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9/14/11

OLHAR

Os meus olhos são um rio ressequido,
Em cada Verão de mangas curtas,
Que se enche em cada Inverno de tristeza.

Os meus olhos são um grito,
Aflito,
Que entoa em cada casebre
Carcomido
De Pobreza.

Os meus olhos são um rio de muitos barcos
Que navegam como revoltas e enganos,
Rectas e curvas feitas gráficos
De dias,
De meses
E de anos.

Os meus olhos são um rio de margens
Desenhadas pelas sombras das saudades,
Feitas memórias de viagens,
Umas realizadas,
Outras sonhadas.

Os meus olhos são um rio de desilusão,
Sofrida,
Dorida,
Mas sempre com uma esperança
- Quimera perdida -
Igual à de uma criança
Que ainda desconhece a mentira.

Os meus olhos são um rio de cansaços,
Repleto de fastio e alguns embaraços.
Sós como os choupos do esquecimento,
Sós como os vinhedos em Dezembro.

Os meus olhos são um rio de pensamentos
Diferentes,
Contraditórios,
Violentos,
Mas suaves como na Primavera os rebentos.

Os meus olhos são um rio alteroso,
Conhecedor do seu nascer,
Certo do seu morrer,
Pejado de rochedos
E de medos;
Batido pelo sol ( de quando em vez ),
Um sol de bafo e de carinho,
Tão leve como a minha Mãe fez
Quando me abriu as portas do mundo
E disse: «Meu Menino...»
Com uma voz bem lá do fundo,
Um sorriso de amor e de calma
E um alívio na alma.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima é recolhida da internet livre. Clique na imagem para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.

8/29/11

Entre Porto Amélia e o Douro - Em tempo de Festas de Nossa Senhora do Socorro...

Em tempo de Festas de Nossa Senhora do Socorro  na Régua / Douro, recordo:

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994. (Atualização)

Conheci-o em Porto Amélia. O meu destacamento, sediado em Quelimane, viera substituir uns "cocuanes"* que estavam de regresso à Metrópole. Para trás deixava a luxúria dos palmares de Penabe, o esmagamento das infindáveis plantações de chá do Gurué, o silêncio e os ruídos da selva esplendorosa de Mocubela ou Maganja da Costa, a confraternização da boa gente da capital da Zambézia.

Foi em Março de 1968. Em Lisboa, Salazar ainda não agonizava, e Marcelo Caetano repartia o seu tempo entre a Faculdade de Direito, a reescrita do seu Manual de Direito Administrativo e o seu escritório de jurisconsulto ali para os lados da Rua do Ouro, mal sonhando que, em finais desse ano, ocuparia S. Bento para assistir, num desterro brasileiro, ao funeral do Império. Em Lourenço Marques, a Polana estava cheia de sul-africanos e os ecos do Norte mal chegavam às esplanadas.

O Jaime Ferraz Gabão era, a par da sua actividade profissional numa empresa algodeira, o correspondente, para o distrito de Cabo Delgado, do mais prestigiado jornal Moçambicano - o Diário de Moçambique** - e criava, semanalmente, uma página regional onde dava oportunidade a jovens colaboradores. Uniu-nos a paixão pêlos jornais. Essa afinidade gerou entre nós uma profunda estima e, com o tempo, à medida que nos íamos conhecendo, uma amizade tão grande que, ainda hoje, à distância de vinte e seis anos, nem sei como definir.

O Jaime era uma alma generosa e não queria morrer com remorsos nem deixá-los aos vivos. Abandonara a Régua quando os seus sonhos se desfizeram e a realidade que os seus olhos contemplavam era tão crua que não hesitou quando um velho amigo o convidou para abalar até às paragens do indico.

Feito, posteriormente, o reencontro com a Mulher que sempre o acompanhou até ao fim dos seus dias, o meu saudoso amigo ganhou a paz a que todo o ser humano tem direito quando se está de bem com Deus e os seus semelhantes.

África dera-lhe a razão da vida e a justificação para a partilhar. Sob o tecto africano, nos dias abrasadores ou nas noites do cacimbo, o Jaime consumia e retemperava as energias de um homem que, no nosso Douro, herdara o amor do trabalho honrado. Nunca foi patrão nem capataz, nunca ostentou ou humilhou, nunca cortejou poderosos nem desprezou deserdados, nunca separou brancos de um lado e pretos do outro. Amou a África porque a África - caros leitores - é encantamento deslumbrante, um chamamento emocional que arrebata, uma sedução tão arrepiante que não há palavras para a descrever, só sentindo-a, calcorríando as picadas inóspitas e engolindo o seu pó, bebendo água do coco ou dos pântanos solitários, aganando sob o fogo do seu sol ou tremendo nas suas madrugadas de névoa.

Eu entrava em casa do Jaime Ferraz Gabão sem bater à porta, sentava-me à sua mesa sem perguntar onde era o meu lugar, conversávamos horas sem fim no deleite do entardecer, íamos e vínhamos pelas ruas e cafés de Porto Amélia com a naturalidade de quem vivia o tempo todo na fruição plena da fraternidade e as areias da praia de Wimbe já conheciam os nossos pés nas manhãs de Domingo.

Findo o meu tempo de serviço militar regressei à minha aldeia e o Jaime por lá ficou. Ainda recordo, comovido, as nossas lágrimas de despedida.

Um dia, nas sequelas da tal exemplar descolonizaçâo, ele voltou, também, às suas origens. Foi um trauma de que nunca se curou. Aquilo foi como uma traição que, na sua boa fé, não contava; um murro medonho na esquina da sua vida, na pureza da sua certeza patriótica. Desgastado e amargurado, vendo, mais uma vez, o seu ideal a fugir-lhe, mastigou em seco muitas desilusões e incompreensões. Pertencia àquele tipo de homens que não tem pele de elefante porque cultivava a franqueza e a capacidade de perdão. Custava-lhe a ruindade à sua volta, os anátemas dos retornados, a indiferença por uma terra e por uma causa que interiorizara tão profundamente que alturas tinha em que já não sabia se as raízes eram mais fortes - ou mais fracas - do que as saudades dolorosas dos batuques, do cheiro das queimadas, dos dias em mangas de camisa, da leveza das brisas da baía de Pemba, do carregado das trovoadas no mato, do odor a catinga ou dos gritos da hiena sem companhia.

O jornalismo enganou-lhe as recordações, sublimando-as em descrições sempre apaixonadas mas nunca desonestas. Sabia que um jornal, fosse qual fosse o seu dono, não era um palco de propaganda, nem um púlpito de ressabiados pessoalismos, nem um ócio de frustrados a envenenarem relações, nem um palanque onde os vencidos políticos ruminassem vinganças. Praticou um jornalismo de transparência porque não ocultava o relevante e, quando assumia a opinião, não ofendia sentimentos nem provocava a consciência alheia. Tinha a educação herdada do berço e cultivada no pragmatismo do quotidiano. Escreveu muitas páginas de memórias das terras e das gentes por onde andou e viveu sem verbalismos ou maniqueísmos. Viveu o dilema dos que, conhecedores dos largos espaços, se ressentem, sofrídamente, das estreitezas dos horizontes, onde, afinal, a poesia da alma se reflecte no limite dos muros da indiferença das coisas e das pessoas. Sem sabedorias arcádicas ou carreiras/academistas, mas possuidor de um entusiástico autodidactismo. O Jaime Ferraz Gabão transformava a simplicidade escondida na mais bela descoberta. Homem solidário, condoía-se de um pé descalço e não dominava as revoltas do seu sangue. Se é preferível a responsabilidade dos gestos que não praticamos porque outros nos impedem aos que não fazemos porque a eles nos recusamos, o Jaime culpava-se de todas as injustiças do dia a dia da vida. Era um espírito em permanente responsabilização e nunca contente de ver realizar-se o que se deve. Se aqui recordo o Jaime Ferraz Gabão neste livrinho das Festas em Honra de Nossa Senhora do Socorro, onde ele sempre colaborava com alegria, não é só para que conste, mas também para implorar à nossa Padroeira que, não se esquecendo de todos nós - os vivos - não olvide o meu querido e saudoso Amigo que, na Fé, viveu sempre, mesmo quando a morte já lhe rondava os passos.
- Por M. Nogueira Borges – Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro de 1994 (“recorte” cedido gentilmente por J A Almeida).

