
E, enquanto a epidemia de cólera tenta avançar por todo o Moçambique, diz-nos o historiador e colaborador deste blogue, Dr. Carlos Lopes Bento(1):
PROBLEMAS DE ONTEM E DE HOJE: - MEIOS DE PREVENÇÃO CONTRA A EPIDEMIA DE CÓLERA VERIFICADA, HÁ 150 ANOS, EM MOÇAMBIQUE.
No momento em que cólera está, novamente, a ameaçar Moçambique, é pertinente recordar o que passou, no longínquo ano de 1859, e algumas das medidas preventivas tomadas pela Junta de Saúde para combater a epidemia que, então, atingiu não só o distrito da Capital de Moçambique, sedeada na Ilha do mesmo nome, e terras firmes fronteiriças, como também o distrito de Cabo Delgado.
Para prevenir a epidemia e atenuar os seus maléficos efeitos, as Autoridades Coloniais de então, através da Junta de Saúde de Moçambique, tornaram públicas, em 5 de Fevereiro de 1859, importantes medidas:
“INSTRUÇÕES POPULARES ACERCA DOS MEIOS DE PREVENIR A COLERA-MORBUS DE O COMEÇAR A TRATAR ANTES DA CHEGADA DO FACULTATIVO.
A Junta de Saúde da Província de Moçambique faz público o seguinte:
Tendo aparecido na Cidade, desde o dia 3 do corrente, alguns casos do Cólera-Morbus epidémico, e precisando esta doença ser tratada, logo no período da invasão, pela sua tendência a uma marcha rapidamente fatal, a todos interessa tomar conhecimento das seguintes instruções.
1.°- O cólera não é doença contagiosa, não se comunica pelo contacto; pode-se, portanto, sem receio dar às pessoas afectadas todos os cuidados, que o seu estado reclama.
1.°- O cólera não é doença contagiosa, não se comunica pelo contacto; pode-se, portanto, sem receio dar às pessoas afectadas todos os cuidados, que o seu estado reclama.
2.°- O cólera propaga-se por infecção, e está provado que a acumulação de indivíduos doentes, ou mesmo sãos, em lugares húmidos, estreitos, mal arejados, faltos de asseio, pode favorecer consideravelmente a intensidade da doença, e a sua propagação pela vizinhança.
3.°- As Autoridades competentes têm providenciado e continuam a trabalhar para tornar efectivos o asseio e limpeza das casas, das ruas, e dos quintais, mas os particulares por interesse próprio da sua família e escravos, devem espontaneamente empregar todos os meios para que a limpeza, principalmente, em seus domicílios seja sempre perfeita.
4.°- Os resfriamentos rápidos, as indigestões, o uso de maus alimentos, são causas determinantes do cólera. Às pessoas abastadas é suficiente lembrar-lhes isto, mas, acerca dos escravos, convém que os senhores velem para que eles fiquem de noite agasalhados e cobertos, e não ao ar livre; que se não deixem esfriar descansando de repente ao ar livre quando acabam de trabalhar ou carregar, e estão cobertos de suor; que não comam logo depois de um trabalho fatigante; e finalmente fazer algum sacrifício para que os alimentos sejam de boa qualidade.
5.°- Durante as epidemias do cólera é preciso dar toda a atenção a qualquer pequeno desarranjo das funções do estômago, e dos intestinos.
Qualquer pessoa afectada de dores do estômago, de cólicas, de diarreias, deverá primeiro que tudo, e posto que os sintomas sejam ligeiros, dar muita atenção à natureza dos seus alimentos, diminuir-lhes a quantidade, ou mesmo pôr-se em dieta, conforme a urgência; devera evitar a fadiga, o frio, a humidade, agasalhar-se, cingir o ventre de flanela, e tomar infusões ligeiras de chá da índia, chá de marcela ou de erva cidreira.
Havendo diarreia é de decidida vantagem o uso( para pessoas adultas) de doze a dezasseis gotas de laudano liquido de Sydenham, para dividir em quatro doses ; e tomar durante o dia em agua açucarada. Para crianças o laudano só deve ser aconselhado por Facultativos.
Estes incómodos das vias digestivas são muitas vezes os sintomas precursores do cólera por isso nunca devem ser desprezados, e da prontidão com que a eles se aplicam os meios fáceis e simples de que falámos, resulta o evitar-se com muita probabilidade um ataque formal da doença.
