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3/11/11

LAGAR DA MEMÓRIA de M. Nogueira Borges - CONVITE para 12 de Março

As páginas que se seguem são recolhas de alguns anos de vida guardadas no Lagar da (minha) Memória. Nasceram, como as uvas da PÁTRIA DURIENSE, de cepas de várias castas, idades e lugares. Umas têm o benefício da Região Demarcada, outras, os transcursos citadinos e africanos. Nenhuma delas rejeito: nem a doçura amadurecida, nem o amargo fora de época. (in “Apresentação”).

É a vida do Douro, as vidas à volta das vinhas e dos campos, dos fraguedos e dos socalcos, um cheiro a lagar ubérrimo e escravizante que salpicam o leitor ainda fiel às águas de uma pátria sempre rude para aqueles que não a foram abandonando. Tal como o autor.

 LAGAR DA MEMÓRIA de M. Nogueira Borges
CONVITE

A Mosaico de Palavras Editora tem a honra de convidar V. Exª e Família a assistir à apresentação da obra LAGAR DA MEMÓRIA, de M. NOGUEIRA BORGES, que irá decorrer no próximo dia 12 de Março (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Apresenta a obra o Dr. Armando Figueiredo.
(Clique nas imagens para ampliar)
Alguns trechos do "Lagar da Memória" transcritos no Escritos do Douro.


Pedidos/compra poderão ser feitos desde já diretamente à editora MOSAICO DE PALAVRAS, via net (http://mosaico-de-palavras.pt/product.php?id_product=101) ou através de Elvira Santos - geral@mosaicodepalavras.com com pagamento por transferência bancaria, ou ainda por meio de envio à cobrança.
Preço - 15,00€.
MOSAICO DE PALAVRAS EDITORA, LDA
RUA COMENDADOR ANTÓNIO AUGUSTO SILVA, 127 - R/C, 4435-191 RIO TINTO -PORTUGAL.
Telefone fixo - 224801761; Telefone móvel – 963678534

2/20/11

LAGAR DA MEMÓRIA de M. Nogueira Borges

Apresentação do livro LAGAR DA MEMÓRIA de M. Nogueira Borges
CONVITE
A Mosaico de Palavras Editora tem a honra de convidar V. Exª e Família a assistir à apresentação da obra LAGAR DA MEMÓRIA, de M. NOGUEIRA BORGES, que irá decorrer no próximo dia 12 de Março (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Apresenta a obra o Dr. Armando Figueiredo.
(Clique nas imagens para ampliar)
Alguns trechos do "Lagar da Memória" transcritos no ForEver PEMBA.
MOSAICO DE PALAVRAS EDITORA, LDA
RUA COMENDADOR ANTÓNIO AUGUSTO SILVA, 127 - R/C, 4435-191 RIO TINTO -PORTUGAL. Telefone fixo - 224801761; Telefone móvel – 963678534
QUALQUER FORMA DE CONTACTO A RESPEITO DO “LAGAR DA MEMÓRIA” E SEU AUTOR  PODERÁ SER FEITO ATRAVÉS DE D. ELVIRA SANTOS.

6/28/15

SAUDADE AFRICANA - Manuel Coutinho Nogueira Borges

EM MEMÓRIA DE UM AMIGO QUE PARTIU HÁ 3 ANOS
Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012. Extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória":
Onde está a África da minha saudade que conheci quando ainda não sabia que o futuro nunca é o que sonhamos?

África tão longe e tão longa que a recordação parece não ter contornos e o tempo passado permanece em cada dia que a mágoa nos aleija a alma. Acarto comigo um fardo de angústia que me isola no meio de muita gente, aquela solidão feita da repugnância do que se ouve e vê, da ingratidão que não se merece, da violência dos gestos e das palavras, da profanização sacralizada como se, na vida, só valesse o exponencial de todas as manhas.

É na invocação africana que se me diluem a podridão envolvente, a incapacidade da rotina, os olhares mal encarados, a indiferença das bocas fechadas.

Onde está a África dos meus clamores, das lágrimas escondidas nas sombras das noites de escuta?

África da surpresa por amigos esventrados, estendidos nas caixas dum Unimog ou de uma Berliet, e eu, com o seu fio de ouro nas mãos, sem articular uma frase, garganta presa pela afonia, estômago à beira do vómito, a fugir de ver o sangue e os rostos desfigurados, e os camuflados cheios do esterco da morte inglória, e as botas furadas pelos restos do chumbo, e o cérebro tomado por agulhas a picarem-me por todo o lado, por tudo que é corpo e consciência, e a olhar em meu redor sem uma luz na noite a ensinar-me o caminho, sem um som no fim da terra vermelha para me provocar o andar, sem (meu Deus!) uma esperança de que os mortos inocentes pudessem renascer para o meu convívio.

Onde está a África das cantinas no esconso da selva, das trovoadas e das chuvas apanhando-me nos descampados da savana, das queimadas fantasmagóricas nas noites despertas, perscrutando as curvas e os trilhos da traição, dos luares arrebatadores contemplados por entre os mosquiteiros já gastos pelo uso de muitos rostos, os uivos das hienas, atordoadas pelo cio e pela fome, arrepiando-me todo, acelerando o coração, alagando-me de suor, puxando a G-3, aconchegando o caqui, retesando os nervos com o dedo no gatilho?

Onde está a África das manhãs de maresia nas praias de todas as bandeiras azuis, sem ventos nem garrafões ou ossos de frango nas areias; praias tão quentes e tão finas que até parecia que um homem as pisava pela primeira vez, as suas águas tinham lábios de espuma que nos beijavam sempre em ternuras sem fim, corais como conchas vivas de um sonho irrepetível; palmares enormes como naves de catedrais góticas por onde o sol entrava, coado pelos vitrais da folhagem tão fresca, resplandecente e pura como a virgindade de uma criança?

Onde está a África das presunções fardadas, das madrinhas de guerra, das filmagens da Televisão com «um Feliz Natal e um Ano Novo cheio de propriedades», dos dias de São Vapor com cubas libres e «quem me dera regressar no Pátria!», dos calendários de mulatas nuas repletos de cruzes nos dias já passados, da obrigação de atravessar rios em almadias à procura de esconderijos de armas em ilhas paradisíacas, dos Postos Administrativos onde os sipaios nos deitavam sorrisos pepsodentes, dos funerais com danças de despedida e dos bifes de antílope a enfartaram barrigas vazias de tanta ração de combate?

Onde está a África das noites estreladas num céu tão belo e tão esmagador que dava vontade de ter asas para voar para a lua redonda como uma bola de cristal; noites de ritmos endiabrados, sensuais e espasmódicos, que o sangue fervia nas veias e rejubilava nas têmporas?

Quando o dia clareava e o fogo redondo subia na terra, um feitiço nos ludibriava com a ilusão de paz na vastidão da selva.
- Porto, *M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!
*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012. Extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". 

5/19/11

PRETÉRITO IMPERFEITO

Íamos, meios tontos, inebriados pela fantasia de que era tudo nosso, correndo pelos caminhos de sombras da mata, arrancando, aqui e além, ramitos de mimosas, até nos quedarmos, ofegantes, no encosto de um tronco, o suor a escorrer pelos corpos.

Não sabíamos que o Mundo tinha hospitais e cadeias, lágrimas nos cantos da tragédia e ódios recalcados na desventura de vidas desconhecedoras do perdão.

Ignorávamos que o amor é, tantas vezes, uma hipocrisia sustentada pela comodidade de não romper interesses ou ferir o futuro dos nascidos sem culpa.

