É o vento.
O vento vivo e claro
que percorre e não prende
o corpo nu das árvores.
É o vento.
O vento que se inclina
junto às portas fechadas
e tateia as vidraças
com longos dedos de ágata.
É o vento.
O vento que se humilha
- e partirá tão só
como à chegada.
- Glória de Sant'Anna, “Um Denso Azul Silêncio”.
5/26/10
Glória de Sant'Anna - POEMA DA SOLIDÃO DO VENTO
Location:
Válega, Ovar, Portugal
Atravesso o mar sempre azul e, lá mais ao norte de Moçambique, na costa oriental da África da esperança deixando para tráz a neblina das madrugadas do tempo, vou redescobrindo os contornos sensuais da musa da saudade e das eternas recordações de minha adolescência!
5/15/10
De Porto Amélia a Pemba: Família Andrade Paes - parte 2
Já alguma vez arrancou uma planta útil da terra? Não o faça. Eu sei o que sente uma planta arrancada sem culpa do seu chão.
Glória de Sant'Anna - poetisa do mar azul de Pemba, Amaranto.
Moçambique - Cabo Delgado - Anos cinquenta - "VAMOS A PALMA?"
Vamos. Vamos rodando mais para o norte no que se considera o melhor carro para solavancos - o pequeno e útil 'carocha'.
É tempo seco. O perigo do matope não existe. Há sim a paisagem intensa de verdes e de água plana apenas mormurante do rio com nenúfares lilazes. E os pássaros gritadores colorindo de riscos de fulgor o largo espaço aberto. A baixa do M'salo preocupa-me porque é uma enorme extensão percorrida por caça grossa que ali vem beber ao pôr do sol, desafiando os olhos sornas dos grandes crocodilos. Mas o pôr do sol vem muito longe ainda. (É hora dos animais beberem. Ninguém sai de casa. - digo eu algumas vezes às crianças.) Pára-se para o batelão puxado por cordas. Sai-se. Há uma grandiosidade de princípio do mundo no silêncio de mil olhos escondidos. Algo me identifica com o sangue vegetal vibrante e vivo.
Já alguém reparou que nos troncos rugosos há uma aura suave de calor?
"Disseste alguma coisa?"
"Não. Não disse."
Está passado o M'salo e os rastos dos animais nas margens.
São ravinas, agora. Terreno onde a luz chispa vagamente, e que os antílopes e outros, vêm lamber porque é área de sal e gema. Uma vez por outra juntam-se em manadas e saciam-se.
Terra de macondes. Os artistas guerreiros cujas mulheres faladoras e descontraídas de repente me sorriem. E algumas aconchegando-se, apalpam o pano do meu vestido para ver como é. E conversam. E riem.
Nas mais novas o disco de pau preto ainda pequeno inserido no lábio superior, dá-lhes uma expressão de amuo.
(Foi em Pemba que vi o primeiro maconde. Novo, alto, de rosto tatuado e sorriso largo aberto sobre os dentes em serrilha.
Olhou os quadros dos pintores brancos postos nas paredes, com uma seriedade curiosa.
Aliás ele tinha sido convidado a ver outra forma de arte. E frente a um óleo estendeu a mão e percorreu a textura. Um dedo cauteloso e atento.
Ele, como eu, ouviu a explicação breve do dono da casa sobre técnicas e formas e materiais usados pelos artistas em concepções de estética.
Dias depois voltou sempre com aquela maneira de sorrir, trazendo a mulher tão nova como ele, bonita e de rosto liso.
E como marco de um ínicio de amizade, ofereceu um pequeno jacaré de marfim que esculpira na missão cristã onde estudou.)
Em casa do chefe de posto somos convidados a comer e a ficar. (Este hábito africano de portas abertas para a hospitalidade).
A dona da casa tem olhos verdes e cabelo preto encaracolado. Nasceu-lhe há pouco o primeiro filho.
"Palma é a solidão, é o extremo de tudo. Estou cansada. Tão cansada que nem pode supôr" - diz ela que na manhã seguinte na praia de areia muito fina, me adverte num sobressalto nervoso:
"Nunca se sente debaixo de um coqueiro! Um côco maduro cai sozinho!"
Há risadas espontâneas.
Quantos anos passaram já desde que os palmares são meus conhecidos? A sombra das longas folhas, a casca fibrosa do fruto melhor do que uma escova para dar brilho ao chão, a magnífica e fresca 'água do lenho' - bebida do côco verde.
A conversa incide sobre assuntos diversos: o decorrer dos dias; contentamentos; e descontetamentos, que não levarão muito tempo a surgir à tona da estrutura social.
Um cipaio aproxima-se dizendo que andam elefantes por perto.
"Vamos afugentá-los para não destruirem as culturas", diz o chefe de posto. "Alguém quer vir?"
Eu deixo-me ficar com Elsa sempre queixosa, mas que tem um bom senso de humor.
Continuo na tranquilidade da praia fresca de sabor salgado em terra de macondes, de entre os quais poucos anos depois e em tempo de guerra haverá um novo amigo escultor.
- Glória de Sant'Anna, Ao Ritmo da Memória - recolha de algumas crónocas publicadas no jornal Letras & Letras do Porto.
É madrugada e o n'pure voltou e canta
para o vermelho-laranja do horizonte
e o silêncio em volta dos telhados
é longo e doce
Uma linha de fumo branco sobe
da fogueira do guarda envolto na capulana escura
e a folhagem parada freme de súbito
ao grito do n'pure
Em redor dos troncos tombaram
as primeiras-tímidas flores da acácia rubra
durante a noite (penso)
ou soltas pelas asas leves do n'pure
In "Amaranto"
com tuas flores rubras farei brincos pulseiras e colares
para dar às sereias
que na alta maré cheia
em noites brancas de lua
saem da água
para cantar
""Para o Jaime: ...É o que chamo "o fio da amizade". Um fio que não quebra e une em espontaneidade, em memórias, pelos tempos dos tempos..."" - 28/04/2001, Glória de Sant'Anna.
