Mostrar mensagens com a etiqueta M. Nogueira Borges. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta M. Nogueira Borges. Mostrar todas as mensagens

4/20/10

PREÂMBULO

(Clique na imagem para ampliar)

Reformou-se com um misto de prazer e desconforto; não sabia definir bem: um aperto onde a vida se enuncia ou o prenúncio de uma saudade em que a mesma se atormenta, uma incoerência entre o que se diz e o que se faz ou o vazio de um fim que tem de acontecer e de que se ignora o depois, um alívio de incumbência ou a certeza irremovível do tempo.

Lembrou-se de quando fez o espólio, completado o serviço militar obrigatório, no regresso de África. Depois de ter sonhado, a todas as horas, com esse dia, perguntara: «E agora?» Agora tinha sessenta e cinco e não vinte e quatro anos, o futuro encolhera, mas ainda teria tempo de saber se é mais fácil ou mais difícil polir uma identidade quando se dobra a esquina do meio século. Sentia-se dono de uma serenidade sem desalento porque o passado não lhe remoía o presente e nunca se sentaria à espera das tábuas necrológicas. Uma vaga nostalgia de fim de ciclo e o afastamento dos rostos e das camaradagens ensombravam-lhe a decisão. Recuperaria os agrados antigos quando os livros o faziam viajar pelos caminhos da fantasia ou lhe levantavam dúvidas desconhecidas; ouviria as vozes que lhe ecoavam dentro enquanto o sono demorava; sentiria a revolta pelas mediocridades que excluímos de nós, num auto-convencimento de suficiência que, egocentricamente, nos compraz; observaria as pessoas e catalogálas-ia pela testa, os olhos, o nariz, o sorriso, o falar, a pose, o andar, os gestos, fotografálas com a distância do desprendimento que não concentra a obrigação, aquela voluptuosidade de adivinhar nos outros a (dis)concordância entre o parecer e o ser. Não seria um tíbio praticante nem um pequeno burguês preocupado com o estatuto, mas o que o tempo desse que é sempre o contrário do que se deseja. A vida ensinara-lhe que não há prudências nem regozijos programados, pois ninguém controla os desígnios. Convencia-se, por vezes, de um fatalismo insuperável e nele justificava os desaires, ausentando-se de um tempo que lhe cheirava mal, de um mau gosto intragável, e pouco lhe dizia a vida sem princípios com os deuses todos a morrer como se as gentes os inutilizassem. Vivia-se uma idade de ausência de modos, sem regras; matava-se como quem não reprimisse um instinto; insultava-se como quem praticava um costume; cortava-se com a amizade, sem um arrependimento, como se só a implicação creditasse o carácter; apunhalava-se uma gratidão como quem risca um erro ortográfico. Aprendera que noventa por cento do que se faz é inaproveitável e os dez restantes é que salvam qualquer mortal. Amava a vida, mas não esquecia a morte. Era um conflito entrea luz e a escuridão. A morte era-lhe essa marca da infância, semelhada pela vida fora, do tamanho de uma sombra poligonal, conjecturada e não vivida. O pai morrera cedo quando ainda era um nascituro. Partira sem lhe dizer adeus, um adeus sentido, com lágrimas e com dor. Não conhecera o Pai nem sofrera a sua morte, e morte que não é sofrida nunca se aceita. Fora sempre a sua vulnerabilidade, a sua angústia, uma ferida que se disfarça, mas não sara. Finar-se-ia com essa orfandade incessante, nunca permutada. A morte, era-lhe, assim, uma injustiça divina e uma ingratidão do destino porque, crente, nunca a compreenderia na sua ocasião, suportando-a em silêncio, contra os risos e as incompreensões, os desprezos e as raivas, um castigo sem culpa, impossibilitado de apresentar provas e testemunhas da sua inocência. Transportou essa memória negra dos mortos falados nos caminhos da aldeia, as pessoas a fazerem-lhe festas como a um gato de luxo triste, e as vozes cochichadas dentro de casa a encobrirem segredos para evitar agoiros.

Da janela do seu quarto, olhava a rua cheia de carros, aflitivamente parados, os transportes públicos, biombos laranjas, engolindo pessoas de cheiros disfarçados com lavanda ou almíscar, calças justas a amparar as carnes e a atiçar as varizes, olhos esfiapados de sono, ostentação de roupas e anéis, cabelos de gel e olhares de cima, misturados, a contragosto, na selva dos dormitórios.

Chovia desalmadamente, uma chuva oblíqua ao sabor de um vento de pedras que vergastava tudo, um frio tão forte que nem o roupão lhe impedia o sentir. Respirava-se um ar de malícia, degradação e restos de capricho; dir-se-ia a insurreição do céu que derrubava árvores, casas, pontes e vidas. As televisões, os rádios e os jornais não paravam na descrição das tragédias que enlameavam terras e enodoavam almas. Era um retrato incorrigível que não se pode alterar o vazio dos rostos na falência dos sorrisos. Parecia tudo estilhaçado num ruído de vidro antigo. Os velhos diziam que era uma maldição da natureza por tantos e tantos anos a escarnecê-la, os novos calavam-se, incapazes de entenderem as profundezas do mundo.

A sua rua era um beco de rupturas, ardil de invejas e, até, o engana–vistas do ódio. Todos queriam andar, afirmar a sua atitude, e só não passavam por cima uns dos outros porque isso corresponderia a uma destruição mútua. Olhava-os com aquele deleite de quem já tendo vivido um mal e a ele escapado, se via, agora, livre de voltar a suportá-lo. Acabavam-se os acordares com o rádio a dar as desgraças das sete, a noite ainda pesada, a chuva a zunir na floresta cimenteira.O emprego transformara-se num trabalho à tarefa, vigiado por computadores e  olhos medrosos de não agradarem aos contabilistas dos cifrões; serviços quantificados em minutos de qualidade inútil para a engenharia dos milhões. Longe iam as datas em que o dinheiro tinha a normalidade do sustento e não a exclusiva ganância de um lucro, em que se solidarizavam valores e o companheirismo defendido como arma de classe. Agora, era tudo de uma dolorosa deselegância e indiferente comodismo; ontem, havia pobres e ricos, hoje, desgraçados e milionários; ontem, lutava-se por reciprocidades, hoje, por imitabilidades. A revolução, nascida de um grito refreado durante décadas, nacionalizara, de afogadilho, os grandes grupos para depois os revender aos antigos ou novos donos. Era a quitação das facturas, o ajuste de contas, a adaptação ao novo liberalismo de tiques nunca esquecidos, mesmo que alguns falsos estalinistas, praticando astuciosa duplicidade, fingissem amargura com os bolsos já cheios na amálgama revolucionária.

Quando a tecnologia começou a dispensar o raciocínio e a apelar ao titerismo, a ginástica mental sorrateiramente despedida pela eficácia cibernética, os sentimentos anestesiados pelo clorofórmio dos indicadores de rentabilidade e os corações endurecidos pelas cantilenas tecnocráticas, poucas dúvidas lhe restavam de que o seu prazo de validade estava a chegar ao fim. Concebia a reforma à moda antiga quando da função se saltava para um púlpito de onde se viam as pessoas e as coisas com a calma da experiência, mesmo de azimute encurtado. A viagem para o esquecimento tinha novos entendimentos e as prateleiras empresariais estavam cheias de inocentes ultrapassados pelas modernas gestões de recursos humanos para quem um SER é uma atrapalhação. Juntaria os seus anos de militar à força, descontados a preço rapace como se o tempo dado às fardas fosse um interlúdio turístico, e voltar-se-ia para a nascente da sua esperança para com ela percorrer as últimas milhas do seu termo.

A vida era de uma brevidade assassina e os afectos não a comandavam. A sobrevivência fazia-se pelo assentimento do silêncio. Quando afrontava a pestilência, perdia sempre; não sabia mover-se no charco da intolerância. No meio, até ao estoiro, ficavam os espasmos da alma. Pensava, pensava muito, e entusiasmava-se tantas vezes calado que, quem o visse, julgá-lo-ia um asténico de sorriso exegético ou dúplice, com as lágrimas sobressaltadas tanto na inquietação quanto na placidez. Pertencia àquele modelo a quem se pergunta se algum problema o incomoda e a explicação nunca se dá porque é impossível entender como resposta: « É o mundo que me aborrece, tão injusto ele é. » Dizer isto é um estorvo, uma idiotia, uma excentricidade que coloca qualquer um no lixo esquizofrénico. Mas era a sua resposta, não tinha outra, e, quando o Inverno  lhe castigava os ossos, só a ironia o ajudava a suportar as horas. Era um ironia metálica, mistura de palavra laminada e olhar cortante - tamanho o sarcasmo - que condescendia com a perturbação e o insulto alheios como se eles lhe justificassem, ainda mais, a desafectação com que os encarava.

Iria, então, encher as folhas virgens dos seus cadernos, ditar-lhes memórias e hojes, mesmo que não achasse o termo correcto para o que se sente e se quer dizer; escrever até ao cansaço, até doer, correndo os perigos de não o perceberem, na desilusão das suas esperas e na acusação dos seus conceitos; escrever para espantar demónios, destruir fantasmas, repelir sofomaníacos, aplacar despeitos, desfiar paixões e dedilhar desejos. Ele sabia que quem escreve não é eunuco, e dar luta à frieza humana contraria o fim civilizacional. Por isso, escreveria, mesmo que as gavetas engolissem as suas palavras, mesmo que um dia as rasgassem, mesmo que um dia as queimassem. Floresceriam com ele numa fraternidade impaciente e perturbadora, num sonho de sede insaciável.

