7/07/10

O REFORMADO

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Silveira, durante toda a sua vida de trabalhador bancário, nunca recusou um serviço ou um lugar. Assim, não se importou de mudar de terra, vendo a família só aos fins-de-semana, para ocupar a gerência de um Balcão de província. Fez a sua carreira com esforço, sem contabilizar horários, nunca discutindo tarefas, embora, muitas vezes, se achasse mal recompensado. Não se queixava. Ele é que escolhera.

Desmobilizado, quando do regresso de Angola, ainda voltou a Direito para fazer algumas cadeiras ao abrigo do estatuto dos ex-militares. Depois de um recomeço fulgurante que lhe consentiu os maiores entusiasmos, desistiu ao segundo chumbo de Obrigações, incapaz de suprir a ausência das aulas e dos pormenores que só a frequência daquelas dariam já que, não referidas nas sebentas, surpreendia-se sempre com o tamanho da sua ignorância de assuntos que nunca ouvira ou lera. Confundia-o, também, a bagunça contestatária, as constantes alterações de datas que o obrigavam, em vão, a faltar ao emprego e que a sua rotina militar de trinta e nove meses, feita de obediência indiscutível encarava mal. Aquilo já não lhe dizia respeito... Vira morrer e matara; estava cansado para, agora, se meter em guerras de berros. Soavam-lhe a arrufos de bem instalados, heroísmos intelectualizados, até ofensivos, comparados com os meses que vivera nos matos da Lunda.

Após umas experiências avulsas em Editoras e Agências de Publicidade, candidatou-se a vários Bancos que, naquela época, era um emprego seguro e com estirpe social. O primeiro a chamá-lo para os testes psicotécnicos admitiu-o, num fim de Verão, ainda o 25 de Abril estava longe. Profissionalmente estável e eufórico pela febre bolsista da Primavera Marcelista, Silveira ganhou dinheiro e o coração da Celeste que, numa Seguradora, começara a juntar para o bolo do casamento. Se algumas dúvidas ainda lhe restavam, elas dissiparam-se: perdia, definitivamente, a esperança de acabar o Curso interrompido pela convocatória militar.

Nascidos dois filhos com intervalo de um ano como se tivessem pressa de despachar a descendência, os anos passaram-se no desvelo da sua criação que culminou com as formaturas no Curso que ele nunca terminaria. Os filhos vingaram-no.

Quando apareceram os netos, fizeram contas à vida e, vendo-a mais curta, decidiram que era a altura de lhes dedicar a segunda paternidade. A Celeste, aproveitando a maré dos novos conceitos de gestão, para quem um trabalhador não passa de um dígito, antecipou a reforma para cuidar deles, em vez de os ver depositados, todas as manhãs, ainda ensonados, num qualquer infantário. Passou, então, a ser só ele a levantar-se nas madrugadas de segunda feira, com o sol ainda a dormir, de tempo espremido para a viagem até à Agência distante. Custava-lhe, no Inverno, aquela chuva enovelada na escuridão fria, sempre com o credo na boca pelo nevoeiro ou o gelo da estrada. As noites na residencial, então, sem o aconchego das suas coisas e da sua gente, eram quase irascíveis. Foram anos em que – quantas vezes! - pensou, também, reformar-se para ficar no remanso com o chilreio infantil a preencher o apartamento. Afastava a ideia, lembrando-se do seu velho Pai: «Um homem só se reforma quando morre!»