SALABAI
(aí tens Salabai negra o poema que te prometi)
Salabai - podia ser o vento
deslizando nas folhas
Salabai - podia ser a chuva
tombada em leves gotas
Salabai - a palavra
que se ouve e se sonda
mas Salabai tem os olhos egípcios
na face quase negra
e perpassa sorrindo
na luz que surpreende
dia a dia hora a hora
(afinal Salabai é muito mais que tudo
o refrão matinal de uma canção de roda)
- In "Amaranto".
POEMA DÉCIMO TERCEIRO
A negra tombou entre os agrestes ramos
e um súbito espanto.
(está morta
e as aves cantam)
Do seu ventre aberto ao sol que se inclina
esvai-se o longo fio que a tecia.
(está morta
e o vento desliza)
Da face suspensa na folhagem magoada
descai o lenço que se desata.
(está morta
sob a claridade)
...toda já outra sobre o trilho que seguia
ausente das marcas de ódio que pisava
guarda entre os dedos longos da mão abandonada
sinais do áspero matope que a recolherá.
(está morta e as aves cantam
e a tarde se consome toda igual)
In "Amaranto"
BATUQUE
A negra salta e não cansa.
Entre o denso mar pálido
e a clara poeira,
a corda balança.
A negra se ergue e sorri.
Entre o leve céu pálido
e as dolentes árvores
e o tambor que vibra.
A negra se ergue e é esguia.
Dentro do batuque
e da ritmada corda
e do morto dia.
Não há segredo na boca tranquila da negra,
nem antigas e vãs perguntas que se percam,
nem místicas dúvidas ou esquecidos gestos.
Ela se ergue como uma lança,
e entre o céu e a poeira
simplesmente
dança.
- GLÓRIA DE SANT'ANNA-LIVRO DE ÁGUA (1961)- Sugerido por Andrea A. Paes.
VIAGEM
Na última vaga que a contém e arrasta
a casquinha é de ouro, de vento ou de água.
Nem âncora a amarra,
nem vela a segura,
mas o pescador
cheira a sal e a espuma.
Na última vaga que a contém e solta
a casquinha é de água, de vento ou de ouro.
Nem mastro a segura,
nem leme a norteia,
mas o pescador
cheira a sal e a areia.
(E o pescador cheira a sal e a areia
e deixa tombar sobre os búzios claros
os peixes de vidro que traz do mar largo.
E o pescador cheira a sal e a espuma
e deixa tombar sobre a areia húmida
seu longo cansaço).
A casquinha solta da última vaga,
espera sob as nuvens translúcidas,
pousada na areia como uma concha de nácar.
- GLÓRIA DE SANT'ANNA-LIVRO DE ÁGUA (1961) - Sugerido por Andrea A. Paes.
A CANÇÃO DO NEGRO
O negro canta
num timbre agudo
(agudo e rápido)
que surpreende.
Não fala: canta
num tom selvático
(denso e selvático)
alto e estrindente.
E o ritmo é tanto
tão bem marcado,
tão ansioso e
dilacerante,
que me parece
que está (sózinho)
cantando as mágoas
de toda a gente.
- GLÓRIA DE SANT'ANNA-UM DENSO AZUL SILÊNCIO - 1965 - Sugerido por Andrea A. Paes.
- Algumas publicações neste blog que referem Glória de Sant'Anna.
(Transferência de arquivos do sitio "Pemba/Régua" que foi desativado.)
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Válega, Ovar, Portugal
Atravesso o mar sempre azul e, lá mais ao norte de Moçambique, na costa oriental da África da esperança deixando para tráz a neblina das madrugadas do tempo, vou redescobrindo os contornos sensuais da musa da saudade e das eternas recordações de minha adolescência!
5/14/10
De Porto Amélia a Pemba: Família Andrade Paes
Já alguma vez arrancou uma planta útil da terra? Não o faça. Eu sei o que sente uma planta arrancada sem culpa do seu chão. Glória de Sant'Anna - poetisa do mar azul de Pemba, Amaranto.
GLÓRIA DE SANT'ANNA - O silêncio intimo das coisas. No Moçambique que precedeu a independência, a qual teve lugar em 25 de Junho de 1975, muita coisa aconteceu, como não é sabido de toda a gente. Na realidade, não é sabido de quase ninguém, exceto de uns poucos (e não todos) que lá viveram. Muito se tem escrito, sobretudo no pelouro em que impera o "discurso político", acerca do que foi ou não foi o chamado período colonial português. Seja dito de passagem que mais se tem falado do que acertado. É com lindos sentimentos que se faz má literatura, disse-o um dia Gide, irritando Claudel, e é também com angélicas intenções que se trai, frequentemente, os mandatos da história. Não deixa sobretudo de ser curiosa a fácil boa consciência de quem, no chamado Portugal continental, bem mais se aproveitou (e prosperou) com a exploração colonial do que tantos que pelo ultramar tristemente se alienaram, pobre e honradamente viveram e, para o fim, alucinadamente se desintegraram. De gente séria, pobre e perplexa ( e não só da outra), está a história de Moçambique também cheia, como não é do conhecimento confortável de algumas consciências bastante poluídas, que depois facilmente se reconciliaram consigo próprias, por vias mais ou menos expeditas...