Chegara o seu tempo de recordar, que, com amar, é dos verbos mais sérios da vida.
- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

4/14/10

CARTA DO LAGO

É a hora em que a tarde morre por entre as palmeiras que bordejam o lago como uma ilha rodeada de terra. Não se vêem canhoneiras da marinha nem canoas de pescadores negros, só o borbulhar das águas de encontro à palha apodrecida. O ar está parado como a resignação dos homens, vidas adiadas que anseiam o tempo de as refazer. Já nem vigiam, assistem ao escorrer das horas que desejam calmas, para se irem deitar sob as latas ou lerem as revistas que o Movimento Nacional Feminino lhes manda. O fastio derrama-se nas faces e as cartas da sueca quedam-se na mesa de pedra; nenhum vento as leva, nenhuma vontade as usa. No perímetro à volta, capinado há muito, não se distingue a vala, só uma solidão acabrunhante de matar à nascença qualquer riso, que incomoda os nervos de quem desaprendeu o futuro.

Escrevo-te cheio de cansaço e de suor. Há duas semanas que não saio para a picada. São quinze dias de maior certeza de vida. Tudo está quieto, estranhamente quieto, demasiadamente quieto, de desconfiar. É sempre assim que começam as tempestades. A minha fadiga é mais de dentro. Pareço de chumbo. Às vezes, penso se já não perdi a capacidade de amar. Só que, quando me lembro de ti e as lágrimas me tapam os olhos, sei que estou vivo, com todas as esperanças renovadas, capaz de te fazer desaparecer o luto que vestiste quando parti. Já vi o que nunca imaginei, senti o que ignorava como se sentia, e só temo que me habitue à violência como uma defesa perante os desmandos da loucura. Tenho dias em que sonho morrer, muito velhinho, na curva de um rio, à sombra de árvores frondosas, com os melros a cantarem numa manhã ensolarada. São – vê lá tu – dias escuros, com o cacimbo a tapar a mata, um eco doloroso das cantigas da minha infância quando me perdia nos caminhos dos vinhedos, levando comigo as horas de regresso por ti marcadas. Eram os tempos dos ninhos de pintarroxos, do perfume da erva, da quietude das sestas e do azul do sulfato a confundir-se com a largueza do lugar para onde vão as almas dos justos. Era o tempo da inocência, o melhor tempo de toda a gente.

Vêm, dos lados do Niassa, uns cheiros muito fortes de capim queimado, arrastados por uma correnteza de fim de dia. O mundo acomoda-se para o sono e a noite não sei que mistérios vai mostrar. O matagal fecha-se. É a hora da fauna. Sente-se vontade de rasgar a clausura, fazer em cacos o espelho da dissimulação, esmagar este pesadelo interrogado: « Alguém se lembrará, um dia, que aqui estive(mos)? »
- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

4/06/10

A PROMESSA CUMPRIDA

(Clique na imagem para ampliar)

A velha urbe flaviense recolhia-se às abas da Serra Amarela, vinda das bandas do Gerês, elevada nas redondezas do Quartel, protegendo a veiga produtiva, até se perder em domínios castelhanos. Fazia um frio de rachar e a neve branqueava as agulhas daquela.

Era uma cidade-quase-vila, de velhas pedras lambidas pela história e pelas águas do Tâmega, com uma ponte onde não se apagavam as marcas dos tropéis romanos, um castelo esquecido de rivalidades fronteiriças, invernos tristes e desconfortáveis, ruas desertas e janelas sem rostos. Tinha, contudo, o delicioso aconchego de província, as gentes festejavam os olhares e fraternizavam-se na proximidade. Os mais afoitos, quando os serões televisivos nacionais ou espanhóis não convidavam a ficar em casa, juntavam-se nos Cafés e no único Cinema. Cidade simples, sem afectações cosmopolitas, todos se conheciam a ponto de o carteiro distribuir a correspondência sem olhar para os números de polícia. Estranhos eram os militares que, ciclicamente, desciam dos comboios a abarrotar, acartando malas e garrafões, para tirocinarem na especialidade de caçadores, partindo, depois dela, anónimos e espaçados, para os barcos da lisboeta Alcântara, o destino marcado nos matos africanos. Mas, enquanto permaneciam, depois de um breve acomodar, misturavam-se satisfeitos na convivência civil, recebidos com carinho pela idiossincrasia local e a compreensão dos ditames que os obrigavam. O movimento comercial gerado era mais uma consequência do que uma exclusivista razão de interesse. Às vezes, ficavam raparigas à espera de carta, mas não se incomodavam muito quando elas não vinham porque havia sempre comboios a chegar à estação. Vendiam-se, da vizinha Galiza, caramelos e bebidas, roupas e perfumes que não precisavam de trilhar os desvios do contrabando; as gentes, de ambos os lados, cruzavam-se como se do mesmo mapa fizessem parte que a raia abria-se aos rostos e familiaridades acostumadas.

Luís, enfiado na cama, olhava, pelo janelo gradeado, a chuva repetitiva. Mexeu-se no beliche e aconchegou os cobertores. Precisava de dormir pois ainda teria um turno para fazer, mas, o sono não pegava. Na Casa da Guarda, o silêncio só era quebrado pela tosse do Sargento Féteira. Quantas noites destas, sem pregar olho, teria de passar nos anos que lhe faltavam para regressar à vida civil? África esperava-o. África, para ele era aquilo que o Aspirante lhe explicava na instrução, o que ouvia falar aos que já por látinham passado o mato, as picadas, as emboscadas, os cercos, os tiros, os corpos estropiados, o ter que matar para viver.

O Sargento voltou a tossir, parecia que lhe saltavam os bofes.

O que lhe convinha era a sorte do Ribeiro que, ainda no último domingo, entre uns copos, lhe voltara a repetir a mesma conversa: apanhara com duas granadas nas pernas e nenhuma rebentara. Caramba!, o tipo não andaria com aquela ladainha toda só para impressionar e se armar em valente? Ele nem era nada de especial, conhecia-o bem, uma vez até lhe veio pedir ajuda para uma questão antiga com o Zé da Formiga, que andava sempre a ameaça-lo que um dia lhe cortava o pescoço. Se calhar nem um tiro dera e para se enfatuar arrazoava aquilo.

O Sargento tossiu novamente, agora mais demorado, pareciam arrancos dos pulmões.

Coitado, o homem estava todo roto. Ele também dizia que as madrugadas africanas é que o puseram assim, o nevoeiro de lá era tramado, metia-se nos ossos e dava umas febres que até podiam matar. Havia de perguntar ao Ribeiro como era isso do cachimbo ou cacimbo, toda a gente o nomeava. O que ele mais queria não podia afiançá-lo: voltar vivo. Se morresse, que fosse num instante, sem dar tempo para se aperceber; assim: “um tiro, tau, e já foste”. O Aspirante Correia, que era da sua terra e lhe dava boleia aos fins de semana, bem lhe dizia para não ser pessimista e pensar em gajas boas para se distrair, sem se amarrar a nenhuma, e que haveriam de regressar os dois com os amigos e a família a botarem foguetes. De uma coisa ele não desistiria: viesse lá quem viesse, naquele corpo só poria a pata quem se antecipasse na sorte ou no fogo. Custava-lhe deixar a Mãe que passava a vida a dizer: «Mal tu partas, ponho luto e só o tiro quando regressares.» Pareceu-lhe que a chuva entrara na caserna e lhe inundava os olhos. Puxou o lençol sebado e limpou o rosto. O Pai não lhe custaria tanto, sempre bêbedo, dando mau viver, a entrar em casa aos berros, gritando que estava farto de trabalhar sem que o dinheiro chegasse, que o que gastava em vinho era um migalho de nada.

O Sargento teve outro ataque de tosse, aquilo dava-lhe como se um relógio despertador lhe marcasse os tempos de descanso e de tosseira.

Quando viesse também teria aquela tosse como a esgana de um cão? O Féteira não era mau tipo, um chico sempre com os regulamentos na boca, a ameaçar porradas a torto e a direito, aos berros de «vocês não me fodam! Eu quero é chegar ao meu tempo sem problemas e, depois, mandar-vos todos p’ró caralho! Ouviram ou querem que vá ao micro?!».

Mas o que lhe importava, agora, era a sua próxima licença de Natal, comer o bacalhau e as rabanadas da Mãe, mesmo que o Pai só pedisse vinho. Quem sabe se seria o último? Em África, diziam, não havia Natais nem nada, aquilo era sempre igual e tinha que se estar sempre com os olhos abertos para não se ser apanhado com as calças na mão.

O Cabo da Guarda nem precisou de o chamar. Mal o viu entrar no cubículo, levantou-se, vestiu o capote, enfiou o capacete, pegou na G-3, esperou que os outros se arranjassem e lá foi para o seu terço de sentinela. O bofetão da madrugada devolveu-lhe a realidade. Bateu várias vezes com as botas no chão, esfregou as mãos, bufou-lhes, e, trocada a senha, plantou-se na guarita. A manhã estava vai-que-não-vai para nascer, o rascunho do sol ganhava definição, já havia barulhos e vozes domésticas nas casas rentes ao muro. Sua Mãe, a esta hora, devia estar a preparar-se para ir ao Corgo lavar a roupa; o Pai, esse, só pelas sete costumava terminar a cura da borracheira para a reiniciar com um naco de broa, uma fatia de presunto e um copo de aguardente que a Tia Francisca do Alto – secular e durázia governanta da quinta em que ele, por intercessão dela, trabalhava aos dias – lhe dava, às escondidas dos patrões, com o carinho condoído por alguém que substitui o filho que não se teve.

Luís, no seu posto de inútil vigilância, pedia que o sol se apressasse e sonhava com o dia da sua licença de Natal. Ele ignorava que aquele seria - felizmente que ninguém sabe quando é – o seu último Natal.