À Agência todos os dias lhe chegavam directivas a traçar objectivos de negócio. Com os outros dois colegas sempre ocupados, um na especificidade da Caixa e o outro no expediente normal, Silveira passava muitas horas no exterior a angariar novos clientes e visitando os antigos com propostas de aplicações financeiras. Nunca se retirava antes das oito, ocupado no trato da papelada administrativa empilhada no tampo da secretária e pondo a conversa em dia com a Celeste em telefonemas que, em alguns meses, lhe preocupavam o plafond autorizado. Sem pressa de sair - ninguém o esperava -, verdade se diga, contudo, que começava a sentir-se injustiçado. No Café da Vila, praticava algumas relações públicas que lhe granjeavam a simpatia do meio e a permanência de contas com bons saldos médios. Sentia mais a falta da família do que a abundância do trabalho. O vai e vem semanal enleava-o. Estava na hora de solicitar à hierarquia um regresso às origens, à certeza de sair de manhã e voltar ao fim da tarde, aquela rotina dos gestos e das vozes, o aconchego da noite com o corpo da mulher a aquecer o seu, sem fazer cálculos para o ajuste do fim de semana. Mal lhe soaram aos ouvidos, ou lhe caíram sob os olhos, os primeiros sinais de racionalização de custos, emagrecimento do pessoal, rejuvenescimento de quadros e outros quejandos na moda dos recursos humanos, passou a prestar mais atenção ao espelho para ver se as rugas o englobariam no rol dos dispensáveis. Não precisou de muito tempo - nunca dando a entendê-lo - para perceber que o seu dia estava prestes a chegar. Feitos trinta e cinco anos de serviço, excluindo mesmo o tempo a duplicar pela campanha africana, convidaram-no, entre encómios que lhe pareciam lisonjas interesseiras, se não quereria ir para o descanso. Não, ele não queria descanso, mas, continuar a trabalhar na terra onde estavam as suas companhias e posterioridades. Sentia-se credor desse desejo, justificado pela devotada dedicação profissional e pela humana justeza da sua razão. Fez ver isso às insinuações que lhe chegavam pelo telefone ou pelos convites sorridentes, com muitas batidelas nas costas, quando se deslocava à Sede, ninguém lhe garantindo a satisfação pretendida, porque «bem vê, com a reorganização em curso, muito difícil, a breve prazo, anuirmos ao seu pedido...». Sentia nessas ocasiões um adormecimento de desilusão, um «para que andei eu a sacrificar-me tanto...».

Deixou passar uns meses e negociou a reforma para o fim do Verão. Os foguetes do Ano Novo seriam o anúncio da sua despedida, amarga e revoltada. Mais que revolta, a constatação de que pouco lhe valera o vestir da camisola. Julgava-se, aos sessenta anos, amadurecido e disponível, ainda, para continuar. Estava no ponto ideal da cozedura, nem rijo nem mole, eficaz nas decisões e maleável no trato. Atingira o patamar do equilíbrio em que se é aceite pelo respeito profissional e pela experiência humana; ganhara a endurance cujo melhor retrato é o auto-domínio ao disparate, às pressões e às nervuras emocionais. Mandando-o porta fora, era como se interrompessem a história de uma vida ainda útil. Haviam-lhe comido a carne e como os ossos, irremediavelmente, já tinham prazo, antes que se quebrassem, davam-lhe o destino dos electrodomésticos fora de validade.

Apesar de tudo, nos primeiros tempos, inebriou-se na disponibilidade do tempo e da vontade. Passeou o que pôde – concretizou, finalmente, o sonho de conhecer Paris, onde passou oito dias estonteantes, regressando com a sensação de não ter saciado nem uma décima da sua curiosidade -, leu, sofregamente, os livros tantos anos adiados – até arranjou coragem para Saramago - e, em muitas soalheiras manhãs de sábado – detestava o domingo para passear – ia com os netos para o parque da cidade mostrarlhes os «patinhos no lago», fiscalizando-lhes as bicicletas com rodas de apoio. Deu-se à excentricidade culinária, especializando-se num bacalhau assado no forno que rotulou de Bacalhau à Silveira. Ao princípio, guiava-se pelas revistas do Chefe Silva que a Mulher esquecera numa gaveta, mas, depois, fiava-se na sua fantasia que recriava com especiarias que rebuscava nas prateleiras do Continente. Arranjou, contudo, algumas guerras com a Celeste, pois incomodava-se, seriamente, quando ela, feita sabichona, lhe chamava a atenção para alguns destemperos. Chegou a ir ao futebol para se certificar da diferença de quando o via pela televisão, os seus sons e tons, a histeria das claques, o bruá da multidão na eminência dos golos e o estoiro orgástico quando aqueles se concretizavam.