Com a publicação, em 1961, em Moçambique, do livro de poemas "Livro de Água", laureado com o premio Camilo Pessanha, confirmava-se, para alguns, e revelava-se, para muitos outros, um dos nomes mais importantes da poesia portuguesa, em Moçambique, e um dos poetas mais notáveis, em língua portuguesa, dos últimos vinte e cinco anos: Glória de Sant'Anna.
Para o leitor da antiga "metrópole", um livro em língua portuguesa, publicado em Moçambique, Angola ou também em Cabo Verde, era, por assim dizer, um livro "perdido". Os nomes de Rui Knopfli, Sebastião Alba, Glória de Sant'Anna, Lourenço de Carvalho e, até certo ponto, mesmo o de João Pedro Grabato Dias, entre outros, nada ou quase nada significavam para o leitor confinado, como diria Jorge de Sena, entre o Chiado e a Rua Ferreira Borges... Não se sabia muito bem quem eram, o que faziam, o que pensavam... E o fato de estarem a viver "lá" era já, em principio, um motivo de apreensão. ...
Glória de Sant'Anna foi, para Moçambique, um produto de importação. Nascida em Lisboa, em 26 de maio de 1925, concluiu o curso complementar de Letras no Colégio de Odivelas, casou em 1949 e, dois anos depois, partiu para aquela colônia portuguesa onde fixou residência, em Nampula. Em 1953 mudou-se, com sua família, para Porto Amélia (hoje Pemba), onde permaneceu, frente à vasta baía, quase até ao regresso definitivo a Portugal, em Dezembro de 1974 (os dois últimos anos passou-os a poetisa em Vila Pery)... O "seu chão" fora Pemba, o mar, a água, o "vento de prata/manso, manso". O "mar calmo e estranho" tornara-se a presença fraterna, terapêutica, ameaçadora, tranquila, lisa, ominosa, às vezes trágica-densa, sempre vigilante. E os momentos passados à sua beira exprimiam a dignidade de momentos "translúcidos e antigos".
Arrancada deste chão onde se encontrava "inteira", o exílio em que, ironicamente, se traduziu o regresso à pátria teve consequências traumáticas. ... Isto é, durante cerca de quatro anos, nada produziu.
Em Portugal, de Norte para Sul e do Sul para Norte, entre Ovar e o Algarve, tentando reencontrar o rumo que não havia (o mar, que é bom "porque é concreto", ficara para trás), Glória de Sant'Anna foi sobrevivendo ao rés de um desespero nem sempre inteiramente dominado. ... Durante vários anos arredada do "seu" mar, que era em Pemba, e da "sua" escrita, que dele se alimentara, Glória de Sant'Anna fixou-se finalmente em Ovar: - "Atualmente, na minha condição de aposentada, reparto o tempo pela casa e pela família e ajudo o meu marido num gabinete de arquitectura e obras, que abriu perto daqui".
A obra de Glória de Sant'Anna, na sua concentração e densidade, na sua liquidez secreta e cheia de pudor, na sua misteriosa claridade, na sua "mortal" e dominada angústia, consta essencialmente de sete livros publicados, seis de poesia (Distância, 1951; Música Ausente, 1954; Livro de Água, 1961; Poemas do Tempo Agreste, 1964; Um Denso Azul Silêncio, 1965 e Desde que o Mundo e 32 poemas de Intervalo, 1972) e um de crônicas (...Do Tempo Inútil, 1975). Além destes o volume agora editado (1984) inclui 4 livros inéditos: A Escuna Angra (1966-68); Cancioneiro Incompleto (temas de guerra em Moçambique, 1961-71); Gritoacanto (1970-74 e Cantares de Interpretação (1968-73). O resto é trabalho disperso por revistas e jornais: Diário Popular, Guardian (Lourenço Marques), Itinerário (L. M.) Diário de Moçambique (Beira) Noticias (L.M.), Tribuna (L.M.), Sul (Brasil) e Caliban (L.M.).
Glória de Sant'Anna tornou-se quase desde o seu "aparecimento" discreto, uma das vozes mais geralmente reverenciadas, no panorama literário de Moçambique. Mas aquilo a que poderíamos, sem exagero, chamar a sua "glória", nada teve de ruidoso. A autora do Livro de Água foi sempre um personagem de um pudor e "retiro" exemplares, na feira intelectual que, em Moçambique, como em todo o lado, tinha os seus profissionais da promoção e da acrobacia. "Serei tão secreta/como o tecido da água" afirmará ela, num dos seus poemas. De fato, toda a sua obra, de um extremo ao outro, é um alongado programa de homenagem à nobreza do "silêncio" e do "falar pouco"...
... Dizia um grande escritor deste século que sofria por causa dos homens a quem se não dá o lugar que merecem. E acrescentava haver nas letras francesas de hoje alguns exemplos dessa injustiça, por omissão. Há nas letras portuguesas de hoje também alguns exemplos disso. Glória de Sant'Anna é um deles, mas não é caso único. Entre os escritores que a ressaca da descolonização trouxe até estas paragens, há uma boa meia dúzia a pedir que os publiquem, os estudem e os divulguem. Constitui para mim uma honra e um privilégio esta tentativa de procurar a autora dos Poemas do Tempo Agreste "completa dentro desta pura água", para a dar a conhecer a um público distraído, mas eventualmente capaz de lhe reconhecer a estatura. Honra idêntica me daria poder fazê-lo por outros. O silêncio que sobre eles pesa, um silêncio morto, não é por certo o fecundo e "denso azul silêncio" que irriga e impregna o claro e enigmático discurso poético de Glória de Sant'Anna.