Julgávamos eternas as juras de fidelidade e que os dedos entrelaçados nunca se desatariam.

Não conhecíamos a ingenuidade porque, entre nós, tudo era seguro e limpo.

Troçávamos dos conselhos dos mais velhos como se fossem frustrações de quem não encontrara a felicidade. Esta nascia-nos nos brilhos dos olhos e na sofreguidão dos afagos. O dinheiro não contava porque matávamos a sede na água do riacho e a fome nos frutos que amadureciam sob o calor das férias.

Da cidade chegava-nos a confusão, amortecida pela muralha do arvoredo, e os passarinhos cantavam connosco. Era lindo ser-se novo! Sentir na cara a seda da brisa e nas veias o sangue do desejo, libertos dos ralhos e das sinetas, sem vultos negros nos corredores semi-iluminados, sem o cheiro lixiviado das camaratas e as imposições dos recolheres vespertinos.

Não voávamos que não tínhamos asas, mas os risos e os sussurros acompanhavam-nos na leveza de quem não fazia contas. O futuro não existia, ou antes, era o momento, tinha a dimensão de uma ternura e a certeza de que a luz da tarde nos daria o tempo suficiente para nos vingarmos da noite.

Sentávamo-nos num banco de pedra a contemplar a colina do castelo, enlevados em romances de cavalaria e princesas encantadas. Do lado de lá, depois de um abismo rochoso, ficavam os lameiros onde se abatiam as codornizes enquanto não chegava o tempo das perdizes e dos coelhos. Eram terrenos férteis, de vales amplos, acordados pelos tiros e pelos gritos das manhãs cinegéticas.

Não sentíamos as lágrimas da humilhação, a indiferença das almas egoístas, as cobiças insensíveis, a inveja deprimente.

Éramos vazios do mal, só a boa-fé nos comandava. Traçávamos as linhas da honra sem imaginarmos que, um dia, mais repentinamente do que começáramos, as estradas dos nossos passos nos levariam cada um para seu lado com o mar a separar continentes e a guerra a enlouquecer uma geração.

Mas valeu a pena acreditarmos, percorrermos a ilusão. Se conhecêssemos tudo o que a vida nos trouxe, desistiríamos, logo ali, de sermos felizes. A felicidade, por pouco tempo que seja, vale sempre, ao menos, uma memória.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustratrativa acima foi recolhida da internet livre. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.  

6/08/13

SAUDADE AFRICANA

Onde está a África da minha saudade que conheci quando ainda não sabia que o futuro nunca é o que sonhamos?

África tão longe e tão longa que a recordação parece não ter contornos e o tempo passado permanece em cada dia que a mágoa nos aleija a alma. Acarto comigo um fardo de angústia que me isola no meio de muita gente, aquela solidão feita da repugnância do que se ouve e vê, da ingratidão que não se merece, da violência dos gestos e das palavras, da profanização sacralizada como se, na vida, só valesse o exponencial de todas as manhas.

É na invocação africana que se me diluem a podridão envolvente, a incapacidade da rotina, os olhares mal encarados, a indiferença das bocas fechadas.

Onde está a África dos meus clamores, das lágrimas escondidas nas sombras das noites de escuta?

África da surpresa por amigos esventrados, estendidos nas caixas dum Unimog ou de uma Berliet, e eu, com o seu fio de ouro nas mãos, sem articular uma frase, garganta presa pela afonia, estômago à beira do vómito, a fugir de ver o sangue e os rostos desfigurados, e os camuflados cheios do esterco da morte inglória, e as botas furadas pelos restos do chumbo, e o cérebro tomado por agulhas a picarem-me por todo o lado, por tudo que é corpo e consciência, e a olhar em meu redor sem uma luz na noite a ensinar-me o caminho, sem um som no fim da terra vermelha para me provocar o andar, sem (meu Deus!) uma esperança de que os mortos inocentes pudessem renascer para o meu convívio.

Onde está a África das cantinas no esconso da selva, das trovoadas e das chuvas apanhando-me nos descampados da savana, das queimadas fantasmagóricas nas noites despertas, perscrutando as curvas e os trilhos da traição, dos luares arrebatadores contemplados por entre os mosquiteiros já gastos pelo uso de muitos rostos, os uivos das hienas, atordoadas pelo cio e pela fome, arrepiando-me todo, acelerando o coração, alagando-me de suor, puxando a G-3, aconchegando o caqui, retesando os nervos com o dedo no gatilho?

Onde está a África das manhãs de maresia nas praias de todas as bandeiras azuis, sem ventos nem garrafões ou ossos de frango nas areias; praias tão quentes e tão finas que até parecia que um homem as pisava pela primeira vez, as suas águas tinham lábios de espuma que nos beijavam sempre em ternuras sem fim, corais como conchas vivas de um sonho irrepetível; palmares enormes como naves de catedrais góticas por onde o sol entrava, coado pelos vitrais da folhagem tão fresca, resplandecente e pura como a virgindade de uma criança?

Onde está a África das presunções fardadas, das madrinhas de guerra, das filmagens da Televisão com «um Feliz Natal e um Ano Novo cheio de propriedades», dos dias de São Vapor com cubas libres e «quem me dera regressar no Pátria!», dos calendários de mulatas nuas repletos de cruzes nos dias já passados, da obrigação de atravessar rios em almadias à procura de esconderijos de armas em ilhas paradisíacas, dos Postos Administrativos onde os sipaios nos deitavam sorrisos pepsodentes, dos funerais com danças de despedida e dos bifes de antílope a enfartaram barrigas vazias de tanta ração de combate?

Onde está a África das noites estreladas num céu tão belo e tão esmagador que dava vontade de ter asas para voar para a lua redonda como uma bola de cristal; noites de ritmos endiabrados, sensuais e espasmódicos, que o sangue fervia nas veias e rejubilava nas têmporas?

Quando o dia clareava e o fogo redondo subia na terra, um feitiço nos ludibriava com a ilusão de paz na vastidão da selva.
- Porto, *M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!
*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012. Extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". 

Clique  na imagem acima para ampliar. Edição e atualização de J. L. Gabão para o blogue "ForEver PEMBA" em Junho de 2013. Publicação inicial em 25 de Fevereiro de 2010. Em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

6/02/11

TEMPO MOÇO

Deitados na caruma, de olhos fechados, sentíamos os voos das pegas–azuis, os estalos dos pinheiros e, ao longe, na ondulação dos montes, os zumbidos dos pulverizadores.

Não sei quantos anos tínhamos, talvez dezasseis, talvez dezoito ou talvez aquela idade em que não se sabe, ainda, contar os anos.

Da pequena cachoeira, a deslado de um renque de salgueiros (pareciam salgueiros...), vinham os ralhos das mulheres que lavavam a roupa, misturados com a gritaria da canalha entre barrigadas na água e correrias pelas margens.

Flutuavam aromas de Verão, o cheiro a terra e a flores silvestres entranhava-se nos corpos. Ficávamos, assim, colados ao restolho, cansados da subida, à espera que o comboio nos acordasse.

Quando o pouca-terra-pouca-terra da via reduzida atravessava a ponte, sentávamos-nos a ver aquilo: carruagens esverdeadas, andar bocejante, fumaradas de cigarro, brinquedo de cascata sanjoanina. Os nossos cabelos eram fios de sol e trocávamos olhares tão ternos como a lua contempla o mundo nas noites quentes de Agosto.

Corríamos os bardos à cata de ninhos de melros, e havia sempre, ao entardecer, um rouxinol que cantava para os lados da ramada que sombreava o poço.