6.°- Se os conselhos, mais higiénicos do que médios, acima indicados não bastam para fazer parar os desarranjos observados; se a diarreia persiste, se a dor aumenta, e principalmente se sobrevêm vómitos, calafrios, resfriamento dos pés, das mãos, e do corpo em geral, ou se os mesmos sintomas se declaram, repentinamente, sem algum sinal precursor, como aqui na Cidade se tem observado em algumas pessoas, então deve fazer-se o seguinte — deitar imediatamente o doente em uma cama quente entre cobertores de lã; colocar tijolos quentes, sacos de areia quente ou botijas de água quente aos seus pés, pôr-lhe panos quentes sobre o estômago e sobre o ventre; fazer fricções nos membros e à espinha dorsal com sacos de areia quente ou com flanela embebida em licores espirituosos, como álcool, aguardente, álcool-canforado, ou aguardente com pimenta; fazer tomar, de meia em meia hora, ele intervalo ou ainda mais vezes, bebidas quentes tónicas e aromáticas, como chá, marcela, calumba; na epidemia actual, em que o resfriamento caminha rapidamente, tem-se tirado proveito do uso de alguns copos de genebra ou aguardente boa, dados em pequenos intervalos, e acompanhados cada um duma pitada de pimenta redonda; outras pessoas têm dado a pimenta em cozimento quente e bem açucarado, alternado com a genebra ou com o chá de calumba. Ao mesmo tempo põem-se sinapismos nas pernas, nos pés e nos braços para reaver o calor, e evitarem-se todas as causas de resfriamento. Havendo diarreia dão-se pequenos clisteres de agua de arroz, de alteia, ou linhaça, aos quais convirá algumas vezes juntar oito ou dez gotas de laudano (nas pessoas adultas); podem repetir-se os clisteres persistindo a diarreia.
Quando aos sintomas precedentes se juntar dores de cabeça, cãibras nos membros, a persistência ou invasão do frio em uma grande extensão do corpo, se a língua se torna fria, os olhos encovados, a pele azulada na face e nas mãos das pessoas brancas, estes indícios de maior gravidade da doença não devem fazer desprezar o emprego dos meios acima indicados, mas pelo contrario devem obrigar a aplicá-los com mais energia e perseverança até à chegada do Facultativo ou à remessa rápida do doente bem agasalhado para o hospital.
As pessoas que derem os primeiros cuidados não devem desanimar mesmo quando eles pareçam não produzir grande. melhora no estado do doente.
O fim que se tem em vista obter é fazer voltar o calor ao doente, restabelecer a circulação e os movimentos do coração; e algumas vezes só no fim de muito tempo se obtém este resultado. É pois indispensável continuar sem interrupção o emprego dos meios indicados, até que se tenha chegado a reproduzir o calor natural, que é o indício de uma reacção em geral favorável.
Estabelecida a reacção, convém animá-la com bebidas aromáticas ligeiras, se ela se conserva em grau moderado, e combater a diarreia por meio dos emolientes e do laudano, e os vómitos, por meio dos aromáticos e dos ácidos. Se a reacção é exagerada, se se desenvolve grande estado febril, são indicados os emolientes, as bichas e alguma sangria. Mas neste caso convém que o doente ou em casa, ou no hospital seja tratado por Facultativo.
Finalmente, a Junta julga do seu dever declarar que, por enquanto, quase todos os casos se tem dado em pessoas mal alimentadas e mal vestidas; mais uma razão para dar atenção aos preceitos higiénicos; e que desde o dia 4 do corrente se preparou no Hospital Militar uma enfermaria isolada, onde têm sido e continuarão a ser recebidos os indigentes e escravos.
Está-se também providenciando para a abertura de um Hospital provisório, que será aberto ao público se o número de doentes aumentar.
Moçambique, 5 de Fevereiro de 1859.
Moçambique, 5 de Fevereiro de 1859.
= António Justino de Faria Leal, Presidente interino.
= Joaquim Franscisco Colaço, Vogal.”
