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9/02/10

A NAIFA

«Tá ver? Tá ver? É o que lhe digo, um home num pode deixar de ser seguro! Hoje, de manhê, tive mesmo p´ra trazer a naifa. Disse cá p´ra mim: “ bem, num debe ser preciso, esta malta é porreira “, afinal, é o que se vê. Abaliei bem mal! Olhem-me qu´isto! Já onte, quando saíram do lagar e começaram a mandar vir, diga-se de passage, sem razão nenhuma, deu-me logo cá uma zoeira no toutiço que nem imagina a minha impressão! Só me deu bontade de abandonar a prensa e botar logo a gadunha a um! São alebantados lá os gajos! Tá bonito isto! Anda-te aí um que não é nada bem encarado, na minha palavra de honra! Onte, atão, era o que mais palrava, “que não, que não“, e não entraram mesmo no lagar! O tipo é o chefe deles, é mesmo reguila, e armou-te aí um banzé dos diabos! E eu cheio de bô fé a dizer que esta malta é porreira! Sim, senhor,bonito serviço!

Num importa o quê? Isso é o que lhe parece! Atão acha bem uma desfeita destas? Tem que haver respeito, isto inda num é o Brasil, ora esta! Eles pensam que vêm p´ra cá abusar ó quê? Que abusem na terra deles, homessa! Anda a gente a rogá-los, a dar-lhes dinheiro a ganhar, e depois fazem isto! Olhem-me qu´esta num tá mal, não senhor... Se me dá na bolha, inda bou a casa buscar o instrumanto! Tou a ver que sim! Inda bou buscar o alfange p´ra dar uns riscos àquele terrorista! Vocemessê num faz ideia da impressão que o gajo me mete!

Como? Num entendi o que o senhor disse? Não, já o merquei há uns tampos. Aquilo, carago!, tem p´raí o comprimanto da mão daquele rolador! Só visto! Autântico! Tem aquele comprimanto à segurança! P´ra que preciso eu disso? Tá boa a chiba, tá! A cada passo é preciso. Há sampre quem nos queira mal, uma zanga, uma espera, sei lá, uma hora de aflição. Onde calha se encontra um patife. À moda do outro, um home num gosta de ir p´ró xadrez, mas em vez de as levar num há-de dar? Conversa... mas isso é indiscutíbel! Com calma? Com calma, leba-as um home e cala! É o que lhe digo! Eu tamém já lebei... Uma vez foi aqui no estômago, salvo seja aqui neste sítio, que nem lhe conto. Inda tenho a marca dos pontos e nunca mais me esquece! Lebei à volta de cinco pontos. Diz a minha qu´inté me saíram as tripas! Ela é que diz isso, eu num bi nada... Mas eu mandei-lhe, tamém, três rasgos que o puz às portas da morte! Andava eu a podar, nessa ocasião, numa Quinta duns ingleses, era uma coisa grande, até queriam pôr torneiras p´ra regar aquilo, veja bem; eu binha todos os dias a casa, nesse tampo a minha escrita tava sempre em dia, entende-me o que quero dizer?, bom, eu binha todos os dias a casa e, uma noite, encontro aquela alma no caminho. Desgraçado! Trazia uma borracheira que só bisto! Deu-me p´ró entreter. Às páginas tantas, começa-te lá cum relambório! Inda aguantei, mas depois num pude mais, inté a minha Mãe ofendeu, o grande cabrão! Como o senhor sabe, isso nenhum filho, que o seja de bom sangue, finge que num oube. Mandei-lhe umas lostras nas bantas e umas troviscadas no lombo cum pau que eu trazia sampre comigo, quando, sem eu contar, ripa-te de uma naifa e zás!, enterra-ma aqui mesmo, salvo seja. O que me valeu? A navalha da enxertia! Num lhe digo nada! Amandei-lhe umas cortadelas que nem queijo! Deixei-o lá a gemer, ali nos Quatro Caminhos, e soube, depois, passada uma boa tamporada, que se tinha mudado p´ra Lisboa e que andava lá a chegar massa nas obras. Eu lá me arrastei até casa, inventei que me tinha cortado cuma foice e quem me deu os pontos foi o Dr. Silvério, um santo home, num desfazando, e que Deus tenha em bom lugar. Claro que ele desconfiou logo, que era bô médico, e disse-me: “Pilroto, p´ra próxima chamo a Guarda!“ . Aquilo morreu, já foi há muito ano e inté nunca mais tive nada, mas nunca mais me fiei. Tanho andado sampre firme, nas devidas condições, que o mundo num tem só putos de Pais e putos de Mães, mas, tamém, filhos de outros Mães que num sabemos donde vêm e para onde vão, percebe-me o senhor o que quero afiançar?

Olhe, que horas são? Pela nova ou pela velha? Minha Nossa Senhora! Já bou oubir um reportório desgraçado da patroa, que aquilo quando a comida esfria ela aquece quinté parece que a casa bai abaixo! Tem um génio estuporado! E ai de quem lhe responda, bai tudo raso, parece um ciclone! Daquilo é que tanho medo! É cá uma naifa que o senhor nem bai ao fundamanto! Amanhê, às seis velhas, tanho aí um lagar p´ra incubar. Santas noites e desculpe-me esta franqueza.»
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no Blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

    10/23/12

    UM HOMEM

    Aqueles doze dias que me deram, antes do embarque, pareceram a satisfação da última vontade de um condenado. Para dizer a verdade, só o sono me descansou. De dia contava o tempo, olhava o fundo do vale, com o Douro ao fundo, e nunca a estrada me foi tão curta e tão detestada; chegava a pedir o impossível: que ela desaparecesse do mapa. Era uma dor que nunca soube definir: a barriga em espasmos, uma vertigem no olhar, mas o que me custava mais era uma ardência no lado esquerdo do peito; acho, até, que era a angústia transformada em revolta, que, como sabemos, não mata mas dói. Cheguei a pedir que os dias saltassem para me ir embora depressa, acabava-se com aquilo, abandonada, há muito, a ideia de me escapar com o Artur para Paris. Ficava meio mundo a falar que eu me “cortara”, e sei lá se o Salazar não era eterno e nunca mais eu cá voltaria. Minha mãe, sabe Deus como, lá ia aguentando, e havia ali, entre nós, um penoso jogo de disfarçar sentimentos, que chegava a ser desumano.

    Mas, quando chegou a hora de me despedir, o mundo desmoronou-se. Julguei mesmo que se encerraria o sofrimento: ficaríamos esticados pelo fatalismo da síncope e o Niassa rumaria a Angola com menos um camuflado. Penso ter escutado o comboio – é melhor usarmos a ironia porque, às vezes, nestas coisas de contos, não se sabe como encurtar a volta a situações intoleráveis –, e lá me despeguei para o carro de praça, que me esperava. Não ouvi mais nada, ou não quiz ouvir. Quando ia na recta, antes da curva que tapava a vista da casa onde nasci, olhei para trás, dei um grito e chamei nomes do piorio aos donos da Nação; o chaufer riu-se, disse-me que , com ele, quando foi para a Guiné, tiveram que o ir buscar ao café, e rematou: « Sr. Gilberto, deixe lá; o senhor vai como oficial, eu fui como soldado. » De repente, não entendi onde estava a vantagem, mas conversar era o que menos me apetecia.

    Eu estava habituado a viajar, de comboio, da Régua para o Porto, e vice-versa, mas daquela vez o pouca-terra parecia nunca mais chegar. Pedi a todos os santos para que o Gualter estivesse à minha espera no Embaixador, e abri a mala para tirar um livro dos que levava, juntamente com alguma roupa. Calhou-me o Fio da Navalha. A primeira coisa que li foi a citação introdutória: «DIFÍCIL É ANDAR SOBRE O AGUÇADO FIO DE UMA NAVALHA; É ÁRDUO, DIZEM OS SÁBIOS, É O CAMINHO DA SALVAÇÃO.» Havia de saber quem era o Katha – Upanishad, mas só quando, e se, acabasse a comissão. Foi mais o tempo em que espraiei os olhos pela paisagem do que pelo romance de Maugham, o que me agravou o estado de alma. Imaginei minha mãe, vestida de luto, deitada sobre a cama, com a Laurinda a confortá-la; a minha aldeia, de caminhos e casas sem água e sem luz, com a fome à espreita nos cardenhos dos cavadores, as crianças sem culpa da injustiça dos adultos. Deixaria o meu país sem uma pinga de progresso, triste e desolado, cheio de bufos.- até , se calhar, o velho que se sentava ao meu lado -, uma terra sem uma disparidade na côr, tudo cinzento, até as palavras eram sempre as mesmas, o único contrário era a morte. Lembro-me que enxuguei os olhos, na paragem em Penafiel, quando vi, à janela, uma velhinha, de lenço preto na cabeça, subir com dificuldade para uma carruagem das traseiras. Ali ia eu, adolescente feito à pressa atirador de infantaria, para uma guerra que a teimosia de um ditador velho e de falsete, sem filhos e sem carinhos, transformara em destino patriótico. Os campos, ao longe, cumpriam, na nostalgia do abandono, o calendário primaveril: os rebentos pascais, com as maias em saliência.

    Mal o comboio parou em S. Bento, corri como um desalmado, de mala na mão, fazendo uso dos quinze meses de tropa, receoso que o meu amigo já tivesse ido com o pai para Lisboa. Pedi ao engraxador que guardasse a mala, com a promessa de que depois me limparia os sapatos, subi as escadas para o primeiro andar, onde alguma  gente já comia, e só nos bilhares é que o encontrei, encostado a uma janela a ver uma partida de snooker. Fazíamos a festa do costume, quando ele me atirou: «Consegui uma baixa no Hospital Militar. Vou para lá amanhã.» Levei um murro na boca do estômago; aquilo soube-me a traição. Toda a gente se tentava safar, inventando pés chatos ou úlceras repentinas, até água gelada deitavam nos ouvidos para criar ou agravar uma otite, mas isso era mais naqueles que pagavam bons cabritos; ignorava que ele fizesse parte desse esquema, e, para disfarçar, pedi-lhe que me arranjasse uma baixa também. Fomos comer umas tripas à Flor do Congregados, contou-me como o pai se mexera e das esperanças que tinha de ir para os Serviços Auxiliares. Ficou de me escrever ou telefonar para contar como lhe correra a patranha.