* - "cocuanes" termo adaptado do idioma macua e que quer dizer velho(os), no caso: "...viera substituir uns militares mais antigos".
**retifico - Jaime Ferraz Gabão era correspondente e distribuidor para Cabo Delgado do Diário de Lourenço Marques com sede em Lourenço Marques, atual Maputo. Embora colaborasse eventualmente com outros jornais moçambicanos e portugueses, o Diário de Moçambique estava sediado na cidade da Beira e, se a memória não me falha, seu correspondente para Cabo Delgado era o também saudoso Administrador Zuzarte.
  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão citado no portal do Sport Club da Régua - Aqui!
  • Cartal de Longe - Lembrando o cidadão e  o jornalista Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!
  • UM DE NÓS - Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Aqui!
  • Várias 'ligações'(post's) que comentam Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!

RECORDANDO... - Por Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, a propósito das Festas de Nossa Senhora do Socorro

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994.


8/18/11

VIDAS

As vidas irremediáveis
Não se conhecem.
São inviáveis,
Logo, não acontecem.
Não têm história,
Nem memória.
Banalidades das horas
E fastio da indiferença,
Não merecem demoras,
Nem um voto de esperança.

Há tantas vidas sem solução
A que ninguém deita uma mão.
Distantes,
Negligentes,
Morrem sós
Na hipocrisia do dó,
No egoísmo do eu,
Do tudo meu.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima é recolhida da internet livre. Clique na imagem para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.

6/28/11

ÚLTIMA VONTADE


Quando eu morrer,
Que seja em Agosto
Com toda a gente de férias.
Quero morrer sem desgosto,
Sem dor e sem aborrecer,
Envolto na brancura de um lençol,
Só um padre, a família e os amigos,
Sem mais ninguém saber.
Quero morrer sem choros, sem gritos
E sem anúncio no jornal.
Morrer não é o fim,
E quem me diz a mim
Que a minha vida, afinal,
Não se renovará num caminho
De amor e carinho,
De risos verdadeiros,
Todos os dias renovados
Como se fossem os primeiros?
Quando eu morrer,
Lavem-me com a lágrima do adeus
Que quem morre sempre deita,
Não com pena de morrer,
Mas triste pelos que ficam,
Mais tristes e abandonados,
Sem saberem o que os espera:
Se a disputa de uma herança
Ou o fim de uma esperança.
Quando eu morrer,
Metam-me num jazigo
Com uma ampla janela
Para ver, através dela,
O sol de cada domingo.
Ponham-me flores e uma vela,
Uma cruz e um poema
Que aqui deixo escrito:
Nasceu sem saber porquê,
Viveu sem que o entendessem.
Morreu sabendo para quê:
Para que na ausência o lembrassem.
Basta para dizer tudo,
O que foi o meu mundo
Em criança e em adulto.
Atravessei mares e continentes,
Chorei nas noites de abandono,
Amei raças diferentes
E não sei se matei por engano.
Quando eu morrer,
Não quero ir para a terra;
Em vez de morrer uma vez,
Morreria, então, duas vezes.
Concordem que não o merecerei
E, se o fizerem, garanto-vos,
Nunca o esquecerei.
Afinal, quem vive com os remorsos
De uma última vontade não cumprida,
Naquele instante de amargura e despedida
Em que o sangue se esvai,
No grito intolerável que a vida dá,
Até se esbater cansado num ai
Que até parece que, depois dele, nada mais há?
Quando eu morrer,
As andorinhas farão ninhos
No beiral da casa onde nasci,
Cantando de mansinho
Para que não me interrompam o fim.
Apanhem uma que seja dócil e bela,
Prendam-na às minhas mãos
E deixem-me ir assim com ela,
Caixão aberto e o sol a brilhar,
As pessoas espantadas a olhar
Para um funeral nunca visto.
Batam palmas devagarinho,
Não se importem de parecer mal,
Não falem durante o caminho,
E vejam se vou a voar.
Quando eu morrer,
Se calhar, não terei tempo de dizer
O que sempre calei em vida:
Que amei tanto os outros
E alguns não me mereceram,
Que chorei por loucos
E por quem não devia,
Que encolhi silêncios
Pelos que nunca me lembraram
E alguns até se afastaram.
Quando eu morrer
Vai ser penoso ir-me embora,
Deitado, estrada fora,
Sem me mexer,
Sem poder beijar os frutos da minha felicidade,
Virtudes e defeitos do meu ser,
Os seus rostos mais lindos do que o sol a nascer
E sorrir-lhes, então, até à eternidade.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima é formada/editada por diversas fotos recolhidas da internet livre. Clique na imagem para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.

6/18/11

Jaime Ferraz Rodrigues Gabão partiu há 19 anos

Por que choras, Pai?
Pelo teu sangue que vai,
Na lonjura dos céus,
Sobre terras e sobre mares,
Impedido de dares
Um beijo dos teus,
Um beijo de amor
Que esquece qualquer dor,
Escancara a alegria
E ressuscita o dia?
Querias a certeza
De viver sem a ausência
Do riso e da voz da tua paixão?
Sentir-lhe a permanência
Como um único coração
A bater por duas vidas,
Sem chegadas e partidas?
Tudo num só olhar,
Tudo num só abraço,
Sem razão para chorar
E sem este dorido cansaço
Que lentamente te mata;
Sem saber quando desata
Este nó aflito,
Este violento grito
Que encolhes para lá dos limites,
Para além do que existes?
Pai, por que choras?
Querias viver sem estas horas
Consumidas como uma eternidade?
Querias que a felicidade
Estivesse sempre na tua mão
Como uma flor que brotasse,
Feita reincarnação
- Ou reinvenção -
De uma criança que nunca se afastasse?
É longa a saudade,
Tão longa e infinita,
Que não há, em boa verdade,
Uma palavra que, mesmo bem escrita,
Traduza a dimensão desta realidade:
Que o amor pelos que nascem de nós
É tão físico e tão forte,
Não se apaga na morte,
Em nenhuma terra se esquece,
Em nenhum sono desaparece.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.

Nota: Dedico este trabalho poético de M. Coutinho Nogueira Borges à memória de meu saudoso Pai - Jaime Ferraz Rodrigues Gabão.

QUEM FOI JAIME FERRAZ RODRIGUES GABÃO:
Nasceu na cidade de Peso da Régua em 13 de Abril de 1924.
Com 68 anos, faleceu a 18 de Junho de 1992, dia do Corpo de Deus, em Lisboa - onde, uns dois meses antes, se submetera a melindrosa intervenção cirúrgica.
Uma de suas paixões era Porto Amélia/Pemba.
= http://bit.ly/itInmD
= http://bit.ly/kQKTFH
= http://bit.ly/kQ9hmD
= http://bit.ly/iUkN7r

6/02/11

TEMPO MOÇO

Deitados na caruma, de olhos fechados, sentíamos os voos das pegas–azuis, os estalos dos pinheiros e, ao longe, na ondulação dos montes, os zumbidos dos pulverizadores.

Não sei quantos anos tínhamos, talvez dezasseis, talvez dezoito ou talvez aquela idade em que não se sabe, ainda, contar os anos.

Da pequena cachoeira, a deslado de um renque de salgueiros (pareciam salgueiros...), vinham os ralhos das mulheres que lavavam a roupa, misturados com a gritaria da canalha entre barrigadas na água e correrias pelas margens.

Flutuavam aromas de Verão, o cheiro a terra e a flores silvestres entranhava-se nos corpos. Ficávamos, assim, colados ao restolho, cansados da subida, à espera que o comboio nos acordasse.