Meses mais tarde, o Governador-Geral João Tavares de Almeida, no discurso que fez, em 3 de Outubro de 1859, por ocasião da abertura da Sessão da Junta Geral da Província de Moçambique, ao abordar o problema da Saúde Pública, prestou sobre o assunto, a seguinte informação:
“No mês de Fevereiro deste ano, manifestou-se nesta Cidade o terrível flagelo do Cólera-morbus. Em poucos dias passou ele ao continente; e tanto em uma, como noutra parte, produziu assoladores estragos, atacando e fazendo numerosas vítimas, sem distinção de idade, nem de sexo, principalmente na classe dos escravos.
Houve sérios receios de que a epidemia se propagasse aos outros Distritos, mas felizmente não sucedeu assim. Somente o distrito de Cabo Delgado, sofreu os terríveis efeitos desta moléstia, desde 16 de Fevereiro até 10 de Abril do corrente ano.
Para maior, desgraça o Distrito não tinha facultativo algum, nem desta Cidade se lhe puderam mandar, porque só se soube a notícia da invasão da epidemia quando já tinha acabado.
Segundo as estatísticas já publicadas, o número de falecimentos durante o período da epidemia foi, nesta Cidade e parte do seu Distrito, de 749 pessoas. Consta porém que a mortalidade foi considerável em Sancul, e na Quintangonha, de cujos lugares não foi possível colher suficientes dados, e esclarecimentos. No lbo a mortalidade não foi menor e consta dos mapas remetidos terem falecido 967 pessoas.
Durante estas criticas circunstâncias que, neste Distrito, duraram até meados de Abril, adoptaram-se todas aquelas medidas que estavam ao alcance da administração, não só para debelar a epidemia, como para evitar que ela se propagasse aos outros Distritos, que a Providencia, felizmente, preservou de tão terrível e destruidor flagelo.
Com esta epidemia alguns proprietários sofreram graves perdas, e é de justiça dizer que todos fizeram em favor dos seus escravos aqueles sacrifícios, que as circunstâncias exigiam, e que a caridade ordenava.
Ao cólera sucederam algumas outras moléstias, que costumam ser o cortejo forçado de quase todas as epidemias de qualquer natureza que sejam e o estado da saúde pública ressentiu-se, por algum tempo, deste grande transtorno das condições higiénicas do país. Finalmente, as moléstias ordinárias do clima continuaram a predominar, com um carácter menos grave, mas com certa intensidade mesmo nesta época do ano, em que quase sempre o número dos atacados das febres diminui sensivelmente.”
Segundo dados publicados no Boletim Oficial, morreram, na Cidade de Moçambique, devido à terrível doença, mais de 700 pessoas, assim distribuídas, por etnias: 47 europeus, 11 asiáticos, 12 naturais, 1 chinês, 35 mujojos, 52 pretos livres, 8 pretos libertos e 541 pretos escravos.
Quanto à Vila do Ibo, faleceram, entre 16 de Março e 26 de Abril de 1859, 962 pessoas, assim distribuídas: 126 livres, 21 libertos e 815 escravos. O dia de maior mortalidade foi o dia 20 de Março, com 60 perdas.(2).
Não se apresenta números relativamente a Fevereiro e parte de Março.
Monte de Caparica-Portugal, 15.1.2009,
Carlos Lopes Bento(1).
(1) - Antropólogo e Professor Universitário.
(2) - Todo o conteúdo do presente texto faz parte de um contexto próprio, que deverá não ser esquecido na sua leitura e interpretação. Toda a informação aqui apresentada foi extraída das minhas fichas de leitura e fará parte de um novo trabalho, em vias de conclusão, sobre as Ilhas e demais terras Cabo Delgado.
(2) - Todo o conteúdo do presente texto faz parte de um contexto próprio, que deverá não ser esquecido na sua leitura e interpretação. Toda a informação aqui apresentada foi extraída das minhas fichas de leitura e fará parte de um novo trabalho, em vias de conclusão, sobre as Ilhas e demais terras Cabo Delgado.
- Outros textos do Dr. Carlos Lopes Bento neste blogue - Aqui!
Sem comentários:
Enviar um comentário
Aviso:
- O comentário precisa ter relação com o assunto;
- Spams serão deletados sumariamente;
- Para deixar sua URL comente com OpenID;
- Backlinks são automáticos.
Obs: os comentários não refletem as opiniões do editor.