    No Foguete, a pensar no golpe do Gualter, dei por mim a inebriar-me com o meu heroísmo e, para ser franco,perpassou por mim uma excitação de bandeira ao vento. Por meados de Aveiro, adormeci, ajudado pelo feijão e pelo fino. Em Santa Apolónia, consultadas as horas, hesitei entre ir para o Cais do Sodré ou para a Amadora. A mala das primeiras necessidades determinou a minha recolha decente, matando o tempo na conversa de sala numa messe quase vazia , com a televisão a repetir o Aqui há fantasmas e a emissora nacional a transmitir um Serão para trabalhadores.

    Passadas que foram três semanas, já só de ordem unida para reforçar o espírito de corpo, o batalhão estava na Rocha do Conde de Óbidos, disperso com os familiares, numa algazarra ensurdecedora, enquanto não recebia ordem para formar. Eu fazia parte dos que não tinha compromissos desses, assim o pedira. Sem dormir e cheio de café queria que o embarque acelerasse para aproveitar o balanço do Niassa; resolveria dois problemas: não assistiria à despedida dos lenços, e dos gritos, e dos gemidos, e dos desmaios e o sono ficaria em dia ou em noite. Estava a conversar, já não me recordo com quem, quando me baterem nas costas. Virei-me, repentinamente, não fosse o capitão da minha companhia, quando caí nos braços do Gualter. Reparei que, ou estava com uma bebedeira ou louco, as lágrimas cobriam-lhe as faces, «Gilberto, parto daqui a oito dias para a Guiné. Aqueles filhos ...», balbuciou, sempre agarrado a mim. Percebi, então, que a armadura por mim inventada para aquela ocasião estava a derreter-se, provocando-me queimaduras de muitos graus. Toques de clarim e vozes de comando repercutiram no bruá reinante que, a pouco, se esbatia. Sem saber como proceder, apertei-o mais, apressadamente, os diques rebentaram-me, e senti-me verdadeiramente UM HOMEM.
    - M. Nogueira Borges*, Porto 23/7/10, para ForEver PEMBA/Escritos do Douro 2010. Atualizado em Outubro de 2012.
    • M. Nogueira Borges no "Escritos do Douro" e no "ForEver PEMBA"
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    9/08/10

    O ARREPENDIDO

    Era uma vez um homem nascido de uma barriga de fome. A parteira da aldeia dera-lhe a primeira palmada e lavara-o num alguidar de barro. Cresceu descalço, de calções rachados no cu, comeu as azedas dos caminhos, fez saltar as pinhas na lareira, dormiu entre mantas de vindima, brincou no quelho com as galinhas, limpou o ranho às folhas das videiras, comeu cachos verdes escondido nas sombras de Agosto, aprendeu a tabuada e a escrever o nome com as mãos estendidas para a palmatória, jogou o monte e o sete e meio no adro da Igreja e chegou a tocar o sino para as missas de domingo.

    Nos socalcos, conheceu a enxada da cava, o ferro dos saibramentos, o peso dos pulverizadores, a moderação da espampa e o carrego dos cestos nas fainas de Outubro. Nos terreiros de poeira, ou de lama, namorou com os olhos e com os lábios, dançou nos leilões, embebedou-se ao desafio, mostrou a navalha de ponta e mola, gabou-se de valentias diante de lobisomens nos Quatro Caminhos e das conquistas no Socorro e nos Remédios.

    Os ralhos da Mãe e os rezingares constantes do Pai faziam-no olhar para o fundo do vale, onde a estrada, ébria de curvas, lhe sorria a evasão. Farto de brigas, da meia sardinha e um naco de pão ralão, da água-pé da cava, do pulverizador do sulfato e dos cestos atestados de uvas, abalou.

    Ainda o sol não arreganhara os dentes a uma lua mal talhada, sem mala ou embrulho, meteu-se a caminho, acalentando os passos da fuga. Na vila ribeirinha ripou os tostões do bolso e tomou o comboio que o levaria à cidade grande. Ruminou sonhos de fato novo, raparigas para apalpar e possuir em becos escuros, filmes de mamas ao  léu, Cafés de gente fina, futebol em Estádios maiores do que a sua terra, ruas compridas cheias de gente.

    O Revisor pediu-lhe o bilhete com uma voz de alicate. O rio, à sua esquerda, acompanhava-o, mas não era o mesmo que ele conhecia. O seu era manso e dava-lhe peixes para fritar; na sua borda, havia uma barraca onde, nas noites de Verão, adormecia com o seu deslizar como uma brisa de arvoredo. Mesmo nos Invernos em que ele galgava vinhas e transformava as ruas em canais, gostava de ouvir a água ali mesmo à beirinha, no cimo das rampas, sentir-lhe o cheiro a barro, aquele jogo de sobe e desce numa intimidade de risco e de estranheza. Quando ele regressava ao seu lugar, abandonando lama e entulho, partia-se-lhe o coração, desiludido com uma coisa tão linda ser capaz de deixar tanta tristeza. O rio que agora via não tinha fragas à mostra, era espesso e escuro, espremido por gargantas montanhosas e margens de lodos ondulantes; só os laranjais e o casario que trepavam até ao céu o alegravam.

    Chegado à cidade, um bruá, sem origem e sem dono, esmurrou-o de espanto. Encostou-se ao varandim exterior, defronte das portas da Estação, entreteve-se a ver as saídas e as entradas, virou-se ao contrário para se rir com tantos carros a quererem passar ao mesmo tempo, como as poedeiras da Mãe à bulha por um grão, e aventurou-se, precavido, desconfiado de uma cilada.

    A cidade do sonho era a confusão das gentes, que, de embrulhos nas mãos, corriam como se os tivessem roubado e fugissem, esbaforidas, de uma perseguição; gesticulavam, berravam, empurravam, cuspiam no chão e para o ar, gritavam de punhos erguidos ao mando de alto-falantes que esganiçavam palavras que ele nem percebia; pisavam os jardins, deitavam papeis para os pés e para os cantos. A cidade da lenda era um asilo de aleijados e cegos estendidos nos passeios, grupos de velhos encostados nas esquinas a falarem de futebol e de política ou sentados na solidão de bancos de praças despidas de árvores feitos lagartos ao sol; corpos jovens com caras gastas à espreita de carteiras distraídas; mulheres, de chumaços nos peitos, nas ruas das quinquilharias, a vomitarem palavrões de sexo estragado; rostos enfiados em máscaras a falarem sozinhos, rindo sozinhos, gesticulando sozinhos; loucos, de barbas desprezadas, a darem vivas a Reis de que nunca ouvira falar; velhas andrajosas, de cabelos encodeados, sapatos rotos e bocas sem dentes, sem um riso, sem uma mão de carícia, sem uma boca de ternura; crianças endurecidas por olhos de revolta e de escárnio, de dor e de desprezo, esticando os braços em busca de uma esmola como quem pede desculpa.

    Não precisou de se afastar muito. Bastou-lhe subir e descer duas ou três ruas, dar a uma praça com uma estátua de um cavalo de perna alçada e um homem (devia ser alguém importante) em cima a segurar a rédea, para compreender que se enganara na ilusão. Olhou para o alto: o céu pintava-se de ferro velho. Não respirava como na sua aldeia, não ouvia um choro de criança a ecoar nos montes, sentia-se preso, e lá estava a torre da Estação com o relógio a marcar o tempo. Meteu as mãos nos bolsos, contou o dinheiro, comprou um bilhete de regresso, foi a uma taberna, logo ali ao lado, comer uma posta de peixe frito, bebeu uma taça de branco e voltou aos socalcos da sua terra.
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no Blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

    7/31/13

    SEM REMORSO

    Ia com os filhos pelas mãos naquela tarde limpa de Setembro. Ainda era Verão e a cidade estava uma desordem. Os carros atrapalhavam-se, as pessoas amontoavam-se, as vozes confundiam-se. Não tinha para onde ir. As praias, sem nortadas, ficavam longe. Os filhos iam-lhe pedir balões e bolas de berlim; talvez, quem sabe, legos e bonecas; ou, até, quisessem ir ver a Pantera Cor de Rosa no cinema da Praça.

    A cidade era uma serra cimentada, de sobe e desce, muitos ruídos e cheiros. As mãos suavam. Havia carros que chispavam a arrancarem com ódio nos pneus. Por isso suava; o medo faz suar. As montras tinham saldos, coisas desejadas por quem anda sempre com a mesma roupa e a mesma fome das coisas. Estava calor, os filhos pediram água. Entraram num snack-bar e sentaram-se num canto. A filha bateu-lhe com a mão: «Já viste aquela mulher com as pernas à mostra?»; «Já.», abreviou. Pediu dois refrigerantes para os três. Contou o troco, contava sempre o troco. «Não quereis um bolo?», perguntou; «Então, tu é que sabes.», responderam. Comprou dois bolos com os trocos, o maldito tanto vem como vai. Cá fora as pessoas espionavam-se. Os gigolos encostavam-se às portas das boutiques, despiam as mulheres, mastigavam pastilha elástica ou fumavam para o ar. Não era uma cidade americana ou talvez fosse. As cidades já não têm personalidade. Pedintes, com as próteses ao sol, choramingavam esmolas; cegos tocavam acordeon e batiam no chão com as bengalas metálicas. Não era uma cidade africana ou talvez fosse. As cidades são, cada vez mais, o fim do mundo, por isso elas se povoam, à noite, de fantasmas, que os que trabalham de dia escondem-se nos dormitórios das periferias. Vendedores de banha da cobra impingiam tudo, desde fios de ouro a duzentos escudos a espremedores de laranjas a dez. Não era uma cidade persa ou talvez fosse. Todas as cidades têm a confusão institucionalizada. Às paredes colavam-se palavras de raiva com símbolos em volta, carros, com altifalantes, cuspiam frases sem sentido, voavam pelas ruas com asas de bandeiras coloridas; havia quem acenasse ou fizesse manguitos. Um pouco à frente, as pessoas esmurravam-se, não sabiam em quem batiam, nelas próprias ou no rancor que as dilacerava. Os filhos quiseram saber o que era aquilo. «È a falta de amor.», filosofou; «Mas eles não se conhecem....», contrapôs o filho; «Pois não, se se conhecessem abraçavam-se.», enfatizou.

    Era uma cidade de ruas compridas como rectos gigantes, estômagos de úlceras em movimento, úteros rasgados pela violência da pressa, labirintos de vigaristas e proxenetas. As ruas da cidade são a revolta de quem trabalha, o tédio do desempregado, o ócio dos desocupados; são os consultórios das doenças, os escarros da bronquite e da má educação, a sujeira da demagogia.