Estranhamente, assim como de um dia para o outro, começou a acordar mal disposto e cansado, a pensar no que iria fazer para se ocupar. Sentia-se desamparado, longe dos ruídos e dos cheiros da Agência. Faltava-lhe o imprevisto dum telefonema atribulado, suplicando-lhe pressas de financiamento; aquele poder de influenciar fundos sempre balizados nas regras estabelecidas que o escudavam de remorsos nas recusas obrigatórias.
Continua...
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

6/29/10

Retalhos lusitanos: ALTO DOURO

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Já não há poetas que cantem as vindimas da alegria de ontem, hoje da tristeza e do fatalismo; poetas que gritem a angústia desta terra que chora em muitos lares o desfazer dos sonhos do remedeio.

Altas montanhas, ventres inchados de filhos paridos em cada Outono. Rutilância de prata escurecida pelo abandono de quem descuida a necessidade de todos os dias. Vinhas da indiferença de quem só suga o chão sem o tratar como se o sumo brotasse da contemplação da riqueza. Vinhas do desgosto e da inveja, brasões seculares de cepas eternas e de uvas feitas pedras preciosas.

Já não há poetas que denunciem a ambição que escorre pelos montes como lava de um vulcão ciclicamente despertado. Lutas de fortunas beneficiadas no sossego da apatia, na monumentalidade dos cognomes. Alianças toleradas depois difamadas, serpentes metalizadas em rodopio malicioso pelos bardos da madrugada. Virus escondidos no fermentar da revolta, da cobiça e, até, do ódio.

Já não há poetas na minha terra que sejam capazes de denunciar a podridão sem se sujarem, pisadores de cachos sem sacríficio, contadores de almudes sem viciação, mãos abertas ao sol sem se esconderem, louvores para quem trabalha e sua na leira da sua esperança.

Onde estão as palavras da verdade, inventores de moléstias que sangues contaminados propagam nas surribas esforçadas pelos socalcos sem fim deste solo tão severo que só dá vontade de pensar nos que o talharam, há séculos, com pá e ferro, água-pé e vida.

Onde estão os poetas durienses, almas insatisfeitas, atormentadas pela precisão nas margens do rio? Homens e mulheres que colham os poemas nas veias da nossa honra, que esgadanhem a terra até ao sabugo da dignidade, que voem nos sonhos do amor vermelho e verde como as cores de uma Pátria que descobriu palmeiras nas orlas sanguíneas de outros povos.

Já não há poetas na minha terra que chorem por meninos sem olhares de alegria, olhares tristes, tão tristes, tal a renúncia de um carinho. Poetas que cantem os abraços que faltam, que desmistifiquem as uniões falsas que sobram, que apontem o egoìsmo que vai roendo as entranhas da terra duriense, mausoléu do esforço de gerações esquecidas, serras e vales úberes onde aportaram os estrangeiros da exploração, mitologia da submissão que os avoengos sofreram com a amostra numa mão e o chapéu na outra.

Falai poetas sem palavras gastas e enodoadas. Escrevei-as com as mão calosas a cheirar a terra e a mosto, sem distinguir classes ou afinidades. Na terra das podas de Janeiro ou há riqueza na união ou pobreza na inveja.
- M. Nogueira Borges, Porto, 22/06/10.
  • Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

6/17/10

RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulos VIII, IX e X

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Capítulo VIII

Passa pouco das onze. O piloto de terra sobe para bordo. Uma invulgar fiada de espuma, fantasticamente nítida, separa as águas de estrias esverdeadas de outras esbranquiçadas com restos de sujidade espalhando-se aos baldões. Pretos pescam em almadias. O Niassa, depois de descrever uma curva prolongada para fugir dos areais, acosta, empuxado suavemente pela bossa do Maputo, entre o Osaca e o Mar Felice. Familiares, aqui radicados, acenam. Rondas da PM guarnecem o cais. A fanfarra, de predominância negra, toca marchas militares. O pessoal excita-se. A televisão filma para se ver lá no puto. Fotógrafos sobem a guindastes. Arribam fardas da Marinha e do Exército para recepcionarem a carga... Formámos à parte dos fuzileiros que tinham embarcado em Luanda. Arrancámos com um caixa a marcar a cadência. Lá vamos, não cantando e rindo, mas em silêncio garboso, como convém: «Temos que marchar com garra!», dissera-nos o Comandante. Os edifícios são airosos, de traça coeva. Uma pequena multidão negra, branca, mestiça, monhé, china, ao longo dos passeios, observa com cara acostumada. Chega-se à Praça com um garboso Mouzinho de Albuquerque empoleirado num soberbo cavalo. Em frente, a Câmara; à direita, a Catedral de torre pontiaguda, clamando ao Alto; à esquerda, prédios com reclamos de bebidas. Toques de sentido à medida que chegam Mercedes. Ouve-se o hino do Exército. Uma volúpia patriótica aumenta-me o suor. Do cimo da varanda municipal, o General-Chefe tange as cordas do incitamento. No fim, os acordes da Portuguesa, ecoando na amplidão da praça, quase me tolhem. O regresso ao barco faz-se - não me parece encenação - por entre vivas a Portugal.

