Empresas brasileiras sofrem mais um golpe das concorrentes chinesas -- desta vez na África.
Por Malu Gaspar
EXAME -Durante muito tempo, o continente africano foi fonte de lucros e oportunidades para um seleto grupo de companhias brasileiras.
Para algumas delas, a África era uma espécie de quintal onde podiam fazer seus negócios com facilidade graças ao desinteresse de concorrentes do mundo desenvolvido pela região, muito pobre e dilacerada por guerras fratricidas.
Acostumadas a operar em meio ao subdesenvolvimento, gigantes como Odebrecht, Petrobras, Marcopolo e Vale do Rio Doce realizaram boa parte de seu processo de internacionalização em países africanos nas décadas de 80 e 90.
Para a infelicidade dessas empresas, porém, esse cenário de tranqüilidade faz parte do passado. Nos últimos meses, elas vêm colhendo sinais alarmantes de que uma ameaça poderosa está invadindo o "quintal": os chineses, com seu apetite insaciável por petróleo e demais commodities.
Com generosas ofertas de financiamento concedidas por Pequim, as empresas da China estão ampliando rapidamente seu acesso às reservas africanas.
E começam a levar a melhor em negócios que antes não escapavam aos pesos pesados do Brasil.
Uma das primeiras a se dar conta da nova realidade foi a Odebrecht, que está na África desde a década de 80.
Dona de contratos importantes em Angola, como as obras da hidrelétrica de Capanda, a Odebrecht vinha propondo ao governo do país a reforma do aeroporto da capital, Luanda, desde 2004.
Em meados de 2005, após a China anunciar um empréstimo de 2 bilhões de dólares para a reconstrução da infra-estrutura de Angola, a empreiteira descobriu que a idéia da reforma havia sido sepultada.
Os recursos emprestados só poderiam ser gastos com empresas chinesas, e elas faziam questão de construir um aeroporto novo.
O pacote incluiu ainda a reconstrução de três ferrovias e várias obras menores.
"Os chineses fizeram barba, cabelo e bigode", diz Humberto Rangel, diretor de novos negócios da Odebrecht Angola.
Em junho passado, foi a vez de a Vale amargar uma derrota que a fez reavaliar seus planos para o Gabão, também na África.
Depois de investir 15 milhões de dólares no país, a empresa perdeu para os chineses a disputa pelo direito de explorar a mina de ferro de Belinga, tida como a maior jazida inexplorada do mundo, com potencial para 1 bilhão de toneladas.
Os chineses se dispuseram a gastar 3 bilhões de dólares em infra-estrutura e a comprar toda a produção da mina.
Meses antes, os governos chinês e gabonês assinaram vários acordos bilaterais, prevendo desde empréstimos em troca de óleo até cooperação técnica para desenvolvimento da pesca.
Além da abundância de capital, a mão-de-obra barata chinesa entra algumas vezes como parte da negociação -- o que torna o pacote imbatível.
Segundo o diretor de uma empreiteira brasileira, os preços chineses chegam a ser 30% mais baixos.
Como não há estatísticas confiáveis, as estimativas acerca do número de trabalhadores chineses na África variam muito -- de 10 000 a 80 000.
Muitos desses operários são levados de navio.
"Os navios chineses atracam na costa e ficam lá enquanto durar a obra", diz Ronaldo Chaer, da Câmara de Comércio Brasil-Angola, que visita o país regularmente.
O avanço chinês alimenta lendas urbanas, como a de que os operários levados à África são, na verdade, prisioneiros.
Também há quem acredite na existência do esquema da "cama quente", em que o mesmo leito é ocupado duas vezes ao dia por operários que fazem turnos alternados de 12 horas.
A África não é a primeira região do planeta a sofrer a ofensiva da China.
Há algum tempo, indústrias de países ricos e pobres passam dificuldades por causa da concorrência de produtos chineses.
A diferença é que essa "invasão" está mais sofisticada.
Nesse novo tipo de ofensiva, os chineses emprestam dinheiro barato em troca de acesso ao subsolo e de bons contratos de obras públicas para suas próprias empresas.