    (Se tu fosses vivo, meu Avô, os meus filhos andariam contigo. Não precisarias de bengala. Eles seriam a tua esperança para te agarrares à vida. Seriam a minha gratidão por te lembrares de mim e, portanto, deles. Recordo-te, meu Avô inesquecível, com os meus filhos presos às minhas mãos, aquelas mãos que tu agarravas sem poderes falar, mal adivinhaste a morte naquele dia em que caíste à cama para nunca mais te levantares. Recordo-te pelas vindimas com as rogas a cantarem e a dançarem a chula, as concertinas pelos caminhos da nossa aldeia, os ferrinhos e os bombos nas pousas da meia noite. As vindimas agora são de empreitada como quem ajusta um muro de pedra, uma pintadela de oca nas paredes da casa, um esmalte no portão; não têm alegria nem cheiro, morreram contigo; os lagares servem para guardar tralha que se não usa mas não se deita fora, que, apesar de tudo, ainda há os sabem que quem guarda tem. Por que me deixaste tão cedo? Não viveste até à minha primeira barba? Lembro-me da tua serenidade à vaidade alheia e da tua firmeza ao desperdício; da tua quinta enorme como um convento de ordem religiosa com aqueles pomares, aquelas matas e aquelas vinhas, aqueles tanques e aquelas fontes, aquela taça repleta de peixes de várias cores, aquelas tílias com troncos de séculos e aqueles estábulos de estrume. Recordo-me de tudo porque eras tu que me davas o espaço e o tempo. Deixaste-me nesta balbúrdia em que conto um outro espaço e um diferente tempo para chegar junto de ti).

    «Que tens nos olhos?...», notou-lhe a filha; «São as lentes que não devem estar bem, o sol é forte e põe-me os olhos vermelhos.», desenvencilhou-se. Comprou dois balões, encheu-os até à saliva, largou-os. Subiram à altura dos prédios, para cima deles, para o desaparecimento. As pessoas iam e vinham num ió-ió mole e denso. Um ídolo de futebol antigo despertou a curiosidade: nos olhos um vazio de aplausos, no andar o jeito arqueado que lhe ficou das fintas dominicais, no rosto as rugas da velhice sem exercício; no seu todo uma frustração de quem só presta para publicidade. Os bancos já estavam encerrados, o sol enfraquecera, as paragens dos autocarros amontoavam-se de bocas mudas.

    Ia com os filhos pelas mãos certo de que um dia eles se desprenderiam como os balões, se esqueceriam dele, arquivando-o num Lar qualquer para morrer de velho e de solidão. Talvez, mas o remorso não seria seu.

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado em 12 de Março de 2011 (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Convite e informações aqui.
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012. A imagem ilustrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada para este blogue e poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    12/27/10

    O SORRISO DO PIRES

     (Clique na imagem para ampliar)

    No arredor de Porto Amélia, na confluência da picada para Montepuez, ficava o polígono do Exército, que, nesse ano de 68, juntava, entre outros, o comando do sector e a companhia de caçadores com guarnição metropolitana e provincial.

    O pessoal, depois do jantar, juntava-se, na esplanada da messe, a conversar, a jogar o xadrez, as damas, a sueca ou os dados. Muitos davam uma volta à Jerónimo Romero para bebericar umas cervejas frescas nos seus dois ou três bares. Esta era a maneira de fugir àquele ambiente soturno, qual plataforma de logística bélica, com chegadas e partidas de Unimogues, Berlietes e Jipes despejando camuflados poeirentos. Vinham do mato com a pressa de um banho e de um prato quente numa mesa, debaixo da qual pudessem meter as pernas. Traziam olhares esgazeados, como se fugissem de um susto; rugas precoces de cansaço repisado, como se toda a angústia do mundo lhes encolhesse a pele. Havia noites em que a sala tinha mais comensais forasteiros que residentes. Era vê-los, estômagos compostos, a dirigirem-se para os terreiros das tembas ou para as cubas-livres e uísques na sala do barco, se fosse dia de S.Vapor, e que, acostado no minúsculo cais, noite fora, carregaria algodão. Os que regressavam aos seus destacamentos disfarçavam a contrariedade com gargalhadas desvirtuadas ou afivelavam o rosto, tentando esconder a interrogação futura – os seus olhares tinham a sombra da dúvida, a antecipação do sofrimento.

    João, daquela vez, ia sozinho. Não lhe apetecia trocar palavra. Sentia-se sem préstimo. A fala era consigo, num turbilhão silencioso. A informação chegara por mensagem relâmpago e secreta, mas, instantes passados, já todo o sector a conhecia. O Pires morrera na Serra Mapé quando descia para Macomia, fuzileiros já incorporados após nomadização. Ficaram a olhar uns para os outros, à espera de que alguém contestasse a notícia. Então ele oferecera-se, todo contente, para ir buscar alguns dos seus amigos de infância, e morrera? Assim: «Comunica-se a morte em combate do...». Como? Em combate? Mas ele fora só ali abraçar os seus antigos companheiros de escola, que não via há muitos meses, e vinha já. Tocava-o um aturdimento sem compreensão, uma amarga irracionalidade, qual mudez do pensamento. Quando, ao escurecer,a patrulha regressou, com o furriel alentejano enfiado num saco de dormir, as lágrimas saltaram como balas de revolta, bocas fechadas nas caras de cera. Uns devem ter pensado «Olha do que me safei.», outros «Que porcaria de destino este.». O comandante, habituado, ou fingindo que sim, chamou o soldado cangalheiro para transformar o Pires num soldadinho de chumbo à espera de um barco ou avião.

    Atravessou a avenida com passeios de terra vermelha, fumando LM, sem se perceber. Subiu à esquerda, passou pelo palácio do governador com dois sipaios, envoltos em capas de lona, pasmados à entrada. Um pouco acima, debaixo de mangueiras gigantes, ficava a casa do inspector da pide, lendo, talvez, sob a luz coada de um candeeiro de pau preto, os relatórios da subversão; ao fundo, rodeada de acácias rubras, a casa do seu conterrâneo Jaime, onde matava a fome da comida das suas terras. Desceu, encurtando caminho pelas escadas, que ligavam a alta à baixa da pequena urbe, e no Pólo Sul pediu uma laurentina.Como era possível morrer quando a vida mal começava, sem pai nem mãe saberem, uma razão a justificar a imolação? Levantou-se, descendo a Rampa, passou pelo barracão dos monhés, anunciando uma fita indiana, e parou no muro sobranceiro ao Índico, que reflectia a prata da lua. À sua direita, numa restinga, o caniço do Paquitequete preparava-se para fazer de lupanar nocturno.

    Subindo, agora, as dezenas de escadas, avizinhou-se dos edifícios administrativos, ouviu os ecos dos futebolistas a treinarem, no Desportivo, sob uns holofotes, lançando mais sombras que luz, foi falar com o Eustácio do Niassa, pediu-lhe o Land-Rover e desarvorou para a praia. A balalaica cacimbada, com o andamento, acentuava-lhe a friura. Era em Setembro e as noites enovoavam de humidade. O Pires não riria mais consigo. Contava-lhe anedotas alentejanas, vingando sempre o escárneo tradicional. Estacou junto à casa em que, aos domingos, a oficialidade se juntava. Buzinou e clamou pelo Gabriel Mazumbo. Pediu-lhe umas barbatanas e uma toalha. «Chi!, alfere, vai nadar,gora?!...» Sim o alferes era doido, estava “apanhado”, ia lavar a alma nas águas salgadas; ia purificar-se do nojo do mundo que só vomitava o sangue da morte, dos grandes sacanas que usavam o mando para chantagiar a obediência, era uma raça maldita de eunucos que discutia as fardas sem nunca as ter vestido. «Patrão, n´guenta frio!...» Parece-te, irmão negro. Tu também aguentas tudo, até as maluquices de um militar branco que não te deixa dormir e desinquieta-te da sonolência da fogueira de capim. Estou a ferver, meu amigo, uma caldeira queimando-me a consciência de que existo, mas sou um cobarde que não sai do rebanho, a ver se nenhuma vergastada do “pastor“ me quebra os ossos, me leva ao açougue.

    Agasalhado por um dolmen, que o mainato retirou de um prego da parede, assentou-se num degrau. Fez-lhe sinal para vir para a sua beira. Ofereceu-lhe um cigarro e puseram-se os dois a fumar. Era tão serena aquela baía, desenhada em meia lua, as espumas das ondas como carícias de sensualidade! Ao longe não se erguiam adamastores tétricos ou gritos de afogados. Como eram belas as noites de África! Como era obsceno morrer-se num palco assim! Por que não tinha a terra condições para se transformar num céu? A natureza conversava entre murmúrios de amor, namorando-se e amando-se na concretização das paixões eternas, ciciando juras que só ela entendia.
    Continua...
    - Por M. Nogueira Borges*, Porto, 15/6/10.
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato

    3/16/11

    AS BOLINHAS

    A praia está, ainda, praticamente deserta. É uma manhã limpa com um sol já acariciante e uma saborosa envolvência de maresia. Aqui também há classes: de um lado, a área concessionada; do outro, a zona dos chapéus de sol. Na primeira, estão montadas as sombrinhas com as cadeiras reclináveis alugadas por bom dinheiro; na segunda, o preço é o carrego que cada um está disposto a transportar. Escolho, nesta, um espaço que não tenha de alterar pela preia-mar, espeto o guarda-sol, espalho as toalhas a delimitar território, liberto-me dos chinelos e da camisa. Vou até à orla, viro-lhe as costas, de frente para os prédios gigantes que se erguem como insultos de ganância, e comprazo-me com a babugem da ligeira ondulação a lamber-me os pés. As construções tipo legos, de traça usurária e sem decoro, são depósitos de corpos que aqui fazem a vingança quinzenal dos nevoeiros e das nortadas; alguém lhe chamaria arquitectura dos trezentos para dar lucros de boutique de shopping.

    Lentamente, o areal vai-se enchendo. Uns, arrastando sobejos de sono, estendem-se, imediatamente, como sardões mal despertados; outros, esbaforidos pelo peso das tralhas, limpam o suor e, antes de se acomodarem, distribuem tabefes pela rezinguice infantil. Há de tudo: burlescos com óculos de esquiador, tias das revistas com panons transparentes e cosméticas burundangas, maternidades deliciosas que a tudo acodem sem um azedume, cabelos brancos que ainda não desistiram de usufruir a vida e transmiti-la à descendência, leitores de escrita light e de jornais desportivos, utilizadores de telemóveis com ares de executivos imprescindíveis ou de empresários sempre a facturar, gordas sem vergonha de libertarem as coxas e opostas de linhas geométricas limpando as areias como se fossem formigas.