Luís morreu, num dia de Novembro de mil novecentos e sessenta e oito, na serra Mapé, ali onde a Frelimo não suportava a tropa do puto. O destacamento de que fazia parte, incumbido de subir a serra para dar protecção aos fuzileiros que terminavam a nomadização, descia para Macomia com a miragem de uma semana de descanso na praia de Wimbe. Uma bazucada não lhe deu tempo para chamar pela Mãe. Morreu
como quisera: “tau, já foste!”. A granada embateu no ponto em que a porta se ajusta ao tejadilho, ricocheteou para o interior da cabina da Berliet e, num estoiro de fim do mundo, desfarelou-os, a ele e ao condutor, enquanto o resto da coluna, saltando das viaturas, despejava carregadores e filhos da puta à toa numa resposta de desespero e raiva à emboscada. Foi enterrado, a aguardar vez para um calado regresso em urna de chumbo, no cemitério de Porto Amélia, debruçado para o Índico. Não soube se a serra Mapé era Amarela e se o Natal africano tinha frio e neve.

O Aspirante Correia, já Alferes, enquanto o acompanhava, sentado no Unimog a cair aos bocados, ao lado da urna, olhava a medalha que ele lhe entregara, numa premonição inocente, para «no caso de eu marar, veja se a entrega à minha Mãe».

Cumpriu o que lhe prometera. Numa tardinha de Abril, quando os cavadores se recolhiam para o caldo e o apresigo, viu, da janela, como um dó, o luto da Silvina com um caneco de água à cabeça. Hesitou outra vez - há dias que se consumia na irresolução -, mas, queria livrar-se daquele carrego. - «Tem de ser hoje!». - Saiu de casa e interrompeu-lhe o caminho.

- D. Silvina – pigarreou -, tenho-me esquecido de lhe entregar uma coisa que o Luís me pediu.

- Nem a quero ver, senhor – disse-lhe numa voz enregelada, deixando-o paralisado pela rapidez da compreensão do seu intuito. - Agradeço-lhe a sua boa vontade, mas já nada adianta para a minha vida. – Os olhos não tinham lágrimas, só um frio caliginoso. - Enterre-a ou deite-a fora, dei-lha em vida não a quero na morte.

- Compreendo-a - gaguejou com receio de se abater - , mas tenho que cumprir a promessa. – E empolou a palavra num apelo a escrúpulos religiosos.

Silvina olhou-o num instante que lhe pareceu implorativo (não decifrou se a água que lhe cobria os olhos escorria do caneco ou lhe nascia no peito), abriu a mão direita e disse: - «Deixe-a ver.» Meteu- a no bolso do avental e retomou o andar.

A medalha - nunca o esqueceria - tinha uma imagem da Senhora da Graça e no verso uma frase: «Oferece a tua Mãe.»
- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

4/01/10

SELVA EM PAZ - Capítulos III e IV

(Clique na imagem para ampliar. Imagem recolhida da net)

Capítulo III - Distinguem-se as feições dos homens ao redor do pequeno fogo em que se cozem as batatas para acompanhar as sardinhas de conserva. A lua vai nascendo encantada, mas medrosa. A vegetação é uma copa interminável onde os restos do sol se espalham como pinceladas de sangue de um artista desesperado, cinzas de um incêndio da imortalidade dos tempos. O escurecer, mais do que triste, é embriagador, algo insidioso, a proclama dum sufoco qual mortalha de uma inocência, um peso de agonia. De quando em quando, relâmpagos riscam o céu, grafites rápidos e secos descobrindo a prenhez das nuvens esbranquiçadas, os trovões ribombam quais monstros pré-históricos; é um tolher de espanto, um esmagamento que nos pendura nos fios da timidez. Sobe até o cimo da achada uma viração fria que revolve a folhagem e o pó como se aquela nascesse debaixo das nossas botas. Há quem sobreponha aos dolmens as esverdeadas camisolas de gola alta, se enrole apressadamente aos mosquiteiros e aos sacos de dormir. Há uma soledade de túmulo. Ouvem-se algumas pieiras de brônquios tabaqueiros ou debilitados pelo relento. As estrelas, pirilampos minúsculos, chegam aos poucos, a justificar a noite, mas os prenúncios de chuva não se concretizam. Para sul, uma queimada enorme elevasse num triunfo vermelho, aparentemente descontrolada, a toada das cigarras espalha lembranças de uma inocência perdida.

Come-se para enganar, um mastigar silencioso, uma formalidade obrigatória. Na contraluz, as gargantas têm os movimentos dos engolires contrafeitos. Há assobios, por entre cigarros, no canto do alpendre; olhares de vidro reflectidos nas brasas, esperando que elas se extingam; um portátil sintonizado no emissor regional do Rádio Clube de Moçambique a responder aos discos pedidos. Então ele, o Alferes desta história, sem nada para dizer ou fingir alentos, olha para a patina do horizonte onde umas nuvens metalizadas dão uma miragem de água; pergunta por que é o mundo assim, vigiando-se o que pertence a todos, como se houvesse feudos de teimosias, ganâncias de posses, disputas de glórias feitas razões de sobrevivência; pensa que todas as guerras são forjadas por eunucos esquizofrênicos, ditadores assexuados, estupores purulentos; e nós – nós que obedecemos - balimos, feitos carneiros do pasto, mas não gritamos como gente nem desfazemos essa escória do mando para vivermos livres e em paz.

Um cacimbo húmido começa a envolver a terra, uma espécie de moinha leitosa que embebe os camuflados. O pessoal está sujo, adormece com as côdeas, o óleo dos suores e o chumbo do cansaço. Ouvem-se, distantes, tambores de batuque: talvez se encomendem aos cazumbiris, se comemore a desfloração de uma cafusa, se implore Maomé numa morte desconsolada ou se espantem os espíritos de doença maligna. O piar ávido de um milhano lacera a noite e um calafrio estremece os corpos.

Enquanto os homens já dormem, ele sonha com um mundo onde o amor não seja uma paga mas uma dádiva, os barulhos das lutas sejam substituídos pelos esvoaçar das aves entre palmeiras, todos os homens caminhem de caras levantadas sem receios de serem cuspidos, as vinganças e as perseguições não existam nem nos corações nem nos dicionários. A lua, de um ouro de poesia, de paz e de reconciliação, beija-lhe o rosto.

Recosta-se no assento do Unimog. Fuma LM. Não tem sono. Manda acomodar os plantões. Ele substituí-los-á na atalaia. Agarra-se ao volante e imagina-o leme de avião. Puxa-o para si. A viatura levanta como um condor. Voa silenciosa sobre o mato, de bico-motor apontado à fita de zinco tangente à Terra, até pousar, com a leveza de uma pena, num quintal onde uma Mãe, de preto vestida, espera de braços e sorriso abertos.

Capítulo IV - Andávamos há cinco horas. O calor apertava, criando riachos aquosos. Dois furos, quase seguidos, arreliaram-nos a paciência. Os solavancos na picada obrigavam-nos a pulos marsupiais. Tínhamos que estar no acampamento antes da lua nascer. Lá arranjaríamos um pisteiro. Um javali destrambelhado obrigou-nos a nova paragem. Saltei da caixa do Land- Rover, levei a carabina à cara e apontei. O bicho, estacado, contemplou-me. Estremeci. Aquele deu meia volta e desatou à desfilada.

- Então, não atiraste? – gritou o Zulmiro.

- O tipo não deixou... – gaguejo.

Continuamos aos saltos. Ergui-me, oferecendo-me ao entardecer. De quando em vez, um preto desmontava da sua ginga para saudar. «Cuidado, agarrem-se!», gritou o condutor. Finquei-me, e passou-se o pontão só com um estrago: a garrafa termos do café partiu-se. Um bando de macacos guinchou sobre as nossas cabeças, pendurando-se nos braços das mangueiras.

Chegados ao acampamento, falámos e bebemos cerveja com um caçador profissional: baixote, entroncado, tez de chocolate, abundante calvície, falares e modos desembaraçados. Emprestou-nos um pneu sobresselente, agradecemos o acolhimento, mas, não nos arranjou um piloto.

A noite germinava. Apetecia ser filho daquele mundo e rebolar no capim aljofarado, chamar a bicharada e levantar com ela um salmo de glorificação. O condutor bateu com a mão na porta: «Leopardo!» Dois olhos amarelos, como anéis de médico, estavam hipnotizados. Tiraram-me a arma das mãos; nem me mexi, narcotizado por aquele olhar que, pareceu-me, no súbito, ter a frieza do hábito e o ímpeto do ódio. Um uivo cortante, um arrepio de neve, os pêlos eriçados, um sangue de pânico. O tiro falhara.

- O gajo levou chumbo - julgou Zulmiro, caçador fanático quando as contabilidades do algodão lhe davam uma folga.

Continuámos a marcha e, deixando a picada, virámos à esquerda por um trilho que rasgava o mato denso a roçar o Land-Rover. Alguns ramos, mais inclinados, obrigavam nos a baixar as cabeças e os abanões eram maiores.

Ligou-se o farolim à bateria e apagaram-se os faróis.

- Agora nada de atirar ao calha! – advertiu o Chefe para quem uma caçada era um memória brasonada.

Procurei posição certa, juntamente com o Justino, de férias administrativas, e começamos a acompanhar, de um lado para o outro, o jacto do holofote. Ansiávamos a planície, «lá a caça é maningue!». A vegetação emaranhada não dava grandes esperanças. Ao bater cavo duma mão no tecto, a viatura estacou. O tiro partiu seco, tal uma chicotada, e o eco enrolou-se na lonjura. O Justino saltou e, guiado pelo foco e pelos gemidos de animal ferido, procurou, procurou, até, acabrunhado, regressar à caixa do jeep.