Quando o pouca-terra-pouca-terra da via reduzida atravessava a ponte, sentávamos-nos a ver aquilo: carruagens esverdeadas, andar bocejante, fumaradas de cigarro, brinquedo de cascata sanjoanina. Os nossos cabelos eram fios de sol e trocávamos olhares tão ternos como a lua contempla o mundo nas noites quentes de Agosto.

Corríamos os bardos à cata de ninhos de melros, e havia sempre, ao entardecer, um rouxinol que cantava para os lados da ramada que sombreava o poço.

Tudo era verdadeiro, a amizade existia mesmo e ninguém invejava ninguém.

Tínhamos a novidade do princípio que nunca se inicia nem acaba qual a sede num sonho.

Trepávamos ao pinoco de cimento, que comemorava o ponto mais elevado do monte, e dali abarcávamos uma vista delirante: medonhas penedias forradas por simétricas fieiras de verde tão a pique que parecia impossível um homem conseguir lá botar sulfato; estavam mesmo junto às nuvens, numa adoração telúrica que nem sabíamos se era herética ou sagrada, enquanto o comboiozinho, ao longe, pronunciava uma curva larga, em câmara lenta, pedindo que algum santo o empurrasse.

Ignorávamos o ódio que é feito daquele martírio de linguagem escolhida para a ofensa gratuita, expressa por olhos esbugalhados para perturbar a boa fé. As mãos das pessoas tinham calos e terra nas unhas, as barbas faziam-se aos domingos de manhã e o Padre madrugava com o sino da Capela a interromper os sonos.

Ecoavam os cânticos das aleluias, o toque dos santos, a adoração da hóstia e, depois, os homens iam, abençoados, de sacho ao ombro, desviar as águas para as hortas.

Líamos, às escondidas, o Crime do Padre Amaro ou Andam Faunos Pelos Bosques, enquanto as moçoilas, de caneco à cabeça assente em rodilhas, mostravam os vestidos de chitas floridas; as Mães, cansadas, catavam ganapos; os homens, nas tabernas, jogavam o monte ou o sete e meio, mastigando tabaco de onça e escarrando no chão térreo; os leilões de cravos, cestas de fruta e galos de crista vermelha fomentavam vaidades aldeãs em nome das festas de Santa Bárbara; os bailaricos de poeira, suor e olhares de soslaio alimentavam rivalidades ciumeiras.

Naquele tempo desconhecia-se a morte. Ela estava cercada por quatro paredes, no canto mais afastado da terra, e não gostávamos daqueles toques metalóides dos sinos da Igreja quando uma multidão vestida de negro se arrastava, estrada fora, como uma cobra do rio.

A morte era um eco difuso, pouco audível, que a noite, por vezes, avivava em receios de fantasmas. Depois, adormecia com a sensação de que me faltava alguém.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima foi recolhida da internet livre e editada. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.

5/19/11

PRETÉRITO IMPERFEITO

Íamos, meios tontos, inebriados pela fantasia de que era tudo nosso, correndo pelos caminhos de sombras da mata, arrancando, aqui e além, ramitos de mimosas, até nos quedarmos, ofegantes, no encosto de um tronco, o suor a escorrer pelos corpos.

Não sabíamos que o Mundo tinha hospitais e cadeias, lágrimas nos cantos da tragédia e ódios recalcados na desventura de vidas desconhecedoras do perdão.

Ignorávamos que o amor é, tantas vezes, uma hipocrisia sustentada pela comodidade de não romper interesses ou ferir o futuro dos nascidos sem culpa.

Julgávamos eternas as juras de fidelidade e que os dedos entrelaçados nunca se desatariam.

Não conhecíamos a ingenuidade porque, entre nós, tudo era seguro e limpo.

Troçávamos dos conselhos dos mais velhos como se fossem frustrações de quem não encontrara a felicidade. Esta nascia-nos nos brilhos dos olhos e na sofreguidão dos afagos. O dinheiro não contava porque matávamos a sede na água do riacho e a fome nos frutos que amadureciam sob o calor das férias.

Da cidade chegava-nos a confusão, amortecida pela muralha do arvoredo, e os passarinhos cantavam connosco. Era lindo ser-se novo! Sentir na cara a seda da brisa e nas veias o sangue do desejo, libertos dos ralhos e das sinetas, sem vultos negros nos corredores semi-iluminados, sem o cheiro lixiviado das camaratas e as imposições dos recolheres vespertinos.

Não voávamos que não tínhamos asas, mas os risos e os sussurros acompanhavam-nos na leveza de quem não fazia contas. O futuro não existia, ou antes, era o momento, tinha a dimensão de uma ternura e a certeza de que a luz da tarde nos daria o tempo suficiente para nos vingarmos da noite.

Sentávamo-nos num banco de pedra a contemplar a colina do castelo, enlevados em romances de cavalaria e princesas encantadas. Do lado de lá, depois de um abismo rochoso, ficavam os lameiros onde se abatiam as codornizes enquanto não chegava o tempo das perdizes e dos coelhos. Eram terrenos férteis, de vales amplos, acordados pelos tiros e pelos gritos das manhãs cinegéticas.

Não sentíamos as lágrimas da humilhação, a indiferença das almas egoístas, as cobiças insensíveis, a inveja deprimente.

Éramos vazios do mal, só a boa-fé nos comandava. Traçávamos as linhas da honra sem imaginarmos que, um dia, mais repentinamente do que começáramos, as estradas dos nossos passos nos levariam cada um para seu lado com o mar a separar continentes e a guerra a enlouquecer uma geração.

Mas valeu a pena acreditarmos, percorrermos a ilusão. Se conhecêssemos tudo o que a vida nos trouxe, desistiríamos, logo ali, de sermos felizes. A felicidade, por pouco tempo que seja, vale sempre, ao menos, uma memória.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustratrativa acima foi recolhida da internet livre. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.  

DESPEDIDA

Por que choras, Pai?
Pelo teu sangue que vai,
Na lonjura dos céus,
Sobre terras e sobre mares,
Impedido de dares
Um beijo dos teus,
Um beijo de amor
Que esquece qualquer dor,
Escancara a alegria
E ressuscita o dia?
Querias a certeza
De viver sem a ausência
Do riso e da voz da tua paixão?
Sentir-lhe a permanência
Como um único coração
A bater por duas vidas,
Sem chegadas e partidas?
Tudo num só olhar,
Tudo num só abraço,
Sem razão para chorar
E sem este dorido cansaço
Que lentamente te mata;
Sem saber quando desata
Este nó aflito,
Este violento grito
Que encolhes para lá dos limites,
Para além do que existes?
Pai, por que choras?
Querias viver sem estas horas
Consumidas como uma eternidade?
Querias que a felicidade
Estivesse sempre na tua mão
Como uma flor que brotasse,
Feita reincarnação
- Ou reinvenção -
De uma criança que nunca se afastasse?
É longa a saudade,
Tão longa e infinita,
Que não há, em boa verdade,
Uma palavra que, mesmo bem escrita,
Traduza a dimensão desta realidade:
Que o amor pelos que nascem de nós
É tão físico e tão forte,
Não se apaga na morte,
Em nenhuma terra se esquece,
Em nenhum sono desaparece.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.

Nota: Dedico este trabalho poético de M. Coutinho Nogueira Borges à memória de meu saudoso Pai - Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, nascido na cidade de Peso da Régua - Portugal, em 13 de Abril de 1924 e falecido a 18 de Junho de 1992, dia do Corpo de Deus, em Lisboa.