    Num súbito, a vizinhança da minha toalha inquieta-se: soerguem, uns, os cachaços do areal, despertam, outros, para uma montra apelativa, sorriem, elas, num jeito de brejeirice a dissolver o desdém, lançam, os mais entradotes, olhares nostálgicos. A aparição justificava o sobressalto. Há mulheres tão espectaculares que chegam a ser uma ofensa à inteligência: alta, sem exageros basquetebolísticos, cabelos longos, cor de libra Vitória, espalhados e deslizantes pelos ombros como sedalina, óculos de voleibol de praia numas faces trigueiras decoradas por duas argolas ciganas, busto voluntarioso de mamilos agulheados e defendidos por uma t-shirt justa que descia até a meio das coxas torneadas a fazer de mini-saia generosa, fita vermelha no tornozelo esquerdo que lhe dava uma ar jamaicano de prospecto turístico. O seu acompanhante, de paciência na cara e peso nas mãos, arvorava uma docilidade canina, ornamentado com um bordão no peito e um relógio todo o terreno. Enquanto ela ajeitava, a tiracolo, uma carteira tipo saco de flores tropicais, ele transportava um guarda-sol, duas cadeiras e uma bolsa de lona que lhe deve ter restado da guerra colonial. A beldade esticou uma enorme toalha rosa estampada com palmeiras, sentou-se, atirou, num desafio, a cabeça para trás, retirou os óculos (os olhos cintilaram esverdeados), passou os indicadores metódicos pelas sobrancelhas, tirou a t-shirt, e os seios, como molas, estremeceram de liberdade, numa provocação ao redondel, até se deterem firmes como dois ponteagudos marmelos. «Quem me dera ser bebé!», disse uma voz, «Cala-te, palhaço!», respondeu outra. O homem, depois de arranjado o poiso, pegou no tubo do creme e, num silêncio ruminante, começou a untá-la. Ela não falava, só lhe indicava com as mãos os locais onde queria o creme: mais nos ombros e nas costas. A cara, os mamilos, os braços e as pernas foi trabalho dela, em pormenor demorado. Terminado este, ergueu-se e foi até junto da ondulação lavar as mãos na areia. O seu andar era sensual como o corpo, com tudo no sítio, sem um acrescento ou uma diminuição, um fio dental a relevar umas nádegas afoitas e seguras, a respirar sexo por todos os poros. Tinha, todavia, um aspecto de súcuba, olhar esguelhado, que acompanhava sempre com um maneio da cabeça e das mãos a fingir que tirava as madeixas dos olhos. Fumava desalmadamente, soprando, pelo canto da boca, o fumo para cima, num trejeito de rufia de esquina, retirando as areias das pernas como se catasse piolhos. Estendida, de cigarro entre os dedos, puxou o guarda-sol para lhe aumentar a sombra e retirá-la ao acompanhante que continuou impávido diante das notícias da Bola.

    Ao longe, por entre o amontoado humano, nascem os pregões dos vendedores ambulantes. Trazem, em cada braço, caixas de pasteis que propalam consoante a força das suas gargantas e o seu engenho publicitário. Uns, são incisivos: «Bolinhas!»; outros, mais enfeitados: «Boliiiiiinhaaaas!»; ainda outros, mais secos: «Boli!»; e os que soletram: «Há bolinhas com creme e sem creme! Há pasteis de amêndoa!» Os rapazes, ao chamamento, pousam os caixotes e distribuem bolinhas a torto e a direito a cem escudos cada uma. O calor vai apertando. As pessoas renovam unturas, passam os jornais a pente fino, também há quem leia Cem Anos de Solidão, estudantes preparam a segunda chamada, senhoras relaxam a fazer renda, discutem-se os milhões das transferências futebolísticas, arrematam-se as últimas amêijoas junto dos barcos dos pescadores.

    Um Cabo de Mar e um Polícia, num roldão de apitos e vozes alteradas, investem pela praia num despropósito que confunde toda a habitualidade. Os banhistas espantam-se, pegam nas toalhas e interrogam-se, olham para o mar a ver se alguém está em dificuldade, o que será e não será, até se perceber, depois, que perseguem um vendedor em qualquer ilegalidade. Um dos cívicos, passo ligeiro, lança: «Àquele já lhe vou tirar as bolinhas!» Uma senhora, que fazia malha há uma eternidade e queria os netos sempre à sua volta, levantou-se da sua cadeirinha picada por um alfinete, deixou cair os óculos, e exclamou anelante: «Ó Senhor Guarda! O Senhor tem coragem de tirar as bolinhas ao rapazinho?!» O Senhor Guarda olhou-a, riu-se bondoso e prosseguiu o seu caminho, deixando um magote de risos encolhidos. A Avozinha fulminou-os, atrapalhou um sorriso atenuante, sentou-se, retomou a malha e afivelou a cara da boa fé injustiçada, enquanto a aparição, de mamas ao léu, levantava a juba e desenhava um trejeito malhadiço a lembrar uma preguiça sardónica.
    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    2/08/11

    OS FRONTEIRÓMETROS - 1

    Quando, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, lhe entregaram um impresso para indicar três Quartéis onde gostaria de ser colocado, depois de terminado o Curso de Oficiais Milicianos, o soldado cadete João coçou a cabeça e pediu para entregar aquele no dia seguinte. De noite, na caserna, depois da instrução nocturna, enquanto o sono não se apresentava, magicou no caso. Tinham de ser terras onde houvesse Destacamentos de Infantaria. Porto foi logo a sua prioridade. De lá tinha sido arrancado, o curso de Economia no início, e gostaria de regressar à velha cidade granítica, mesmo que por escasso tempo, pois, sabia-o, mais tarde ou mais cedo, abalaria, num barco qualquer, para uma frente da guerra colonial. Era uma circunstância sentimental, uma maneira de regressar aos velhos lugares, embora com uma farda. A segunda hipótese levou-o a Vila Real, onde, em tempos, no 13, o seu Pai cumprira a obrigatória servidão militar. Seria interessante pelo simbolismo e, como ficava a escassos quilómetros de casa, podia, até, ir e vir todos dias, excepto aqueles em que a Ordem de Serviço o colocasse na escala. Mais difícil foi acertar com a terceira opção. Excluída Lamego, não coadunável pela sua especificidade, além de não estar fadado para Ranger ou travessias de rappel, sobrou-lhe Chaves. Nesta cidade raiana, na década de sessenta, quadra em que esta narração decorre, localizava-se o Batalhão de Caçadores Especiais 10, com o epíteto de fronteiros de Chaves, sempre excelentes e valorosos, unidade com fama de dura e rigor militarista, tanto na corporação castrense como nas margens da sociedade civil que, de algum modo, lá tiveram ou tinham familiares. João, também, não o ignorava, mas devia completar o quadro das três preferências, sempre confiante que, se não lhe satisfizessem a primeira, a segunda, ao menos, não lha recusariam. Com essa esperança fez as malas e partiu para casa, mal lhe deram a bicha de Aspirante, a aguardar futura ordem de marcha. Pouquíssimos dias depois, com um indisfarçável sorriso e sem espanto – que, das coisas militares, ele já de nada se admirava - , o carteiro entregou-lhe uma carta onde vinha a convocatória do Exército para se apresentar em Chaves.

    Numa reluzente manhã domingueira de Julho do ano de sessenta e seis, ao fundo de uma frondosa Avenida, em meia-lua espaçosa, viu o seu novo destino, admirando-se por, logo à primeira vista, dele ter gostado. Saiu do automóvel emprestado pelo Pai, correspondendo, ufano, à apresentação de armas do sentinela, e solicitou esclarecimentos ao Sargento da Guarda. Se pelo brilho do dia, pelo descanso da incógnita acabada, ou a frescura do edifício, foi satisfeito que estacionou o carro no parque, fez as apresentações ao Oficial de Dia, arranjou quarto, pousou a mala e percorreu, sozinho, as divisões da sua nova casa. O Quartel, reverberando ao sol, fazia-lhe esquecer a soturnidade conventual da Escola Mafrense, que, em depósito de meio ano, sempre lhe lembrara penitências de castrados fradescos, cumprindo, envoltos na escuridão, martirológios irracionais. Agora tinha, apesar da sua condição de milícia forçado, o calor e a brancura de um espaço que o aprazava. Mal ele sabia, infante ingénuo e generoso, que dentro daqueles muros, com um punhado de iguais, cozeria, no seu mais feliz período militar, o alimento puro e belo da amizade perdurável.

    Em posição altaneira à cidade, como se velasse pelas suas gentes, costas defendidas pela Serra Amarela que se estendia, numa esquerda longínqua, para se grudar à cordilheira Castelhana, o Batalhão tinha uma ampla Porta de Armas, acedendo-se ao Comando e respectiva Messe de Oficiais através de uma escadaria bordejada por canteiros de verdura ou por dois curvilíneos arruamentos empedrados subindo ligeiramente. Atrás daquele, uma enorme Parada, impecavelmente limpa, com as casernas laterais, e, no cimo de uma pequena elevação cimentada, o Refeitório das Praças com a Messe de Sargentos ao lado. Depois do almoço, João desfardou-se e resolveu dar uma volta pela velha urbe onde Trajano deixara história. A apresentação ao Comandante da Unidade, dos Aspirantes esperados, seria feita na manhã seguinte, assim como a atribuição das tarefas futuras. Desceu a pé a Avenida que subira de manhã; passou no largo, onde, todos os anos, se amontoavam os feirantes da festa dos Santos; desaguou no jardim do Tabolado, em frente ao Liceu, e entrou no Aurora. Sentou-se, pediu um café, mirou e remirou o ambiente. Numa mesa do canto, escutado por uma tertúlia de catecúmenos, viu Nadir Afonso, que conhecia dos suplementos literários, de barbas grisalhas, provavelmente em vilegiatura flaviense. Reparando, descuidadamente, num jornal abandonado em cima do balcão, levantou-se, pegou-o, perguntou «Posso?», ressentou-se e, afastando a chávena, abriu-o sobre a pequena mesa redonda: era o Notícias do Tâmega. Sobre ele se debruçou, fingindo compenetrada inculca, mas reparando sempre em quem saía ou entrava. Deixou-se estar um bom bocado, pernas cruzadas, queimando cigarros. Eram bonitas as raparigas de Chaves... Depois, desceu a Rua de Santo António, virou à direita para as Termas, visitou a zona dos balneários cheia de aquistas que se amornavam nos bancos a fazer horas para a ração da água, retrocedeu para a Ponte Romana, sob a qual um Tâmega estival corria serenamente para a lonjura do mar, e reiniciou o trajecto ao contrário junto do posto da PVT. Os domingos não são bons dias para se perceber uma cidade, ausentes as rotinas, as surpresas e o nervosismo do quotidiano utilitário, mas pareceu-lhe – confirmado pelos meses seguintes - que Chaves era uma cidadezinha aconchegada, de conhecidas vizinhanças, limitada pelas faldas dos serros circundantes, onde, contudo, fervilhava um próspero comércio e um tolerado intercâmbio fronteiriço, um sopro suave e morno de fraternidade embrulhado num orgulho regionalista.