Tudo era verdadeiro, a amizade existia mesmo e ninguém invejava ninguém.

Tínhamos a novidade do princípio que nunca se inicia nem acaba qual a sede num sonho.

Trepávamos ao pinoco de cimento, que comemorava o ponto mais elevado do monte, e dali abarcávamos uma vista delirante: medonhas penedias forradas por simétricas fieiras de verde tão a pique que parecia impossível um homem conseguir lá botar sulfato; estavam mesmo junto às nuvens, numa adoração telúrica que nem sabíamos se era herética ou sagrada, enquanto o comboiozinho, ao longe, pronunciava uma curva larga, em câmara lenta, pedindo que algum santo o empurrasse.

Ignorávamos o ódio que é feito daquele martírio de linguagem escolhida para a ofensa gratuita, expressa por olhos esbugalhados para perturbar a boa fé. As mãos das pessoas tinham calos e terra nas unhas, as barbas faziam-se aos domingos de manhã e o Padre madrugava com o sino da Capela a interromper os sonos.

Ecoavam os cânticos das aleluias, o toque dos santos, a adoração da hóstia e, depois, os homens iam, abençoados, de sacho ao ombro, desviar as águas para as hortas.

Líamos, às escondidas, o Crime do Padre Amaro ou Andam Faunos Pelos Bosques, enquanto as moçoilas, de caneco à cabeça assente em rodilhas, mostravam os vestidos de chitas floridas; as Mães, cansadas, catavam ganapos; os homens, nas tabernas, jogavam o monte ou o sete e meio, mastigando tabaco de onça e escarrando no chão térreo; os leilões de cravos, cestas de fruta e galos de crista vermelha fomentavam vaidades aldeãs em nome das festas de Santa Bárbara; os bailaricos de poeira, suor e olhares de soslaio alimentavam rivalidades ciumeiras.

Naquele tempo desconhecia-se a morte. Ela estava cercada por quatro paredes, no canto mais afastado da terra, e não gostávamos daqueles toques metalóides dos sinos da Igreja quando uma multidão vestida de negro se arrastava, estrada fora, como uma cobra do rio.

A morte era um eco difuso, pouco audível, que a noite, por vezes, avivava em receios de fantasmas. Depois, adormecia com a sensação de que me faltava alguém.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima foi recolhida da internet livre e editada. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.

7/31/13

SEM REMORSO

Ia com os filhos pelas mãos naquela tarde limpa de Setembro. Ainda era Verão e a cidade estava uma desordem. Os carros atrapalhavam-se, as pessoas amontoavam-se, as vozes confundiam-se. Não tinha para onde ir. As praias, sem nortadas, ficavam longe. Os filhos iam-lhe pedir balões e bolas de berlim; talvez, quem sabe, legos e bonecas; ou, até, quisessem ir ver a Pantera Cor de Rosa no cinema da Praça.

A cidade era uma serra cimentada, de sobe e desce, muitos ruídos e cheiros. As mãos suavam. Havia carros que chispavam a arrancarem com ódio nos pneus. Por isso suava; o medo faz suar. As montras tinham saldos, coisas desejadas por quem anda sempre com a mesma roupa e a mesma fome das coisas. Estava calor, os filhos pediram água. Entraram num snack-bar e sentaram-se num canto. A filha bateu-lhe com a mão: «Já viste aquela mulher com as pernas à mostra?»; «Já.», abreviou. Pediu dois refrigerantes para os três. Contou o troco, contava sempre o troco. «Não quereis um bolo?», perguntou; «Então, tu é que sabes.», responderam. Comprou dois bolos com os trocos, o maldito tanto vem como vai. Cá fora as pessoas espionavam-se. Os gigolos encostavam-se às portas das boutiques, despiam as mulheres, mastigavam pastilha elástica ou fumavam para o ar. Não era uma cidade americana ou talvez fosse. As cidades já não têm personalidade. Pedintes, com as próteses ao sol, choramingavam esmolas; cegos tocavam acordeon e batiam no chão com as bengalas metálicas. Não era uma cidade africana ou talvez fosse. As cidades são, cada vez mais, o fim do mundo, por isso elas se povoam, à noite, de fantasmas, que os que trabalham de dia escondem-se nos dormitórios das periferias. Vendedores de banha da cobra impingiam tudo, desde fios de ouro a duzentos escudos a espremedores de laranjas a dez. Não era uma cidade persa ou talvez fosse. Todas as cidades têm a confusão institucionalizada. Às paredes colavam-se palavras de raiva com símbolos em volta, carros, com altifalantes, cuspiam frases sem sentido, voavam pelas ruas com asas de bandeiras coloridas; havia quem acenasse ou fizesse manguitos. Um pouco à frente, as pessoas esmurravam-se, não sabiam em quem batiam, nelas próprias ou no rancor que as dilacerava. Os filhos quiseram saber o que era aquilo. «È a falta de amor.», filosofou; «Mas eles não se conhecem....», contrapôs o filho; «Pois não, se se conhecessem abraçavam-se.», enfatizou.

Era uma cidade de ruas compridas como rectos gigantes, estômagos de úlceras em movimento, úteros rasgados pela violência da pressa, labirintos de vigaristas e proxenetas. As ruas da cidade são a revolta de quem trabalha, o tédio do desempregado, o ócio dos desocupados; são os consultórios das doenças, os escarros da bronquite e da má educação, a sujeira da demagogia.

(Se tu fosses vivo, meu Avô, os meus filhos andariam contigo. Não precisarias de bengala. Eles seriam a tua esperança para te agarrares à vida. Seriam a minha gratidão por te lembrares de mim e, portanto, deles. Recordo-te, meu Avô inesquecível, com os meus filhos presos às minhas mãos, aquelas mãos que tu agarravas sem poderes falar, mal adivinhaste a morte naquele dia em que caíste à cama para nunca mais te levantares. Recordo-te pelas vindimas com as rogas a cantarem e a dançarem a chula, as concertinas pelos caminhos da nossa aldeia, os ferrinhos e os bombos nas pousas da meia noite. As vindimas agora são de empreitada como quem ajusta um muro de pedra, uma pintadela de oca nas paredes da casa, um esmalte no portão; não têm alegria nem cheiro, morreram contigo; os lagares servem para guardar tralha que se não usa mas não se deita fora, que, apesar de tudo, ainda há os sabem que quem guarda tem. Por que me deixaste tão cedo? Não viveste até à minha primeira barba? Lembro-me da tua serenidade à vaidade alheia e da tua firmeza ao desperdício; da tua quinta enorme como um convento de ordem religiosa com aqueles pomares, aquelas matas e aquelas vinhas, aqueles tanques e aquelas fontes, aquela taça repleta de peixes de várias cores, aquelas tílias com troncos de séculos e aqueles estábulos de estrume. Recordo-me de tudo porque eras tu que me davas o espaço e o tempo. Deixaste-me nesta balbúrdia em que conto um outro espaço e um diferente tempo para chegar junto de ti).

«Que tens nos olhos?...», notou-lhe a filha; «São as lentes que não devem estar bem, o sol é forte e põe-me os olhos vermelhos.», desenvencilhou-se. Comprou dois balões, encheu-os até à saliva, largou-os. Subiram à altura dos prédios, para cima deles, para o desaparecimento. As pessoas iam e vinham num ió-ió mole e denso. Um ídolo de futebol antigo despertou a curiosidade: nos olhos um vazio de aplausos, no andar o jeito arqueado que lhe ficou das fintas dominicais, no rosto as rugas da velhice sem exercício; no seu todo uma frustração de quem só presta para publicidade. Os bancos já estavam encerrados, o sol enfraquecera, as paragens dos autocarros amontoavam-se de bocas mudas.