5/14/11

Escritos do Douro - MEMÓRIAS DOS NOSSOS BOMBEIROS

                                                                                                   M. Nogueira Borges

""Conheci-o em Moçambique, para onde fora mobilizado, no ano de sessenta e oito. Mais concretamente, foi em Porto Amélia que começou uma das minhas mais lindas amizades. O Jaime Ferraz Gabão – é dele que se trata – deixara um dia a sua Régua em busca de outros horizontes que lhe desse, e aos seus, novo sentido à vida. Pertenceu a essa plêiade de cabouqueiros que em África assegurou a sobrevivência sem chibatas, antes com suor repartido entre brancos e negros, respeitando as gentes, pois há sempre uma alma para dar a Deus. ... ... ""
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I- «Era ainda pequenino, acabado de nascer», mas lembro-me, no meio de alguma sombra, do primeiro fogo que vi. Eu brincava, com o Aires e o Manel, no quintal da casa onde nasci ; seria Verão, e no entardecer,  porque o meu Avô, ao fundo, sentado num cesto vindimo, vestia colete e embrulhava um cigarro de tabaco de onça. O ar tinha uma calma de convento e só os crianças algaraviavam nos caminhos. Corríamos com os arcos, que descarrilavam dos ganchos, perdendo-se nos bardos de um calço rente ao muro. De repente, o meu Avô pegou na bengala que o ataque lhe impusera, levantou-se a gesticular, mandou-nos parar, e gritou pelo Alberto que dava palha ao Castanho. Minha Mãe também acorreu, pois quando o Pai se alterava toda a estirpe desassossegava.

Em Santo Estevão, no caminho alto que dá para o Rodo, uma chama, logo espalhada em contágio descontrolável, começava a devorar uma casa e outras anexas. Quase todas tinham muita madeira na sua feitura e o incêndio alastrou com a rapidez de um roubo. O povo despertou num clamor de tragédia. Mulheres, de canecos à cabeça, corriam a despejar a água colhida numa fonte escassa, situada no fundo da rampa; os homens, de sacholas e pás, lançavam a terra que arranhavam no caminho. Eu e os meus amigos largamos tudo e fomos para o pé do meu Avô a quem faltou a saliva para colar a mortalha. Batia com a bengala no chão e dizia para o Alberto: «Depressa! Chama o carro de praça para ir avisar os bombeiros!» Lembrei-me do inferno e dos pecadores. Jurei que iria ser sempre «um rapaz muito bem comportado», pois se as chamas infernais eram assim, então a minha Mãe tinha razão quando me dizia para comer a sopa toda.

Mal o carro vermelho, tocando a sineta, chegou ao Fial parece que as labaredas amainaram em respeito. Mas alegria tivemos nós quando o vimos a fazer a curva da árvore queimada, capacetes e machados reluzentes de homens que vinham «acabar com o fogo». Vários, aos gritos, se lhes dirigiram, ensinando o atalho onde o carro não cabia. Em desafio, pareceu, as chamas alteraram-se como se tivessem encontrado restos de papel. Correndo, os bombeiros lançaram-se àquele inferno verdadeiro, espalhando instruções, clamando ânimos, recusando desfalecimentos. Ainda hoje, ao escrever estas linhas, me emociono com o recordativo. Quando, no final, vencido o abrasamento, eles, descompostos e afogueados, desceram para a Régua, deixaram atrás de si o triunfo cantado no agradecimento dos atormentados, que, varrendo as cinzas da sua amargura, sonhavam com casas de cantaria.

Fiquei sempre com essa impressão juvenil de reverência e carinho pelo sacrifício e solidariedade dos nossos bombeiros, consolidada vida fora, algumas vezes lembrada quando as peripécias da vida, muitas vezes, me esbofeteiam com a surpresa.

II- A sirene dos Bombeiros ouvia-se no alto de S. Gonçalo. Era um chamado que afligia. Começava por um grito de desespero, de quem é atacado à falsa fé, seguido por prolongado gemido de sofrimento, esperando uma ajuda caridosa. Repetido, como se ninguém acudisse, esse apelo sonoro, num eco estendido pelos montes e vales, dilacerava as almas e escurecia a natureza. Os homens suspendiam as fainas, soerguiam-se, olhavam em redor, lançavam o olhar para Avões ou São Domingos, firmavam-se em Remostias ou no cimo do Peso; queriam ver onde se elevava o fumo, se era dentro ou fora da “vila”. Tiradas as “teimas” e assente a origem, debruçavam-se, de novo, para a terra que lhes dava o suor do sustento.

Os tempos de que trato eram de necessidade, em que uma sardinha de barrica dava para três, comia-se cebola com sal e broa com azeitonas, mas havia uma enorme riqueza de solidariedade. As gentes sofriam com o mal alheio, gostavam de ajudar e sentiam como suas as lágrimas vizinhas. A escassez irmanava no relevo dos gestos. Ser bombeiro era fazer parte dessa honra, ditada pelo falar popular, soldados da paz e serventes da humanidade, voluntários do mundo e escravos da lida contra o infortúnio, corpos fardados e almas civis.

III- As noites do Douro, nesse Agosto de 53, eram mais escuras do que hoje. A sua claridade vinha da lua, dos faróis de carro que, de quando em vez, alumiavam o silêncio dos vinhedos, um ou outro poste, de longe em longe, plantado pela boa vontade da Chenop, o petromax de quem levava a recolher a ebriedade, que esquecia nas tabernas as injustiças da sua sorte  desajustada na sua contabilidade doméstica.
Foi numa dessas noites que a Régua se cobriu com o clarão da tragédia. A Casa Viúva Lopes, forte estabelecimento comercial da época, ardia diante do pasmo assustado da terra, tolhida pelo sobressalto e pelo dó. Nem o rio ali ao pé nem o clamor da população segurou o recheio ou as traves que o defendia. Bem lutaram os bombeiros; lutaram até ao fim e até à morte. Lá ficou o Senhor Figueiredo, imortalizado pela pena do nosso Escritor, também ele imortal, João de Araújo Correia, como o João dos Óculos, que ganhava a vida a desenhar palavras no chumbo tipográfico. Lá ficou, queimado pelo seu voluntarismo, pela dedicação e amor ao próximo.

Na nossa Região, os Bombeiros Voluntários da Régua sempre foram uma referência. Associação humanitária a dar «vida por vida», num ditame nunca contestado, servindo, sem olhar a quem, nas dificuldades físicas e morais, na vida e na doença, na esperança e na morte. Mais uma vez se comprovara, bem duramente, a tradição e a lenda da sua história.

IV- Conheci-o em Moçambique, para onde fora mobilizado, no ano de sessenta e oito. Mais concretamente, foi em Porto Amélia que começou uma das minhas mais lindas amizades. O Jaime Ferraz Gabão – é dele que se trata – deixara um dia a sua Régua em busca de outros horizontes que lhe desse, e aos seus, novo sentido à vida. Pertenceu a essa plêiade de cabouqueiros que em África assegurou a sobrevivência sem chibatas, antes com suor repartido entre brancos e negros, respeitando as gentes, pois há sempre uma alma para dar a Deus. Ofereceu-me a sua mesa e as suas palavras nas noites em que brilhavam as acácias rubras sob os candeeiros escurecidos pelos mosquitos. Sentia-lhe a saudade pelo regresso, mas, também, receio de um dia ter que abandonar tudo - por pouco que fosse – depois de anos de sacrifício. Colaborámos, na distância – ele há tempos e com melhor saber – nos semanários regionalistas da nossa terra, cada qual na sua independência e companheirismo. Eu regressei e ele ficou.

Um dia abraçámo-nos na Rua dos Camilos. Ele viera nessa leva, inventada por uma qualquer pejorativa mente, de “retornados“. Ainda tentara ficar, mas a onda de oportunismo e adesão cobarde aos valores nunca professados, não lhe sossegavam as entranhas. Chegou de olhos tristes e coração despedaçado. Depois de alguns anos de aptidões reconquistadas, o Jaime adoeceu no corpo, que no espírito nunca sarou. Prolongou a doença o mais que pôde, mas quando ela chegou ao fim não encontrou grande resistência: ele já se cansara de lutar, de andar de abrigo em abrigo em busca da serenidade.
Foi numa tarde de Junho, quando a Régua é um inferno de calor, que ele subiu para o Peso onde descansa eternamente. Foram os nossos bombeiros  que o levaram, associado que era. Atrás, com os seus familiares e amigos, eu recordava-o numa mistura confusa, em que cabiam as memórias dos meus mortos, dos fogos e das cinzas, mas, também os carinhos dispensados aos vivos, ajudando, até, a nascer muitos que perpetuam o nosso mundo.