    Quando regressou ao Quartel, deu, num abraço de risos e brados, com o Bandeira, seu antigo companheiro do Brotero, agora reencontrado em outra sorte. Pela noitinha, quanto viam a RTVE na sala da Messe, juntaram-se-lhes, vindos do Porto, entre outros, o Altino e o Ângelo que, feitas as apresentações, vá-se lá saber por que resultado afectivo, logo combinaram ficar no mesmo quarto de quatro camas e que tinha o número doze. João sentia necessidade de partilha, como se procurasse almas gémeas em que confiar. Boa parte da noite passou-se no desenrolar das experiências mútuas, numa pressa de conhecimento que selasse um pacto.
    Continua...

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
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    5/28/10

    OS IGNORADOS

     
    (Clique na imagem para ampliar)

    Falo-vos da África dos matos sem fim,
    Dos ecos perdidos no capim,
    Das picadas vermelhas mas livres,
    Tão livres como a liberdade.
    Em cada curva uma palmeira,
    Em cada lugar uma saudade,
    Em cada sorriso uma clareira
    De brancura e de amizade.

    Falo-vos das noites de encantamento,
    Das queimadas para lá do pensamento,
    Da lua a beijar a baía de Pemba,
    Do batuque e das esteiras na temba
    Onde o meu corpo se satisfazia
    Em outro corpo que, depois, dizia:
    « São cinco quinhentas, patrão! »
    E eu, cá dentro, aqui onde bate o coração,
    Nem sei o que sentia.
    Só sei que, depois, voltava
    Com mais quinhentas na mão,
    Roído pelo tédio e a solidão.

    Falo-vos dos poemas proibidos,
    Alguns esquecidos,
    Outros lembrados
    E agora publicados.

    Falo-vos dos loucos a berrarem no entardecer,
    Das sentinelas a dispararem para a escuridão
    Com o medo aos saltos, na indecisão
    Da manhã que não se sabe se vai nascer.

    Falo-vos dos rios em que lavei o rosto,
    Matei a sede ao sol- posto,
    Gritei que não queria a guerra,
    Mas não desertaria da minha terra.

    Falo-vos da África onde não voltarei
    Para matar a fome das minhas recordações,
    Abraçar os irmãos que deixei
    E lamber as feridas de todas as desilusões.

    Falo-vos da África dos nossos soldados,
    Dos seus sorrisos e dos seus abraços,
    Uns, já mortos, outros, vivos-despedaçados,
    Mas, todos eles, ignorados.

    - Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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    2/09/10

    Aioé !

    (Clique na imagem para ampliar)

    Trago nos olhos a lonjura das savanas e no coração a saudade da inocência.
    Tenho o cérebro a estalar de memórias das picadas vermelhas e nas mãos o cheiro do capim.
    Repercutem-se-me na alma os ruídos das noites de vigia e sua-me o corpo pela angustia do não-regresso.
    Olho o mar.
    É grande, sem tamanho, os rigores do fim do dia a chorarem no horizonte.
    Não tem estradas que me levem à terra morena e já não há Niassas nem Impérios que acompanhem os peixes voadores.
    Da terra morena vêm-me notícias de fome a de guerra como castigo imposto por homens que lutaram só por si.
    O mar não traz os sons de África, nem a fragrância das queimadas ao entardecer.
    Não há lassidão - só lixo - na quietude das areias desertas, e um desapego de víola cigana que geme (ou grita?) para os lados do acampamento onde se fazem cestos com os vimes da solidão.
    Do lado de cá ao mar não há tembas de pó com embondeiros crucificados.
    Nem veredas de acácias rubras ou coqueiros de brincos dourados.
    Não há crianças de sorrisos brancos e olhos doces.
    Nem seduções de batuques em terreiros de flores.
    Nem descobertas de frutos, palhotas de bambu ou almadias com peixes prateados.
    Não há velhos, com cabelos de arame farpado, fumando a liamba do esquecimento, nem velhas de cigarro ao contrário, guardando a cinza como um borralho contra o frio.
    Nem sequer o silêncio das horas sem relógio e raparigas estilhaçando, por entre dentes de raízes da selva, o riso do encantamento.
    África de insondáveis mistérios, terra de fogo e céu de mar, desejos (in)satisfeitos no veludo sensual dos corpos, na virgindade da natureza-primeira, nos apelos distantes do frêmito e da racionalização enlouquecida.
    Manhãs nascidas num espanto tão súbito que o dia chega a parecer uma constância sem penumbra, uma orgia de calor e de suor num mundo de carne despida.
    Do lado de cá do mar não há musas africanas cozinhando a mandioca nas brasas da paciência.
    Nem batinas brancas evangelizando as primaveras da inocência.
    Nem um sol a morrer como se a vida abraçasse a morte num beijo de eternidade.
    Não há, não há mesmo, a melancolia das folhas da selva anunciando - como gotas condensadas num vento funerário - a chegada da reclusão do fim da tarde.
    Aioé! Amigos que deixaram os sonhos nos caminhos vermelhos do sangue, os braços desfeitos nas minas da traição.
    Aioé! Embondeiros de Cabo Delgado, palmares da Zambézia, negras de corpo afeito às noites dos remorsos brancos, batuques de febres enfeitiçadas.
    África: Aioé!
    - Porto, 03/07/04, M. Nogueira Borges - "Miradouro"
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    4/14/10

    CARTA DO LAGO

    É a hora em que a tarde morre por entre as palmeiras que bordejam o lago como uma ilha rodeada de terra. Não se vêem canhoneiras da marinha nem canoas de pescadores negros, só o borbulhar das águas de encontro à palha apodrecida. O ar está parado como a resignação dos homens, vidas adiadas que anseiam o tempo de as refazer. Já nem vigiam, assistem ao escorrer das horas que desejam calmas, para se irem deitar sob as latas ou lerem as revistas que o Movimento Nacional Feminino lhes manda. O fastio derrama-se nas faces e as cartas da sueca quedam-se na mesa de pedra; nenhum vento as leva, nenhuma vontade as usa. No perímetro à volta, capinado há muito, não se distingue a vala, só uma solidão acabrunhante de matar à nascença qualquer riso, que incomoda os nervos de quem desaprendeu o futuro.

    Escrevo-te cheio de cansaço e de suor. Há duas semanas que não saio para a picada. São quinze dias de maior certeza de vida. Tudo está quieto, estranhamente quieto, demasiadamente quieto, de desconfiar. É sempre assim que começam as tempestades. A minha fadiga é mais de dentro. Pareço de chumbo. Às vezes, penso se já não perdi a capacidade de amar. Só que, quando me lembro de ti e as lágrimas me tapam os olhos, sei que estou vivo, com todas as esperanças renovadas, capaz de te fazer desaparecer o luto que vestiste quando parti. Já vi o que nunca imaginei, senti o que ignorava como se sentia, e só temo que me habitue à violência como uma defesa perante os desmandos da loucura. Tenho dias em que sonho morrer, muito velhinho, na curva de um rio, à sombra de árvores frondosas, com os melros a cantarem numa manhã ensolarada. São – vê lá tu – dias escuros, com o cacimbo a tapar a mata, um eco doloroso das cantigas da minha infância quando me perdia nos caminhos dos vinhedos, levando comigo as horas de regresso por ti marcadas. Eram os tempos dos ninhos de pintarroxos, do perfume da erva, da quietude das sestas e do azul do sulfato a confundir-se com a largueza do lugar para onde vão as almas dos justos. Era o tempo da inocência, o melhor tempo de toda a gente.

    Vêm, dos lados do Niassa, uns cheiros muito fortes de capim queimado, arrastados por uma correnteza de fim de dia. O mundo acomoda-se para o sono e a noite não sei que mistérios vai mostrar. O matagal fecha-se. É a hora da fauna. Sente-se vontade de rasgar a clausura, fazer em cacos o espelho da dissimulação, esmagar este pesadelo interrogado: « Alguém se lembrará, um dia, que aqui estive(mos)? »
    - Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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    11/03/10

    UM CONTO ALDEÃO

    Alcandorada sobre o rio Douro, dele recebendo as neblinas matinais ou vespertinas, de casas em maioria ao correr do chão, uma ou outra senhorial, quelhos estreitos e lages lambidas pelo decorrer dos séculos, fica a povoação de São Gonçalo, assim chamada em devoção ao seu padroeiro.

    Quem a conheceu no remoto, e a vê agora, não a imagina na década de cinquenta, anos poucos depois do fim da segunda grande guerra. Era uma aldeia de invernos enlameados e verões poieirentos. As crianças andavam descalças e vestiam calções rasgados no sítio do cu ou da “pilinha“, dividiam as sardinhas por várias bocas e a fome enegrecia-lhes os olhos. Um tempo de miséria; ainda havia quem morresse de tuberculose ou sífilis, e toda a gente se calava porque o medo lhes tolhia a vontade. Estava na sede concelhia quem recebesse os informes que ditavam o futuro de qualquer nascido, e os poucos chamados de ricos, por possuirem terras, não tinham outro remédio senão seguir-lhes os ditames se queriam vindimar, em cada Outubro, as uvas do remedeio. Um “senhor invísivel“ mandava em tudo, sabia de tudo, era como um Deus de carne e osso, que vivia em Lisboa, num palácio guardado; na escola estava com Cristo ao lado, e tinha em cada terra quem o representava. O regedor era o poder civil, o pároco o espiritual.

    S. Gonçalo não fugia a essa tradição, cultivada por uma paciência popular aliada a influências pequeninas, disputadas nos concluios de taberna ou de mesas de cozinha, enquanto se fazia a folha do pessoal. Mas tinha, também, quem se não conformasse com a situação imposta.

    Chamava-se Joaquim Faria da Silva, Quinzinho na oralidade do lugar. Era filho da união de Joaquim da Silva e Berta Faria, acolhida sob o mesmo tecto, mas não legalizada no altar da freguesia. Naquele tempo, essas mancebias – como lhes chamavam as devotas, quase sempre disfarçando com os padres-nossos as invejas de tal relação – eram muito contestadas pela gente das saias negras e opas brancas. A pilhéria feminina ou a gravidade masculina disso faziam proveito, adaptando, com versos chocarreiros, cantigas em moda, entoadas às escâncaras ou às escondidas, conforme eram carentes ou abastados os destinatários, na velho hábito da cobardia humana.