Ia com os filhos pelas mãos certo de que um dia eles se desprenderiam como os balões, se esqueceriam dele, arquivando-o num Lar qualquer para morrer de velho e de solidão. Talvez, mas o remorso não seria seu.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado em 12 de Março de 2011 (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Convite e informações aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012. A imagem ilustrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada para este blogue e poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

7/22/10

TERESA

(Clique na imagem para ampliar)

Naquela manhã fria de Dezembro, um sol medroso espreitava pelas nuvens e as pessoas agradeciam folgando os agasalhos.

Encostado ao muro da morgue, eu via os carros a fazerem a curva dos trilhos dos antigos eléctricos. Em frente, no bem tratado jardim, uns patos pachorrentos grasnavam, satisfeitos, a aproveitarem as clareiras do céu, enquanto uns velhotes sumidos enganavam a reforma lendo as notícias dos crimes passionais e da necrologia. O hospital, velho convento do século passado, engolia doentes anunciados por esbaforidas sirenes que partiam, depois, silenciosas, cansadas de tanto berrar. Mais acima, pelas traseiras do quartel, entravam e saíam jipes com fardas.

A minha amiga Teresa, indefesa e inocente, era autopsiada ao mando da Lei. Uma pequena fila de carros funerários, enfeitados de cromados e interiores de púrpura, aguardavam vez numa postura de táxis. Uma morgue é um supermercado da morte de facturação consignada, com fingimentos dos compradores, como se os sentimentos se encenassem para melhorar o preço que a dor não discute, baralhada pelo espanto e as lágrimas.

Enquanto o sol vinha e ia, a minha memória remontava à meninice, àquelas tardes de sueca em casa da Teresa, com o Pai como parceiro, discussões sobre os ases, as manilhas e os riscos apontados numa mortalha com que ele fazia os cigarros de onça. A sesta semicerrava as portas do casario, mas nós passávamos o tempo nas algazarras das oportunidades dos trunfos. Quando o cansaço chegava, o Senhor Francisco – santo e honrado homem que fizera nome como feitor nos socalcos durienses – ia amainar as fúrias no sossego da sua cama, enquanto eu e a malta da escola íamos suar para o adro da capela da Senhora da Graça com cinco minutos a jogar a bola e outros cinco a procurá-la nas vinhas circundantes; ou, então, subir o monte de S. Pedro, cheios de praganas, à cata de grilos e dos ninhos de melros com sonhos de perdizes e coelhos à cintura em entradas triunfantes na aldeia como o Dr. Cândido.

Perto, alguém chorava, num gemido de desgosto, numa impotência revoltada incapaz de desarmar a irremediabilidade: uns olhos de criança tão vazios como uma estrela de madrugada de inverno, olhos de injustiça sem paga, de perda sem retorno.

Um auto-fúnebre movimentou-se e entrou, de traseira, no terreiro do Instituto de Medicina Legal. Um caixão negro veio lá de dentro, meteram-no naquele, tal uma qualquer carga, o viúvo, de luto carregado, sentou-se lateralmente e, no seu colo, a criança chorando uma saudade sem entender, ainda, o seu tamanho. Arrancou, e aí foi ele, para a confusão do trânsito, tentando recuperar a espera que a cova estava longe e devia ser tapada antes de o dia morrer. Tudo morre, os corpos, a esperança, a certeza, os dias, as noites. Morre tudo porque nasce.

O sol escondeu-se e o vento desarvorou pelas ruas. Uma ambulância, como um susto, afligiu a urgência hospitalar, os bombeiros, espavoridos, levaram a maca em correria, um deixou cair o barrete, outro gritou «deixem passar, por favor!», cabeças mórbidas debruçaram-se, curiosas das desgraças, e puseram-se a olhar umas para as outras a perguntarem por mais.

A minha amiga Teresa, cheia de vida e de trabalho, morreu-me no bocal do telefone naquele modo de dizer: «Sabes quem morreu? A Teresa! Nem sei bem como foi. O corpo sai amanhã do hospital.» Uma pessoa fica sem jeito, porque a morte não tem maneiras, sabe-se que ela existe, quase sempre nos outros, e, quando nos bate à porta, é como uma anormalidade que não se conta, uma realidade que não merecemos.

A meu lado há quem narre histórias de mortes violentas num consolo justificativo, numa desculpa de aceitação fatalista. Afasto-me para que o ruído da cidade impeça o escutar da morbidez.

Um gesto, uma paragem, o autocarro a chiar, depois a arrancar, levantando as folhas e os papeis do chão, as pessoas a segurarem-se para não se esmagarem. A Teresa, retalhada, lá se foi, os filhos sem Mãe, e o sol a fugir, e as lágrimas a caírem, e o vento a gemer, e o frio a gelar, e os lábios a tremerem, e o vazio da sua falta, e um buraco rectangular à espera no cemitério da freguesia. Para lá vai, transportada com pressa que os quilómetros são tantos e a Agência leva caro que se farta que a morte está pela hora da morte.

Gostava que morrer não fosse o fim da convivência, o arquivar da memória; não tivesse nada de prematuro ou inglório ou revoltado; que a felicidade se estendesse num tempo sem tempo - sem morte.

O carro que transporta a Teresa desapareceu por entre os renques do jardim onde os velhos fazem, agora, as palavras cruzadas; por entre a chaparia de insultos e vinganças de ultrapassagens em que as cidades se infernizam até ao choque final, até à morgue mais próxima.

Olhei para o alto e, cintilando-me nas lágrimas, o sol ia morrendo.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

8/18/11

VIDAS

As vidas irremediáveis
Não se conhecem.
São inviáveis,
Logo, não acontecem.
Não têm história,
Nem memória.
Banalidades das horas
E fastio da indiferença,
Não merecem demoras,
Nem um voto de esperança.

Há tantas vidas sem solução
A que ninguém deita uma mão.
Distantes,
Negligentes,
Morrem sós
Na hipocrisia do dó,
No egoísmo do eu,
Do tudo meu.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima é recolhida da internet livre. Clique na imagem para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.

5/19/11

DESPEDIDA

Por que choras, Pai?
Pelo teu sangue que vai,
Na lonjura dos céus,
Sobre terras e sobre mares,
Impedido de dares
Um beijo dos teus,
Um beijo de amor
Que esquece qualquer dor,
Escancara a alegria
E ressuscita o dia?
Querias a certeza
De viver sem a ausência
Do riso e da voz da tua paixão?
Sentir-lhe a permanência
Como um único coração
A bater por duas vidas,
Sem chegadas e partidas?
Tudo num só olhar,
Tudo num só abraço,
Sem razão para chorar
E sem este dorido cansaço
Que lentamente te mata;
Sem saber quando desata
Este nó aflito,
Este violento grito
Que encolhes para lá dos limites,
Para além do que existes?
Pai, por que choras?
Querias viver sem estas horas
Consumidas como uma eternidade?
Querias que a felicidade
Estivesse sempre na tua mão
Como uma flor que brotasse,
Feita reincarnação
- Ou reinvenção -
De uma criança que nunca se afastasse?
É longa a saudade,
Tão longa e infinita,
Que não há, em boa verdade,
Uma palavra que, mesmo bem escrita,
Traduza a dimensão desta realidade:
Que o amor pelos que nascem de nós
É tão físico e tão forte,
Não se apaga na morte,
Em nenhuma terra se esquece,
Em nenhum sono desaparece.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.