Agora que vem aí o Verão, estação para algumas descomposturas e traições humanas, ofensivas da natureza e dos socorros dos soldados da paz, que não falte o apoio e a boa fé de quem manda, mesmo neste tempo de desgosto e baixeza moral.

Abril 2011

Nota: Agradecemos ao escritor M. Nogueira Borges, natural do concelho de S. Marta de Penaguião, por ter escrito para o Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua este brilhante texto sobre as suas memórias dos bombeiros e, em especial, sobre os da Régua. O nosso muito obrigado por ter evocado factos e figuras que ainda hoje são inesquecíveis na longa história dos Bombeiros da Régua.
- Matéria cedida por M. Nogueira Borges e J. Alfredo Almeida para Escritos do Douro em Maio de 2011. Clique nas imagens ilustrativas do texto acima para ampliar.
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Memórias dos Nossos Bombeiros - 1
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 28 de Abril de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
MEMÓRIAS DOS NOSSOS BOMBEIROS
Memórias dos Nossos Bombeiros - 2
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 5 de Maio de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
MEMÓRIAS DOS NOSSOS BOMBEIROS - 2
Transcrito do Blogue "Escritos do Douro"

3/31/11

A MINHA CIDADE

(Clique na imagem para ampliar)
Fotografia pertencente à galeria pública de Jaime Gabão 

A minha cidade
Tem o visco da saudade
E o nevoeiro do futuro.
A minha cidade
Tem a tristeza do escuro,
Mas, sobretudo,
O brilho da verdade.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.

  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima pertencente à galeria pública de Jaime Gabão e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

3/25/11

CARTA (IM)PROVÁVEL

Para uma MÃE... para uma Esposa, para um Irmão(a), para um Familiar... para um Amigo(a):

   Não sei o que queres de mim, diga ou faça. Olho-te para lá dos teus olhos, como se quisesse entrar na tua alma, lembro a tua cara de criança, quando te conheci, sorriso aberto e feliz, e é como se regressasse ao tempo da inocência, ao pensamento limpo, sem nódoas. Tanto quis que a nossa vida se desenrolasse em harmonia, com tudo lindo como o teu rosto! Agora, quando te fixo de lado, para, julgo eu, não te distrair, e te vejo de olhar vazio cravado não sei em quê; essas olheiras fundas que não te desaparecem nem que durmas um dia inteiro; essas rugas, antes da idade delas, que vão da testa à junção dos lábios, outrora vermelhos e sensuais, cujos beijos eram o onírico despertar do desejo; esses teus seios caídos e mirrados, antes redondos e firmes, onde aplaquei os arrebatamentos das noites de excessos; esse teu corpo vibrátil mas sempre pudico, abandonado ao cansaço da satisfação – quando recordo tudo isso não consigo encolher as lágrimas.

   Não sei o que queres de mim, diga ou faça. Ficas calada e quieta, como se eu não te pertencesse, como se tu não me pertencesses, mas eu pertenço-te, pertencemo-nos, não sou do teu sangue, mas sou de ti e teu porque fui de ti e teu na luxúria dos corpos, na franqueza da convivência, que é sempre o desnudar recíproco de tudo o que é, no mais íntimo, nosso. Sessenta e cinco anos dão para criar filhos e netos, para se ser feliz com eles novos e não adormecer a pensar neles, mais velhos, enquanto não chegam a casa. Em quarenta anos de comunhão já não há segredos nem originalidades, tudo se conhece de nós e muito dos outros, tudo foi dito. Monossílabas sons, alguns entendo-os porque uma vida inteira dá para perceber até o imperceptível; mas eu queria que te explicasses, porque era importante conhecer essa tua nova vida, o que se passa dentro de ti, o que sentes, se ainda tens consciência e desejo, se ainda eras capaz de recordar a brasa da nossa paixão, quando lá fora nada interessava, e só na nossa solidão preenchida, no nosso egoísmo compartilhado, nascia o amor, a insaciabilidade, o esquecimento.  Era indispensável que me demonstrasses o que aconteceu ao teu cérebro, à tua alma, aos teus nervos, à tua genica que, de tão grande, me confundia, por vezes, naquilo que eu julgava ser uma fuga de ti. Assim, queda e muda, de quando em quando um esgar, que acho de sofrimento ou de repulsa, sem uma reacção ao meu aperto de mãos, sem um esboço de vontade; assim ao teu lado, parece que não tenho ninguém, que vivo só na companhia de uma defunta por enterrar, um isolamento duplo, que já não sei se estou sozinho ou acompanhado.

   Quem diria, quando nos conhecemos, que uma coisa destas te (nos) iria acontecer! A medicina diz que não tem cura para ti. Vais, então até o coração (ou o cérebro) parar, levar esta vida vegetativa, sem te aperceberes de nada, de quando te dou os comprimidos, a sopa passada ou o leite por um biberão, como quando os filhos eram bebés, sem saberes quem é a enfermeira que me vem ajudar e ensinar a lavar-te, a mudar a algália? Será que não quero que morras? Tenho medo que apodreças, cries pústulas, e o teu espírito fuja pela janela de Agosto? Umas vezes, quando, cavalo enfreado, o desespero me toma, tenho ganas de te deixar, nunca mais ver essa tua cara de esquife, de fatalidade, esse rosto que foi tão belo e, agora, um desenho de mímica. Mas não fujo, lembro-me que podia ser eu no teu lugar, e tu, tenho a certeza, nunca me abandonarias. Para lá de tudo, o nosso amor não merece nenhum abandono, nasceu da atracção fulminante do nosso olhar, consubstanciou-se na posse da carne e na mistura do sangue; é tão forte que, mesmo quando não existirmos, havemos – almas invisíveis – de voar sobre a terra, e os que ficarem saberão que nenhuma memória se sepulta. De noite, quando me deito, apetece-me acordar-te; acaricio as tuas coxas, a tua púbis, subo ao teu ventre, aos teus seios, e é como se um cadáver estivesse a meu lado, só a quentura me diz que ainda existes; arrepio-me de ainda te cobiçar, querer possuir-te até ao fundo de mim, de nós, igual àquelas horas em que, loucamente, nos esmagávamos na sofreguidão. Não te troco nem me lembra de o pensar, falta-me a coragem de te substituir. Para onde foi aquela voracidade de viver que me ajudava a disfarçar os instantes de incerteza? Ver-te de olhos brancos, da côr da tua pele, sem um clarão, um lampejo, breve que seja, um sinal de presença partilhada, é um castigo sem culpa que me estremece de revolta. 