    Quinzinho crescera nesse meio escuro e doentio. Fizera a quarta classe e começara a trabalhar com o pai nas vinhas para um dia ser Feitor. Não estudara mais porque ler e escrever, nesse tempo, já era um curso. Nunca tivera rédea solta, o pai, distante, julgava, assim, impôr-lhe o respeito; só a mãe lhe acariciava o cabelo e lhe satisfazia a boca, e, entre as escassas largas conquistadas, ia brincamdo com os amigos à patela ou às escondidinhas, aos pinhões ou ao rapa nas datas festivas, pontapeavam a bola, no adro da capela, em jogos a mudar aos seis e acabar aos doze, subia os montes à procura de ninhos. Às vezes, sentia-se deslocado, com a sensação de ter nascido em lugar errado. Comprava sempre o jornal que a Mariazinha trazia da vila, e sentia que lhe faltava mais qualquer coisa. Sob o temor paterno e a suavidade materna lá se fez homem para usar sacho e, a ele amparado, comandar os poucos trabalhadores permanentes e os variados eventuais. O mando pragmatizava-lhe a vida, distraía-lhe os anseios e encurtava-lhe os horizontes. Ao chegar a idade de ir à sorte pagou a licença militar, continuando no tirocínio de lavrador. Em certas alturas parecia-lhe ver olhares de soslaio, ignorando se eram de inveja ou de desdém. Ele sabia que o povo era mau, o falatório um eco surdo de alterados silêncios. Ele trabalhava na vinha, andava com os homens pelos socalcos, mas ia ficar com a fortuna que o pai ajuntara. Fora feito no meio dos bardos, consequência de uma paixão carnal entre o senhor rico e a jornaleira pobre. O padre Saraiva desaprovava aquela casa, arredada do santo sacramento do matrimónio. Joaquim da Silva perfilhara-o e a mais não se achava obrigado; desdenhava do carimbo sacerdotal, continuando as compras das bulas, o pagamento da côngrua e fartas ajudas de sacristia. Já vira muito na sua naturalidade e nas aldeias vizinhas. Só falava quem tinha que se lhe dissesse. Julgando aplacar a ira da autoridade eclesial, a mãe e o filho seguiam todos os preceitos da Santa Madre Igreja.

    Tornara-se, ainda jovem e cobiçado pelo mulherio, um mestre no amanho da terra. Acabada a vindima deixava descansar as videiras, mas, em Janeiro, podava-as com carinho, nunca seguindo aqueles que esperavam por Março; o pai sempre lhe dizia «Quem poda em Março é madraço», e neste mês era a primeira cava. Às vezes, em primaveras chuvosas, fazia uma segunda, lá para Agosto, a fazer jus ao ditado «Cava em Agosto enche o tonel de mosto». Não havia trato que lhe escapasse. Era esmerado e um moiro de trabalho. Seguia os vários trâmites agrícolas com a sabedoria de um antigo. Nem a erguida ou a desfolha, a redra ou o sulfato lhe escapavam ao seu rigor. Então, neste último, era piquinhas, preocupava-o o desavinho, o pai falava-lhe algumas vezes dos tempos da filoxera, não se podia descansar do míldio e da maromba que atacavam tanto o moscatel com o malvasia e, até, o alvarelhão. Esquisitava-se na calda boldalesa e usava os pulverizadores as vezes que fossem precisas: olhava para as cepas e radiografava-lhes as necessidades.

    Passou também a fitar as mulheres. Aí, a sua radiografia era inconclusiva. Umas matreiravam o olhar com fosforescências de esganação ou de fantasia, de intrepidez ou embaraço. Ele não era nenhum artista de cinema, mas não se podia deitar fora: de estatura meâ, olhos castanhos numa cara oval, com um ar de madureza precoce, apimentava-o a herança que um dia lhe adornaria o saldo, se a lógica comandava a vida. Nunca se agarrara a nenhuma, cada vez mais convencido de que, o que tivesse de ser, seria.

    Uma manhã, andava com os homens na vinha do Gato, a Mercedes chamou-o do alto do valado, com uma voz esganiçada e sacudindo-se como se a estivessem a picar. De um fôlego se lhe juntou e soube que a mãe tido tido um ataque. Tão violento ele fora que nem tempo deu para chegar o tabuleiro em que a queriam levar ao médico.

    Quinzinho chorou tanto que os seus gritos de espanto e de dor se ouviram nos fundos do vale. A vida acabava-lhe, tudo o que fizera até aí não era real, nada o ajustava ao mundo, um vazio negro e enorme o sugava para um poço de onde não havia retorno. O pai, a quem se agarrava como num vezo fúnebre, deixava cair umas lágrimas e incitava-o à aceitação. O filho é que piorava o amanhã, pouco recebedor dos afectos paternais, habituado ao deleite da mãe, cúmplices os dois do “segredo“ da sua nascença.

    As três mulheres permanentes, que trazia, há anos, ao serviço, é que arranjaram Berta Faria, colheram as flores, desembaraçaram os castiçais com as velas, e trouxeram o Cristo revestido a banho de prata que estava no quarto da falecida. Só depois da chegada do caixão a expuseram na sala de visitas.

    No dia seguinte, Joaquim da Silva, chamado de lado pelo seu compadre Manuel, a quem baptizara três filhos, quase ia fazer companhia à sua “companheira”: o padre recusava-se a fazer o funeral, nem permitia os estandartes das Irmandades, eles não estavam casados pela Igreja, impossível a sua presença. Aquele recompôs-se, meteu pés ao caminho, e disse ao padre Saraiva que ou alterava a decisão ou o “amaldiçoaria“ até à sua morte. O clérigo ainda teve um instante íntimo de hesitação, fez repentinamente algumas contas, mas há preceitos que, mesmo sem humanidade, são capazes de servir de alibi a almas pusilânimes. Quinzinho, quando soube, não acreditou. Impossível tal desfeita. Sua mãe não merecia um castigo daqueles; sempre fora temente a Deus e seguidora da sua Fé. O seu choro, desta vez, tinha um travo de revolta e ingratidão insuportável. Nado e criado no temor reverencial civil e canónico, esqueceu intentos que o enublaram.

    Só passados uns dias decidiu: nunca mais frequentaria a igreja com aquele padre e dele fugiria assim que a distâncuia lhe desse viso. O pai, que já raramente lá fazia poiso, pediu, a todos os santos, vida para lhe fazer o funeral.

    Passados uns meses, estava Quinzinho na bicha do pagamento da décima, sentiu uma mão a bater-lhe no ombro. Era o padre Saraiva. Assopapado, com a vontade dividida em como actuar, deixando prevalecer a educação, disse «Olá, Sr Padre...»; este respondeu: «Não te tenho visto na vinha do Senhor.»; aquele, já com o recibo na mão, e como quem se despede aliviado, retorquiu : «O senhor não a sabe cavar. Voltarei depois de o ensinar na minha vinha da Estrada. Ando lá. Apareça.»

    Quinzinho saltou para o Castanho, e partiu em passo travado.
    - Por M..Nogueira Borges*, 15/07/10 para ForEver PEMBA/Escritos do Douro.
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    3/25/11

    CARTA (IM)PROVÁVEL

    Para uma MÃE... para uma Esposa, para um Irmão(a), para um Familiar... para um Amigo(a):

       Não sei o que queres de mim, diga ou faça. Olho-te para lá dos teus olhos, como se quisesse entrar na tua alma, lembro a tua cara de criança, quando te conheci, sorriso aberto e feliz, e é como se regressasse ao tempo da inocência, ao pensamento limpo, sem nódoas. Tanto quis que a nossa vida se desenrolasse em harmonia, com tudo lindo como o teu rosto! Agora, quando te fixo de lado, para, julgo eu, não te distrair, e te vejo de olhar vazio cravado não sei em quê; essas olheiras fundas que não te desaparecem nem que durmas um dia inteiro; essas rugas, antes da idade delas, que vão da testa à junção dos lábios, outrora vermelhos e sensuais, cujos beijos eram o onírico despertar do desejo; esses teus seios caídos e mirrados, antes redondos e firmes, onde aplaquei os arrebatamentos das noites de excessos; esse teu corpo vibrátil mas sempre pudico, abandonado ao cansaço da satisfação – quando recordo tudo isso não consigo encolher as lágrimas.

       Não sei o que queres de mim, diga ou faça. Ficas calada e quieta, como se eu não te pertencesse, como se tu não me pertencesses, mas eu pertenço-te, pertencemo-nos, não sou do teu sangue, mas sou de ti e teu porque fui de ti e teu na luxúria dos corpos, na franqueza da convivência, que é sempre o desnudar recíproco de tudo o que é, no mais íntimo, nosso. Sessenta e cinco anos dão para criar filhos e netos, para se ser feliz com eles novos e não adormecer a pensar neles, mais velhos, enquanto não chegam a casa. Em quarenta anos de comunhão já não há segredos nem originalidades, tudo se conhece de nós e muito dos outros, tudo foi dito. Monossílabas sons, alguns entendo-os porque uma vida inteira dá para perceber até o imperceptível; mas eu queria que te explicasses, porque era importante conhecer essa tua nova vida, o que se passa dentro de ti, o que sentes, se ainda tens consciência e desejo, se ainda eras capaz de recordar a brasa da nossa paixão, quando lá fora nada interessava, e só na nossa solidão preenchida, no nosso egoísmo compartilhado, nascia o amor, a insaciabilidade, o esquecimento.  Era indispensável que me demonstrasses o que aconteceu ao teu cérebro, à tua alma, aos teus nervos, à tua genica que, de tão grande, me confundia, por vezes, naquilo que eu julgava ser uma fuga de ti. Assim, queda e muda, de quando em quando um esgar, que acho de sofrimento ou de repulsa, sem uma reacção ao meu aperto de mãos, sem um esboço de vontade; assim ao teu lado, parece que não tenho ninguém, que vivo só na companhia de uma defunta por enterrar, um isolamento duplo, que já não sei se estou sozinho ou acompanhado.