Nota: Dedico este trabalho poético de M. Coutinho Nogueira Borges à memória de meu saudoso Pai - Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, nascido na cidade de Peso da Régua - Portugal, em 13 de Abril de 1924 e falecido a 18 de Junho de 1992, dia do Corpo de Deus, em Lisboa.

6/18/11

Jaime Ferraz Rodrigues Gabão partiu há 19 anos

Por que choras, Pai?
Pelo teu sangue que vai,
Na lonjura dos céus,
Sobre terras e sobre mares,
Impedido de dares
Um beijo dos teus,
Um beijo de amor
Que esquece qualquer dor,
Escancara a alegria
E ressuscita o dia?
Querias a certeza
De viver sem a ausência
Do riso e da voz da tua paixão?
Sentir-lhe a permanência
Como um único coração
A bater por duas vidas,
Sem chegadas e partidas?
Tudo num só olhar,
Tudo num só abraço,
Sem razão para chorar
E sem este dorido cansaço
Que lentamente te mata;
Sem saber quando desata
Este nó aflito,
Este violento grito
Que encolhes para lá dos limites,
Para além do que existes?
Pai, por que choras?
Querias viver sem estas horas
Consumidas como uma eternidade?
Querias que a felicidade
Estivesse sempre na tua mão
Como uma flor que brotasse,
Feita reincarnação
- Ou reinvenção -
De uma criança que nunca se afastasse?
É longa a saudade,
Tão longa e infinita,
Que não há, em boa verdade,
Uma palavra que, mesmo bem escrita,
Traduza a dimensão desta realidade:
Que o amor pelos que nascem de nós
É tão físico e tão forte,
Não se apaga na morte,
Em nenhuma terra se esquece,
Em nenhum sono desaparece.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.

Nota: Dedico este trabalho poético de M. Coutinho Nogueira Borges à memória de meu saudoso Pai - Jaime Ferraz Rodrigues Gabão.

QUEM FOI JAIME FERRAZ RODRIGUES GABÃO:
Nasceu na cidade de Peso da Régua em 13 de Abril de 1924.
Com 68 anos, faleceu a 18 de Junho de 1992, dia do Corpo de Deus, em Lisboa - onde, uns dois meses antes, se submetera a melindrosa intervenção cirúrgica.
Uma de suas paixões era Porto Amélia/Pemba.
= http://bit.ly/itInmD
= http://bit.ly/kQKTFH
= http://bit.ly/kQ9hmD
= http://bit.ly/iUkN7r

3/16/11

AS BOLINHAS

A praia está, ainda, praticamente deserta. É uma manhã limpa com um sol já acariciante e uma saborosa envolvência de maresia. Aqui também há classes: de um lado, a área concessionada; do outro, a zona dos chapéus de sol. Na primeira, estão montadas as sombrinhas com as cadeiras reclináveis alugadas por bom dinheiro; na segunda, o preço é o carrego que cada um está disposto a transportar. Escolho, nesta, um espaço que não tenha de alterar pela preia-mar, espeto o guarda-sol, espalho as toalhas a delimitar território, liberto-me dos chinelos e da camisa. Vou até à orla, viro-lhe as costas, de frente para os prédios gigantes que se erguem como insultos de ganância, e comprazo-me com a babugem da ligeira ondulação a lamber-me os pés. As construções tipo legos, de traça usurária e sem decoro, são depósitos de corpos que aqui fazem a vingança quinzenal dos nevoeiros e das nortadas; alguém lhe chamaria arquitectura dos trezentos para dar lucros de boutique de shopping.

Lentamente, o areal vai-se enchendo. Uns, arrastando sobejos de sono, estendem-se, imediatamente, como sardões mal despertados; outros, esbaforidos pelo peso das tralhas, limpam o suor e, antes de se acomodarem, distribuem tabefes pela rezinguice infantil. Há de tudo: burlescos com óculos de esquiador, tias das revistas com panons transparentes e cosméticas burundangas, maternidades deliciosas que a tudo acodem sem um azedume, cabelos brancos que ainda não desistiram de usufruir a vida e transmiti-la à descendência, leitores de escrita light e de jornais desportivos, utilizadores de telemóveis com ares de executivos imprescindíveis ou de empresários sempre a facturar, gordas sem vergonha de libertarem as coxas e opostas de linhas geométricas limpando as areias como se fossem formigas.

Num súbito, a vizinhança da minha toalha inquieta-se: soerguem, uns, os cachaços do areal, despertam, outros, para uma montra apelativa, sorriem, elas, num jeito de brejeirice a dissolver o desdém, lançam, os mais entradotes, olhares nostálgicos. A aparição justificava o sobressalto. Há mulheres tão espectaculares que chegam a ser uma ofensa à inteligência: alta, sem exageros basquetebolísticos, cabelos longos, cor de libra Vitória, espalhados e deslizantes pelos ombros como sedalina, óculos de voleibol de praia numas faces trigueiras decoradas por duas argolas ciganas, busto voluntarioso de mamilos agulheados e defendidos por uma t-shirt justa que descia até a meio das coxas torneadas a fazer de mini-saia generosa, fita vermelha no tornozelo esquerdo que lhe dava uma ar jamaicano de prospecto turístico. O seu acompanhante, de paciência na cara e peso nas mãos, arvorava uma docilidade canina, ornamentado com um bordão no peito e um relógio todo o terreno. Enquanto ela ajeitava, a tiracolo, uma carteira tipo saco de flores tropicais, ele transportava um guarda-sol, duas cadeiras e uma bolsa de lona que lhe deve ter restado da guerra colonial. A beldade esticou uma enorme toalha rosa estampada com palmeiras, sentou-se, atirou, num desafio, a cabeça para trás, retirou os óculos (os olhos cintilaram esverdeados), passou os indicadores metódicos pelas sobrancelhas, tirou a t-shirt, e os seios, como molas, estremeceram de liberdade, numa provocação ao redondel, até se deterem firmes como dois ponteagudos marmelos. «Quem me dera ser bebé!», disse uma voz, «Cala-te, palhaço!», respondeu outra. O homem, depois de arranjado o poiso, pegou no tubo do creme e, num silêncio ruminante, começou a untá-la. Ela não falava, só lhe indicava com as mãos os locais onde queria o creme: mais nos ombros e nas costas. A cara, os mamilos, os braços e as pernas foi trabalho dela, em pormenor demorado. Terminado este, ergueu-se e foi até junto da ondulação lavar as mãos na areia. O seu andar era sensual como o corpo, com tudo no sítio, sem um acrescento ou uma diminuição, um fio dental a relevar umas nádegas afoitas e seguras, a respirar sexo por todos os poros. Tinha, todavia, um aspecto de súcuba, olhar esguelhado, que acompanhava sempre com um maneio da cabeça e das mãos a fingir que tirava as madeixas dos olhos. Fumava desalmadamente, soprando, pelo canto da boca, o fumo para cima, num trejeito de rufia de esquina, retirando as areias das pernas como se catasse piolhos. Estendida, de cigarro entre os dedos, puxou o guarda-sol para lhe aumentar a sombra e retirá-la ao acompanhante que continuou impávido diante das notícias da Bola.