   Lembro-me de quando dávamos banho aos filhos ou íamos a correr com eles para o médico, mal qualquer tosse ou febre nos inquietava o sono ou o instinto. E recordo, muitas vezes, nestas alturas, não sei por que absurda  associação de ideias, quando te vi pela primeira vez! Tinhas umas covinhas na cara, uns olhos de Primavera e um riso de Estio. Escrevia-te cartas incendiadas, chamava-te amorzinho e boneca das minhas brincadeiras. Como passa e se transforma a vida! A porteira do colégio, medrosa, entreabria a porta com um sorriso de adorável cumplicidade, pegava no envelope e dizia-me que era a última vez. Mulher corajosa e amorável, que arriscava, aos olhos tentaculares das freiras, o seu emprego, como se aquele amor clandestino também fosse dela ou imaginasse um semelhante. Nas tardes de domingo seguia-te os passos aonde te levavam as vestes negras. Rias-te às escondidas, tapando a boca com as mãos, a Manuela a dar-te cotoveladas, eu a mandar-te recados pelos olhos, e tu encolhias os ombros, desenhavas um coração com os dedos e « Amo-te » com os lábios. Meu Deus!, como se trituram sonhos, se desfazem previsões! Olho as paredes, e apetece-me deitar fora as fotografias em que estamos, esmagá-las sob os meus pés, queimá-las na lareira, arrasar as nossas lembranças, para que nada reste do antigo e que me ofende quando o comparo à idade de hoje. Nem quando te vêm visitar e me misturo, nesse intervalo, no movimento das ruas para não me desabituar do Mundo, te esqueço. És um castigo que não merecia, ainda menos tu, mas és esse castigo que me interroga a ideia de Deus, embora não consiga apagá-la numa certeza, ao ponto de não suportar os sinos das missas domingueiras e ter vontade de mudar de casa para o meio de um monte só com pedras para esmurrar, e ouvir, ao longe, num eco sem fim,  os berros que engulo neste sexto andar. E aí chorar bem alto as lágrimas de raiva, de desgosto, de porquê a mim?, de injustiça sentida como uma ingratidão sem nome. Será possível, meu amor, que te tenha acontecido uma coisa destas, a ti, que foste o sol da minha vida, o corpo do meu ( do nosso ) prazer, a razão de todas as manhãs te deixar com vontade de regressar depressa, de te telefonar duas e mais vezes ao dia com o chefe a perguntar-me se tinha alguma amante, o pessoal a rir-se quando eu dizia que era a minha mulher.

   Como aconteceu isto? Ignorámos, durante anos, que a morte tem o privilégio da impunidade e a vida se sujeita a todas as arbitrariedades julgadoras; que a desfilada dos anos aniquila a espontaneidade  e cimenta a rotina dos silêncios onde mergulham as saudades do que nunca fomos. Não tínhamos à volta, nem em nós, a gelatina da mistificação, conhecíamos as agruras alheias, mas não as víamos na vizinhança dos nossos passos.  Afinal, chegaram, quando nunca as esperávamos.  Já não as conheces; eu, como escolhido, vou ter  que  aprender a fingir que as divido contigo. Quero-te útil até acabares. Vamos, então meu amor, ser vizinhos até ao fim.
- M. Nogueira Borges*, Portugal, 26/2/2010.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

3/21/11

O SILVA

Conhecera-o em Mafra, no C.0.M., onde, durante meio ano, nos sacrificámos para termos alguma hipótese de escolher a futura colocação num quartel próximo de casa. Fazíamos o que nos mandavam, mesmo que isso nos violentasse, prolongávamos o esforço para lá dos limites, decorávamos os regulamentos como quem engole a repugnância, manuseávamos as armas com a presteza dos autómatos e desmanchávamos as culatras com a troça de um desfastio.

Encontrámo-nos em Chaves para formar Batalhão, embarcámos no mesmo barco para Moçambique e separámo-nos em Nacala. Durante meses trocámos SPM, mas, repentinamente, os seus aerogramas cessaram.

Um dia, num desses dias em que o calor húmido cola as roupas à pele, encontrámo-nos numa cidade construída no meio dos pântanos. O abraço teve a alegria de uma criança quando lhe reaparece o brinquedo preferido. No café, repleto de ventoinhas de tecto, de fumos de cigarros e conversas agitadas com pressa de recuperar os afectos interrompidos, estendemos o reencontro. Continuávamos, afinal, os mesmos: sedentos de regresso e de paz, contrariados na guerra e desaproveitados na vida, sem vontade de matar mas obrigados a fazê-lo para não morrer, a rotina do estupor a tapar-nos os horizontes; vivíamos de recordações, os passeios a Lisboa e à Ericeira para vermos as coxas das miúdas a atirarem-se aos cadetes de Mafra; os bonecos do Franco no Sobreiro, os escuros corredores da EPI ensombrados pelos fantasmas das batalhas de Naulila ou La Lys; os bifes do Novo Rioma, as melodias sineiras dos carrilhões, aos domingos, a encimarem a monumentalidade barroca de D. João V; os devaneios bucólicos à foz do Lizandro, as marchas na Tapada com os gamos e os veados a mirarem-nos surpresos; as saudades de Coimbra como feridas incicatrizáveis, a quietude das nossas aldeias separadas pelo eco de um berro, as bocas das namoradas sem uso; o velho do Salazar que nunca mais morre, o tempo que demora a passar, o cansaço da escrita que só apetece para a família chegada e, quantas vezes, sem saber o que se dizer.

- Por que deixaste de escrever?

- É sempre a mesma merda, depois das patrulhas só me apetece dormir. Aliás, sabia que, mais dia menos dia, me dariam um mês de descanso e que o faria aqui, sem dinheiro para ir à Metrópole. – Fez uma pausa para um gole de Laurentina. - Sabes quem morreu? O Daniel.

- Não era aquele gajo que dizia que queria meter o chico?

- Tinha essa mania, pintava-se de preto e ia sempre com granadas à cintura; rebentou-lhe uma defensiva e fodeu-se. Matou-se sem glória. Ainda está em Miteda, lá num canto, cheio de chumbo por dentro e por fora, à espera de um barco.

Um tipo esquisito, o Daniel: sorumbático, ombros fortes a rasgarem o blusão, o rosto de feições montesinas, uma reserva forçada como se a vida nunca lhe permitisse uma subtileza. Deliciava-se com a aplicação militar e constava que limpava todos os dias a bicha de Aspirante. No bar, nunca passava de meio chá com duas bolachas e, enquanto os outros folgazavam, ele ficava horas sentado a ver a televisão espanhola.

- Mas, sabes – retornou o Silva quando já passeávamos na marginal - , o tipo tinha melhorado, estava mais dócil e já se ria para os soldados. Não havia operação que não quisesse ir, confiante, «vou ali e venho já», dizia ele. O Capitão ia propô-lo para um louvor ao nível de Governador Geral. Agora, então, é que vai ser uma maravilha com o gajo já morto. E a malta do pelotão já gostava dele, sabes? Dormíamos no mesmo cubículo, jogávamos a sueca, mas nunca nos afeiçoámos. Quando vi a padiola e o tipo estendido é que senti uma coisa cá dentro que ainda hoje não consigo precisar. Pareceu-me um desperdício, um roubo, a cópia dum hipotético futuro meu, notei-lhe a ausência, que ele tinha existido comigo, que estávamos, afinal, no mesmo lugar. Tive medo e, não sei se por isso ou por ele, chorei que nem um desalmado, como se as lágrimas me desculpassem de estar vivo, entendes o que quero dizer? Uma justificação que se dá mesmo sem se ser obrigado. Esta merda é fodida. Andamos aqui todos a ver se safamos o canastro e quando morre alguém parece que temos culpa por não sermos nós.

Era ao fim da tarde quando África é uma perturbação enlanguescida. O sol, bolha de sangue estampada no horizonte, morria, lentamente, num desmaio de donzela consolada pelas carícias do mar. A noite caía cedo – como caem todas as noites africanas -, uma brisa de sirgo sensualizava os corpos e espevitava frémitos. As mulheres, de vestidos leves ou calções generosos, espalhavam perfumes e ousadias. Os homens, de balalaicas impecáveis, fumavam LM e miravam as capulanas das negras roliças. As peles tinham a cor da nascença ou da frequência da piscina. Caminhava-se num chão de vidro, os sorrisos atirados para os lados. A guerra estava longe, mesmo que fosse ali ao lado, para lá da picada vermelha, da escuridão da selva, da desconfiança das tembas. Nas esplanadas, o gelo desfazia-se no uísque ou nas coca-colas; a cerveja gelada acompanhava-se com pratinhos de camarões, ameijoas ou pedacinhos de dobrada; as faces enrubesciam, as barrigas, bem instaladas, avolumavam-se - respirava-se um ar de insolvente abundância.