Eram seis horas quando fui chamado ao Comando para receber e distribuir o correio. Terminei o meu turno de serviço pelas vinte e uma.

Saí com os Furriéis do meu pelotão, trocamos umas notas, nuns mexeriqueiros das imediações portuárias, e fomos em busca de uma cervejaria beber umas bazukas acompanhadas de pratinhos de camarão. O trânsito pela esquerda confunde-me. A Rua Araújo abarrota, satisfazem-se todas as sedes.

Recolho pelas duas da manhã. Trabalhadores, formigas no fundo do porão, colocam caixotes nas prateleiras dos guindastes. A iluminação, que do cais se prolonga cidade fora, dilui-se na morrinha do cacimbo.

Capítulo IX

É o último dia em Lourenço Marques. O barco continua a carregar. Entra tudo, cunhetes de munições e até Unimogs. Quebranta-me uma exalação húmida. Vai ser bonito habituar-me a isto. Vamos dar uma volta pela cidade, sem afastamentos, como quem tacteia, timidamente, o desconhecido. Nem parece que há guerra em Moçambique. Um bulício cosmopolita, esplanadas a abarrotar, lojas movimentadas, consumismo no ar, carros e carrinhas nipónicas, de modelos caros, em trânsito incessante; vivendas rodeadas de jardins, algumas escondidas por muros onde assoma arborização tropical; raparigas, minimamente vestidas, alegres e tostadas; senhoras brancas empurrando carrinhos de rebentos, senhoras pretas levando-os às costas, mistura de raças sem lugares marcados, muitas indianas, de sinal na testa, limpando o chão com as suas compridas e floridas vestimentas; prédios em construção com andaimes aligeirados e os machimbombos, cheios de algazarra, cruzam-se nas amplas avenidas.

Vedadas as saídas, até à hora da largada, entretenho-me, no bar, a ouvir mais um concerto da Orquestra Cotrim, três gastos mas respeitáveis músicos que ganham a vida, enganando a velhice nestas andanças, a entreter contingentes. Afastado da solfa, ao fundo, à volta de uma mesa de pano verde, arrumadas as cartas e os dados, um grupo de milicianos escuta o capitão Silvino que vai comandar um Esquadrão de Reconhecimento na sua terceira comissão. Tem olhos avermelhados, o indicador e o médio da mão direita amarelados, peito cheio, braços ginasticados, voz grossa e tiques de Cavalaria. Fala com fatuidade, beberricando, nas pausas, em goles de experimentado. Conta peripécias dos Dembos angolanos e das bolanhas guineenses, percebe-se que recria factos a seu jeito, adora a iconografia militarista e não descura um certo devaneio imaginário.

O Comandante de Bandeira convida um grupo de Alferes para a sua mesa de jantar e custa-me fazer sala e exercitar etiqueta.

Pelas cinco da manhã, o Niassa, com um grunhido de fera, levanta ferro. O Maputo ajuda o desencorar, ouvem-se duas sinetadas, depois aparta-se. Alguns embarcados, mais resistentes, acenam para o cais e renovam-se promessas de correio. As luzes da marginal encolhem-se sob a neblina.

O mar do Canal de Moçambique não provoca balanço. O Índico, com costa à vista, tem uma tonalidade de azul turquesa. Passa-se ao largo de Inhambane. O barco vai carregadíssimo. Ficaram os fuzileiros, mas vão homens da guarnição provincial. Os convés abarrotam de viaturas, um ar de tralha, balbúrdia de mudança breve. O calor aperta. Nada-se em suor. Cada um já sabe, mais ou menos, para onde vai. Procuram-se os tarimbados, os chicos na linguagem miliciana, em busca de conselhos ou de enganos  para disfarçar receios. Os mapas do Norte saltam de mãos em mãos. Há um indisfarçável nervosismo que se percebe nos rostos, nos gestos, nos mutismos, nos isolamentos, nas altercações pueris, no abuso do álcool.