Ao longe, por entre o amontoado humano, nascem os pregões dos vendedores ambulantes. Trazem, em cada braço, caixas de pasteis que propalam consoante a força das suas gargantas e o seu engenho publicitário. Uns, são incisivos: «Bolinhas!»; outros, mais enfeitados: «Boliiiiiinhaaaas!»; ainda outros, mais secos: «Boli!»; e os que soletram: «Há bolinhas com creme e sem creme! Há pasteis de amêndoa!» Os rapazes, ao chamamento, pousam os caixotes e distribuem bolinhas a torto e a direito a cem escudos cada uma. O calor vai apertando. As pessoas renovam unturas, passam os jornais a pente fino, também há quem leia Cem Anos de Solidão, estudantes preparam a segunda chamada, senhoras relaxam a fazer renda, discutem-se os milhões das transferências futebolísticas, arrematam-se as últimas amêijoas junto dos barcos dos pescadores.

Um Cabo de Mar e um Polícia, num roldão de apitos e vozes alteradas, investem pela praia num despropósito que confunde toda a habitualidade. Os banhistas espantam-se, pegam nas toalhas e interrogam-se, olham para o mar a ver se alguém está em dificuldade, o que será e não será, até se perceber, depois, que perseguem um vendedor em qualquer ilegalidade. Um dos cívicos, passo ligeiro, lança: «Àquele já lhe vou tirar as bolinhas!» Uma senhora, que fazia malha há uma eternidade e queria os netos sempre à sua volta, levantou-se da sua cadeirinha picada por um alfinete, deixou cair os óculos, e exclamou anelante: «Ó Senhor Guarda! O Senhor tem coragem de tirar as bolinhas ao rapazinho?!» O Senhor Guarda olhou-a, riu-se bondoso e prosseguiu o seu caminho, deixando um magote de risos encolhidos. A Avozinha fulminou-os, atrapalhou um sorriso atenuante, sentou-se, retomou a malha e afivelou a cara da boa fé injustiçada, enquanto a aparição, de mamas ao léu, levantava a juba e desenhava um trejeito malhadiço a lembrar uma preguiça sardónica.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

8/13/10

ESQUINA DO TEMPO

(Clique na imagem para ampliar)

Quando, vindo dos lados do mar, o sol rompe o nevoeiro de fumo da cidade e aquece a frontaria da Empresa em que trabalho, o cego do acordeão arma a sua cadeirinha diante da Casa das Lotarias e senta-se. Chega, pesado de solidão, do bairro da Bainharia, morador de um casebre a desfazer-se sob o olhar de Vímara Peres.

Os acordes de um vira, que se canta e dança para os lados de Viana, furam o barulho dos autocarros e das motorizadas, os claxons apressados dos automóveis e as asneiradas dos transeuntes. Toca bem o ceguinho, tem a sensibilidade no dobro do que lhe falta. É um artista que me suaviza o aborrecimento da rotina, a angústia das lembranças dos que, longe, vão gastando os dias na saudade dos ausentes. Forma-se uma roda para o ver tocar e há sempre quem, esquecendo o pudor, baile ao som da sua música. Os gestos ondulados com o bater ritmado do pé esquerdo a acompanhar os movimentos do fole, o balançar da cabeça de olhos virados para o céu e o trincar da língua a ajudar na execução da melodia, apegam-me à vida. Do alto do meu quinto andar falo com ele e digo-lhe: «Toca ceguinho das minhas tardes de chatice, faz-me esquecer as tristezas e dá-me a mão para continuar a amar e a perdoar. Anda!, refina-me essa chula que me leva aos tempos dos bagos dourados, aos lanches de malvasia com broa, aos Contos Bárbaros de João de Araújo Correia lidos à sombra de uma figueira no quintal da casa onde nasci, ao monte de S. Leonardo com os ecos dos meus berros a esmagarem-se nas fragas que tutelam o Douro e o Torga sem os ouvir. Toca ceguinho, és um irmão nas minhas horas de contas, papeis e telefonemas de aflitos, ar condicionado avariado, as mãos e os óculos e a camisa e o corpo suados e o olhar cansado em cima da secretária. Sou teu (ou és meu?) cúmplice da necessidade de lutar para que o sol não se vá embora sem um sorriso de agradecimento, para que o marketing empresarial continue a falar de produto acrescentado, de lucros, de cash flow, de investimento produtivo para que as setas dos gráficos demonstrativos de resultados subam sempre todos os meses, todos os trimestres, todos os semestres, todos os anos até que a morte apareça e tudo desça para a terra. Não conheces as cores dos carros, nem os contornos das esquinas, nem quem te deita as esmolas no chapéu virado no chão, nem quem te ouve calado O mar enrola na areia que a minha voz de criança tantas vezes entoou, nem quem te espera sempre que o sol vem dos lados do mar. Tu não me vês, mas os meus ouvido estão sempre à espera do bater da tua bengala metalizada no empedrado da rua e da tua música que me lembra o Socorro, os Remédios, a solidão colegial. Quem és tu, afinal? Que condição te fez assim, tocador das tardes de sol de Inverno, entretainer da barafunda do quarteirão citadino com dólares nas montras do câmbio, pasteis requentados nos balcões das confeitarias, o cheiro a óleo queimado, escritórios de paciência, igrejas de preces vespertinas e lágrimas a deslizarem em rugas de sofrimento ou de remorsos, comboios partindo com cansaços sentados em carruagens de segunda. Quem és tu, meu amigo, que tenho (provavelmente) uma cama melhor que a tua, uns olhos para verem coisas lindas e feias (meu Deus!, quantas!), um ordenado que, mesmo esticado, dá para te agradecer, no chapéu cinzento, o prazer de ouvir o teu acordeão do folclore da minha Pátria? Quem és tu, se não um igual, feito de carne e de sangue, cérebro que idealiza futuros, alma que pranteia o passado, mãos que agarram a esperança? Espera por mim. Hoje, quando chegar a hora da minha saída, vamos os dois à beira mar, de braço dado, sentir o sol que aquece a esquina do nosso tempo. Tu tocarás e eu cantarei até que ele vá dormir para o outro lado da terra.»
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro
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2/02/11

AUSÊNCIA

Não sei há quantos anos - talvez desde que me conheço – que transporto uma imagem-memória sem definição.
Bem me esforço por lhe encontrar a forma, a cor e o conteúdo, mas, sempre em vão.
Nessa procura me perco sem relógio, num suor pegajoso, numa dor de impotência, numa íntima aflição.
São momentos de luta interior que tanto ocorrem numa noite de espertina ou na balbúrdia do dia, sem resposta para as minhas dúvidas, convencido de que nunca alcançarei o descanso da solução.
Umas vezes, aquela imagem surge-me num revivalismo do já experimentado, mas, quando a aprofundo, logo se me dissipa a objectivação e tudo é engano, mistura de pensamento e de lembrança no esbatimento da monotonia.
Tanto me aparece no roxo da revolta como no rubro da injustiça, no negro da ingratidão como no cinzentismo da apatia.
Tanto chora numa premência de tristeza como grita numa brevidade de alegria.
Há, porém, uma minúcia que já apreendi: o sentimento da ausência. É isso: a ausência como uma fome nunca satisfeita, uma falta insuprível, um espaço sem tempo e sem modo, continuamente à espera de quem a possa preencher.
Será a ausência de uma alma que na minha se devia encaixar? Será uma incompreensão atávica perante a frieza de um mundo que não há meio de entender?
Será uma desarmonia entre uma época sem sentido e uma consciência inadaptada?
Um vazio, aquém (e além) do nascituro, como se o corpo fosse apenas o invólucro de um nome destinado ao cumprimento de uma obrigação gerada?
Mas se, afinal, isto não se explica, por que buscar, então, no intervalo da vida e da morte, a pacificação do entendimento, essa imagem-memória, se ela é uma ausência ausente, que é o mesmo que afirmar uma incapacidade racional – não uma subjectivação incomunicável -, uma omissão que se sofre no envelhecimento de um retrato que escurece tão veloz que só damos por ele quando o espelho se fende?
Vem-me de longe essa nuvem, esse tempo sem tempo, como uma sombra dos dias, como uma angústia de exílio. Queria-a na sua substância, demorar-me na sua presença para a saber inteira, porque só assim decifraria o seu sentido no relacionamento comigo.
Bastava detê-la no meu (e no seu) conhecimento e, depois de esclarecido, largá-la definitivamente.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