- EUGÉNIO LISBOA - Londres, Dezembro 1983/Janeiro 1984 - transcrito do Livro Amaranto.
GLÓRIA DE SANT'ANNA - uma poética de mar e silêncio! O silêncio funda um outro discurso, que não o comum; entretanto, é linguagem de grande teor significativo (STEINER, 1988, p. 73). Mar, silêncio e solidão atravessam a obra poética de Glória de Sant'Anna, cuja linguagem flui numa liquidez profunda, articulada por uma semântica aquática e abissal, que busca apreender os mistérios da alma humana. Por ter nascido em Lisboa e por ser sua poesia de cunho predominantemente universal, versando sobre temas existenciais, a poesia de Glória de Sant'Anna, durante algum tempo, não foi considerada como pertencente ao patrimônio literário moçambicano, embora grande parte de seus poemas tenha sido produzida durante os vinte e três anos vividos por ela em Moçambique. Consideramos esse critério bastante discutível, pois apenas leva em consideração a pátria de nascimento da autora, ignorando os pactos afetivos de identificação tecidos durante sua longa vivência em terras africanas.
Em 1951, recém-casada, Glória mudou-se para Nampula, cidade moçambicana onde viveu até 1953, ocasião em que se transferiu para Porto Amélia, hoje Pemba, outra cidade do litoral moçambicano.
Seus primeiros livros foram publicados nessa época: Distância (1951) e Música Ausente (1954). Nessas obras, é clara a desterritorialização do sujeito poético, cuja face, sobre o azul vogando (SANT'ANNA, 1988, p.47) se revela perdida, refletindo a imagem da própria identidade fraturada que não se reconhecia ainda nas paisagens africanas. Com o coração inteiro/no fundo do oceano (op. cit., p.35 ), o eu-poético tem consciência de seu naufrágio interior. Mergulha, então, nas marítimas águas do exílio, e, através de uma linguagem poética reflexiva, procura alguns pontos de ancoragem com as fronteiras diluídas da pátria distante.
Nos dois primeiros livros de Glória, domina uma semântica de vaguidão. As reminiscências da voz lírica se encontram esmaecidas, sem nenhum referencial, a não ser o oceano de prata que se esvai em longínquos horizontes e se configura, ainda, como um território vazio de memórias, conforme denunciam os versos do poema Música Ausente: Na minha lembrança batem águas de vidro/de um mar sem sentido.(op. cit., p.53).
Nas composições poéticas dessa fase, amargura, degredo e solidão aprisionam o sujeito lírico, que, sem uma fisionomia definida, se fecha em sua interioridade, à procura de elos emotivos capazes de equilibrarem sua subjetividade cindida entre duas pátrias.
É, pela contemplação do mar de Pemba e pelo exercício da poesia, que consegue alento para ultrapassar o desenraizamento provocado pela saída da terra natal para viver em terras alheias.
À medida que se contempla existencialmente no espelho das marítimas águas, o sujeito poético vai se encontrando e, naturalmente, começa a incluir em seus versos novas paisagens e pessoas. Do âmago das palavras emanam, então, emoções fraternas em relação ao povo moçambicano: Que importa seres meu irmão noutro país? (op.cit., p.56) indaga-se o sujeito lírico, com o coração já se abrindo aos novos horizontes.
Cartografias geográficas, culturais e humanas de Moçambique vão, aos poucos, integrando o imaginário literário da poesia de Glória de Sant'Anna, que, lentamente, passa a captar os ritmos e batuques africanos (Poema Batuque, op. cit. 63), como também as danças das negras à beira-mar:
Negrinha faceira,
dentro da água cálida,
quem olhará
tua graça?
Ou quem verá teu riso
esparso
entre uma onda translúcida
e um sargaço?
(...)
Os teus pés estão sobre os búzios claros
e vazios,
e há música e sol
em teus ouvidos.
Mas quem passa, deixando pegadas na areia,
não olha para ti, negrinha faceira.
(SANT'ANNA, 1988, p.62 )
Afirmando-se por um ethos existencial e humano, a poética de Glória, com imensa sensibilidade e delicadeza de sentimentos, também critica os preconceitos raciais presentes em Moçambique; só que o faz de forma suave, velada e sutil.
Contemporâneos da chamada poesia da moçambicanidade, seus poemas de Música Ausente (1954) e do Livro de Água (publicado em 1961, mas com poemas escritos na década de 50), embora não se utilizem do estilo veemente com que, por exemplo, Noêmia de Souza e José Craveirinha celebraram, nos anos 50, os valores autenticamente moçambicanos, também cantam as belezas africanas :
(Do fundo do tempo a negra se curva
sobre a inquieta água
e sobre seu cesto redondo
de palha entrançada.
Por dentro da tarde a negra se curva
no horizonte fechado,
o seu gesto é ancestral
e cansado).
(SANT'ANNA, 1988, p. 63)
Laureada com o prêmio Camilo Pessanha, em 1961, por seu Livro de Água, Glória de Sant'Anna tornou-se reconhecida literariamente.
Continuou a escrever nos anos 60 e 70, e sua obra se manteve fiel à linha existencial por que optou desde o início de sua trajetória poética. Embora acompanhasse as mudanças sociais por que passava a sociedade moçambicana, a poesia de Glória, nos anos de guerra a que ela chamou de 'tempos agrestes', não enveredou pelo ethos militante e revolucionário que dominou o panorama literário de Moçambique nesse período. Apesar de muitos de seus poemas terem denunciado os malefícios dessa época de lutas e violências, sua poética fez a opção pelo silêncio e pela metáfora, alinhando-se, por isso, ao lado dos poetas do Grupo Caliban, como Rui Knopfli, Sebastião Alba, entre outros, que, para driblarem a censura e repressão, enveredaram por caminhos poéticos universalistas e existenciais, sem, contudo, deixarem de problematizar as questões sociais.