- Não te choca este ambiente? Até esta paneleirice inglesa de os carros andarem pela esquerda com os volantes do lado direito me mete confusão! – exclamou o Silva. - Anda um tipo, no mato, de canhangulo em punho – prosseguiu nervoso -, sujeito a levar um tiro nos cornos, a lutar pela Pátria como dizem os cabrões, chega-se aqui e parece que nada se passa.

- Fazem um esforço para esquecer que a guerra existe. – fingi sentenciar. Eles até dizem que a guerra só os empobrece, como se acreditassem que acreditamos. Há aí tipos a fazerem fortunas. Sentem-se desobrigados e alguns dizem que resolviam isto sozinhos, falavam com a Frelimo e dividiam ao meio o poder. Nós andamos cá a complicar, a esvaziar o Tesouro para nada. Toleram-nos, acarinham-nos, convidam-nos para almoçar e esforçam-se por nos tornar importantes.

O Silva trazia o cansaço do mato que, quando longe dele, procura, mais que o ócio, o farejo da fêmea. Reparava nas raparigas com um olhar que tanto parecia uma imploração condoída como um prenúncio de vulcão prestes a explodir. Tinha o rosto seco pelas vigílias cacimbadas e pelo desejo reprimido. Só a inibição social o detinha. Mas não pretendia o sexo fácil, comprado por meia dúzia de quinhentas, sim a naturalidade de um ímpeto civilizado, a satisfação racional que lhe matasse a fome de homem e não de macho. Na Metrópole, ficara a Joana, cabelos compridos e lábios de polpa, sentada nos bancos de Direito, a ouvir aquelas secas das Obrigações, a escrever-lhe noite sim noite não, ele duvidando, às vezes, se a encontraria, que o amor é muito bonito quando a presença não se imagina mas sente. Já sabia que o verdadeiro amor é o do sangue, o único que é cego a sacrifícios e não discute contas. Jurara fidelidade, aquela promessa fogosa que a despedida longa solicita, mas omite o imprevisto.

- Já reparaste – atirou o Silva – que aqui as raparigas parece que crescem mais depressa do que lá no puto? - Veem-se aí catraias, acabadas de nascer, quinze, dezasseis anos, corpos de mulheres feitas, desinibidas e a pedir tudo! – insuflou, enquanto um sorriso concupiscente lhe envolvia os olhos.

- Acautela-te e não te deixes levar por aparências. O sonho de muita miúda que te mira é apanhar um alfereszito e amarrá-lo a um embondeiro. Então as mulatas adoram galões e camuflados. Não te esqueças que tropa é sinal de submissão – chacoteei.

- Quer-se dizer que o mais seguro é na temba...– acentuou Silva em tom desconsolado.

- Olha para aquilo! – anotei. - Andam cem cães atrás e os pais nunca a largam. O tipo é um coca-cola ligado ao cajú e ela é uma broeira que só tem corpo e passeia os livros na Escola Técnica. É só encenação, espremida não dá nada, quando abre a boca é de fugir.

- Não me importava nada de experimentar. Quem fugia, se calhar, era ela com o susto! – motejou Silva.

Dir-se-ia que toda a gente afluíra à beira-rio, baptizado por Vasco da Gama, há séculos, de Bons Sinais, já sem os vestígios da fortaleza que a história de mil e quinhentos diz ter existido em comércio esclavagista. De cá para lá, desde a ponta em que se erguia o palácio do Governador até à outra da zona da piscina, os corpos deslizavam na mornidão amansada por um cacimbo prematuro. Chamavam-lhe o picadeiro, montra das vaidades e da alcoviteirice.

Era uma cidadezinha de moradias predominantemente familiares, estilo colonial, com um jardinzinho sempre bem tratado pelos mainatos. Por si própria se fez, sem o ouro metropolitano, saneados os pântanos que não dispensavam, tantos anos depois, a pulverização diária, impregnando, pelo cair da tarde, o ar dum cheiro repelente de fenotrina. Na generalidade, os seus habitantes tinham a franqueza nascida em terras transmontanas ou beirãs, e ofereciam, nas suas salas climatizadas, copos de uísque cheios de gelo com «chim! Chim!» de sorrisos. Os arruamentos, rectilíneos, cruzavam-se como se medidos em estirador de arquitecto, os poucos prédios em altura eram uma apressada resposta à multiplicação demográfica que a guerra gerara. Visitavam-na não só a flutuação militar ou os endinheirados do Malawi que atravessavam a fronteira de Milange como se fosse a Valença Moçambicana, mas, também, os senhores do cajú, do chá e do óleo de copra, abundantes nas plantações conquistadas ao mato. Na época das chuvas, com as picadas intransitáveis, impróprias para Nissans e Land-Rovers, quanto mais utilitários, a cidade recuperava a identidade. O aeroporto, longa fita de terra batida, metade asfaltada, que permitia a escala dos friendships da DETA ou os ronceiros Dakotas com a Cruz de Cristo pintada, dava-lhe um ar civilizado.

No mato circundante ficava a temba, caniço habitado pelo diminuto proletariado negro, macuas meios indeiscentes e mulatos de desconhecidas paternidades, que, no fim do trabalho, iludiam o descanso na aguardente de cana e batucavam espíritos entre o capim. As tarimbas, noite dentro, não tinham sossego, as mulheres entregando-se, contando moedas, à febre duma juventude que despia e vestia fardas como se despachasse um desassossego. Na cantina do branco, comiam-se pernas de caranguejo e bebiam-se bazukas à sobreposse, enquanto, no alpendre, corpos suados e ébrios, se agitavam diante do gira-discos das marrabentas. Era um lupanar ao relento com o cacimbo já colado aos corpos e às coisas, o suspiro da selva insinuando-se nas palhotas que escancaravam intimidades; um alcouce de misérias, ónus acusatório de um comportamento tiranizado, a ostentar as fraquezas como macropias de heroísmo.

O Silva, atarantado pela liberdade, longe dos buracos, das rações de combate e dos tiros, pedia sempre, pelo meio da manhã, um jeep que o levava à praia e o ia buscar ao anoitecer para encher a barriga de camarão, bife de impala e cerveja que o inebriava pelo silêncio da madrugada. Cantava, então, fados de Coimbra que o Capitão do Quadro, de mentalidade miliciana, aplaudia com tosse exagerada e um (des)concerto dos presentes. Numa dessas noites, de copos avançados, Silva atravessou-se:

- E agora – disse ele –, vamos encenar uma Serenata Monumental! O Largo da Sé Velha é um mar negro de capas, calmo e trágico. Calmo, porque precede a revolta; trágico, porque não a pode concretizar. Mas, malta! - exaltando-se - a hora está a chegar! A submissão não é eterna! Tudo acaba, até a infelicidade! Virá o dia em que brancos e pretos, as raças todas se abraçarão, e o Mundo há-de ser uma bebedeira de amor!

- Alferes Silva...– cortou, tolerante, o Capitão Velasco. – Está na hora de irmos dormir...

- Meu Capitão, o sono é a morte dos que não querem gritar a vida! Peço a todos – abarcando, com um movimento circular, os que assistiam, de desfrutados sorrisos, ao serão imprevisto - que levantem os braços, assim como eu estou a fazer, agitem as mãos como se tivessem capas, e berrem um grande eferreá pela esperança!

Uns melhor, outros pior, imitaram-no.

Depois, foi vê-lo e ouvi-lo, de olhos marejados, entoar a Samaritana, o corpo estremecendo num desespero angustiado.