2/26/11

CONTRA A CORRENTE

Pega de caras o teu desencanto,
Toureia-o no redondel da multidão,
Numa qualquer praça, num qualquer canto,
E não autorizes que te ponham a mão.
Não vendas a tua palavra
Nem a tua verdade
Nem o teu amor.
Vale mais, quando morreres,
Teres o aceno de uma flor
Do que um coro de fingidores.
Podes contar os tostões,
Uma vida inteira que seja,
Podes contar as traições,
Venham de onde menos se deseja,
Podem-te vencer,
Naturalmente,
Podem-te roubar,
Cobardemente,
Mas não te podem prender
Nem convencer
A ficares calado,
Humilhado.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" será apresentado  no próximo dia 12 de Março (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Convite e informações aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

6/28/11

ÚLTIMA VONTADE


Quando eu morrer,
Que seja em Agosto
Com toda a gente de férias.
Quero morrer sem desgosto,
Sem dor e sem aborrecer,
Envolto na brancura de um lençol,
Só um padre, a família e os amigos,
Sem mais ninguém saber.
Quero morrer sem choros, sem gritos
E sem anúncio no jornal.
Morrer não é o fim,
E quem me diz a mim
Que a minha vida, afinal,
Não se renovará num caminho
De amor e carinho,
De risos verdadeiros,
Todos os dias renovados
Como se fossem os primeiros?
Quando eu morrer,
Lavem-me com a lágrima do adeus
Que quem morre sempre deita,
Não com pena de morrer,
Mas triste pelos que ficam,
Mais tristes e abandonados,
Sem saberem o que os espera:
Se a disputa de uma herança
Ou o fim de uma esperança.
Quando eu morrer,
Metam-me num jazigo
Com uma ampla janela
Para ver, através dela,
O sol de cada domingo.
Ponham-me flores e uma vela,
Uma cruz e um poema
Que aqui deixo escrito:
Nasceu sem saber porquê,
Viveu sem que o entendessem.
Morreu sabendo para quê:
Para que na ausência o lembrassem.
Basta para dizer tudo,
O que foi o meu mundo
Em criança e em adulto.
Atravessei mares e continentes,
Chorei nas noites de abandono,
Amei raças diferentes
E não sei se matei por engano.
Quando eu morrer,
Não quero ir para a terra;
Em vez de morrer uma vez,
Morreria, então, duas vezes.
Concordem que não o merecerei
E, se o fizerem, garanto-vos,
Nunca o esquecerei.
Afinal, quem vive com os remorsos
De uma última vontade não cumprida,
Naquele instante de amargura e despedida
Em que o sangue se esvai,
No grito intolerável que a vida dá,
Até se esbater cansado num ai
Que até parece que, depois dele, nada mais há?
Quando eu morrer,
As andorinhas farão ninhos
No beiral da casa onde nasci,
Cantando de mansinho
Para que não me interrompam o fim.
Apanhem uma que seja dócil e bela,
Prendam-na às minhas mãos
E deixem-me ir assim com ela,
Caixão aberto e o sol a brilhar,
As pessoas espantadas a olhar
Para um funeral nunca visto.
Batam palmas devagarinho,
Não se importem de parecer mal,
Não falem durante o caminho,
E vejam se vou a voar.
Quando eu morrer,
Se calhar, não terei tempo de dizer
O que sempre calei em vida:
Que amei tanto os outros
E alguns não me mereceram,
Que chorei por loucos
E por quem não devia,
Que encolhi silêncios
Pelos que nunca me lembraram
E alguns até se afastaram.
Quando eu morrer
Vai ser penoso ir-me embora,
Deitado, estrada fora,
Sem me mexer,
Sem poder beijar os frutos da minha felicidade,
Virtudes e defeitos do meu ser,
Os seus rostos mais lindos do que o sol a nascer
E sorrir-lhes, então, até à eternidade.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima é formada/editada por diversas fotos recolhidas da internet livre. Clique na imagem para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.

8/24/10

A Pousa

Quando, no lagar, as uvas chegavam ao ponto em que a prática de muitos anos o considerava cheio, antecipando cálculos de altura depois da pisa, os homens, ceados, arregaçavam as calças ou despiam-nas, substituindo-as por calções feitos de propósito, alguns ficavam mesmo em cuecas, e entravam naquele aos berros de calafrios. Em fila unida, enlaçados pelos ombros ou pela cintura, levantavam e baixavam as pernas sob o comando de uma voz «Esquerda! Direita! Um! Dois!» que, quase sempre, pertencia ao de uma das extremidades. Os esgares estampavam o esforço, mas os olhos tinham o ar triunfal de quem vence uma contrariedade. Aquelas pernas, raiadas de vermelho, que até pareciam de veias laceradas quando se erguiam (se as uvas eram brancas assemelhavam-se a troncos de pinheiros engordurados de resina), esmagavam o resultado de muitas canseiras, noites mal dormidas a espreitar o alto, farejando prenúncios, inventando aritméticas para chegarem para o sulfato, as folhas do pessoal e as bocas familiares. O dinheiro era contado, porém, farta a alegria. As horas escorriam sem pressas porque a vida se confinava à dimensão delas. As pousas espelhavam esses anos, pacientes e pormenorizados, com as fainas a fazerem-se no respeito sagrado pela terra e o seu fruto a invocar cerimoniais idólatras. Para cá e para lá, como se os pés mastigassem a lama de um brejo, os homens escreviam uma saga que a história narraria. Na época sobre a qual se escreve, não havia roladores eléctricos, nem a parafernália industrial que sintetiza funções mas não as deixa conhecer. Os bagos espalmavam-se devagar e os pedúnculos dos cachos, mesmo amolecidos, entorpeciam os pés.

Nos quinteiros, enquanto os homens espremiam as uvas, as mulheres dançavam umas com as outras e poucas cediam aos galanteios dos visitantes sem trabalho nocturno. Quando alguma se atrevia numa espreitadela ao lagar, logo uma voz rude lhe cortava a curiosidade. A pousa era macha e recatada de olhares fêmeos; tinha fins tardios que elas bem queriam aguardar. Quando os bagulhos subiam à tona, os homens despegavam-se e exigiam a concertina e os ferrinhos para se esquecerem do poço. Os mais aflitos, virando-se para a parede, aliviavam-se na lata estrategicamente colocada num canto; dividiam-se fatias de presunto com pão e canecas; um maço de Três Vintes dava para todos; cantavam-se, à desgarrada, piadas acintosas com gargalhadas de escárnio, os mais calados numa ânsia de acabar. Uma pousa durava três horas que, para uns, era uma eternidade e, para outros, um sacrifício que a necessidade pedia. Pagas à parte e a preço melhorado, os pés ganhavam o que os braços e os ombros de alguns muitas vezes não podiam ou não queriam.