Também conta a favor o imenso peso geopolítico da China, um dos cinco países do mundo a deter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU -- apoio particularmente valorizado por países em risco de sofrer sanções internacionais.
Foi essa combinação que garantiu às empresas chinesas uma posição de destaque no Irã.
Entre as obras feitas no país está a conclusão do metrô de Teerã, iniciado por uma empresa francesa e concluído pelos chineses.
O Irã, que vive às turras com os americanos desde que relançou seu programa nuclear, tem se valido do apoio chinês para tentar evitar medidas mais duras da comunidade internacional -- em troca, claro, de vantagens comerciais.
Esse expediente tem feito a diferença também na África, que concentra as últimas áreas inexploradas de recursos naturais do planeta.
Desde 2003, os chineses já emprestaram mais de 9 bilhões de dólares à região, a maior parte em troca de petróleo.
Também já cancelaram dívidas de países africanos no valor de 10 bilhões de dólares.
E estão sempre prontos a dar apoio a países com má fama no cenário internacional -- demonstração do imenso pragmatismo que rege a política externa chinesa, em franco contraste com a retórica terceiro-mundista de poucos resultados praticada pelo Itamaraty.
Para os chineses, os resultados vieram rápido.
A China tornou-se o terceiro maior parceiro comercial da África, atrás de Europa e Estados Unidos.
Em 1995, o comércio entre China e África movimentou 3 bilhões de dólares.
Em 2006, quando Angola se tornou o principal fornecedor de petróleo da China, o volume total já era de 40 bilhões.
Dados colhidos pelo Conselho Empresarial Brasil-China apontam que os chineses estão em cerca de 900 projetos na África, a maioria financiada por estatais chinesas de construção pesada.
A presença da China elevou também os patamares da disputa pelo petróleo africano.
Em junho passado, a petrolífera Sinopec fez a maior proposta da história pelos direitos de explorar um campo em Angola -- 1,1 bilhão de dólares.
Desta vez foi a Petrobras que teve de lidar com o jeito chinês de atuar.
A estatal brasileira perdeu a concorrência, e só não foi excluída do negócio graças à tecnologia de exploração em águas profundas.
Embora tivesse vencido a disputa, a Sinopec não tinha capacidade técnica para perfurar e operar o poço.
A Petrobras só pôde ficar com uma participação de 30% no negócio, apesar de desembolsar o mesmo que os chineses, que ficaram com 40% -- o equivalente a 400 milhões de dólares.
A estatal não divulga sua oferta inicial pelo poço, mas estima-se que tenha tido de aumentá-la em pelo menos 30% para conseguir manter-se na operação.
"Só aceitamos porque consideramos que esse campo dará boa rentabilidade.
Não temos as mesmas necessidades dos chineses e não faríamos um negócio que pudesse dar prejuízo", diz João Figueira, que ocupou até o final de 2006 a gerência executiva da área internacional da Petrobras.
O caso da Petrobras mostra que as empresas brasileiras ainda conseguem manter a competitividade em projetos que demandam maior capacidade tecnológica e mão-de-obra mais qualificada.
A Odebrecht, por exemplo, ainda cresce em Angola e é considerada a favorita para as obras de reconstrução da barragem do Gove, iniciada pelos colonizadores portugueses há mais de 30 anos e abandonada desde a independência do país, em 1975.
A Marcopolo, que tem uma fábrica na África do Sul, já convive com concorrentes chineses, mas ainda não perdeu nenhum contrato para eles no continente.
"Por enquanto, os ônibus chineses não são tão competitivos na relação custo/qualidade.
Mas sabemos que uma hora eles vão conseguir chegar lá", diz Ruben Bisi, diretor de operações internacionais da companhia.
Esse é o centro das preocupações brasileiras hoje.
Uma das principais características dos chineses é sua rapidez em aprender e copiar a tecnologia dos rivais.
"Logo eles vão começar a fazer o mesmo que nós, e aí vamos ter de dar pirueta", diz um empreiteiro que já foi sondado por chineses sobre sociedades em obras mais complexas na América do Sul.