- Começo a não gostar desta merda! – verrinou o contabilista. - Primeiro um javali porque ele não deixou, depois um leopardo, e logo um LEOPARDO, a fazer pouco; agora um chango que vai à vida... Grande gaita... Mais valia ter vindo sozinho...

Ninguém lhe respondeu. Como um comboio saído de um túnel, entrámos na savana. Esmagadora! O céu - um arco majestoso tecido por nuvens de algodão em rama, tapando e destapando as estrelas – dava-nos a percepção de pequenez indescritível numa visão sem tamanho. A partir daqui já nada mais interessava. Podia o Zulmiro lançar os seus protestos à azelhice dos seus acompanhantes, matarem-se, ou não, alguns bravios, cobiçar troféus para demonstração futura. Com aquele arrebatamento da terra feito de odores húmidos e ferventes de vida, importava venerar a criação, deixar que a noite soltasse as suas insídias, mostrasse os seus duendes e aplacasse os impulsos humanos.

O chango, a quem, desta vez, a sorte não sorrira, em aflitivos estremeções, tentou erguer-se, remirou os olhos enevoados e tombou, finalmente, vencido. O ventre só deixou de latejar quando o corpo retezou. Senti um incómodo de traição, um remorso de desforço, uma inutilidade de ofensa. Içamo-lo para a caixa da viatura. Descarreguei a arma e segurei-a debaixo do seu corpo. Acenderam uma fogueira para corrigir hipotéticos erros de orientação. Sentei-me, encostado ao animal, e puxei de um cigarro. O cacimbo gelava-me os ossos. Vesti uma camisola grossa. O paludismo viria mais tarde e nem as pastilhas LM me salvariam da sezão. Deixei-me ir, envolvido por aquele assombro, pelo inexplicável do universo feito sobrenaturalidade que inutiliza as heresias. Aconcheguei-me mais ao chango até sentir o calor da sua penugem, o seu cheiro selvático de esterco e capim colado ao dorso, a quentura ainda recente do seu sangue; entorpecido por este apoio, em contraste com o rocio da madrugada, adormeci. Não sei quanto tempo assim estive. Acordei com os berros do Zulmiro por terem perdido outra pantera. Quando me soergui, a lua tinha uma turvação violácea e os olhos do chango continuavam abertos feitos dois espantos a perguntarem-me: «Porquê?»

Algumas queimadas dispersas pareciam destroços fumegantes de um exército vencido.
Fim.
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue

3/25/10

SELVA EM PAZ - Capítulo II


Capítulo II - Quando o dia nasceu, alguns ainda se voltaram para o outro lado, no cimento, qual cama fofa, como se apenas um despertar errado lhes interrompesse o sono. Os rumores do dia, derivativos dos usos e costumes que, em qualquer convivência, se decifram em sortilégio universal, iam tomando conta das gentes.

Ao fundo, a selva cerrada, sem visibilidades de caminhos ou uma aberta na espessura, fervia envolta em vaporação, tal uma manta acolchoada a tivesse coberto durante a noite; fazia lembrar uma vista de avião quando este, sobrevoando as nuvens, parece parado...É de manhã cedo que África nos transmite as fragrâncias telúricas da sua intimidade como uma vestal eternamente florada, uma glorificacão ontológica sob um céu tão claro e um ar tão fresco que até emociona; germinal ininterrupta de paixão alucinada, quase violenta, mas sem pressa de concretizar, suavidade de um amor constante, quase quimera, com os séculos para usufruir os aromas que há na terra; Primavera e Verão abraçados como se as eras fossem um só tempo e um só modo numa flutuação de arroubo.

O Chefe de Posto surgiu, bem disposto, com o seu caqui de ferro recente, calções de festos impecáveis, divisas bem salientes nas ombreiras, dando as últimas ordens aos sipaios, inspeccionando o Land-Rover.

- Quando quiser partimos. Tenho que chegar a tempo de dar o mata-bicho àquela malta que está no pontão nº 5 - disse ele, escorreito. – Não podemos ir muito de bala porque entorna-se tudo- acrescentou, explicativo.

Sossegados os estômagos com café, pão recesso e doce de bisnaga, arrancamos debaixo de uma estalaria de motores com o Goês e os seus homens à frente.

Por onde passávamos as reverências eram tantas que chegavam a incomodar: as mulheres, de filhos atados às costas, riam-se e gritavam um dialecto incompreensível a que, no entanto, o jovem do caqui - num alarde poliglota... - correspondia; os homens, menos efusivos, cautelosos quiçá, estremavam as saudações a ligeiros levantares de braços como quem diz «vai andando!»; a canalha, receosa, afastava-se para as bermas. O capim, as mangueiras, cajueiros, maúmas e lusares formavam um emaranhado por onde o sol entrava em serpentinas prateadas; as copas e os ramos abraçavam-se, desprendiam-se, agarra aqui, solta acolá, para, num espanto, surgir uma clareira de machamba e meia dúzia de palhotas; os murrambés, namurires e marriés, surpresos pelo barulho que lhes cortava a consonância, voavam para cantar nos esconsos da floresta; macacos guinchavam de galho em galho e, alguns, quedavam-se, fitando-nos ariscos; javalis, de rumo perdido, atravessavam-se sem saberem para onde atinar; feios e maus, os mabecos atiravam olhos esfomeados; de espaços a espaços, pequeníssimos trilhos de pés descalços segmentavam-se pelos flancos da picada; um cheiro acre, a mato queimado, lembrava fogos de eternidade.

O Chefe monhé – Suliman de seu nome- abrandou a marcha, sinalizou com o braço para pararmos, meteu-se num desvio e estacou de imediato. Envolveu-nos um marulho de suão que, em contraste com a inércia dos fragores anteriores, aparentava um sussurro de maré a esfriar o suor. A uns passos dados, num sobressalto infantil, surgiu uma represa de postal ilustrado. A água era tão transparente que se via o fundo lodoso. Os cívicos Macuas, às ordens do chefe, encheram jerricans. Era uma zona de penumbra, tal a densidade do arvoredo miombo de mbilas, jambires, pau-preto e sândalo.

- É para a brigada cozinhar. É pura como a selva... – respondeu-me Suliman, ao ver o meu olhar de surpresa.

- Parece um bebedouro...

- É a Lagoa Sagrada...

- Lagoa Sagrada?!

- É uma lenda. Esta gente diz que morreu aqui – ninguém sabe há quanto - um leão que perseguia um feiticheiro...

- ...

- Esta malta acredita nestas coisas... Quando o animal se ia mandar ao velho, este fez umas rezas, o leão parou e o quimbanda matou-o com uma punhada... Desde aí, nunca mais, nestas águas, um bicho meteu o focinho... Sempre que alguém aqui passa vai sempre carregado... É água santa!!!... – bradou irónico.

- Como a do Ganges...

- Isso é como comparar um chifre de rinoceronte a uma presa de elefante...- atirou a fingir-se melindrado.

Quando chegámos ao pontão, a meia dúzia de trabalhadores recebeu-nos em alvoroço, embora se percebesse alguma estranheza pela companhia dos camuflados. Havia duas míseras tendas colmadas, uma fogueira gigante com um panelão de igual tamanho em cima de umas pedras enegrecidas, alfaias dispersas e duas canoas na lama da margem. O rio era estreito, mas não se chegava ao outro lado numa braçada.

- Patrão, sô Firrera num dexou tronco. Tá tudo pronto, os riforço tão seco, falta tronco só – pormenorizou o que parecia ser o encarregado.

Suliman olhava em volta, semblante contrariado, enquanto a mandioca, o peixe seco, o vinho, o pão, o arroz, o milho e os jerricans da água eram retirados da caixa do Land-Rover.

- O senhor Ferreira vai ter milando comigo! Depois dizem que os pretos é que não fazem nada! – crocitou, fitando-me, intencionalmente, o indiano. – Vocês já matabicharam? – preocupou-se.

- Si, patrão.

Há acasos que prefiguram artifícios de escrita, a modos que coincidências adrede urdidas para remedeio narrativo. Não é o caso, porque – acreditem ou não – começou-se a ouvir, ao longe, um roncar de motores. Suliman esboçou, duvidoso, um alento; os assalariados, mais crentes, bateram palmas numa agitação de espera certa. Parecia um retumbo a rasgar a imensidão, um compacto tropel paquidérmico à medida que se achegava. Quando os dois camiões, quais quadrúpedes resfolegantes, destrambelharam na angra do rio, a griteira foi tanta que nem a chegada de um Governador Geral...

- Toca a descarregar este, depressinha, que ainda quero ver se chego hoje a Mocuba! – berrou o condutor branco, abrindo a porta, antes de qualquer cumprimento.

- Chi, patrão! Mocuba hoje?! Tão longe, num vai chegar não...- espanta-se um preto.

- Longe ou perto eu é que sei! E, além do mais, não quero ficar muito tempo a cheirar esta catinga toda! – brutalizou, enquanto distribuía mãozadas.

- Senhor Ferreira, não era para ter vindo ontem?... – beliscou Suliman.

- Por mim, era na semana passada, só que em Molivala não se desenrascaram, atasquei a meio, isto nem são picadas nem são nada! É só deste camião! – advertia para os trabalhadores negros. - Cambada de chimpazés!... – salpicava, dirigindo-se à cabine de onde retirou uma geladeira térmica, abriu-a e distribuiu bazukas. - Não chega para este maralhal todo, é um gole para cada! Que é que você – virando-se na minha direcção - anda aqui a fazer, ó Alferes? - acabou por perguntar, depois de limpar as beiças, o madeireiro, meio irónico, meio provocador.

- A passear...O nosso amigo Suliman convidou-me e eu aproveitei...

- Tempo perdido, meu amigo, tempo perdido. Aqui os turras são estes chatos de Chefes de Posto que se julgam sobas desta merda toda...

- ...