O trabalho poético é às vezes acusado de ignorar ou suspender a praxis. Na verdade, é uma suspensão momentânea e, bem pesadas as coisas, uma suspensão aparente. Projetando na consciência do leitor imagens do mundo e do homem muito mais vivas e reais do que as forjadas pelas ideologias, o poema acende o desejo de uma outra existência, mais livre e mais bela(...), pela qual vale a pena lutar . (BOSI, 1983, p.192).
Em tempos desumanos, de brutalidade e jugo totalitário, há poetas que ultrapassam os ângulos limitados de políticas panfletárias, não tomando partido direto e radical, embora criticando as arbitrariedades do poder. É o caso de Glória de Sant'Anna e dos poetas de Caliban, que captaram a angústia das possíveis e cruéis injustiças, denunciando o sem sentido da força e ressaltando a importância do existir humano. O silêncio, nos versos desses poetas, fala, expressa a recusa do apenas circunstancial e político. Penetra os espaços abissais da própria poesia, buscando a expressão do puro, do indelével, dos sentimentos mais recônditos da alma humana universalmente concebida. Essa poesia foi, nos tempos de combate, considerada por alguns mais sectários como reacionária. Hoje, entretanto, não mais é vista assim, pois muitos críticos literários contemporâneos sabem que a saudade de tempos que parecem mais humanos nunca é reacionária.
(...) Reacionária é a justificação do mal em qualquer tempo.
Reacionário é o olhar cúmplice da opressão. Mas o que move os sentimentos e aquece o gesto ritual é, sempre, um valor: a comunhão com a natureza, com os homens,(...) com a totalidade. (BOSI, 1983, p.153)
Os poetas de Caliban denunciaram as desumanidades da guerra e mostraram a necessidade de recuperar valores existenciais mais profundos. Glória de Sant'Anna, em muitos de seus poemas escritos de 1964-1974, criticou o sem sentido da guerra que, para ela, igualou os soldados revolucionários e os cipaios (SANT'ANNA, Amaranto, p.164, p. 176). Comoveu-se com as mortes, chorou com a chuva sobre o rosto do cadáver do negrinho estirado no chão (op. cit. p. 99 e p.100), acumpliciando-se com as mães negras que perderam seus filhos nas lutas. E, como mulher, se identificou às negras, celebrando o sentimento universal da maternidade:
Olho-te : és negra.
Olhas-me: sou branca.
Mas sorrimos as duas
na tarde que se adeanta.
Tu sabes e eu sei:
o que ergue altivamente o meu vestido
e o que soergue a tua capulana,
é a mesma carga humana.
Quando soar a hora
determinada, crua, dolorosa
de conceder ao mundo o mistério da vida,
seremos tão iguais, tão verdadeiras,
tão míseras, tão fortes,
E tão perto da morte...
(SANT'ANNA, 1988, p. 119)
Nos poemas onde Glória denuncia a urgência de sangue exigida pela guerra, o mar se faz ausente. A voz lírica se tece da angústia de um silêncio diferente, porque forjado por medos e atrocidades. Um silêncio de ciprestes, esquifes e espadas cegas. Um silêncio de anulação da arte e da vida.
No poema Sexto do livro Cancioneiro Incompleto (temas da guerra em Moçambique, 1961-1971), de Glória de Sant'Anna, o sujeito poético condena a violência que destruiu os macondes, cujas esculturas celebra :
(...)
(cada figura crescia de suas mãos negras
como se brotasse da sua própria fina pele
solta para a claridade e portadora
de igual agreste impulso
e em seu rosto
e em suas pupilas alagadas
era o mesmo secreto tempo de amar)
Hoje o pesado e oculto pau preto
jaz dentro da ausência
pleno de irreconhecíveis figuras
que perpassam iguais às da nossa memória(...)
(SANT'ANNA, 1988, p. 167-168)
Por entre sons de canhões e agrestes perplexidades diante da morte de pessoas inocentes, a poesia de Glória capta também a suavidade do mar , o canto dos negros e os tã-tãs dos tambores moçambicanos (Op. cit., p.201). Por entre os silêncios de lucidez crítica, seus versos assumem a consciência do fazer estético e, em meio às lacunas da denúncia explícita da opressão, teoriza sobre sua própria arte poética:
Um poema é sempre
uma qualquer angústia que transborda.
(E eu posso cantá-lo de amor
posso cantá-lo de ódio
posso cantá-lo de roda...)
Um poema é sempre
como um rebento novo que se desdobra.
(E eu posso cantá-lo ao sol
posso cantá-lo de água
posso cantá-lo de sombra...)
Um poema é sempre
como uma lágrima que se solta.
(E eu posso cantá-lo como quiser:
há sempre uma palavra que me esconda...)
(SANT'ANNA, 1988, p. 97 )
Metalinguagem, sensibilidade e silêncio levam a voz lírica a profundas reflexões sobre a sua textualidade poética que, de grito a canto, se reconhece mar, vento, som, melodia. O oceano traz as correntes submersas da memória. Mudanças atmosféricas marcam o ritmo introspectivo das lembranças e das catarses históricas.
Alterações cromáticas, luminosas e sonoras trazem o vento para dentro dos poemas como símbolo da transformação do eu-lírico, o qual busca, agora, apreender a expressão de belezas e angústias indizíveis: de sangue salgado se vestem estas minhas palavras e é sangue e sal o que escrevo e mágoa (SANT'ANNA, 1988, p.229).