Sento-me numa cadeira de lona, contento-me com a aragem que amacia a baforada, fumo um LM num depurado prazer, alheio-me da desordem em redor e monologo como quem necessita de acertar contas consigo próprio. O turbilhão, cá dentro, não tem sossego, remoinho da minha impotência. De cada vez que venho à superfície, tomo noção – numa brevidade aflita – de que não me quero afundar na desistência, que devo lutar pela vida, nem que grite por socorro, nem que renove a Deus – com medo de que alguma vez não me tenha acreditado - juras de fidelidade eterna em troca da salvação, nem que grite pela minha Mãe para me deitar os seus braços umbilicais. Construo a armadura invisível para me defender da contrariedade do que sinto e penso, infante dócil às ordens de espadas cintilantes, impossibilitado de lhes fugir, porque quando os soberanos que as usam se auto-nomeiam e prolongam a vida – há quem os suponha eternos – os fugitivos são sempre apanhados, na esquina de um retorno que a carência de um afastamento livre compele, por um castigo dobrado. Sou filho de uma conjuntura sobrevinda numa época de mitómanos ideológicos, podendo ter nascido antes ou depois deles, ou nem ter nascido, ou ter nascido outro, longe (desconhecedor) desta história, como se o acaso, que me mandou ir às sortes, fosse transferível para uma definitiva impossibilidade, pura e simplesmente a inexistência... Uso a realidade para amanhã – se a tiver - requerer a paga, o equilíbrio - nunca equivalente, mas, ao menos, não ingrato ou omisso - entre o despojamento dos sonhos e os riscos forçados. Sem heroísmos e sem fugas, cumpro a sina de uma cigana que, uma noite, numa barraca da Feira Popular do Porto, disse perante a palma da minha mão: «Está aqui escrito que há-de atravessar águas do mar...» Mas porquê e para quê? Uma cigana, mesmo bruxa, não sabe tudo.

Anda, então, arcaico paquete, caravela de novos forçados, galga-me este mar que tenho pressa de regressar à minha utopia de liberdade.

Capítulo X

A selva, pelas quatro da tarde, emerge luxuriante, debruando a enseada de Nacala, duas meias luas como asas de um quiróptero fossilizado. As bagagens amontoam-se nos tombadilhos e os militares, sentados nelas, lembram rafeiros guardando a ração.

- Agora é a sério! – berra um Capitão de olhar malinado.
- Não comece já a meter medo, meu Capitão! Olhe que os cus não têm galões! – retorque, matreiro e com o à vontade de muitos copos, o Marques, conhecido, na oralidade de bordo, pelo Alferes Pinguinhas.

Ameniza-se o nervoso da espera combinando SPMS com os que não desembarcam por seguirem para Porto Amélia e Mocímboa. A chaminé de uma fábrica de cimento («É do Champas!» - dizem alguns) parece um vulcão iluminando a noite que tombou abruptamente. A humidade elanguesce, os barulhos ecoam numa calma de laguna. Um jeep desce veloz para o Cais, deixando para trás nuvens de pó vermelho. Dois ombros estrelados apeiam-se, batem-se continências, o Brigadeiro sobe. Reúne-se na Sala de Jantar com a Oficialidade, debita boas vindas, frases feitas de entusiasmo, após o que inicia os cumprimentos. Ouve-se um rumor de sobressalto, mal compreendido, duas ou três fardas que se afastam, puxando um corpo em convulsões: o Pimentel começara a bater com as botas no chão e uma espuma epiléptica a babá-lo. Os que se aperceberam, disfarçaram, envoltos num espanto depressa devorado pela excitação, como quem abafa um insólito.