       Quem diria, quando nos conhecemos, que uma coisa destas te (nos) iria acontecer! A medicina diz que não tem cura para ti. Vais, então até o coração (ou o cérebro) parar, levar esta vida vegetativa, sem te aperceberes de nada, de quando te dou os comprimidos, a sopa passada ou o leite por um biberão, como quando os filhos eram bebés, sem saberes quem é a enfermeira que me vem ajudar e ensinar a lavar-te, a mudar a algália? Será que não quero que morras? Tenho medo que apodreças, cries pústulas, e o teu espírito fuja pela janela de Agosto? Umas vezes, quando, cavalo enfreado, o desespero me toma, tenho ganas de te deixar, nunca mais ver essa tua cara de esquife, de fatalidade, esse rosto que foi tão belo e, agora, um desenho de mímica. Mas não fujo, lembro-me que podia ser eu no teu lugar, e tu, tenho a certeza, nunca me abandonarias. Para lá de tudo, o nosso amor não merece nenhum abandono, nasceu da atracção fulminante do nosso olhar, consubstanciou-se na posse da carne e na mistura do sangue; é tão forte que, mesmo quando não existirmos, havemos – almas invisíveis – de voar sobre a terra, e os que ficarem saberão que nenhuma memória se sepulta. De noite, quando me deito, apetece-me acordar-te; acaricio as tuas coxas, a tua púbis, subo ao teu ventre, aos teus seios, e é como se um cadáver estivesse a meu lado, só a quentura me diz que ainda existes; arrepio-me de ainda te cobiçar, querer possuir-te até ao fundo de mim, de nós, igual àquelas horas em que, loucamente, nos esmagávamos na sofreguidão. Não te troco nem me lembra de o pensar, falta-me a coragem de te substituir. Para onde foi aquela voracidade de viver que me ajudava a disfarçar os instantes de incerteza? Ver-te de olhos brancos, da côr da tua pele, sem um clarão, um lampejo, breve que seja, um sinal de presença partilhada, é um castigo sem culpa que me estremece de revolta. 

       Lembro-me de quando dávamos banho aos filhos ou íamos a correr com eles para o médico, mal qualquer tosse ou febre nos inquietava o sono ou o instinto. E recordo, muitas vezes, nestas alturas, não sei por que absurda  associação de ideias, quando te vi pela primeira vez! Tinhas umas covinhas na cara, uns olhos de Primavera e um riso de Estio. Escrevia-te cartas incendiadas, chamava-te amorzinho e boneca das minhas brincadeiras. Como passa e se transforma a vida! A porteira do colégio, medrosa, entreabria a porta com um sorriso de adorável cumplicidade, pegava no envelope e dizia-me que era a última vez. Mulher corajosa e amorável, que arriscava, aos olhos tentaculares das freiras, o seu emprego, como se aquele amor clandestino também fosse dela ou imaginasse um semelhante. Nas tardes de domingo seguia-te os passos aonde te levavam as vestes negras. Rias-te às escondidas, tapando a boca com as mãos, a Manuela a dar-te cotoveladas, eu a mandar-te recados pelos olhos, e tu encolhias os ombros, desenhavas um coração com os dedos e « Amo-te » com os lábios. Meu Deus!, como se trituram sonhos, se desfazem previsões! Olho as paredes, e apetece-me deitar fora as fotografias em que estamos, esmagá-las sob os meus pés, queimá-las na lareira, arrasar as nossas lembranças, para que nada reste do antigo e que me ofende quando o comparo à idade de hoje. Nem quando te vêm visitar e me misturo, nesse intervalo, no movimento das ruas para não me desabituar do Mundo, te esqueço. És um castigo que não merecia, ainda menos tu, mas és esse castigo que me interroga a ideia de Deus, embora não consiga apagá-la numa certeza, ao ponto de não suportar os sinos das missas domingueiras e ter vontade de mudar de casa para o meio de um monte só com pedras para esmurrar, e ouvir, ao longe, num eco sem fim,  os berros que engulo neste sexto andar. E aí chorar bem alto as lágrimas de raiva, de desgosto, de porquê a mim?, de injustiça sentida como uma ingratidão sem nome. Será possível, meu amor, que te tenha acontecido uma coisa destas, a ti, que foste o sol da minha vida, o corpo do meu ( do nosso ) prazer, a razão de todas as manhãs te deixar com vontade de regressar depressa, de te telefonar duas e mais vezes ao dia com o chefe a perguntar-me se tinha alguma amante, o pessoal a rir-se quando eu dizia que era a minha mulher.

       Como aconteceu isto? Ignorámos, durante anos, que a morte tem o privilégio da impunidade e a vida se sujeita a todas as arbitrariedades julgadoras; que a desfilada dos anos aniquila a espontaneidade  e cimenta a rotina dos silêncios onde mergulham as saudades do que nunca fomos. Não tínhamos à volta, nem em nós, a gelatina da mistificação, conhecíamos as agruras alheias, mas não as víamos na vizinhança dos nossos passos.  Afinal, chegaram, quando nunca as esperávamos.  Já não as conheces; eu, como escolhido, vou ter  que  aprender a fingir que as divido contigo. Quero-te útil até acabares. Vamos, então meu amor, ser vizinhos até ao fim.
    - M. Nogueira Borges*, Portugal, 26/2/2010.
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

    10/07/11

    A VOLTA

    Vai, homem, por essas estradas fora, envolvido pela noite que tombou rápida como um instinto, triste como um presságio, no meio de emigrantes de duas gerações, certo de que não é o barulho que faz companhia, mas a cumplicidade dos sentimentos. Vai como quem cumpre um destino, sabendo-se que a vida é como a terra: não tem condições para se transformar num céu. Vai e não feches os olhos, deixa que as lágrimas, num tributo à paixão que deixaste para trás, te inundem o rosto e desaguem, dispersas e quentes, na angústia do teu peito, mar onde se espalham todas as penas, pois só não chora quem gosta apenas de si. Vai, contando, na escuridão que o negrume do asfalto amplia, os faróis das faixas contrárias e a luxúria luminosa das cidades distantes, certezas de que o Mundo se mexe, é grande ou pequeno consoante a compreensão de cada um.

    O autocarro veio de Nice, passou por Marselha, e apanhou-me em Montpellier. Na televisão, ao fundo, por cima da cabeça do condutor, passa um filme em que o Stalone se farta de matar e de dar murros que entoam como marteladas em tonel vazio sem portinhola. O despropósito é como a credulidade: aceita-se e entende-se, mas é doloroso quando não se o pode emendar.

    Abrem-se os farnéis em Côté de France, um descanso de auto estrada onde estacionam as camionetas lusas. Na frente de um hotel sem luxarias, tipo fórmula 1, estacionam jipes com os tejadilhos repletos de artefactos para a neve. Um chapéu que vai para S. João da Madeira oferece-me – e retribuo – um pedaço de baguette com chouriço. Uma gata - tem olhos de gata -, vinda não sei de onde, mia-me, estremeço, é branca como a que tenho em casa e mascote de quem deixei longe; dou-lhe um migalho de pão que recusa, mas, já aceita um de carne - não gosto destas esquisitices em animais de quatro patas quanto mais de duas -, roça-se nas minhas calças e não me larga, obrigando-me a dividir com ela, até ao fim, as minhas sandes e as minhas saudades. Depois de um café - fraco e desprezível - por sete francos, é uma pressa para as camionetas já com os motores quentes. Um jovem africano, de comovente solicitude, que vem das obras de Marselha, cabelo pintado de loiro e agrafos nas orelhas, não larga os phones e ouve tão alto o rap do seu gosto que um vizinho de assento lhe pede para baixar o som.

    Em Toulouse, com um rio-canal de barcaças vazias e outras com roupa a secar, em frente à Gare Matabiau, há despedidas de abraços, beijos e prantos entre novos que ficam e velhos que partem. Uma velhinha (é mesmo velhinha), toda de preto, lenço na cabeça e saco do Carrefour na mão, olha para os assentos, a escolher lugar, e senta-se à minha beira. Encolho-me para que se ajuste no meio de um restolho de saias. Estica-se por cima de mim para dizer um último adeus, fala como se a pudessem ouvir para lá dos vidros fechados: «Não gastes dinheiro em telefone! Quando chegar, ligo-te, ouviste, minha filhinha?!» “Oh! Meu Deus!, tantas vagas e sentou-se logo a meu lado para me avivar a ferida!“. Com o autocarro a desfazer a curva, ainda a velhinha esticava o braço, roçando-me o nariz. “Por que não me deixaste só a olhar para a escuridão a contar as terras e as luzes e as estrelas e os marcos e o tempo que esta carreira demora a ultrapassar um tir e de quantas em quantas horas se revezam os condutores e – caramba! – poder esticar as pernas à minha vontade e colocar a almofada que trouxe de casa à maneira do desassossego das minhas costas? Raio!, não chores, Santa da minha Pátria, não te ponhas aí a limpar os olhos ao lenço, que o meu já está alagado; por favor, não gemas, não engulas os gritos como se fossem poldras dos teus (dos nossos) rios de amargura, nem dês esses suspiros que me acordam os arquejos de uma velhinha como tu, mas do meu sangue, antes da morte a livrar das chagas da vida e do corpo. Por favor, cala-te que me estoiras o sangue!”.

    Para lá das estremas citadinas, em recônditos de segredos, erguem-se, no meio de uma veemência luminosa, os tubos-cotos das fábricas das passarolas supersónicas e dos espadas do asfalto.

    - Lá está ela, a fábrica onde trabalha o meu genro... – afoita-se a velhinha num lamento, deixando-me embaraçado sem saber se lhe devo replicar ou não.

    - Há muitas... - digo-lhe, anódino.

    - É uma delas... – utilizando a deixa. - Já lá passei duas ou três vezes, uma confusão, nunca se sabe onde estamos, mas é para aqueles lados... Ele já tem vinte e dois anos de França – tentando introduzir o histórico familiar... - , está sempre a dizer que vem embora, mas nunca mais se decide, e a minha filha cá está com ele, a servir patroas, madames como lhes chamam, que não sabem estrelar um ovo quanto mais estufar uma carne. Depois, os meus netos, sabe o senhor, também já estão habituados aqui, são franceses... É uma vida...

    Viro-me para a janela: as últimas fieiras de luzes dos arredores desaparecem. Um desalentado vazio acompanha o movimento do autocarro. “Já sei, vou ter aqui uma velha tagarela que me vai desfraldar a sua vida toda... E se eu, numa próxima paragem, mudasse de lugar, assim como quem não quer a coisa? Pode ser que ela o faça...”. Ajeita-se, esforçando os braços nas pegas do assento, distendendo-se.

    - Não estou a incomodar o senhor, pois não? – pergunta, enquanto dá mais uma assoadela.