Via-se que o Ferreira era um modelo do amancebado com os nepotismos administrativos da interioridade selvática, aquele tipo tarimbado em que os anos de permanência e o desbocamento intestino assoldavam a grosseirice.

- Com essa conversa toda não sei quando lhe vou pagar...- ripostou Suliman.

- Não se preocupe que, em Pebane, há quem o obrigue ou pague na sua vez. Estes monhés são piores que judeus!... – prosseguiu Ferreira na ostentação ordinária.

- Já viu, Alferes, esta modalidade de terrorismo?... – interrogou Suliman, enquanto o Ferreira, virando costas, se afastava para verter águas junto de um pneu. – Está protegido por cima e pensa que pode falar com todos da mesma maneira. Se me quisesse aborrecer...

- Racismo...

- Pior, falta de educação...

O condutor do outro camião, um misto, provavelmente de segunda geração, com aspecto algo polido, permanecia, quedo e mudo, de sorriso ambíguo só interrompido quando levava o gargalo da cerveja à boca. Salientava-se pela cala, como se estivesse ali fora de cena. Tinha um rosto loução e, nos olhos, vestígios de aptidões. Era, naquele ambiente, uma antinomia que, sem forçar, suscitava uma discrição tão recatada que ninguém, até à partida, lhe escutou ou pediu uma palavra.

Foi com indisfarçável e geral prazer que, terminada a descarga, o Ferreira e o seu companheiro (que só, então, lançou um sorriso franco) abalaram.

O regresso da serenidade devolveu Suliman ao seu mando. Guardou, durante uns minutos, um propósito reservado a recuperar do desconcerto inesperado.

- Têm que almoçar? – perguntou. - Trouxe uns bifes de javali. – acrescentou.

- Há uns restos. A gente desenrasca-se. De qualquer modo, e já que oferece, há muitos candidatos...

Recolhemo-nos a uma sombra e comeu-se a reciprocidade que deu para alguns soldados meterem as mãos nas marmitas de mandioca perante a hilaridade dos assalariados.

- Sabe – retomou o Chefe de Posto -, às vezes apetece-me pedir a demissão de funcionário administrativo e ir para Lourenço Marques ajudar os meus pais no comércio. Eu gosto disto, mas estes milandos de brancos desgostam-me. A fingir brincadeira, dizem as coisas mesmo com ganas de ofender. Nem disfarçam.

- Uma ou outra má criação. No geral andam aqui para ganhar a vida. Será que o cacimbo transtorna alguns?...

- Não me diga que acredita nessa história dos cacimbados...

- O clima altera as pessoas... Uma torreira de dia e um arrefecimento à noite que até entra nos ossos....E, depois, este isolamento...

- Ora... Ora... Esta gente já está aqui há mais anos do que eu tenho de vida. As cacimbadelas são um alibi para os destrambelhamentos... O que mata é andar por aí muita gente que ficou rica – não tenho inveja nenhuma, atenção -, criou relações de confiança, comprou poderosos que já partiram e outros que vieram de novo, julgam que fazem o que lhes apetece e a impunidade é tamanha que se transforma numa natureza, entende? – acentuou. – Para ganhar a vida não é preciso afrontar a honestidade – sentenciou.

- Mas olhe – interrompi -, tenha cuidado, as cumplicidades são mais que muitas. Confesso-lhe a minha incomodidade com conversas deste tipo porque nunca sabemos onde elas vão ecoar. E, para lhe ser franco, acho que os brancos de cá são como os de lá. Nunca foi à Metrópole? Deixe-se andar. Não me diga que a boçalidade do Ferreira o perturbou? Ele é só exemplo dele próprio.

- Gosto sempre de falar com a malta que passa por aqui na psico. Vocês parecem todos iguais, obrigados mas vieram, com caras de franqueza e receosos de tudo...

- ...

- No mato não há disso, meu caro... Isto é tão grande, tão sagrado e tão livre que até ficava mal uma denúncia... Refiro-me a esta zona, claro... Sabe que a Frelimo está a abrir uma frente em Tete? - perguntou Suliman, interrompendo a marcha da conversa

- Sei, sei...

- Nas outras, onde nunca estive, já não sei como é...

- É a contra informação militar e o que importa é que as perdas sejam poucas...

- Cabo Delgado?

- Montepuez, Macomia, Miteda, Mueda, por aí. Mas tudo bem que o império é uno e indivisível…

- Vocês são mesmo tirados a stencil...

- ...

- Não quer provar uma chamuça?

- Obrigado, são muito picantes, fazem-me mal.

- Tenho lá um cozinheiro, no Posto, que as faz melhor do que na Índia...

- Quando achar bem, podemos regressar, não queria chegar de noite.

- Já estou a ver que não vou ter sesta...

O regresso teve a moleza que a modorra impunha. A flora destilava e a fauna esticava a preguiça no aconchego das sombras. Só o eco dos motores desflorava aquela calmaria que tinha tanto de sagrado quanto de profano.
Continua.
- Porto, M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

    3/19/10

    SELVA EM PAZ - Capítulo I

    Capítulo I - O borracha, motor fora de borda, em várias travessias, colocou o pelotão na ilha de Edugo orlada de palmeiras, na embocadura do Zambeze com o Índico. Poderia ser, num prospecto turístico, um apelo de viagens de sonho; um daqueles lugares que os nostálgicos de paragens ignoradas procuram a vida inteira; lembrava um atol a rir-se da tecnologia.

    Após contactos com o Samaçôa, bivacámos no terreiro em frente da sua palhota, abrigados por uma desconforme mangueira. Antes que a noite chegasse, comemos os restos da ração do dia: concreto de fruta, doce de pêra em tubo de plástico, como o das pastas dentífricas, e fluido de chocolate. O céu estrelado distraiu-nos do desespero mosquitado e dispensou os turnos de vigia.

    Aliviados pela chegada da manhã, levantámos a tenda e perdemo-nos no paraíso de mil almas que vivem da mandioca e de algum caju donde conseguem uma aguardente postiça que lhes amoina as horas. É uma extensão administrativa do Posto de Bajone e, para irem e virem, deslocam-se em almadias, manobradas por remos espalmados em forma de guitarra, cirandando como barquinhos de papel pela correnteza de manhas conhecidas. Respira-se uma atmosfera de comunhão, colorida e sem pecado, a que não falta, sequer, uma rudimentar escola com paredes de bambu e cobertura de macubares num impressionismo tosco. A ordem de patrulha fixava, nesta paragem, a indagação de hipotéticos esconderijos de armamento e, a existirem, a sua captura. O Samaçôa, plágio fisionómico dum Gungunhana cinematográfico, rira-se, sonoramente, exibindo uma invejável saúde dentária, quando lhe manifestámos tais desconfianças. Dispensado o seu acompanhamento, batemos toda a ilhota, com demorada minúcia os outeiros de espinheiros, revolvemos círculos arenosos, aproveitando para lavar os corpos na rebentação das ondas, e confirmámos que melhor seria procurar uma agulha num palheiro. Antes da retirada, com a benevolência sorridente do corpulento caudilho deste pergaminho geográfico e da ganapada da escola, o enfermeiro fartou-se de dar consultas e distribuir comprimidos LM para o paludismo...

    Atroando a selva - essa contradição de medos assombrados e harmonias de Vivaldi -, com a bicharada a abandonar as bermas e repetidas proibições de apontar a guelengues destrambelhados, chegámos, motores a fumegar, às imediações de Mocubela envolta numa espantosa claridade a espreitar por entre as mucibes de uma chiteta. Demos conta de um mulola aprazível e, logo ali, lavámos as caras sem nos importarmos com alguns nemas que, na borda, pachorrentamente, matavam a sede. Um pouco adiante, abria-se uma pequena chana de capim rasteiro, atalhada por murilaondes e palmeiras de cinco andares nas quais cantavam chiricos e - pareceu aos mais entendidos em ornitologia tropical - alguns barucos de mau agoiro.

    Entrámos por um trilho, anavalhado no sopé de um monte, a desembocar num amplo quimbo em que tumultuaram, repentinamente, crianças desnudas, com barrigas de fuba, gritando aiués, pedindo quinhentas e disputando-as entre alegres tatiés e makas inocentes, ante a benevolência sorridente de velhos que, debaixo de uma mulemba, fumavam macanha como sobas à espera de vassalagem. Depois de os cumprimentarmos, em obediência à psico, dirigimo-nos ao Posto Administrativo, onde nos recebeu um descendente indiano. Depois de saudações efusivas, «Ora viva a civilização!...», facilitou-nos um telheiro nas traseiras dos seus reduzidos aposentos. No meio da conversa informativa da situação no terreno, arremedo de briefing de tropa menor, o jovem Chefe de Posto não resistiu ao seu memento familiar: filho de goeses, fugidos à invasão indiana, vociferava o seu anti-Nehruismo com uma convicção tão profunda quanto a aversão - quase ódio - marcada nos olhos. Despedimo-nos até à noite.

    Mocubela fica num elevado sobranceiro ao rio Muchode, encontro de rotas para Pebane, Mocuba, Bajone e Molivala. Talvez por isso, ou porque a ambição, muitas vezes, se gera no ventre da aventura e se sublima na desforra de um passado indigente, logo se nota, no bravio do lugarejo, uma cantina - sucedâneo de locanda metropolitana - em que tudo se mercadeja: mandioca, cigarros, cerveja, vinho desgraduado, chitas garridas, gingas, rádios a pilhas, castanha de caju, peixe seco, farinha, alpercatas, petróleo, levas de contratados para os mares de chá do Gurué ou para a construção civil de Blantyre e Quelimane, óculos de sol, balalaicas, um rol infindável de precisos e apelações que – aqui como em qualquer lugar - as barrigas dispensam mas os olhos comem. É uma daquelas terras em que se vive por desconhecimento de horizontes diferentes, fruição caciqueira ou voluntarismo solitário.

