique não acredito que haja quem tenha absoluta razão e quem seja absolutamente culpado.
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Correio da Manhã - Ano IX - Nº 2160 - Sexta-feira, 09/Setembro/2005 - Fundado em 10 de Fevereiro de 1997. Primeiro jornal ilustrado transmitido por FAX, PDF e entregue por estafeta no endereço desejado (só cidade de Maputo), de 2ª a 6ª-feira. Propriedade da SOJORNAL Sociedade Jornalística, Avenida Filipe Samuel Magaia, 528-3º Flat 6, Maputo Moçambique - C.P. 1756. E-Mail: correiodamanha@tvcabo.co.mz – Telef. Redacção: 21305321/3 e 21305325. Editor 21305326 - Fax: 21305328. Delegação na Beira - Praça do Município – 17, 1º andar Direito, Telef/Fax: 23301648
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