Espera-nos um comboio de museu. Por entre corridas e berros, junto o meu pessoal, com todos os pertences, numa Berliet a desfazer-se, e acomodamo-nos, depois de transposta a vereda, numa carruagem com tábuas e cobertores. Em frente, já mais distante, o navio continua a largar carga e homens. Há uma pressa de despacho, luta-se por lugares como se uns fossem melhores do que outros. De algumas casas de alvenaria, que se pensa serem de encarregados da fábrica, há olhos curiosos; nos terreiros das palhotas envolventes fogueiras cozem a mandioca do sustento. Ouve-se um apito. Lanço um adeus derradeiro, numa emoção de fim, ao Niassa e às fardas debruçadas. Voltaremos a ver-nos? Quantos de nós irão, feitos soldadinhos de chumbo ou vivos desarreigados, para o outro lado do mar? Levar-me-ás, velho Niassa, de regresso ao chão de onde sou, onde brinquei e amei e me julgo com direito a morrer? Para onde me leva o destino, essa negação da ousadia, como se a causalidade fosse marcada ao nascer e tudo nela se justificasse, mesmo um mando de estupidez? O esticão do comboio devolve-me à terra. A malta aligeira-se e prepara-se para esquecer no sono as impressões recentes. Pelas janelas vêem-se viaturas escaqueiradas como relíquias de desastres. Um silvo agudo acorda os necrófagos da noite africana.
FIM

- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.

6/14/10

RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulos V, VI e VII

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Capítulo I;
Capítulos II, III e IV;
Capítulo V

Afinal, largámos às seis. Levantei-me do beliche - não resisti à despedida - e pude assistir à entrada do Vera Cruz apinhado de fardas. Estava ali a imagem da geração sacrificada de um povo em ebulição, sem demandas das Índias, guerreando, agora, emancipações de outros impérios, cruzando os mares, cumprindo insistênciasditatoriais em nome de uma grandeza que as ideologias circundavam. Uma juventude a quem calhou a sorte de viver este tempo, de enterrar mortos e confortar feridos, encolher servidões mas vangloriar-se de não ter fugido – algum orgulho resistia à resignação -, sofrer anátemas históricos recusando julgamentos, imolada nos altares das hagiografias profanas sem culpas promissórias, iludida por utopias.

Depois do almoço, arrasado pelo calor e pelos nervos, o sono desligou-me de tudo, acordando com o aviso do torneio de tiro ao alvo.

Navega-se não muito afastado da costa. O céu tem a coloração do chumbo, o mar a do zinco. Adivinha-se chuva. As águas riscam-se de grossos debuxos em paralelas curvas e contra-curvas, confluindo alguns. A maresia é intensa. Escurece cada vez mais. Uma recta gigante separa as nuvens do horizonte, formando uma linda fita azul, igual às que as meninas usam para segurar as tranças. Há camaradas que, finalmente, se começam a levantar, de olhos inchados e lábios de palha. Queixam-se de dores de cabeça.

Afinal não choveu. O oceano mexe-se muito. O navio está mais inclinado para bombordo. Passou as horas, em Luanda, a carregar. Dizem os entendidos que a carga foi mal distribuída. A sopa, na sala de jantar, ondula nos pratos e, ao andar, temos que descair para estibordo. Tenho medo que esta merda vire. De um portátil, abandonado numa pérgula, a Rádio Lobito transmite fados de Coimbra. Apetece-me gritar, as lágrimas estoiram e, no negrume, fumo cigarros ao ritmo daquelas. O barco, da proa à ré, balança sem intermitências. Tremuras prolongadas percorrem-no como se se fosse partir todo, moribundo no estertor final. Recolho-me ao camarote. Contemplo o Oceano da escotilha. A ondulação assusta, cheia de força, castelos de espuma na crista, fazendo e desfazendo-se numa feroz luta de vagas que cavalgam assustadoras até estrondearem no casco, raivosas por este lhes impedir o prolongamento do tropel. Amainam, por breves segundos, em rodopio coleante, todas eriçadas, a aprestar o assalto, emitem o silvo de uma serpente, e aí vêm elas, loucas, histéricas, direitas ao meu respeito, vergastar o vidro do óculo por onde as contemplo. O vento varre os decks, insinua-se nos corredores e escadas interiores; há portas que se abrem e se fecham como num filme de terror; os ferros das camas rangem; o camarada do beliche direito lança uma imprecação, olha-me aterrado, «e se esta porcaria vai ao fundo?!», pede-me um cigarro, «por que não me raspei disto?!»; parece que o Niassa não sai do mesmo sítio, vai à frente e volta atrás, afocinha quando os pés da cama descem, ergue-se quando a cabeceira escorrega.Zonzo, de receios contraídos, adormeço, imaginando o Bartolomeu Dias, numa casca de noz, a dobrar este Cabo.
 