Quando a rotina preguiçava os corpos e o sono era um apelo irredutível, o jogo da cabra-cega excitava os minutos finais. Lançava-se a sorte para o primeiro a ser vendado, atava-se-lhe um lenço à volta da cabeça, de nagalho bem apertado na nuca, obtinha-se a certeza de que ele nada via e, então, punha-se à roda a levar palmadas no rabo até agarrar o acertante, enquanto um, considerado excluído do jogo, se postava junto da prensa para evitar que o toutiço do supliciado não se esquinasse nela. Alguns, por desfastio, confinavam-se a leves raspões, mas outros - a maioria -, repentinamente atiçados por um sadismo encoberto, esticavam as manápulas e batiam sem dó nem piedade. Era uma algazarra que ultrapassava as portas, estilhaçando-se na quietude da noite e incitando bisbilhotices de quem passava no caminho. O homem, cego pela venda, voltava-se como um felino, agitando as mãos na procura dos agressores, descurando assim o traseiro onde saraivavam palmadas histéricas. Quando, porém, pilhava um, entregando-lhe o lenço, esfregava as mãos com quanto cuspe tinha e exercia a vingança numa ira de alienado. Por vezes, a sanha era tal que a película do vinho fazia ondas com os saltos e as fugas dos homens, possessos pelo acinte da desforra; quando algum, no meio de uma troça delirante, caía no mosto, a pousa concluía-se por entre juras de pagas na noite seguinte.

O lagar sossegava lentamente, esboçando a manta; os homens lavavam-se na torneira do tanque ou no vasilhame que estivesse livre; o fartum evolava-se e a lua, de mármore polido, brilhava de honestidade.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

3/31/11

A MINHA CIDADE

(Clique na imagem para ampliar)
Fotografia pertencente à galeria pública de Jaime Gabão 

A minha cidade
Tem o visco da saudade
E o nevoeiro do futuro.
A minha cidade
Tem a tristeza do escuro,
Mas, sobretudo,
O brilho da verdade.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.

  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima pertencente à galeria pública de Jaime Gabão e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

11/30/10

A MÃE DE TODOS

Alice deixou um dia a aldeia entre as montanhas durienses para servir na casa de um Senhor Doutor do Porto, levando consigo a ilusão de um sonho. Ainda foi à terra, duas ou três vezes, mostrar a roupa da cidade e os brincos que a patroa lhe oferecera. Hoje, porém, talvez já nem saiba como se toma o comboio. Enterrada a Mãe, que o Pai nem conhecera, vendida a leirita de uns almudes, fez um risco no calendário da sua recordação. Gastava as tardes domingueiras no jardim diante da casa onde fazia a comida e as camas, aspirava a alcatifa e sacudia as carpetes, limpava as pratas e entretinha adolescentes rabugentos, até achar o companheiro da sua sina. Afeiçoou-se por um mecânico e foi viver para uma casita mal alevantada dos subúrbios.

Começou cedo a criação; enquanto as marés sobem e descem, viu-se com uma ranchada de filhos. Dava umas horas como mulher-a-dias com a sogra na guarda da canalha. Passava muito tempo no hospital, nas consultas de pediatria, e dava-se, por isso, com enfermeiras e médicos com o à vontade consentido de tantas idas e vindas numa preocupação aflitiva por quem levava ao colo e pelos que deixava sob o olhar da segunda Mãe. Já nem precisava de papel ou de espera, todos lhe toleravam a prioridade, que a uma Mãe procriadora não é só o respeito a mandar, mas, também, uma admiração condoída. Vinha do fim da cidade onde a auto-estrada se estende numa fita preta que se perde, ao longe, com os carros disparados a afundarem-se nas lombas.

O rosto de Alice mostrava canseira, envelhecido antes da razão; as pregas nos olhos e nos cantos da boca traduziam embaraços e noites mal dormidas. Quase que não tinha peitos, chupados pelas bocas da inocência sem culpa de terem nascido a eito. Contudo, por cima desse espelho de privações, um sorriso bonito, muito bonito, tornava-a simpática e afável; era um daqueles sorrisos de quem logo se gosta por não enfatizar as desgraças. Acarinhava os filhos sem pieguices ou obsessões. Sempre «lavadinhos e arranjadinhos», não se escusava de, em pleno átrio, desnudar um seio mirrado para o meter na boca de um mais apressado pela hora do sustento.

Joaquim sujava-se na oficina e em biscates de fim-de-semana para sustentar a prole. Não era gastador nem seroava nos Cafés. Viciado, só no tabaco e no futebol, mas, até nestes, se moderava: fumava Definitivos e o seu clube militava numa distrital sem nome nos jornais de segunda feira. Ia sempre como um fuso para casa, sem o fastio dos casamentos arrastados. Quando a mulher se demorava, esperava sempre que a porta se abrisse. Os vizinhos da ilha não lhe ouviam um ralho ou uma descompostura e, como «casal que não se insulta não se ama», julgavam que apenas se toleravam.

Um dia, porém, as horas passavam e a Alice não chegava. Sabia-a numa consulta com «o mais novinho, de seis mesinhos». Combinou com a Mãe a continuação da vigília e meteu-se a caminho. Encontrou a Mulher na paragem do autocarro, diante do hospital, com dois bebés, um em cada braço.

- Então o autocarro não vem, é?... Estás à espera do 99 como o Samora?!... – troçou.

- Quantos já passaram!... – retorquiu a Alice.

- Espera – espantou-se -, de quem é esse bebé?!

- Foi uma senhora que me encontrou à saída e pediu-me para lhe ficar com ele.

Disse que era só tempo de ir ali, não sei onde, fazer umas compras, já lá vão mais de duas horas e não aparece. Estou preocupada...

- Oh! Mulher... Ela não volta mais! Não vês que o abandonou?!... Deixa lá!... Quem cria nove também cria dez! Vamos embora!

E lá foram, cada um com o seu filho, no autocarro apinhado, a caminho da casita mal erguida nos confins da cidade para continuarem a servir o futuro do mundo.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

9/14/11

OLHAR

Os meus olhos são um rio ressequido,
Em cada Verão de mangas curtas,
Que se enche em cada Inverno de tristeza.

Os meus olhos são um grito,
Aflito,
Que entoa em cada casebre
Carcomido
De Pobreza.

Os meus olhos são um rio de muitos barcos
Que navegam como revoltas e enganos,
Rectas e curvas feitas gráficos
De dias,
De meses
E de anos.

Os meus olhos são um rio de margens
Desenhadas pelas sombras das saudades,
Feitas memórias de viagens,
Umas realizadas,
Outras sonhadas.

Os meus olhos são um rio de desilusão,
Sofrida,
Dorida,
Mas sempre com uma esperança
- Quimera perdida -
Igual à de uma criança
Que ainda desconhece a mentira.

Os meus olhos são um rio de cansaços,
Repleto de fastio e alguns embaraços.
Sós como os choupos do esquecimento,
Sós como os vinhedos em Dezembro.

Os meus olhos são um rio de pensamentos
Diferentes,
Contraditórios,
Violentos,
Mas suaves como na Primavera os rebentos.

Os meus olhos são um rio alteroso,
Conhecedor do seu nascer,
Certo do seu morrer,
Pejado de rochedos
E de medos;
Batido pelo sol ( de quando em vez ),
Um sol de bafo e de carinho,
Tão leve como a minha Mãe fez
Quando me abriu as portas do mundo
E disse: «Meu Menino...»
Com uma voz bem lá do fundo,
Um sorriso de amor e de calma
E um alívio na alma.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima é recolhida da internet livre. Clique na imagem para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.