    Saltou-nos ao caminho um entroncado europeu de cara curtida pelo sol, olhos de eremita e sotaque das fragas transmontanas que a convivência autóctone não roubara. Tínhamos que o visitar no fim do dia, «desse para onde desse», para «bebermos umas cervejas e matar as barrigas de misérias, mas tem que ser o pessoal todo, ouviu?». Quando se confirmou a recíproca naturalidade regional quase nos esmagamos numamplexo de estremecimento: «Não percam muito tempo a andar por aí a gastar as botas e os canastros, aqui não há turras... Tomara Vila Real ter este sossego...»

    A volta pelas Regedorias não escapou das regras. Em todos os pontos onde uma vida - uma só que fosse - pulsasse, distribuíamos panfletos apólogos, oferecíamos préstimos de curativos primários, transportávamos os que vinham das machambas distantes, interessávamo-nos pelas rotinas dos seus viveres, distribuíamos cigarros; os que, por desconfianças atávicas ou recusativos assumidos, esboçavam fugas à nossa chegada, erguíamos as armas, bem ao alto, bradando palavras de pazeamento; nem mesmo nos locais em que as coordenadas da carta conjecturavam esconsos e exigiam interrogatórios, as ameaças se esboçavam ou a prepotência se materializava.

    Ao lusque-fusque, quando o sol levita num desmaio de paixão, as fogueiras inundam os terreiros, o mato se afunda num silêncio de justo, a bicharada se apronta para a caça da sobrevivênvia e os clamores irracionais do cio procuram respostas cevadas, o cantineiro transmontano, sob o alpendre da sua casa, distribuía Laurentinas geladas e sacos de amendoim.

    - Não encham a barriga já! Depois não há lugar para o churrasco! – galhofava o Senhor Joaquim, seu nome de baptismo, mas conhecido por Vila Pouca. – Aqui toda a gente tem que me chamar por Vila Pouca, falta o Aguiar, mas era muito comprido e não calhava bem aos ouvidos desta cambada...

    Abandonara a sua toca com carta de chamada de um primo estabelecido na Beira e enfeitiçara-se por uma mulata de corpo brasido. Como as servências familiares se cansam mais rapidamente que as estranhas, procurou um pouso em que fosse patrão. Tinha que ser um refúgio para, no desconhecimento, cumprir a sua felicidade, mas não um desterro sem poder desmaninhar o futuro. De fala em fala, pombos-correios verbais que vão tão longe que nem se percebe como chegam e não se perdem, andou por Mocuba onde já quase tudo estava desbravado. Tentou Pebane, com horizontes líquidos a abrir intentos, e cedo espertou que o seu assento deveria ser (re)criado na falta de concorrência... Descobriu, então, este lugar numa viagem de caçador, calculou necessidades de consumo e antecipou o prazer pelo espanto dos conhecidos.

    - Chamaram-me de tudo: maluco, cafre, fugido da justiça e da mulher, eu que nunca casei, nem caso... Eu sei lá!... Até um parente afastado, a quem escrevera, me comunicou que constava, lá na terra, que eu matara o meu primo e andava fugido no mato!... Um riso!... Sabe, conterrâneo, as pessoas do puto são mais maliciosas que esta pretalhada...

    Joaquim estava em África como se nunca tivesse sido de outro lugar. Bebeu água do coco, montou um arimbo, comprou umas bicuatas, arranjou um cabire para lhe espantar as invejas, mastigou muita ginguba, armou- se de maneliqueres e carabinas com que abateu fantasmas de ciúmes, caçou para a panela, perseguiu feras nos mangais e nos papiros de Marromeu, foi guia casual de safaris encomendados no Malawi, comeu cima com as mãos, encomendou-se a Nzambi, mandou ler os astros ao quimbanda mais afamado das redondezas, enfeitou-se de missangas, aprendeu o Macua e só não consultou os cuchcucheiros das lonjuras inóspitas, porque, já no chão natal, cimentara um ódio de estimação a todas as bruxarias desde que viu a Mãe matar galinhas e espalhar sal sobre o sangue para arredar maus olhados. A sua cantina e a lavra circundante, mais do que uma afirmação de posse, eram o seu entrelaçar africano, o seu pacto de sangue com aquela terra vermelha.

    - Sabe, Alferes, já tenho o meu rectângulo para ficar. É no cemitério indígena, sou igual a eles... Só há uma diferença: quero uma cruz à cabeceira, e a minha mulatinha tem que rezar, todas as semanas, enquanto for viva, um padre-nosso e uma avé-maria que ela já se converteu à nossa religião, percebe?...

    Lirila, a mulata do seu feitiço, de cabelos já brancos e barriga de alguns partos, ainda sinalizava, por entre as pregas do rosto de meia de leite escura, fagueiros antigos, engrandecidos por um riso que nenhum publicitário descobriria. Tinha o catitismo de uma matrona de favela brasileira ou de temba de coqueiros e a matiz da generosidade assimilada em comunhão de muitos anos. Pintara-se e aspergira-se para nos receber, distribuindo, de sorriso sempre feito, cervejas e pratos de mendubi como se quisesse quebrar acanhamentos. Domesticava a casa de alvenaria, construída junto à cubata antiga conservada como memorial, onde não faltava um gerador para iluminar as noites, alimentar a arca e o rádio, girar os discos e as ventoinhas de pé alto.

    - Tem filhos, Senhor Joaquim?

    - Cinco! – atirou sorridente. - Estão todos fora. O mais velho trabalha no chitengo da Gorongosa, anda lá a ensinar ricaços a caçar; dois estão em Lourenço Marques, um no comércio, tem um estabelecimento de roupas ali para os lados do Alto Maé, outro é escriturário no Polana. Os dois restantes, mais novos, um está nos serviços de terra da Deta, na Beira, e o mais novo de todos em Lisboa a estudar para advogado, vem cá uma vez por ano, de Julho a Setembro, quando são lá as férias grandes, mas o gajo já não está afeiçoado a isto, já me disse que, se calhar, ficava na Metrópole. Sabe como é, você para lá vai, os filhos só estão connosco quando lhes mudamos os fundilhos, depois querem andar à sua maneira, só servimos para calar as suas exigências. É a puta da vida, a gente cria-os e a mais não tem direito. Ó Mulher, então essas frangas nunca mais se comem? – rematou Joaquim, olhando-me matreiramente.

    Ao fundo do quintal, dois mainatos, que manobravam as brasas sempre alimentadas com repetidas doses de carvão, como se a pergunta fosse para eles, espevitaram pressas, «tá cási patrão!», e deram mais umas voltas aos galináceos espalmados na grelha.

    - Não acredito que o senhor fique aqui. Quando isto azedar vai até à terra.

    - À terra?!... – exclamou por entre uma trovoada de gargalhadas. – A minha terra é esta! Julga que estou a armar-me em fazendeiro rico? Não tenho sisal, nem algodão, nem copra, nem chá, nem gado. A minha fortuna é isto que aqui vê – apontando, displicente, para as paredes que nos albergavam.

    - A sua família...

    - A minha família está toda em Moçambique, Alferes! Os meus Pais já morreram, o casebre onde viviam voltou ao dono, aquilo era arrendado. Ia voltar para onde? Para a serra guardar cabras? Para as minas de Jales? Para a lavoura, andar com uma besta a lavrar campos? E, depois, aquilo em Portugal não interessa nem ao Menino Jesus. Aquele velho de Santa Comba pôs o País à fome. Aqui há tudo: carne é só pegar na arma, mandioca e fruta é só apanhá-la, ninguém me aborrece. Sabe há quantos anos não vou a Portugal? Desde que saí de lá!...

    - E se a Frelimo toma conta disto?

    - E qual é o problema? Estou convencido de que, quando o velho morrer, que o tipo não é eterno, isto vai logo parar às mãos deles. Os americanos já se ofereceram para resolver isto, e nós, os brancos, também resolvíamos, mas o Ultramar é uma mina para os ricalhaços de lá. Não tenho medo nenhum da independência, pergunte aí se alguém tem razão de queixa de mim, só a malandragem...

    - Então, a tropa que anda aqui a fazer?

    - Você quis vir? Vocês andam todos obrigados ou não será verdade? Estão aqui porque os mamões de lá, que têm interesses cá, é que mandam nisto. Isto é tudo uma questão de massa, mais nada, o dinheiro não tem cor nem pátria. – Batendo-me paternalista nas costas: - Não quero desanimá-lo, homem! Deram-vos cabo da vida, andam aqui pelos cabelos, e dizem-vos que é para defender a Pátria, não é? A Pátria fazemo-la nós, a Pátria somos nós, a liberdade dum sítio, a fome na grande puta que a pariu, as invejas no raio que as parta, o sossego, o sono santo de portas abertas, a miséria no caralho que a foda... Desculpe lá, ó Alferes, você é da minha terra, porra!

    - Nunca o chatearam?

    - Chatearam como?

    - O senhor fala sempre assim com as pessoas que não conhece, que nunca viu de lado...

    - Ah! Já estou a perceber!... – cortou sorridente. - Mas quem é que sabe que eu existo?... Eu entendo o que diz... O meu amigo não tem cara desses... Há quantos anos – levantando-se de sorriso escancarado e braços abertos - não vejo um transmontano!!! Dê cá mais abraço! A Pide, aqui, sabe, anda entretida com os turras.

    - Mas olhe que há muita tropa convencida de que está a defender a Pátria, não acredita nisso? Há muitas pessoas que pensam como o Senhor e isso soa-lhes a ingratidão.

    - Alferes, não me leve a mal, isto são desabafos de um cacimbado... O meu filho mais novo, qualquer dia, também vai para uma frente e então é que vai ser...