A noite suspendeu-se de espanto. No lodo do rio, os crocodilos despertaram; no capim, cerce aos muros do quartel, ouviram-se restolhadas de bichos; as palmeiras da marginal agitaram-se em sussurros de brisas; a lua, virgem donzela, corou de lascívia; a escuridão desvendou ouvintes com dentes de neve; as lágrimas saltaram de emoção; os corações estoiraram contra os arames farpados; as picadas, para lá do asfalto, foram percorridas por asas de liberdade; nos terreiros do mato os tambores e as marimbas pararam de tocar; os babuínos, nos galhos das baobás, deixaram de latir; as jacarandás lilases ficaram rubras como as vagens das acácias; os duendes do melungo puseram-se, estupefactos, à escuta; os grilos encolheram as capas amarelas; as cigarras pararam o estrídulo e, na caserna, uma gelada desilusão adormeceu.
Silva antecipou, em dois dias, o regresso ao Planalto, aproveitando a boleia de um Alouette para Mueda, onde apanharia uma qualquer coluna para Miteda.

- Silvestre! – berrou-me. - Dá cá um abraço e continua-me com essa missão humanitária de consolar o mulherio solitário...

- Olha que a solidão é nossa, Silva...

Foi a penúltima vez que o vi, acenando-me, enquanto o helicóptero, como brinquedo de Feira Popular, se elevava. Passados poucos dias, pelos canais de informações militares, soube que o Silva ficara na Curva da Morte quando fazia o retorno a Miteda.

Revi-o, nos porões do Pátria, o nome escrito nas tábuas que encaixotavam o seu esquife. Ao lado ia o do Daniel.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

3/16/11

AS BOLINHAS

A praia está, ainda, praticamente deserta. É uma manhã limpa com um sol já acariciante e uma saborosa envolvência de maresia. Aqui também há classes: de um lado, a área concessionada; do outro, a zona dos chapéus de sol. Na primeira, estão montadas as sombrinhas com as cadeiras reclináveis alugadas por bom dinheiro; na segunda, o preço é o carrego que cada um está disposto a transportar. Escolho, nesta, um espaço que não tenha de alterar pela preia-mar, espeto o guarda-sol, espalho as toalhas a delimitar território, liberto-me dos chinelos e da camisa. Vou até à orla, viro-lhe as costas, de frente para os prédios gigantes que se erguem como insultos de ganância, e comprazo-me com a babugem da ligeira ondulação a lamber-me os pés. As construções tipo legos, de traça usurária e sem decoro, são depósitos de corpos que aqui fazem a vingança quinzenal dos nevoeiros e das nortadas; alguém lhe chamaria arquitectura dos trezentos para dar lucros de boutique de shopping.

Lentamente, o areal vai-se enchendo. Uns, arrastando sobejos de sono, estendem-se, imediatamente, como sardões mal despertados; outros, esbaforidos pelo peso das tralhas, limpam o suor e, antes de se acomodarem, distribuem tabefes pela rezinguice infantil. Há de tudo: burlescos com óculos de esquiador, tias das revistas com panons transparentes e cosméticas burundangas, maternidades deliciosas que a tudo acodem sem um azedume, cabelos brancos que ainda não desistiram de usufruir a vida e transmiti-la à descendência, leitores de escrita light e de jornais desportivos, utilizadores de telemóveis com ares de executivos imprescindíveis ou de empresários sempre a facturar, gordas sem vergonha de libertarem as coxas e opostas de linhas geométricas limpando as areias como se fossem formigas.

Num súbito, a vizinhança da minha toalha inquieta-se: soerguem, uns, os cachaços do areal, despertam, outros, para uma montra apelativa, sorriem, elas, num jeito de brejeirice a dissolver o desdém, lançam, os mais entradotes, olhares nostálgicos. A aparição justificava o sobressalto. Há mulheres tão espectaculares que chegam a ser uma ofensa à inteligência: alta, sem exageros basquetebolísticos, cabelos longos, cor de libra Vitória, espalhados e deslizantes pelos ombros como sedalina, óculos de voleibol de praia numas faces trigueiras decoradas por duas argolas ciganas, busto voluntarioso de mamilos agulheados e defendidos por uma t-shirt justa que descia até a meio das coxas torneadas a fazer de mini-saia generosa, fita vermelha no tornozelo esquerdo que lhe dava uma ar jamaicano de prospecto turístico. O seu acompanhante, de paciência na cara e peso nas mãos, arvorava uma docilidade canina, ornamentado com um bordão no peito e um relógio todo o terreno. Enquanto ela ajeitava, a tiracolo, uma carteira tipo saco de flores tropicais, ele transportava um guarda-sol, duas cadeiras e uma bolsa de lona que lhe deve ter restado da guerra colonial. A beldade esticou uma enorme toalha rosa estampada com palmeiras, sentou-se, atirou, num desafio, a cabeça para trás, retirou os óculos (os olhos cintilaram esverdeados), passou os indicadores metódicos pelas sobrancelhas, tirou a t-shirt, e os seios, como molas, estremeceram de liberdade, numa provocação ao redondel, até se deterem firmes como dois ponteagudos marmelos. «Quem me dera ser bebé!», disse uma voz, «Cala-te, palhaço!», respondeu outra. O homem, depois de arranjado o poiso, pegou no tubo do creme e, num silêncio ruminante, começou a untá-la. Ela não falava, só lhe indicava com as mãos os locais onde queria o creme: mais nos ombros e nas costas. A cara, os mamilos, os braços e as pernas foi trabalho dela, em pormenor demorado. Terminado este, ergueu-se e foi até junto da ondulação lavar as mãos na areia. O seu andar era sensual como o corpo, com tudo no sítio, sem um acrescento ou uma diminuição, um fio dental a relevar umas nádegas afoitas e seguras, a respirar sexo por todos os poros. Tinha, todavia, um aspecto de súcuba, olhar esguelhado, que acompanhava sempre com um maneio da cabeça e das mãos a fingir que tirava as madeixas dos olhos. Fumava desalmadamente, soprando, pelo canto da boca, o fumo para cima, num trejeito de rufia de esquina, retirando as areias das pernas como se catasse piolhos. Estendida, de cigarro entre os dedos, puxou o guarda-sol para lhe aumentar a sombra e retirá-la ao acompanhante que continuou impávido diante das notícias da Bola.

Ao longe, por entre o amontoado humano, nascem os pregões dos vendedores ambulantes. Trazem, em cada braço, caixas de pasteis que propalam consoante a força das suas gargantas e o seu engenho publicitário. Uns, são incisivos: «Bolinhas!»; outros, mais enfeitados: «Boliiiiiinhaaaas!»; ainda outros, mais secos: «Boli!»; e os que soletram: «Há bolinhas com creme e sem creme! Há pasteis de amêndoa!» Os rapazes, ao chamamento, pousam os caixotes e distribuem bolinhas a torto e a direito a cem escudos cada uma. O calor vai apertando. As pessoas renovam unturas, passam os jornais a pente fino, também há quem leia Cem Anos de Solidão, estudantes preparam a segunda chamada, senhoras relaxam a fazer renda, discutem-se os milhões das transferências futebolísticas, arrematam-se as últimas amêijoas junto dos barcos dos pescadores.

Um Cabo de Mar e um Polícia, num roldão de apitos e vozes alteradas, investem pela praia num despropósito que confunde toda a habitualidade. Os banhistas espantam-se, pegam nas toalhas e interrogam-se, olham para o mar a ver se alguém está em dificuldade, o que será e não será, até se perceber, depois, que perseguem um vendedor em qualquer ilegalidade. Um dos cívicos, passo ligeiro, lança: «Àquele já lhe vou tirar as bolinhas!» Uma senhora, que fazia malha há uma eternidade e queria os netos sempre à sua volta, levantou-se da sua cadeirinha picada por um alfinete, deixou cair os óculos, e exclamou anelante: «Ó Senhor Guarda! O Senhor tem coragem de tirar as bolinhas ao rapazinho?!» O Senhor Guarda olhou-a, riu-se bondoso e prosseguiu o seu caminho, deixando um magote de risos encolhidos. A Avozinha fulminou-os, atrapalhou um sorriso atenuante, sentou-se, retomou a malha e afivelou a cara da boa fé injustiçada, enquanto a aparição, de mamas ao léu, levantava a juba e desenhava um trejeito malhadiço a lembrar uma preguiça sardónica.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.