Mar, tecido de mortos e vivos, magma da memória ultrajada, cuja liquidez salgada purifica as lembranças e as palavras. Mar, reservatório de mágoas e sangues acumulados que só se fazem expurgados pelas águas da própria poesia. Mar, mergulho abissal na interioridade mítica universal e reencontro com as raízes profundas de identidades submersas: 'Porque sempre o mar: / é isso / os mortos, as algas, as marés, os vivos' (SANT'ANNA, 1988, p.202)
A poética de Glória de Sant'Anna , como a poesia de Rimbaud, de Hölderlin, de Cecília Meireles, mergulha no silêncio e na musicalidade da linguagem, no 'mar absoluto' da própria poesia.
Captando a melodia cósmica das palavras, apreende a emoção do inexprimível, os sentidos profundos do existir humano universal:
Eu naveguei pelo interior de um longo rio humano de tempos diversos onde também há sangue vegetal, buscando o que acabei por encontrar a imensa angústia que se reparte.
Sobre isso escrevo.
Mas cuidado : a música da palavra é um casulo de seda. Só dobando-os com olhos atentos se chega à verdade, à solidão ansiosa e disponível.
No entanto, que cada um faça a sua leitura.
(SANT'ANNA, 1988, poema da contracapa)
É uma poesia que faz opção pelo silêncio. Um silêncio, cujo significado 'fala' mais que o de poemas explicitamente engajados com o real histórico, pois é tramado pela densidade de emoções e sentimentos despertados por situações várias: de beleza, de ternura, de ódio, de dor, de medo , de angústia, de saudade.
Quando a autora, em 1974, teve de regressar a Portugal, o retorno à pátria se converteu para ela num segundo exílio.
Arrancada do mar de Pemba de que se alimentara por longo tempo, a poetisa ficou vários anos sem conseguir escrever, agora, num silêncio concreto, sem palavras. Ao recuperar a linguagem, mergulhou de novo no mar, em cujas águas, transformadas em canto, passaram a ressoar memórias, por intermédio das quais a voz lírica se reconheceu livre e inteira : eis-me solta de todas as amarras da canga a que forcei o pensamento de novo imersa nessa pura água em que me identifico e apresento (SANT'ANNA, 1988, p. 289).
Mar e silêncio, na obra de Glória, passam a conotar depuração. Depuração de sentimentos e emoções que não se traduzem em linguagem comum, mas que se revelam na expressão indizível das metamorfoses da própria poesia:
A essência das coisas é senti-las
tão densas e tão claras,
que não possam conter-se por completo
nas palavras.
A essência das coisas é nutri-las
tão de alegria e mágoa,
que o silêncio se ajuste à sua forma
sem mais nada.
(SANT'ANNA, 1988, p. 126)
Mar, música e silêncio fluem na sacralidade poética instaurada pelo discurso de Glória de Sant'Anna, para quem a literatura, acima de ideologias, de partidos, de nacionalidades, de etnias ou de gêneros, assume um compromisso maior com os valores humanos e com a essência universal da arte e da própria criação poética.
- CARMEN LUCIA TINDÓ RIBEIRO SECCO, Doutora em Letras Vernáculas e Profª. de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BOSI, Alfredo. O Ser e o tempo da poesia. SP: Cultrix, 1983.
SANT'ANNA, Glória de. Amaranto: poesias 1951-1983. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,1988.
STEINER, George. Linguagem e silêncio : ensaios sobre a crise da palavra. SP: Cia das Letras, 1988.
Brasil, 2 de Junho de 2009 - O tempo, dilapida implacável, inclemente nossas referências... Fica a saudade para alimentar o horizonte do hoje. Do "ForEver PEMBA" e do "São Paulo o Colégio" transcrevo:
Partiu esta madrugada nossa Querida Professora, Amiga e Poetisa, Glória de Sant'Anna. A notícia veio até mim por este pequeno e simples texto:
"... É com profunda dor, que te venho anunciar o falecimento da nossa Mãe. Morreu às 4 horas da madrugada do dia de hoje..."
Não é fácil falar ou comentar quando o coração está apertado, amargurado com mais esta passagem da vida que envolve e atinge um ser humano de valor sentimental imensurável para muitos de nós que aprendemos a caminhar na vida pela força e ensinamentos recebidos de suas delicadas mãos sempre dadas às nossas, desde os tempos da infância.
Só consigo dizer que jamais esquecerei seu olhar terno, suave, sua voz tranquila, meiga mas firme e de palavras inteligentes, doces, sempre doces, repletas de poesia e sabedoria...
Jamais deixarei de a considerar minha Querida Professora, quase uma segunda Mãe...
Jamais deixarei de a considerar a minha Querida e Eterna Poetisa do Mar Azul de Pemba...
E é com lágrimas nos olhos, com imensa tristeza, com uma tremenda saudade que não tem fim, que, aqui de longe, a revejo no meu imaginário no meu último abraço, no meu último adeus terreno, ciente que a reencontrarei sempre em meus sonhos e na poesia de todos os entardeceres que aprendi a descobrir com a beleza de seus versos e com a generosidade que emanava de seu coração de poetisa, professora e Mãe.
Que a beleza e força espiritual de D. Glória (como sempre e carinhosamente por nós era chamada), que são eternas, nos inspire a todos, seus Amigos, assim como a seus Filhos e Familiares, a superar a saudade que fica!
- J. L. Gabão, 02 de Junho de 2009.