Capítulo VI
 
A manhã surge luminosa, o mar esverdeado, quase parado, num oposto surpreendente à tempestade de véspera. Para Lourenço Marques faltam 1397 milhas.
 
O dia corre monótono, as conversas esgotam-se; há quem leia bastante ou se arraste pelos tombadilhos; nos bares, jogam-se suecas e kings, rilham-se batatas fritase bebem-se coca-colas; engolem-se aspirinas de ressacas, olhares no vazio da lonjura, sem uma palavra, bocas cerradas e serradas por uma atormentada (in)capacidade de ir ali; alguns embrulham-se em desvanecimentos, ajanotando-se nos camuflados, dando-lhes um uso constante para os desgomarem, ansiosos por acção.
 
Uma e meia da manhã; inicio a minha ronda de serviço. Vou à ponte. A lumieira do cigarro do vigia, avivada de cada vez que vai à boca, conforta-me. Alguém vela pelo rumo deste mastodonte. A chaminé, preta e bojuda, expele espessas fumaradas rapidamente levadas pelo vento gelado; o som matraqueado dos motores, audível pelas clara-bóias levantadas da casa das máquinas, indicia o máximo da velocidade; as bocas de alguns soldados, abertas e rociadas, dormindo ao relento para fugirem do abafamento dos seus casulos, dão uma estranha sensação de desprezo humano; os mais persistentes ressonam em camas coladas umas às outras, no meio de tábuas, malas, botas, fardas e uma repulsiva pestilência de urina, suor e tintas; nos canis, os quadrúpedes mexem-se inquietos, nervosos, e um fura a noite com uivos tristes, desfazendo nas ondas o eco do cio. Vou, depois, à proa; comungo dos gemidos do vento, com o abaixo-acima daquela, o marulho da imensidão oceânica, o mar-mundo, a noite-saudade, o horizonte-ânsia; debruço-me para ver a quilha rasgando as águas num permanente acento circunflexo de espuma doirado pelo luar. O céu, sem uma mancha de pecado, e a lua, metálica, recitam poemas de inocência; as estrelas, de vidro, dão um ambiente de cabaret a esta noite que não é minha. Olho para longe, para bem longe, a ver se algo diferente me surge, e nada, só uma vertigem de vazio. “E se o barco fosse mesmo ao fundo? O que é um gigante para o gigantesco? Ao fim e ao cabo, o mar brinca com estas toneladas todas, se lhe dá na irracionalidade eleva-as, volteia-as quantas vezes quiser e manda-nos todos a correr para os botes que não vão valer de nada; ficaríamos para a história colados nas profundezas”, penso, enquanto tusso cheio de tabaco. Os decks são parlatório de sonos desencontrados; das amuradas, corpos debruçam-se de olhos fitos na babugem que se preme contra o aço. Passa o sereno, feito guarda-nocturno do silêncio, enquanto o leme automático faz o bingo das milhas do dia seguinte. Coam-se as minhas lembranças remedidas no tempo: aquele seco edital, afixado na porta da mercearia onde em criança comprava cartuchos de rebuçados, a convocar-me para Mafra, arrancando-me de Coimbra como um dente a sangue frio; aquela chegada de Janeiro, sob um temporal desfeito que mal dava para descortinar o Convento, a entrada por uma porta lateral onde choquei com armas ensarilhadas num bivaqu interior, as redes de camuflagem, o bolor dos corredores transformados em catacumbas de martírios antigos repetidos, o cheiro a mofo das casernas se desabitadas há séculos estivessem, a luz minguada das lâmpadas escurecidas, o engraxar, com cuspe, das botas e dos polainitos, os cabelos à escovinha, o rastejar sob o arame farpado, os saltos para o galho, o equilibrismo do pórtico, a dança de gatos nas cordas sobre a Lagoa, os tiros nos alvos em carreira, o rebolar nas escadarias, as emboscadas na Tapada, os crosses para a Ericeira, os dias e as noites das cercanias torrejanas, acartando, às costas, um transmissor rádio, de castigo por singelos falares caprichosamente interditados, até o Capitão-castigador, num clarão de remorso, me mandar pousar o fardo no jeep.
 