    Houve um mútuo descargo quando os mainatos anunciaram que estava tudo pronto. O senhor Joaquim gritou para o pessoal: «Toca a comer, malta! Se não chegar, assa-se mais, nem que esgote o galinheiro! Quem quiser com mais picante é só pedir!»

    O Joaquim era, indiscutivelmente, um inconsútil transmontano: tinha um sorriso espontâneo como as montanhas da nascença e uma generosidade larga como os vales que aquelas defendem.

    Quando abandonámos a sua quitanda já havia sombras dormindo nas caixas das viaturas e algumas nem se mexeram até chegarmos ao alpendre que o Chefe de Posto disponibilizara. Aqui, esperávamo-nos o jovem administrativo, sentado à soleira, a sugerir-nos uma visita, no dia seguinte, aos pontões da zona, mal o sol se levantasse.

    Com as barrigas cheias, alguma etilização e disputa dos melhores turnos de plantão, o sono foi tão pesado que nem o silêncio nos acordou...
    - Porto, M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
    Continua...
    • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

    2/09/10

    Aioé !

    (Clique na imagem para ampliar)

    Trago nos olhos a lonjura das savanas e no coração a saudade da inocência.
    Tenho o cérebro a estalar de memórias das picadas vermelhas e nas mãos o cheiro do capim.
    Repercutem-se-me na alma os ruídos das noites de vigia e sua-me o corpo pela angustia do não-regresso.
    Olho o mar.
    É grande, sem tamanho, os rigores do fim do dia a chorarem no horizonte.
    Não tem estradas que me levem à terra morena e já não há Niassas nem Impérios que acompanhem os peixes voadores.
    Da terra morena vêm-me notícias de fome a de guerra como castigo imposto por homens que lutaram só por si.
    O mar não traz os sons de África, nem a fragrância das queimadas ao entardecer.
    Não há lassidão - só lixo - na quietude das areias desertas, e um desapego de víola cigana que geme (ou grita?) para os lados do acampamento onde se fazem cestos com os vimes da solidão.
    Do lado de cá ao mar não há tembas de pó com embondeiros crucificados.
    Nem veredas de acácias rubras ou coqueiros de brincos dourados.
    Não há crianças de sorrisos brancos e olhos doces.
    Nem seduções de batuques em terreiros de flores.
    Nem descobertas de frutos, palhotas de bambu ou almadias com peixes prateados.
    Não há velhos, com cabelos de arame farpado, fumando a liamba do esquecimento, nem velhas de cigarro ao contrário, guardando a cinza como um borralho contra o frio.
    Nem sequer o silêncio das horas sem relógio e raparigas estilhaçando, por entre dentes de raízes da selva, o riso do encantamento.
    África de insondáveis mistérios, terra de fogo e céu de mar, desejos (in)satisfeitos no veludo sensual dos corpos, na virgindade da natureza-primeira, nos apelos distantes do frêmito e da racionalização enlouquecida.
    Manhãs nascidas num espanto tão súbito que o dia chega a parecer uma constância sem penumbra, uma orgia de calor e de suor num mundo de carne despida.
    Do lado de cá do mar não há musas africanas cozinhando a mandioca nas brasas da paciência.
    Nem batinas brancas evangelizando as primaveras da inocência.
    Nem um sol a morrer como se a vida abraçasse a morte num beijo de eternidade.
    Não há, não há mesmo, a melancolia das folhas da selva anunciando - como gotas condensadas num vento funerário - a chegada da reclusão do fim da tarde.
    Aioé! Amigos que deixaram os sonhos nos caminhos vermelhos do sangue, os braços desfeitos nas minas da traição.
    Aioé! Embondeiros de Cabo Delgado, palmares da Zambézia, negras de corpo afeito às noites dos remorsos brancos, batuques de febres enfeitiçadas.
    África: Aioé!
    - Porto, 03/07/04, M. Nogueira Borges - "Miradouro"
    • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

    12/29/09

    Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulos XV, XVI e XVII


    Não Matem A Esperança - Capítulo XV
    Dezoito horas.
    Os soldados rodeiam a fogueira onde coze o arroz que, com sardinhas de conserva, será o jantar. As armas quedam-se silenciosas, mas bélicas, junto deles e de mim. Os rostos dos soldados brilham distintamente à luz viva das linguetas de fogo, desenhando-lhes os contornos. Há os que riem com as anedotas contadas para passar o tempo; há os que fitam, sem pestanejar e de lábios colados, a panela que se vai sujando de fumo.

    A lua, medrosa, começa a sair do ovo imenso que é o céu com a cor da noite. No poente longínquo, os restos de sol, como nos últimos focos dum incêndio gigantesco, tocam a selva. Vai escurecendo dum modo saudoso que nos dá uma sensação de frustração. Relampejando de x em x instantes, umas faíscas nervosas mostram-nos formas mal definidas de nuvens escondidas, esbranquiçadas e gorduchas de água, antecedendo os trovões que, na solidão do mato, são como urros de monstro revoltado.

    Na base do planalto em que estacionámos, desenha-se uma circunferência escura e compacta de mata. As copas e os ramos juntam-se, desprendem-se, abraçam-se, agridem-se, formando um todo que, visto de longe, se julga impossível penetrar. No seu seio, contudo, há uma vida animal e febril mais respeitadora que as dos homens. No lado norte, erguem-se as labaredas de uma queimada que conseguiram furar a cúpula selvática e expandirem-se livres e triunfantes.

    Os homens encarregados da segurança vigiam o sector de observação que lhes foi confiado.

    O cozinheiro de ocasião avisa que o «jantar» está pronto. Come-se para sossegar a barriga. Uns, engolem lentamente e em silêncio, deixando ver perfeitamente a saliência que, na garganta, o arroz forma rumo ao estômago; outros, aqueles a quem a vida ensinou a serem optimistas (questão de hábito?), separam cada colherada com comentários que têm qualquer coisa de forçado.

    Depois, a maioria, conversa. Alguns, mais sensíveis a estas coisas, retiram-se assobiando, baixinho, modas das suas terras; outros, ainda, como pasmados perante coisa nunca vista, fixam a lua com lábios em movimento, num monólogo interior.

    A noite está adiantada para aqueles que vivem na selva. A lua é rainha. A orquestra do mato toca a sinfonia da vigília nocturna.

    Acomodo o meu saco de dormir na cabine da viatura e deito-me, encolhido, no assento. Na caixa, os mais atrasados em procurar posição, impacientam-se até que ficam. Encosto melhor a cabeça à camisola que faz de travesseiro e adormeço com a lua a trazer-me saudades de alguém. De ti Rosita.

    No lusco-fusco, os derradeiros fios solares entranham-se no matagal como serpentinas prateadas em confuso folgar. O capim alto ou rasteiro, as mangueiras, cajueiros, maúmas, lusares, tudo isto e muito mais se espaceja ou complica, agarra aqui, solta acolá, e de súbito, se, se contar, aparece uma clareira para uma machamba, para uma palhota e, às vezes, até para uma «temba», onde em noites de luar sedoso se dança o batuque para espantar espíritos maus que trazem a doença irremediável. E, acordando, repentinamente, o silêncio sepultado no inexplicável da noite, o piar taciturno do milhafre anuncia a chegada da toutinegra, murrambé, marrié, namurire e de mais passarada nocturna que toma conta das horas mortas.

    Enquanto os homens dormem no seu descanso merecido, eu sonho, velando, com uma terra onde o amor seja sincero. Onde o homem seja respeitado no corpo e na alma. Onde os ruídos de guerra sejam o esvoaçar de aves por entre palmeiras; sejam risos de crianças sem fome; sejam os toques dos sinos, entoando as avé-marias, ao entardecer, na minha aldeia. Uma terra onde os homens caminhem de mãos dadas; se sentem a uma mesa e falem e raciocinem e resolvam na paz, no amor, na justiça feita verdade, não percam tempo nem dinheiro nem brinquem com os povos; se lembrem que a RAZÃO é a única força da vida, que nela assenta a formação do mundo e do homem; que negá-la é negar a existência daquilo que somos e em que vivemos, é aprovar o sofisma. Podem-se fazer milhares de acordos selados pelo dobro das assinaturas, mas se não forem acordados e selados pela RAZÃO, todos eles serão negativos e ofensivos, apenas farão procriar ódios e vinganças, revoltas e perseguições, guerras e mortes, apressando o mundo para o seu fim mais injusto e cruel: a sua destruição.

    - Então, pá, alguma novidade?
    - Nada.

    Porque será que os homens precisam de olhar pela sua segurança? No mundo que sonho não seria necessário: os homens dormiriam de portas abertas, falariam com os corações abertos, competiriam para a vitória de todos, trariam sempre nos olhos a imagem dum Cristo Histórico extenuado na cruz.

    E no meu adormecer lento e tardio, o feixe prateado dum luar poético traz-me a esperança desse mundo, no seu manto límpido, optativo duma realização futura.

    Não Matem A Esperança - Capítulo XVI
    A noite estava a nascer da barriga do dia. Eram cinco horas de Land-Rover. O calor apertava ainda, criando riachos de suor no corpo. Dois furos, quase seguidos, arreliaram a nossa paciência e a do «monhé» que atrasou a sua viagem para nos ajudar. Os solavancos, provocados por buracos-surpresa na picada, faziam-nos dar saltos de marsupial. Devíamos chegar ao acampamento antes da lua. Lá, arranjaríamos um «pisteiro». Um javali, perdido, obrigou-nos a outra paragem. Saltei. Levei a arma à cara. Apontei. Olhou para mim. Emocionei-me... Deu meia volta e partiu à desfilada...

    - Então não atiraste?!
    - O tipo não estava quieto...