Dedico este "post" e tudo que divulgo e tentarei continuar a divulgar sobre esta querida e notável personalidade, a minha paciente professora de inglês (Glória de Sant'Anna) quando seu aluno do Colégio de São Paulo e da Escola Comercial Jerônimo Romero em Porto Amélia, hoje Pemba, na década de 60.
- Algumas publicações virtuais que referem Glória de Sant'Anna
(Transferência de arquivos do sitio "Pemba/Régua" que foi desativado.)
Location:
Porto Amelia, Moçambique
Atravesso o mar sempre azul e, lá mais ao norte de Moçambique, na costa oriental da África da esperança deixando para tráz a neblina das madrugadas do tempo, vou redescobrindo os contornos sensuais da musa da saudade e das eternas recordações de minha adolescência!
5/11/10
Retalhos: De Porto Amélia a Pemba - Família Carrilho !
A origem do apelido Carrilho é matéria de controvérsia.
Tudo indica que nobres de Espanha tenham vindo fixar-se em Portugal por razões não claras, nomeadamente em Castelo de Vide, por volta do século XVII. Dai o apelido "Carrillo" foi aportuguesado para Carrilho. Estes nobres beneficiaram-se da protecção da coroa portuguesa e adquiriram brasão próprio que os distingue do brasão castelhano com algumas parecenças.
Alguns Carrilhos teriam passado a usar o apelido Gil e estes parecem ter ligação com os Albuquerques, nomeadamente o famoso Mouzinho de Albuquerque.
Tudo indica que o brasão dos Carrilhos foi por isso sofrendo mutações.
Um Carrilho é nomeado pelos reis de Portugal para ser Governador das Ilhas de Cabo Delgado, em Moçambique, no século XVIII. Este governador aparece com um corpo de soldados da guarda com um outro Carrilho como sargento. Daí a origem dos Carrilhos de Moçambique.
Muitos dos Carrilhos hoje em Portugal ainda se referem a Castelo de Vide como possível origem da família. No entanto, alguns Carrillos de Espanha podem ter migrado ao Brasil e daí terem surgido outros ramos dos Carrilhos. Nada nos diz que a origem dos Carrilhos é toda a mesma.
Isto é resultado de uma pesquisa minha muito longa na internet. Não tenho agora todas as referências. Parece que temos que continuar a procura!
- Manuel Carrilho Alvarinho - 30 de Janeiro de 2005.
O Sr. Babo Carrilho - Patrono da Família Carrilho.
D. Judith Carrilho e Sr. António Baptista Carrilho - Casal originário de famílias tradicionais da histórica Ilha do Ibo. Pais de Francisco (Chico) Carrilho, José Eduardo, Rodrigo, Zé Norberto, Teresa, Nandinha, Matilde.
José Franco Carrilho (4/6/1922 – 29/1/2001) é pai do Júlio, Luísa, Zeca, Nando, Gunass (Renato), Joneca, Tonecas, Maria do Carmo e Carlinha Carrilho.
João Manuel Zamith de Franco Carrilho - Foi vice-Ministro de Agricultura e Desenvolvimento Rural desde 2000, presidente do Instituto Nacional do Desenvolvimento Rural de 1979 a 1999 e trabalhou vários anos em questões rurais moçambicanas. João Carrilho nasceu a 22 de Setembro de 1955, na Cidade de Pemba, na província setentrional de Cabo Delgado. Descendente das famílias da Ilha do Ibo (norte de Moçambique), é o sexto dos 9 filhos de José Franco Carrilho e Maria das Dores Zamith Carrilho. Seu pai dedicou-se primeiro à venda de roupa e mais tarde foi guarda-livros. Quando João Carrilho nasce, o pai trabalhava numa empresa de sisal em Nangororo, nas margens do rio Ridi (Cabo Delgado). É aqui, onde o pequeno João vive até aos seis anos. Então, sendo grande o número dos irmãos a estudarem e por ser difícil sustentar os filhos em vários colégios, a sua mãe transferiu-se para Pemba. Dos seus irmãos, recordamos Júlio Carrilho, ex-Ministro das Obras Públicas e Habitação, Maria Luísa Carrilho, ex-Administradora do Banco de Moçambique.
José Norberto Carrilho - Filho de D. Judite e Sr. António Baptista Carrilho, nasceu em Pemba aos 9 de Maio de 1955. Exerce função no Judiciário Moçambicano.
Júlio Carilho - O escritor Júlio Carrilho, também natural de Pemba e filho de José Franco Carrilho e Maria das Dores Zamith Carrilho - entre seus nove irmãos está o Joneca, acima citado como João Manuel Zamith de Franco Carrilho. Júlio Carrilho é formado em arquitectura e desempenhou no período pôs-independência as funções de Ministro das Obras Públicas de habitação. (Notícias, 02/05/01). Além artista, escritor, Júlio Carrilho é também Arquitecto e Professor na Universidade Eduardo Mondelane.
Algumas de suas obras - Riário, Apontamentos, Um olhar para o habitat informal moçambicano - de Lichinga a Maputo, Pemba - As duas cidades.
De Júlio Carrilho também:
OS TRUQUES
Quantas Áfricas terão de se afirmar no truque do aparente desprendimento? Quantas ainda terão de se aprimorar na sua própria ignorância calculada?
Hoje já não creio que só o futuro é que nos traz mensagens. E a Nação? Era candura a minha, essa de fazer da história uma tábua de passar a ferro. E queimei-me nas minhas próprias subtilezas de argumentação.
- "Madera Zinco", Revista Literária Moçambicana.
SER MWANI
Não é que ser mulato me abra portas:
é preciso que tenha aprendido a beber
esse saber da praia
qualquer que seja a dor que se transporta
A guerra aqui não se reproduz. Sofre-se.