    - Por amor de Deus, minha senhora, esteja à vontade...

    - O senhor consegue dormir em viagem?...

    - Passo pelas brasas... É conforme...

    - É novo... Eu, se não houvesse paragens, só acordava em Vilar Formoso... O senhor também trabalha em França?...

    -Não, minha senhora... Olhe, acabou o filme, já se pode dormir... – cortei cerce, talvez friamente.

    Encosta-se melhor com o ar de quem diz «este não quer conversa...», levanta o saco e defende-o, em cima do regaço, com as mãos.

    - Ó homem! Nem aqui tiras o chapéu?! – ouve-se a mulher do meu permutante da baguette. - Ele descobre-se, alisando os pêlos que lhe restam, e pôe-o nos joelhos. Ela, despachada, arrebata-lho, levanta se, abre um cacifo junto ao tejadilho e arremessa-o para lá. - Quando voltarmos a parar, vais buscá-lo, se quiseres!

    Ele fecha os olhos a fingir-se tomado pelo sono.

    A camioneta avança com as luzes de presença acesas que se reflectem na noite num acompanhamento fotocopiado. Tarbes ficara perdida na discussão do chapéu. À minha direita, numa serenidade de folga peregrina, Lourdes é uma devoção por cumprir. Em Pau, com os seus vinhedos de Lescar indefinidos nas trevas e os segredos nucleares da França bem guardados, entraram mais dois rostos de olhos vermelhos. Contorna-se Pax, de Igrejas com vistosas iluminuras, e pára-se em St. Jean de Luz feito ponto de encontro dos viajantes da madrugada. É um estacionamento de muitas encruzilhadas, misturas dos termos da emigração: Paris, Bruxelas, Zurique, Estugarda. Entoam risos de reencontros, fecham-se rostos de sonos trocados, dormem inocências em colos derreados, bebem-se cafés amargos e despejam-se bexigas doridas de tanto encolher.

    A velhinha trinca pão com fiambre; resolvo não me mudar, não tenho coragem, peço-lhe licença para me sentar junto à janela.

    - Então como se chama a senhora? – desenho um sorriso de fraternidade, emendando a secura anterior.

    - Gracinda, sou Gracinda há oitenta e sete anos...

    - Bonito e bem conservado nome...

    - Ah!, bonito ou feio é um nome... Agora bem conservado...E o senhor?

    - Sim?...

    - Qual é a sua graça?!...

    - Ah!, sim, sim... João!

    - Era o nome do meu falecido... Que Deus o tenha em bom lugar. Já lá vão seis anos – o seu peito sobe e desce num suspiro.

    - É a vida...

    - Vida triste, meu senhor, vida triste. Custa muito viver só, a filha, que Deus me deu, longe...

    - Então, podia ficar em França com ela...

    - Não gosto daquelas terras, as gentes são meias esquisitas, prefiro a minha casinha, a minha é um modo de dizer, da minha filha e do meu genro, que foram eles que a fizeram com a graça de Deus e do suor deles... E, depois, sabe, eles têm os modos deles, querem estar à sua vontade, sabe como é... A gente cria os filhos e, enquanto precisam, estão connosco, depois, quando precisamos nós, abalam eles...

    - Já faltou mais para chegarmos D. Gracinda...

    - Ai Dona...Trate-me por Gracinda, senhor. Dona é para gente fina...

    - Então a senhora Gracinda é mesmo fina... Quanto mais velho se é mais fino se fica.

    - Mais burros ficamos, quer o senhor dizer... Só servimos para entulho....

    - Nunca diga isso, minha senhora... Nunca diga isso... Conforme está o Mundo, se não fossem os velhos, já ele tinha acabado...

    - Ora... Ora... O futuro é dos novos, senhor...

    - Não há futuro sem um grande passado...

    A D. Gracinda olhou-me como se me estudasse numa idosa sapiência, tocou-me ligeiramente no braço, num à vontade de comunhão, e disse:

    - Já não vamos viver para botar a mão a isto... – apertando o tabaqueiro. – Acho que me está a chegar o sono, sabe o senhor?... – e calou-se.

    O autocarro, em Hendaye-Irun, já em território espanhol, encosta junto da delegação da Guardia Civil e abre as portas. Um agente entra e confere as documentações, passageiro a passageiro. Terminada a vistoria, aproxima-se do africano de cabelo loiro, manda-o sair e leva-o para o interior do Posto. Outro paramilitar vasculha as bagagens, escancaradas pelas portas levantadas até aos vidros, chama um cão que as fareja ansioso, dá-lhe um pedaço de qualquer coisa que parece um biscoito (deve ser marca Pavlov...), até se postar, de traseiro no chão, ao lado do amo. O jovem dos piercings vem buscar a sua maleta, diz que fica preso por falta de documentação legal e despede-se. «Espera aí, pá! Precisas de dinheiro?», pergunta-lhe o chofer; diz que não com um sorriso agradecido e triste. O autocarro apronta-se para a desinfecção repleto de desabafos: «E logo estes espanhóis que não perdoam nada!», «Porra! O gajo, se calhar, nem carta de sejour tinha!», «Também vendem bilhetes sem perguntarem por papel nenhum, só querem é despachar carne!», «Já vai andar de bolandas, outra vez recambiado! Ele vinha de Nice não era? Ah!, Marselha, coitado do moço...» À esquerda das colunatas em imitação romana, uma equipa de fatos espaciais sulfata os pneus que passam num tapete esponjoso anti-febre aftosa. Arranca de vez, limpo do risco da peste, mas sujo pelo pecado da severidade policial.

    - Não era a hora dele – sentenciou a senhora Gracinda que, no passar do incidente, só dizia: coitadinho do rapaz...

    Atravessa-se o chamado País Basco - geografia nacionalista a que algum Sul Francês não escapa, de toponímia arrevesada, descarnada do castelhano, mesmo quando este emparceira no nome – a altas horas, num desconsolo de curvas eriçadas em declives que a noite ilude.

    A velhinha já não vai comigo. O sono descomprimiu-lhe o corpo e afastou-a para longe. O seu ressonar sacode as abas do lenço que lhe envolve a cabeça. Num repentino, mexe-se a procurar posição, descai ligeiramente para a minha esquerda, sinto-lhe os ossos decenários, o cheiro a aldeia, a campo, a serra, a giestas, a suor. “Deixa-te ir, Mulher, descansa o teu corpo no meu como eu gostaria que amanhã mo fizessem, comungo do teu sacrifício, do teu amor pelos que geraste, da pena por um vazio, por uma falta que nenhum dinheiro paga, que nenhuma conversa faz esquecer, nenhum sorriso disfarça. Deixa-te ir...” .

    Desfilam as luzes deste Euskadi de ódio e de morte, Vitória, Navarra, S. Sebastian (Donastia), Bilbau, indicativos de conflito nos cruzamentos das estradas, dores de cabeça madrilenas. O dormir da senhora Gracinda contagia-me, abandono-me à indolência, ponho a almofada junto à janela, despego-me do corpo envelhecido, tiro os óculos, meto-os no bolso da camisa. Ela, sem noção da circunstância, endireita-se e espreme-me. Amoldo a cabeça ao travesseiro improvisado e deixo-me ir por uma planície sem fim.

    Acordo com os contornos da terra ainda indefinidos numa tela naife. Apetece-me desenferrujar as pernas no corredor do autocarro que, ronceiro, como um barco de leme automático, avança num contraído desespero de chegar. A velhinha - mais velhinha do que os anos porque a estes somava dores que os aumentava - continuava a ventar o lenço. Lentamente, vão-se declarando as formas: já se distinguem os fios eléctricos, as casas humedecidas e emudecidas na manhã de domingo, as sinalizações quilométricas, as medas de trigo, os regos das semeaduras, as saliências dos morros, os rostos dos camionistas ultrapassados que parecem transportar carradas de paciência, as pequenas barragens com a água das chuvas defendida por plásticos. O sol, no risco do horizonte, força as nuvens que não o deixam romper a bolha de água. O dia, assim, apresenta-se embezerrado, sem chama, numa traição a quem o deseja largo e elucidativo.

    Pára-se em Nava del Rei para um pequeno almoço quente. A minha companheira, à paragem da camioneta, deu um salto, contemplou-me surpresa, desenlaçou o lenço, voltou a compô-lo, sorri-lhe e aproveitei para esticar-me um pouco.

    - Isso é que foi dormir...

    - Não o incomodei pois não?

    - Nada...nada... Também dormi até agora...Vamos tomar qualquer coisa...

    - Quero é mexer as pernas... Parece que tenho cimento...

    Os WC e os balcões enchem-se; um jovem barbudo, de boina basca, merca um porta-chaves com o ícone de Che Guevara; a senhora Gracinda tira, do saco do Carrefour, um migalho de pão, convido-a para um pan com mantequilla, mas é o aceitas; levam-se leques e caramelos para oferecer e gasta-se o resto do tempo - enquanto os motoristas não vêm da sala da comissão - a andar para cá e para lá, desentorpecendo as pernas. O chão parece coberto de sincelo, agasalhado por um manto de vapor; cheira a terra e a erva molhadas como se o dia se levantasse de um sono prolongado.

    A reentrada no transporte faz-se em algazarra, bexigas aliviadas e barrigas satisfeitas, alguns deixam-se ir de pé com as mãos nas cruzes.

    - Maria, antes do meio-dia estamos na Guarda! - atira, alegre, um homem.

    - Esqueceste-te de dizer se Deus quizer!- objecta a consorte, enquanto ele engole em seco e faz-que-sim com a cabeça.

    O sol não abre e nem o nome de Portugal, escrito junto dos campos de Salamanca onde o gado se espalha, realiza esse desejo.

    Em Vilar Formoso, a velhinha, aflita por saber qual era o novo autocarro que a levaria até Celorico, estende-me os braços na despedida. Só então reparo que nas suas faces de rugas de muito passado cintilam uns olhos de muito futuro: têm o brilho da lua cheia numa noite de Esperança...

    Tomo a ligação para o Porto e repito, agora ao contrário, a paisagem beirã do IP5. O novo condutor mete uma cassete a cheirar o bacalhau. Para distrair o meu encruamento espalho os olhos pelos montes que se me afiguram ainda mais penalizados que o natural.

    O sol não vem.

    Não faz mal, ele está do outro lado das montanhas, em terras de França, sinto-o nos meus ombros, nos meus olhos, e recolho-o só para mim, aqui dentro, onde se guarda a saudade de um amor incomparável.

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima é recolhida da internet livre. Clique na imagem para ampliar. Edição de J. L. Gabão.
    • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.