    Partimos de novo aos saltos. Pus-me de pé. Ofereci-me à brisa do entardecer, deixando que ela me chicoteasse a face, revolvesse os cabelos, refrescasse o corpo. Acalmei. («Bolas, falhar um javali!...»). De quando em vez, um negro desmontava da sua «ginga» e cumprimentava cheio de salamaleques, uma saudação demasiado espectacular, não sincera, consequência duma tradição imposta, nem sempre pelos métodos mais próprios.

    - Cautela! Agarrem-se!

    Finquei-me bem de pés e mãos e o pontão foi passado não sem novidade: uma garrafa-termos, que levava cerveja, partiu-se.

    - E agora?...
    - Não se bebe...

    Um bando de macacos atravessou a estrada, lançando à nossa passagem guinchos estridentes. Olhei para trás e vi alguns empoleirarem-se nos braços duma mangueira.

    Chegámos ao acampamento.

    Falámos e bebemos cerveja gelada com um caçador profissional: atarracado, mas entroncado de rijos músculos, tez morena, abundante calvície, falares e modos desembaraçados. Ama o mato. Enfiou-se nele novo. Construiu casa de alvenaria, casou com uma mulata, aprendeu a matar caça e a vendê-la, ninguém o chateia, vive para os filhos, os negros respeitam-no, nuca teve «milandos». Detesta as cidades. Adora a simplicidade do viver na selva. Emprestou-nos um pneu sobresselente, agradecemos o acolhimento e partimos. Sem «pisteiro» porém. Não apareceu nenhum.

    A noite germinava. Como uma flor se abrindo. Como um ser humano sem maldade e sem estupidez. Com ela todo o seu fantástico festival de sinfonias dos bichos-habitantes dum mundo misterioso, dos uivos distantes da quizumba, de estrelas avulsas crivadas num céu de imensidão que impressionava e subjugava. Como era bela aquela noite no mato! Quem me dera ser poeta autêntico para transmitir a beleza, a ânsia, a alegria, a tristeza por mim sentidas nessa noite tão metafísica da minha recordação! Apetecia me ter asas e voar por aquela escuridão imensa. Rebolar-me no capim já cacimbado, reunir os bichos todos daquela noite e, juntos, entoarmos uma poesia-mensagem feita de paz e amor que ecoasse por todos os cantos da terra! («Lírico» - dirá o leitor. «Não!» - brado.).

    O condutor bateu com a mão na porta.

    - Que é?
    - Leopardo!
    - Onde?!
    - Ali!

    Dois olhos amarelos e brilhantes estavam hipnotizados pelos faróis. Tiraram-me a arma das mãos. Não me mexi. Um chorar cortante. De esfrangalhar os nervos. Um calafrio terrível, gelado, a, percorrer-me a espinha. Os pêlos, como agulhas, em pé. Senti-me mal disposto, sem forças. O tiro falhara e fiquei satisfeito que assim tivesse sucedido.

    Virámos à esquerda, deixando a picada principal. A princípio, o capim era escravo de grossas mangueiras e cajueiros. O trilho largo, aberto pelo primeiro carro que lá entrara e consolidado pelos seguintes, seguia por entre mato denso que roçava o Land-Rover; alguns ramos, mais inclinados, obrigavam-nos a baixar a cabeça; os solavancos eram maiores. Algumas queimadas dispersas ardiam sonolentas, empestando o ar dum cheiro acre e abafado. A lua, com o seu D mentiroso, chamava as estrelas.

    - E se parássemos para comer qualquer coisa?...
    - Mais logo...

    Ligou-se o farolim à bateria e os faróis apagaram-se.

    - Agora nada de atirar ao calha!...

    Procurei, assim como os outros, posição certa e começámos a seguir o jacto do holofote. O mato espesso, entrecortado por algumas clareiras queimadas, não dava grandes esperanças. Ansiávamos a planície. («Lá a caça é maningue!»). O bater cavo duma mão no tecto do tejadilho. A viatura parou. Cegos pela luz dois olhos reluzentes.

    - Atira tu...

    O tiro partiu, seco como uma chicotada e a lonjura trouxe-nos o eco. Grunhidos diferentes, aqueles grunhidos duma fera ferida, disseram que a bala acertara. Saltei e embrenhei-me na vegetação, guiado pelo foco. Perdi-me em procuras, seguindo os movimentos daquele. Regressei desolado...

    - O «tipo» rastejou. Não pode ir longe.

    Alguns milhanos apareceram e, como um comboio saindo de um túnel, entrámos na planície. Esmagadora! O céu formava um arco de horizonte a horizonte, ligando-os. A lua e as estrelas pareciam maiores. O capim rasteiro dava-nos liberdade de visão. Senti-me pequenino. Olhava para o alto, girava os olhos à volta, e tinha a sensação de ser submetido por algo que não via.

    - Pára!

    Mais uns olhos obliterados. («Não posso falhar!»). E não falhei. O chango dava às patas em aflitos estremeções. Os seus olhos tristes e nevoentos traziam-me um sinal de morte. Tentou erguer-se, numa manifestação última de vida, e tombou. O seu ventre, ainda a latejar, só deixou de parar quando o seu corpo retezou finalmente. Içaram-no para a caixa de carga. Acendemos uma fogueira que nos daria a direcção conveniente se nos perdêssemos naquela vastidão. Puxei dum cigarro. Uma travagem brusca e aí vou eu, de cabeça, direito às pernas do homem que ia a farolar. Quando me levantei já o tiro fora. Outro chango. Mais dois olhos de morte a acompanharem-me. O cacimbo gelava-me o corpo, penetrando-me os ossos. Vesti uma camisola grossa, mas, mesmo assim, não aqueci. Voltei a sentar-me e a contemplar aqueles olhos muito abertos, como se quisessem perguntar qualquer coisa, olhos que nenhum mau feitiço lançaram a quem os matou. Comecei a chatear-me daquilo. Pensei que fora um homem que matara sem razão, sem verdade, nem sequer com honra, nem igualdade de situações: farol para ali, olhos fixos e mata! Há alguma ombridade?! Entreguei a arma e preparei-me para adormecer, encostado aos corpos mortos de dois seres roubados à selva.

    Não Matem A Esperança - Capítulo XVII
    O avião chegara ao fim da tarde e trouxera o correio. Teve uma carta da mãe. Falava-lhe da sua casa, da sua terra, de saudade e tinha palavras de incitamento suave e maternal à paciência e esperança humanas. Uma frase, porém, lhe ficara e se agitava dentro de si: «Meu filho tenho esperanças em ti. Ainda és novo e hás-de ser alguém.». Aí estava. Sim, ele queria ser ALGUÉM válido que as gentes vissem que merecia a pena ser meditado. Desejava-o muito. Queimava-o um fogo quente e acariciador, provocando-lhe o nervosismo dos insatisfeitos. Um fogo que o enlouquecia de ânsia de concretização. Não era vaidade nem ambição exageradas. Era um desejo humano de se realizar, consciencializar, e mostrar aos cretinos algo que os tornasse mais imbecis e aos racionais oferecer uma ajuda para a sua luta contra os portadores de fantasmas.

    Lá fora, o sossego era violentado pelo coaxar dos batráquios no atoleiro, pelo pipio das aves vadias da noite, pelos «uis» agoirentos, soando ao longe, das hienas manhosas, e que tinham qualquer coisa de sicário. As estrelas, na altura, estavam privadas de lua. De quando em vez, uma mudava de sítio numa correria maluca até se perder sem que mais a nossa vista a alcançasse. O gravador falava baixinho (o botão de som estava no 2) as músicas da sua preferência. A bobina rolava lenta. «Abriu» José Gomes Ferreira:

    Há anos de raiva
    Que te busco em vão
    Melodia!

    A sua melodia era a esperança. Esperança de encontrar nas horas do amanhã a efectivação de todos os seus ideais, repletos de mensagens gritantes de revolta e nojo pelos homens que se assassinam mútuamente; de mensagens triunfantes de amor e alegria para com os povos que vivendo na liberdade, lutando com as armas da inteligência, da razão, do suor e da vontade indómita de vencer pelo trabalho honrado, esgadanhando a terra desértica e escaldante com as suas próprias mãos, plantaram as árvores que deram os frutos das belas realidades sociais.

    Mas quem te ouve, Melodia,
    Para além do contorno do silêncio?

    Não seria apenas no limite do silêncio que a sua voz se escutaria. Havia de gritar, mais alto que o trovão, a sua raiva contra os homens estultos, dominados pelas algemas da estupidez.

    Pobre voz que trago em mim
    E há-de morrer ignorada
    Nas trevas dum sol profundo
    Sem luas de superfície

    A sua voz seria para os que a quisessem ouvir. Havia de nascer no fulgor duma aurora de liberdade, misturar-se com o chilrear das aves bem dispostas da manhã, penetrar nos corações das gentes, prolongando-se pelas noites de lua cheia ou lua nova ou quarto crescente ou quarto minguante (todas as noites de todas as luas). A sua voz não morreria ignorada pelas pessoas honestas.

    O vento divulgava-se pela rede antimosquiteira da janela, como se viesse fazer coro com a música, com a poesia, com os seus pensamentos. O relógio duma Igreja tropical repetiu doze vezes o mesmo som. O seu colega de quarto entrou.

    - Então pá?
    - Então o quê?
    - Nada de novo?
    - Novo? Mas isto é sempre a mesma porcaria?

    Ele sorriu significativamente. Puxou dum cigarro e leu mais uma vez: «(...) Ainda és muito novo e hás-de ser alguém.».

    Fechou-se a luz e. olhando a ponta do cigarro, repetia só para si: «ALGUÉM... ALGUém... Alguém... Alguém... alguém...».
    - Manuel Coutinho Nogueira Borges