A escravatura aqui não se aprimora. Degrada-se.
Na sabedoria dos escravos
Na subtileza do servir dos servos
Na paciência dos barcos adornados
Tudo sucumbe no equilíbrio sustentável
Da intriga
Viscosamente escrutinada nas sub-ilhas dos murmúrios
Dos quintais fechados.
- Júlio Carrilho (Sugestão de Andrea Andrade Paes)
Recordando ZECA CARRILHO...
Uma vez em Caia - Moçambique !
Decorriam os anos de 1975/1976.
As chuvas caiam com intensidade.
Uma avioneta faz-se á pista de Caia e, uma jovem de vinte anos com o seu filho de dois meses descem.
Além de seu marido que a aguardava, ao seu lado estava o Engenheiro Carrilho, naquele modo educado e brincalhão, a dar-lhe as boas vindas e a divertir-se com o seu ar assustado.
Foi bom encontrá-lo.
A jovem suspirava por saudades de Maputo e aquele fim do mundo, aquela umidade, aquele calor doentio, aquelas chuvas castigavam seu peito... Era enfim uma zona de Moçambique que não conhecia.
Nos serões na grande varanda de estilo colonial falava-se de terras e gentes de Cabo Delgado, da faculdade já que todos que ali estavam estudaram na mesma época na Faculdade de Engenharia em Maputo: o Zé Rendas e o Japs - José António Pereira da Silva que vive em Maputo. Eram da Somopre - da ponte sobre o Zambeze. E o marido da jovem trabalhava na Manuel da Silva Oliveira... a celebre estrada centro nordeste... O Engenheiro José Carrilho era da fiscalização por parte do governo.
Com o tempo, o estado do bebê , filho da jovem, ia piorando vítima de uma grave disfunção muscular. A jovem levou-o para se tratar e viver em Portugal,... mas ela voltou depois de deixá-lo com os seus pais na Povoa de Varzim...Voltou para Caia.
Um dia, quando regressa da Beira na avioneta do Guerra , chega a casa e é informada que o seu marido está preso e a ser interrogado pelo grupo dinamizador e policia.
Em pânico procura ajuda...
Está no seu quarto lavada em lágrimas quando alguém bate á porta e senta-se ao seu lado, abraça-a e diz-lhe:
- "Nada vai acontecer. O Delgado (marido da jovem) é um bom colega e um bom profissional, confia em mim, não permitirei que lhe façam mal."
E partiu...
A noite decorreu cheia de lágrimas.
Mais dois dias se foram e ninguém aparecia.
Disseram à jovem que o Engenheiro Carrilho presidia às reuniões sempre muito zangado quando falava.
Ao fim do terceiro dia, o sol começava a pôr-se e a jovem ouve gritos dos empregados da casa.
Corre para o portão e aos poucos vai saindo para o meio da estrada de terra vermelha batida pela chuva com explosões de pequenos cristais, tamanha era a força com que a água tocava o chão.
Ao fundo começavam a surgir duas silhuetas que pareciam emergir do estrondo da trovoada e relâmpagos... Eram José Carrilho e João Delgado!... Ali os dois... todos molhados...
A jovem desmaia e acorda na sala.
Ao seu lado o seu marido pálido com a barba por fazer de dias e o Engenheiro José Carrilho... ...
Um dia partiram para Maputo e, no aeroporto, a jovem abraçada ao Engenheiro Carrilho promete que nunca o esquecerá e voltaria a encontrá-lo.
1997 - Pemba... Um abraço bem forte: o Zéca Carrilho ali estava. Conheceu o bebê já homem e mostrava felicidade porque aquela mulher, aquela família, nunca o esqueceram...
1998 – Maputo, foi a ultima vez que o viu.
2005 – Hoje, essa jovem sou eu. O bebê é o meu filho mais velho de 30 anos, irmão de mais três. Muitas vezes me lembro da noite em que o pai dos meus filhos voltou para casa quando, numa época política instável e tumultuada que se vivia em Moçambique, quando poderia ter ido prisioneiro para um dos campos da Gorongosa.
Sou moçambicana. Com os erros passados aprende-se a construir um país melhor... mas ali, naquele tempo, o enorme coração do Engenheiro Zeca Carrilho evitou que um ser humano fosse vítima de um erro.
Considero-te Zeca Carrilho, uma das estrelas que mais brilhará no céu de Caia e Moçambique.
Quem sabe a qualquer hora, ao olhar o firmamento estrelado, irás mandar-me uma mensagem, um sinal, como acontecia quando éramos parceiros nos jogos de cartas de tantos serões?...
E então, pedir-te-ei, seja lá onde estiveres, para tomares conta de nós, como tão bem fizes-te em 1975/76 na distante Caia.
Aqui deixo a eterna saudade das famílias Delgado e Fernandes Pinto.
Um beijo terno muito meu.
- 06/10/2005, Maria Manuela de Fátima Marques Pinto (Fátinha).
- Do ForEver PEMBA em 09 de Novembro de 2005 e via mensagem postada no Bar da Tininha alusiva ao aniversário de falecimento do saudoso parceiro e amigo desde os bancos escolares na então Porto Amélia – Zeca Carrilho.
(Transferência de arquivos do sitio "Pemba/Régua" que será desativado em breve)
Location:
Ilha do Ibo, Moçambique
Atravesso o mar sempre azul e, lá mais ao norte de Moçambique, na costa oriental da África da esperança deixando para tráz a neblina das madrugadas do tempo, vou redescobrindo os contornos sensuais da musa da saudade e das eternas recordações de minha adolescência!
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