Ao longe, muito longe, diviso uma luz. Será um barco ou algum ponto da costa sul africana?
 
Capítulo VII
 
O Chefe de Mesa, mal me sento para almoçar, entrega-me um rádiotelegrama: a minha Mãe continuava a rezar por mim. Levanto-me e vou encher o mar. O Capelão, aparecendo não sei de onde, abraça-me e convida-me para a sua mesa. Se há Padres abençoados este é um deles. O Padre João ensinou-me que maisimportante do que aquilo que se diz é o que se ouve. Passamos a tarde a discutir Deus e a Fé. Se necessitasse de conversão, converso ficava.
 
Navegamos com a costa da África do Sul à vista. Aquela luzinha que ontem vira era já um indício dela. Um avião, em reconhecimento, sobrevoou-nos por pouco tempo. Escurece. East London, já iluminada, franqueia-se por entre a poalha. Um farol manda avisos sucessivos, desenhando cones de luz. Pontos brilhantes, como velinhas alinhadas, idealizam uma extensa marginal; os binóculos passam de mão em mão e podem-se ver os faróis dos carros.
 
Venho para a Turística onde funciona a Secretaria Militar. Sento-me a uma mesa e escrevo um maço de aerogramas. O Niassa parece um balancé. Os pratos no comedor retinem como grilos em noite de Verão; as cadeiras giratórias fazem cento e oitenta graus porque, fixas no meio, não podem fazer trezentos e sessenta; caem papéis e furadores e esferográficas e livros de registos (as máquinas de escrever estão pousadas no chão) e cinzeiros e óculos e... O sereno desabafa e historia:
 
- Há trinta e sete anos que ando no mar e, em vez de me darem a reforma que mereço, puseram-me de sereno. Veja só: sereno! - pronunciando a palavra com desdém, enquanto tirava um Português Suave. - Passei neste Niassa temporais medonhos! Olhe, numa ocasião, em Leixões, estivemos três dias a apanhar nas trombas que foi um disparate! As vagas batiam neste costado – apontando as vigias – que pareciam fragas! Foi num Carnaval, veja bem o carnaval que nos deram! Sem passageiros, com apenas vinte toneladas de melaço no porão, isto era um brinquedo! Não entrámos na doca nem por nada. O Pátria e o Império foram, como tiros, para Vigo e nós, ali, a apanharmos porrada! Conseguimos virar para Lisboa, mas, por azar, a barra estava fechada. Navegámos a Sesimbra, demos a volta, e conseguimos apanhar mar e vento a favor. Foi o que nos safou, porque, quando não, tínhamos ido para o charco nesses dias. Quando fomos a dar conta, estávamos em Belém – gargalhando – com as máquinas paradas. Depois, um rebocador lá nos levou sãos e salvos. O quê?! Temporal aquilo?! O que nós apanhámos no Cabo foi um mar normalíssimo. (Não sei se ele notou o meu espanto). Isto, quando agarra mesmo temporal, parece um submarino! O que mais pedia, quando saímos de Lisboa, era que, no Cabo, estivesse o mar que esteve. Olha!, olha!, se visse em Leixões! Estas cadeiras e estas mesas escaqueiraram-se contra estas paredes como ovos! Sabe lá...
 
Levanta-se para ir à cozinha escorar a copa. O sereno, encaixado nos seus sessenta e sete anos de vida e trinta e sete de mar, senta-se de novo. Deixo-o no seu trabalho de numerar os cartões dos beliches. Fecho a porta, ele começa a assobiar.
 
Durban desponta de madrugada. Ao começo, umas luzes dispersas e envergonhadas, depois, clarões alaranjados de fábricas enormes. Uma cordilheira emerge e um farol (há imensos ao longo da costa Sul Africana), incansável, silva. Percorreram-se, a uma velocidade de 14,4 nós, nas últimas 24 horas, 346 milhas. Lourenço Marques estava a 39.
Continua...

- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.